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Platão e o Ocidente (II): Da Cristandade à sociedade de massas – por Marcelo Consentino

Filosofia | 20/05/2016 | | IFE CAMPINAS

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Escola de Atenas (1509-10), de Raphael. No centro e à esquerda, Platão; à sua direita, Aristóteles.

“Escola de Atenas” (1509-10), de Raphael. No centro e à esquerda em pé, Platão; à sua direita, também em pé, Aristóteles.

“Our passions give life to the world. Our collective passions constitute the history of mankind… The heart of man either falls in love with somebody or something, or it falls ill. It can never go unoccupied. And the great question for mankind is what to be loved or hated next, whenever an old love or fear has lost its hold”.

(Eugen Rosenstock-Huessy, Out of Revolution).

 

As três fontes do Ocidente

No despertar da civilização ocidental três grandes povos despontam no horizonte: Grécia, Roma e Israel. Três grandes reis que vêm depositar no berço da civilização nascente seus dons mais preciosos.

A oferta da civilização grega pode ser resumida em uma palavra: humanismo. Com uma liberdade inaudita a todas as antigas culturas orientais, os gregos destacaram contra o panorama cósmico o corpo, o rosto e a alma humana em toda sua plenitude. Na Grécia a figura humana ganhou finalmente contornos, peso e densidade dignos da sua condição. A cultura helênica se inicia com um grande herói humano e se encerra com outro, o primeiro mítico, o último real: Aquiles e Alexandre. A resposta de Édipo ao enigma da Esfinge é “Homem”! Sob o sol mediterrâneo, o mármore claro e a geometria da arquitetura grega criaram espaços perfeitamente adequados à escala humana. As artes plásticas, especialmente a escultura, conquistaram o domínio perfeito da representação do corpo humano com todos os seus nervos, elasticidade e força atlética. Na política vislumbra-se pela primeira vez a idéia de um governo realizado pelos homens e para os homens: a democracia. “Conhece-te a ti mesmo!”, diz ao homem o oráculo de Delfos, enquanto Píndaro conclama, “Torna-te quem és!”. Sua mitologia antropomórfica é ainda hoje um fascinante teatro das paixões humanas. Na Grécia, diz Schiller, “enquanto os deuses se tornavam mais humanos, os homens se tornavam mais divinos”. Entrando na psique, seus poetas saíram com os germes da poesia lírica e da psicologia. E, acima de tudo, a filosofia se lança com convicção na aventura do conhecimento. Fundando os alicerces da metafísica, das ciências naturais e da ética, sua confiança na capacidade do homem de conhecer verdades e valores universais – válidos para todos os homens em qualquer tempo e lugar – legaria para todos os séculos posteriores o ideal do perene, do “clássico”. Em suma, a Grécia explorou com audácia todo o universo da criação humana em seus mais diversos recantos, modelando de algum modo cada uma das formas que compõem aquilo que hoje chamamos de cultura.

Mas caberia a outro povo mediterrâneo a missão de plasmar os valores ideais da cultura helênica em instituições e leis reais. Roma realizou aquilo que os gregos jamais conseguiram: uma unidade política de fato. A formidável capacidade técnica e o instinto pragmático dos romanos expandiram a cidade (urbs) pela Europa, África, Oriente Médio e Ásia, enfim, por quase todo o mundo conhecido (orbe), movida pelo ideal de uma cidade universal regida por uma lei comum e imparcial – uma “casa comum” para os homens (oikoumene). A idéia de um Estado civil é sem dúvida a grande dádiva dos romanos ao Ocidente e à história universal.

Por último, o povo aparentemente mais desprezível dos três traz escondido sob sua túnica semita o maior e mais arcano de todos os dons. Israel revela ao mundo o Deus único: um só Criador para todas as criaturas, um só Senhor para todos os homens. A fé dos patriarcas, a Aliança de Moisés no Sinai e a voz solitária dos profetas revelam que as vidas humanas não estão simplesmente abandonadas à roda trituradora dos ciclos cósmicos. O homem é chamado a selar um pacto de união com o Altíssimo, “aquele que é, foi e será”, aquele que está acima do cosmos e o domina com sua potência – Adonai, o Senhor! Não estamos à deriva. Há uma Providência, um caminho, e todas as estórias humanas se entretecem numa única História, um drama universal entre os homens e Deus.

Mas junto com seus dons, isto é, suas convicções mais profundas, cada um desses povos levava consigo a consciência amarga de um falimento e a esperança de renovação.

Como se disse, a cultura grega jamais teve a força intrínseca de unir seu conglomerado de poleis numa nação. As únicas vezes em que isso aconteceu foram ante a ameaça extrínseca dos persas. Mas logo em seguida, as disputas fratricidas entre Atenas e Esparta arrastariam todas as cidades do Peloponeso a uma terrível espiral de violência e vingança, ao mesmo tempo em que as tragédias de Ésquilo e Sófocles lamentavam a força demolidora do Destino. E a ficção se tornaria realidade na condenação de Sócrates pela assembléia ateniense. Ao receber o veneno de suas mãos o velho mestre, sempre generoso, não deixou de retribuir com uma advertência: “Está na hora de partirmos, vocês para a vida, eu para a morte. Quem de nós está indo para o melhor destino, só mesmo os deuses sabem”. Conhecemos bem o destino de Sócrates. O da cidade seria sucumbir diante de macedônios, romanos, turcos e assim por diante, até ser reduzida às ruínas que hoje recortam a colina da acrópole.

Sabemos que sob a pax civil desfrutada pelos cidadãos romanos havia uma vasta massa de escravos esmagada pelo poderio militar da República, a qual despejava todos os anos milhares de homens em seus circos, onde eram devorados por bestas e mutilados entre si só para satisfazer o sadismo do patriciado, não menos que da plebe. A habilidade política e militar de Júlio César o ergueria ao posto de imperador e a piedade calculada de Augusto à condição de um deus e sumo-pontífice, mas logo depois o Império tornar-se-ia rapidamente instrumento de arbitrariedade e tirania, ao longo de uma série quase ininterrupta de imperadores incapazes, dementes e homicidas. Roma não foi invadida pelos bárbaros – apodreceu a partir de dentro.

E quanto a Israel, a maior parte de sua liderança religiosa consumiu-se numa paixão obsessiva pela interpretação e aplicação da letra da Lei. Separando rigidamente a justiça da compaixão, envolveram a consciência do povo com uma malha tão apertada de deveres legais, escrúpulos morais e prescrições religiosas que a própria Lei corria o risco de se petrificar no mais opressivo dos ídolos, enquanto a aventura iniciada pelo pai Abraão, por Isaac e Jacó, parecia se engessar por completo. Contra este moralismo farisaico ergueu-se a voz dos profetas – “Basta de sacrifícios e oblações! Não suporto mais seus bodes e touros. Quero um coração misericordioso”, clama Yaweh pela boca de um deles. Mas também os profetas seriam perseguidos, calados e assassinados, não raro com o consentimento do povo.

A civilização ocidental nasce em uma atmosfera de angústia e incerteza. À medida que Roma declinava a olhos vistos, milhares de pessoas se abandonavam à dissolução moral e ao culto do cinismo. De outra parte, ventos vindos do Oriente envolviam os corações com um sombrio ar fatalista. Assim, para quem não fosse insensível como um estóico, inconseqüente como um epicurista ou prepotente como um gnóstico – de resto, todas elas tentativas diversas de evasão diante de um mesmo fundo pessimista e mórbido – restava somente a vaga nostalgia de uma comunidade que fosse unificada (como o ideal romano), consagrada por Deus e a Deus (como Israel), e orientada por princípios universais (como o ideal grego). Esta era exatamente a Novidade (evangélion) que mensageiros vindos da Palestina vinham anunciar: uma comunidade (ekklésia) una, santa e universal (katholiké). Esta era a mensagem proclamada, em língua grega, por apóstolos como Paulo de Tarso, judeu de nascimento, fariseu por formação e cidadão romano: a promessa de um novo reino, o Reino de Deus, governado por um homem, o homem novo Jesus Cristo.

A essência do Cristianismo

A fé dos primeiros cristãos não se fundava em fórmulas abstratas, mas na crença em um acontecimento concreto revelado pelo nascimento, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo: a perfeita união entre o homem e Deus. Eis o mistério da Encarnação: Deus se fez homem para que o homem se tornasse Deus. Cristo é não só Filho de Deus, mas filho de Maria; não só luz que vem do alto, dos céus, mas criatura que surge de baixo, da terra; não só graça de Deus aos homens, mas oferenda dos homens a Deus. Jesus Cristo “perfeito Deus, perfeito homem” é o dogma fundamental e único do qual se desdobram todos os outros dogmas cristãos e é a rocha contra a qual se bateram todas as heresias. Em sua fórmula final entalhada no século V pelo Concílio ecumênico da Calcedônia, o dogma da Encarnação enuncia-se como a perfeita união, sem confusão, de duas naturezas distintas, mas não separadas: a divina e a humana. Aponto ao leitor que união sem confusão e distinção sem separação compõem a própria definição de amor, de modo que o corolário desta fórmula é que, em Cristo, Deus e o homem se encontram reunidos em um perfeito, íntimo e absoluto laço de amor.

Compreendo que tal fórmula pareça a uns absurda, a outros inaceitável ou a outros ainda, como eu, imensamente misteriosa. Mas o que ninguém poderá negar e que é simples… extraordinariamente simples. Não tenho a intenção aqui de convencer ninguém de sua verdade. Mas – para o bem ou para o mal – é um fato empírico, histórico e indisputável que nossa civilização foi construída a partir desta crença – por homens que viveram e morreram por ela. Crença segundo a qual Cristo – manifestando a potência do Pai e a ação do Espírito Santo – revela plenamente não só o Deus que Israel anunciava, como também o Homem que a Grécia buscava. E, sendo o verdadeiro Deus-homem – em contraste com a divindade auto-outorgada dos imperadores romanos –, é também o verdadeiro mediador (pontifex) entre os homens e Deus e, portanto, a cabeça de uma nova humanidade e raiz de uma nova Criação.

Penetrando profundamente as estruturas das sociedades antigas, esta fé atingiu seus conflitos mais radicais, colidindo com as contradições intrínsecas pelas quais Grécia, Roma e Israel agonizavam. Os gregos contemplaram num céu estrelado e harmonioso as idéias eternas e universais, mas entre nosso mundo precário e esta galáxia luminosa havia um abismo instransponível e, na prática, jamais conseguiram estender estes valores aos outros homens, o que significaria ultrapassar a cisão radical entre helenos e bárbaros. Do mesmo modo, todo o zelo dos romanos pelo Direito e pela Justiça – por uma constelação de leis comuns, imparciais e equânimes –, jamais chegou ao ponto de romper as correntes que aprisionavam a multidão de escravos pela Cidade e pelo Império. Se Roma queria construir uma “casa comum”, queria-a com escravos. E, por fim, a paixão dos profetas hebreus por cumprir a vocação israelita de ser a “luz das nações” apresentando-lhes os tesouros do Templo, tampouco foi capaz de erradicar o nojo atávico que os judeus sentiam pelos pagãos – tão atávico que o próprio São Pedro, antes de se decidir pela aceitação dos não-judeus à jovem comunidade cristã, é acometido por uma visão em que observa uma imensa toalha descer do céu repleta de “répteis e quadrúpedes de todas as partes da Terra” e ouve por três vezes a voz do Senhor que lhe diz: “Engole!”

Helenos (cultos) e bárbaros (incultos); cidadãos (livres) e escravos (prisioneiros); judeus (consagrados, eleitos, puros) e gentios (profanos, rejeitados, impuros) – diante de Cristo, diz São Paulo, todas estas diferenças se dissolvem, pois Deus não faz acepção de pessoas. Aos olhos da eternidade, há somente uma distinção que importa: entre o homem novo e o homem velho; entre o homem espiritual e o homem carnal; entre aquele que busca o bem e aquele que serve ao mal.

Intermezzo. Novamente os princípios platônicos

Tendo isto em mente, é hora de rolarmos a roda do tempo e acompanharmos os desdobramentos da civilização ocidental até os nossos dias. Mas antes, convém lembrar as premissas categóricas de análise estabelecidas na primeira parte deste artigo (v. Dicta & Contradicta 2, pp. 88-97).

O homem é uma criatura tripartite – relaciona-se com três dimensões da realidade que, embora distintas, encontram-se íntima e ontologicamente unidas: a dimensão natural, a dimensão propriamente humana e a dimensão divina. Uma abaixo de si, outra em si e diante de si e a terceira acima de si. Há, decerto, ateus que negam esta última dimensão. Mas por mais que o agnosticismo e o ateísmo tenham nos últimos tempos se disseminado por toda a nossa cultura, vistos no conjunto total das sociedades humanas desde a pré-história até os nossos dias representam um fenômeno tão ínfimo e infrutífero – diga-me o leitor quantos monumentos conhece erguidos às glórias do ateísmo? –, tão infrutífero, dizia, que podem ser considerados uma anomalia cultural, não podendo ser tomados como termo de medida da condição humana, do mesmo modo que a patologia de um lunático que dissesse que o céu é vermelho não invalidaria a crença comum de que é azul. De resto, um ateu que olha para o alto e diz que não há nada, de todo modo olha e diz algo – relaciona-se com o transcendente, ainda que de maneira puramente negativa, simplesmente para negá-lo como fez o pobre Nietzsche antes de mergulhar em sua demência. Há um impulso natural para o alto e isto é um fato histórico. A religiosidade – ou espiritualidade como queiram –, por mais variadas e obtusas que sejam suas expressões, pertence à estrutura essencial do ser humano, à própria dinâmica de sua existência.

Tanto quanto na vida individual, a vida coletiva se organiza na relação com estas três dimensões. Há em primeiro lugar comunidades naturais, como a família, e, além disso, associações de pessoas que se organizam com vistas a atuar sobre os recursos naturais de toda ordem a fim de obterem bens particulares – tais são as corporações privadas. A produção e troca destes bens formam a dimensão econômica da sociedade. Além disso, os indivíduos e seus grupos formam ainda uma estrutura comum destinada a tutelar precisamente um bem comum dentro de um certo tempo histórico e um certo espaço geográfico comuns. Esta estrutura configura o Estado secular (ou seja, mundano, temporal), que organiza as relações dos homens entre si, com seu sistema normativo de direitos e obrigações – em outras palavras, o Direito positivo ou consuetudinário –, sendo a forma em que se realiza a dimensão política. Por último, há um bem absoluto e universal que a um só tempo transcende e toca todos os tempos e espaços, tanto quanto indivíduos, sociedades privadas e nações. A esfera que organiza as relações coletivas dos homens com este Bem pode ser denominada religião, a qual se atua nas comunidades religiosas em suas diversas confissões.

É uma das teses deste artigo, inspirada pelo pensamento de Platão, que esta estrutura ternária é comum a toda a sociedade humana por sua própria natureza. Isto não significa de modo algum que se possa encontrá-la sempre diferenciada ao longo da história. Nas sociedades primitivas, com efeito, praticamente não há divisão do trabalho e é comum que a função de líder político e religioso se encontrem fundidas na figura de um rei-sacerdote ou coisa parecida. O mesmo vale para as grandes teocracias da Antiguidade. O processo de distinção e autonomização destas três esferas é uma conquista histórica longa e agônica: uma sucessão de conflitos, fracassos e superações, por vezes lentos e tenazes, por vezes explosivos. Mas em nenhum lugar como na civilização ocidental este processo atingiu contrastes tão claros e expressivos. Na verdade, este impulso de diferenciação através do qual cada uma destas esferas tenta se destacar e se afirmar diante das outras está na própria essência do Ocidente – é seu traço originário e original. Com efeito, a história desta civilização até os nossos dias é propriamente a história do conflito e da distinção entre a religião, a política e a economia, encarnadas respectivamente na Igreja, nos Estados nacionais e nas sociedades econômicas privadas. Esta é a sua substância, e é sobre este drama que nos debruçaremos a partir de agora.

O passado: Cristandade e Modernidade

O Cristianismo jamais se opôs ao Estado laico enquanto tal. Bem ao contrário, a distinção e a legitimação da sociedade temporal ou laica perante a sociedade espiritual ou religiosa – do Estado perante a Igreja – fora já estabelecida desde o princípio pelo próprio Cristo quando diz claramente “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. A bem da verdade, a distinção entre o sacrum e o profanum só se tornou possível historicamente dentro da visão de mundo cristã, na medida em que se opunha precisamente ao princípio pagão do Estado sacro ou divinizado encimado por um imperador ou déspota adorado como um deus ou seu mandatário. Contra isto sim os primeiros cristãos se opuseram, pagando não raro com o martírio.

Em pouco mais de dois séculos, porém, a nova fé se propagaria por todo o Império, e o Estado não só suspenderia as hostilidades contra os cristãos, como, na pessoa do imperador Constantino, buscaria a sanção da Igreja ao seu domínio político. Tratava-se, todavia, de um simples compromisso de forças – uma união meramente mecânica e ocasional, e não orgânica –, já que, por um lado, o Estado romano, a fim de continuar exercendo seu poder, tinha necessidade de uma legitimação religiosa que já não encontrava nos antigos mitos pagãos, e, por outro lado, a Igreja não tinha ainda força suficiente para transformá-lo intimamente reorientando-o aos seus novos fins.

Após a divisão do Império, não demorou para que este equilíbrio precário despencasse de um lado ou de outro. No Oriente, o estado romano-bizantino conservou um caráter perfeitamente pagão, absorvendo a Igreja nas estruturas típicas dos despotismos orientais. Com efeito, não há diferença estrutural entre um califado qualquer e a teocracia monolítica do pagão Diocleciano ou do cristão Justiniano. Ali, Estado e Igreja desmoronariam juntos como um bloco diante da dominação islâmica, e assim no Oriente a genuína espiritualidade cristã ficaria quase toda concentrada na religiosidade privada dos mosteiros.

Como se sabe, no Ocidente a situação foi de certo modo inversa. Não tendo de lidar com um estado bizantino, mas, ao contrário, com uma multidão desordenada de hordas bárbaras, a Igreja latina era a única instituição capaz de manter a tradição de unidade deixada por Roma. Em tese, chegou-se a uma solução de compromisso na qual os imperadores germânicos eram detentores do poder secular, enquanto a Igreja romana detinha a autoridade espiritual. De fato foi assim durante o breve império franco-carolíngio de Carlos Magno. Mas na prática a atuação da Igreja não deixou de ser sentida como uma intromissão indevida por parte dos estados germânicos que naturalmente reagiram contra ela, de tal forma que toda a história medieval foi marcada pelo antagonismo entre estas duas forças.

Ao início do segundo milênio, o Imperador ainda era o grande símbolo do poder político, mas, de fato, tinha de rivalizar com uma multidão de estados feudais que, constituindo-se em autarquias cada vez mais fechadas e independentes, enfraqueciam o seu poder central até reduzi-lo finalmente à mera sombra de um ideal perdido. Diante deste vácuo de poder a sociedade religiosa se expandiu mais ou menos conscientemente no sentido de uma ingerência absoluta sobre a organização da sociedade européia. As reformas clericais iniciadas pelo papa Gregório VII e pelos monges de Cluny afirmariam definitivamente a unidade e a independência da Igreja, desobrigando os bispos e o resto do clero de uma submissão direta aos senhores feudais locais ou mesmo ao Imperador e vinculando-os diretamente à autoridade do papado romano. No mesmo espírito de liberação do jugo feudal criaram-se diversas ordens de cavalaria e ordens religiosas.

Nossos manuais de história raramente dão conta do influxo de liberdade que o ideal de fidelidade à “Madre Igreja” – representada politicamente pelo papa e sua corte cardinalícia, e simbolicamente por Nossa Senhora, Notre Dame –, significou dentro de um sistema agrário regulamentado por um regime marcial, racial e machista, e inspirado por costumes tribais que obrigavam cada vassalo a servir à arbitrariedade e às ambições privadas de seu senhor. O papado liberou não só clérigos, mas servos, filhos, filhas e cavaleiros da submissão absoluta a seus pais e senhores para servirem a um ideal comum. Por outro lado, estão certos estes manuais ao apontar a inevitável ruína da Igreja medieval a partir do momento em que passa a legislar sobre assuntos temporais e assume funções de liderança política que não lhe são próprias. Embora a Inquisição e as Cruzadas sejam fenômenos bem mais complexos do que o ideário contemporâneo esteja acostumado ou disposto a tratar – já que suas motivações fundamentais são não só religiosas, mas também políticas e culturais –, o fato é que a época do grande fervor espiritual que nos legou as catedrais góticas, as universidades e personalidades extraordinárias como Francisco de Assis ou Dante, foi também uma das épocas em que a Igreja cedeu mais vergonhosamente à sua tentação maior – a tentação do primeiro papa, Pedro, ao sacar a espada para defender Jesus no Jardim das Oliveiras –, a imposição da fé pela força. O peso de suas atribuições mundanas não se demoraria a fazer sentir e a Igreja medieval não só se mostrou incapaz de elevar o nível do Estado, como desceu ela mesma a um nível mais baixo, de tal forma que durante o Renascimento atravessaria, ao menos em seus quadros institucionais, um dos períodos mais negros e desmoralizantes de sua história, ao ponto de ver sentado sobre a cátedra da Santa Sé o papa Bórgia Alexandre VI. Assim, no outono da Idade Média tanto a Igreja como os estados feudais encontravam-se num mesmo panorama de desfalecimento moral.

Contra isto surgiram dois impulsos de renovação, que em breve se tornariam forças de revolução. Do lado religioso, os protestantes procuravam reafirmar a consciência do relacionamento direto de cada indivíduo com Deus e reencontrar os ideais primitivos do Cristianismo, mas isto à custa de verem riscados com a pena violenta de Lutero mil e quinhentos anos de tradição religiosa e instituição eclesiástica. No campo político, os reis nacionais buscavam centralizar o poder nas cortes em oposição ao senhorio feudal multifacetário. Era natural que num primeiro momento as duas forças se unissem. Agora, porém, compondo uma equação diretamente inversa à medieval, já que este momento da história ocidental, com o qual se inicia a Modernidade, é marcado pela emancipação da esfera política diante da esfera religiosa. Daí uma tendência à formação de um Estado absoluto e soberano e de uma Igreja submetida e conduzida por ele nas questões práticas, tendência à qual o protestantismo respondeu prontamente, dando início à formação das Igrejas nacionais, como a Igreja Anglicana, na Inglaterra, e a Luterana, no norte da Alemanha.

Nos países latinos, como a França, não se chegou a criar plenamente uma Igreja de Estado separada da Igreja romana, mas a doutrina do direito divino dos reis desvinculava o poder monárquico de uma submissão direta à autoridade do Papa ao mesmo tempo em que lhes dava alguma autoridade sobre o clero e os legitimava diante do povo, ainda católico. Unindo-se à burguesia ascendente, o chamado tiers-état, os reis de França conseguiram neutralizar finalmente as forças do antigo sistema feudal, absorvendo a aristocracia nos quadros militares e burocráticos do Estado. A burguesia, por seu turno, embora num primeiro momento privada de direitos políticos, desenvolvia-se através dos benefícios estatais próprios de um sistema mercantilista. Mas a aliança entre o Estado e a sociedade econômica era simplesmente casual e transitória, enquanto movida contra um inimigo comum. Tão logo este inimigo foi subjugado, o poder político representado pela monarquia começou a aspirar uma autonomia absoluta – daí a monarquia absolutista – transformando-se numa força de entrave para as aspirações da burguesia e de opressão para o povo.

Foi desta forma que a aliança inicial entre o poder político e as forças econômicas inverteu-se finalmente em conflito, e o poder monárquico, destituído de suas bases enquanto representante do povo, ruiria de forma mais ou menos violenta por toda a Europa sob a pressão dos movimentos burgueses e liberais. Este foi o principal resultado do incêndio conflagrado pela Revolução Francesa que de Paris se alastraria por toda a Europa, ditando a marcha do século XIX, particularmente em três aspectos fundamentais.

Primeiro. Por todo o continente instaurou-se em formatos diversos um novo ideal de governo oposto ao absolutismo monárquico, a saber, o parlamentarismo e o constitucionalismo. O Estado absolutista se transformava agora, ao menos em teoria, numa forma impessoal destinada a servir de instrumento para a execução da vontade popular, e o povo que antes servia o Estado deveria passar a ser servido por ele. Embora na Inglaterra – diferentemente da França e outros países – este processo tenha sido mais complexo e gradual, permitindo até hoje uma certa coexistência e complementaridade de formas de governo (monarquia, parlamentarismo e sufrágio popular), este novo ideal atingiria sua expressão mais pura e desvinculada precisamente em uma de suas colônias no Novo Mundo, isto é, na constituição democrática dos Estados Unidos da América. Eis mais uma vez um movimento de reforma que acaba por se converter numa revolução: do protesto inicial pela falta de representação no parlamento britânico, a revolta dos americanos se transformaria prontamente numa revolução anti-monárquica, culminando com a instauração de um governo “do povo, pelo povo e para o povo”.

Segundo. A ideologia revolucionária dissolvera definitivamente os ideais sociais da antiga Europa cristã e medieval. Até então cada indivíduo se definia por sua pertença a um grupo: por sua guilda ou corporação; aristocracia ou plebe; clero ou laicato; primeiro, segundo ou terceiro estado, e assim por diante. Agora, a sociedade de classes e os privilégios do ancien régime estavam definitivamente abolidos. De jure, a única distinção que restava era entre o Estado e seus cidadãos. Os ideais religiosos medievais e os ideais heróicos de honra e virtude da aristocracia já não se mostravam desejáveis, mas a Revolução não soube substituí-los por nenhum outro a não ser por sua fórmula abstrata de “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”. Na prática, sobrava somente o ideal de riqueza – a aspiração ao bem-estar econômico e à satisfação material – e com isso uma última distinção social de facto: a distinção entre a burguesia rica, detentora do capital, e o povo pobre trabalhador (proletariado) a serviço da sua produção. Marx estava certo ao entender a organização da sociedade à sua volta a partir dos interesses materiais, pois tratava-se efetivamente do valor dominante à época; estava errado, porém, ao estender este princípio a todas as épocas e a todo o resto da humanidade. A nossa sociedade continua impulsionada pelo desejo de riqueza e prosperidade econômica, mas organiza-se de maneira diferente.

Terceiro. Durante os primeiros séculos da era moderna, a prática da ciência era ainda coisa de amadores e aristocratas, ora movidos por uma curiosidade diletante, ora por uma genuína paixão pelo conhecimento. Do momento em que as comportas se abrem para o apetite empreendedor burguês e para os desejos de movimentação social do povo, a ciência se conecta à industria disparando uma forte combustão de energia no processo de desenvolvimento tecnológico, o que acelera sua propagação a um nível inimaginável até aquele momento.

Nós somos os filhos desta era: a era da crença absoluta na democracia popular igualitária, na prosperidade econômica e no progresso tecnológico e científico. Nossos pais acreditavam – e muitos de nós ainda acreditam – que estas três chaves bastariam para abrir definitivamente o largo caminho que conduziria à prosperidade e à paz mundial. Parecia que finalmente a fórmula da felicidade fora decifrada e estava toda inteira em suas mãos, e que bastava simplesmente combinar com precisão estes três fabulosos elementos. Isso formava o seu credo. Convém que nos concentremos nele para entrarmos finalmente nos dias de hoje e na conclusão deste ensaio.

O presente: a sociedade de massas à esquerda e à direita

Democracia! A palavra entra intacta em nossos ouvidos e preenche a alma com sua pureza. A nossa é a Era da Democracia e tudo o que é “democrático” é bom: “encontros democráticos”, “decisões democráticas”, “organizações democráticas”… Isto pode ser verdade. Mas se é devemos estar atentos ao sentido exato que damos à idéia de Democracia. Se o que importa é simplesmente a execução da vontade da maioria – a “vontade popular” –, então convém lembrar que o massacre de uma tribo africana por sua rival, tanto quanto a condenação de Sócrates, a crucifixão de Cristo ou a chegada de Hitler ao poder, são fenômenos tão democráticos quanto uma reunião de condomínio ou a votação de uma moção administrativa na assembléia da ONU. Se é da decisão da maioria que se trata, então ela estava lá na Alemanha e em Jerusalém, tanto quanto está em Burkina Faso ou Genebra.

Apontei acima que um dos ideais da Revolução Francesa era arrancar o Estado absolutista das mãos do Rei e entregá-lo às mãos do povo. O povo, que antes servia o Estado, deveria agora servir-se dele, usá-lo como instrumento de execução de sua vontade – vox populi, vox Dei. Que possa haver longos períodos de paz e prosperidade em tais condições é naturalmente possível. Mas levado a um extremo absoluto o princípio da vontade da maioria é perfeitamente compatível com a mais sinistra de todas as formas de governo: o totalitarismo. Totalitarismo significa que em caso de divergência não há para onde correr. Não há a quem apelar. Não é possível clamar pela proteção de um Imperador contra um Papa ou vice-versa; nem se refugiar em uma família aristocrática para se defender de outra; nem recorrer à salvaguarda de um juiz contra as decisões erradas de uma assembléia ou as más ações de um governante. Não há a quem apelar porque há somente uma voz, a voz da maioria, e somente uma força, a força do Estado. E o Estado está a serviço da maioria – é a maioria. O século passado sofreu com o flagelo de algumas das manifestações mais sanguinárias e devastadoras de governos de massa. Foi assim na Alemanha nazista, em diversos países eslavos, na Rússia e em grande parte da Indochina. A verdade é que a relação correta entre Estado e povo não é nem o Estado servindo ao povo, nem o povo servindo ao Estado, mas os dois servindo a um princípio superior.

Este problema o sistema de governo norte-americano solucionou bem, pois lá nem Estado nem povo são maiores que a Constituição, que por este motivo não pode ser simplesmente trocada, mas somente alterada por sucessivas emendas que se justifiquem a si mesmas diante do texto original. Além disso, pela primeira vez na história da humanidade uma grande nação conseguiu estabelecer um governo temporal realmente temporal, com seus 44 presidentes alternando-se regularmente ao longo de mais de 200 anos por períodos de tempo cíclicos, limitados e predeterminados. Legalidade e temporalidade, e não simplesmente a vontade da maioria, são os verdadeiros alicerces que fazem da democracia americana um modelo tão admirável.

Mas embora os Estados Unidos tenham resolvido com tanta lucidez o problema do ordenamento político, eles mesmos (e talvez sobretudo eles) sofrem com outro tipo de tirania da vontade popular: a massificação cultural. Quando a vontade popular é soberana e absoluta em termos daquilo que tem valor para a cultura, e quando por “povo” entende-se uma massa atomizada de indivíduos isolados – todos eles portadores de “seus direitos” (e nenhum de seus deveres) –, então cada pessoa se assume como critério daquilo que o povo quer, exigindo a satisfação de seu querer como um “direito” e impondo qualquer gosto arbitrário seu como um “valor”. Em tempos antigos um camponês ou um secretário de província podia alimentar inveja de um aristocrata por sua educação, seus talentos, sua posição social ou por sua riqueza que fosse, mas ainda assim desejava aquilo que estava no alto, que lhe parecia nobre, valioso, superior. O rancor do homem de massa, ao contrário, é mais venal, pois não é que deteste o fato de não poder ser um nobre, mas sim que os outros não sejam plebeus como ele. Um homem como esse não só é incapaz de dar um passo além de seu estreito círculo de interesses, mas poderá facilmente obliterar essa possibilidade a outros, pois nivela tudo por baixo, pelo seu próprio nível. Ele é a medida de todas as coisas.

O perspicaz Ortega y Gasset já alertara para isso ainda no período entre-guerras. “A característica do momento, dizia ele, é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito à vulgaridade e o impõe por toda a parte.” Note-se bem: não é que o homem vulgar pense que não seja vulgar, mas sim nobre. É pior! Sabe-se vulgar e deseja sua vulgaridade, gosta dela e a exige como um direito – isso quando não a impõe como um dever. É bom que fique claro, caso ainda não estivesse, que nada disso tem a ver com riqueza ou pobreza: é uma atitude, um estado de espírito que se encontra disseminado de alto abaixo por todas as nossas classes sociais. Assim se explica como no Ocidente democrático liberal o excesso de individualismo leva diretamente ao seu contrário, a uma despersonalização e vulgarização generalizadas.

O segundo princípio da sociedade de massas ao qual aludi é a monomania economicista, isto é, a idéia de que a satisfação material é o fim último e único de cada homem e que, portanto, a felicidade geral da humanidade depende exclusivamente da produção de riqueza e de sua distribuição a cada indivíduo. Deste princípio comungam indistintamente comunistas e capitalistas. A diferença é que os comunistas acreditaram poder transformar toda a população em proletários a serviço de um único empregador, o Estado, responsável por dirigir a produção e distribuir o capital. Desnecessário destacar as conseqüências desastrosas de projetos como esses – o espetáculo de decadência e desolação que se descortinou após a queda do regime soviético é demasiado evidente. O Ocidente capitalista, por sua vez, conseguiu manter intacto o direito fundamental de propriedade, e nos Estados Unidos, Canadá e Europa conquistou níveis realmente extraordinários de prosperidade econômica apostando forte na livre concorrência e numa cultura da emulação. Mas concorrer para quê? Simplesmente para se fazer muito rico? Uma sociedade deve estar realmente doente quando o desejo dominante de seus membros é tão somente ser muito rico, porque ser muito rico significa simplesmente ter muito dinheiro, e ter muito dinheiro não garante que se tenha a menor idéia de como usá-lo bem. Ao contrário, um homem que não se preocupe com outra coisa do que ganhá-lo provavelmente o usará muito mal. Dinheiro é bom, não quero ser eu a negar – mas muito corrompe. Além disso, é simples meio de troca para a aquisição de algo mais valioso. É transitivo por natureza e por excelência, e a perversão é total quando o quanto se ganha se torna mais importante do que saber para que se ganha. Um homem que consome toda a sua vida acumulando montanhas de dinheiro eventualmente chega ao topo, e tem a mesma sensação de quem entra no quarto para pegar alguma coisa, mas esqueceu o que. Não sabe por que está ali, nem para onde ir e nem sequer o que lhe falta. Daí o fenômeno tão americano do rico narcisista, imbecilizado ou deprimido. Não por acaso o noticiário se vale tanto do vocabulário clínico da psicoterapia para analisar as oscilações da realidade econômica e ouvimos falar incessantemente em “depressão financeira”, no “mau humor da bolsa” ou na “euforia do mercado”.

A terceira crença da sociedade de massas, intimamente relacionada com as outras duas, é a confiança ilimitada no progresso tecnológico. Pouco é preciso dizer sobre ela, pois hoje nos damos conta mais facilmente de que é a mais ingênua das três. Até o final do século XIX, época das ferrovias e das fábulas de Júlio Verne, a idéia de se pôr qualquer restrição à fé no desenvolvimento tecnológico pareceria absurda. Mas a verdade é que toda tecnologia é sempre e tão somente um instrumento nas mãos do homem, e nossa geração sabe que um desses instrumentos pode ser tranquilamente uma bomba de destruição em massa. Até pouco tempo os homens lutavam suas guerras com baionetas e canhões, mas em menos de cem anos a humanidade produziu um arsenal tão massivo de armamentos e máquinas mortíferas que seria potencialmente capaz de desintegrar todo o planeta. Isto e os recentes desastres ecológicos nos tornaram mais cautos em relação à produção tecnológica.

É claro que é mais difícil ver algum risco diante de aparelhinhos mais simpáticos como celulares e iPods. Mas a tecnologia pode ser usada não só para a destruição, como para a alienação. Pois nós vivemos não só de pão, mas também de circo. E é preciso lembrar que o século passado foi não só o século em que se criaram as ogivas nucleares, mas também aquele no qual o mundo da cultura se viu inundado pelas maravilhas produzidas pela indústria do entretenimento. Entretenimento é “diversão”, e diversão significa precisamente “divergência”, “separação”, “afastamento”. Estes afastamentos temporários do nosso áspero cotidiano têm uma função importante na manutenção de nossa saúde psíquica. Mais ainda, a suspensão da realidade imediata é uma pré-condição fundamental da genuína experiência artística. Mas neste último caso o sujeito se afasta do comezinho, do ordinário, para ser introduzido em algo mais elevado, extraordinário. Se, ao contrário, o entretenimento é o valor último e a tecnologia é utilizada só para se “passar o tempo” – oh expressão infeliz! –, para derramarmos nosso tempo no ralo talvez, então há pouca diferença entre dissiparmos nossas atividades cerebrais e tensões emocionais com drogas lícitas, como calmantes, e ilícitas, como a heroína, ou em horas e mais horas despejadas diante da televisão ou da internet.

Conclusão

Espero que o leitor não me compreenda mal nem me tome por hipócrita se acaso estas considerações sobre a indústria tecnológica, a democracia popular e a cultura econômica tenham deixado um sabor um tanto ácido. Estou escrevendo em um computador; concordo com Churchill que se não fosse por todas as outras a democracia seria a pior forma de governo (e por viver em uma agradeço a homens como ele); e, Deus sabe, busco meu lugar ao sol como todo mundo. Mas isto não significa que estas sejam as únicas coisas importantes e tampouco as mais importantes. Há tesouros mais valiosos. Nós no Ocidente liberal democrático, especialmente no Brasil, passamos de certo modo incólumes por expressões mais nefastas das sociedades de massa, como os totalitarismos comunistas que oprimiram quase metade do globo e ainda fustigam boa parte dele. E por isso devemos ser gratos. Há porém outros riscos e desafios que não podemos ignorar.

Desde seu início até hoje a sociedade ocidental moderna vem se desdobrando ao longo do tempo através de uma cascata de colisões libertárias, cada uma delas afirmando uma dimensão fundamental da vida humana. O Protestantismo quis libertar a Igreja do clero e dá-la aos leigos; a monarquia absolutista quis libertar o Estado da Igreja e do feudalismo; as revoluções burguesas, por sua vez, quiseram libertar a economia das mãos do Estado e este das mãos dos reis; e finalmente as revoluções socialistas quiseram libertar o dinheiro dos bolsos da burguesia. Esta sucessão revolucionária do Ocidente foi um processo importante para a história mundial, pois os antagonismos entre a Igreja, os Estados nacionais e as forças econômicas revelaram com clareza a necessidade de se diferenciar os campos fundamentais através dos quais os homens se relacionam com a realidade e organizam o universo social: o campo religioso, o político e o econômico. Mas tudo isto teve um preço, e nossa era é a última etapa de um processo de inversão completo onde os valores econômicos foram alçados às alturas, enquanto os valores políticos e religiosos declinaram ou caíram completamente por terra. Hoje todas as esperanças de nossos antepassados na política nos parecem “utopia” e sectarismo, e a religião, por sua vez, foi reduzida a assunto de “foro íntimo”. Na Idade Média, o que um homem fazia para ganhar seu dia-a-dia era menos importante do que aquilo que fazia para não perder a sua alma. Suas crenças eram públicas e seus negócios privados eram… privados. Hoje a situação se inverteu: o que estava na periferia se transferiu para o centro, e que estava no centro de perdeu de vista. E, de fato, é forçoso admitir que as redes da globalização econômica e tecnocrática parecem ser o que temos concretamente de mais próximo a uma realidade mundial organizada, enquanto testemunhamos com horror insanos conflitos políticos e religiosos que fendem toda a superfície do planeta.

Mas assim como ninguém em sã consciência pode acreditar que o caminho para nossa sociedade esteja em retornar ao absolutismo religioso medieval ou ao absolutismo político à la Louis XIV, a idéia de concentrarmos nossas esperanças num absolutismo econômico é igualmente, que digo!?, é ainda mais insustentável. Pois a economia e a tecnologia só podem resolver um dos problemas de nossa vida, problema fundamental, que é a criação de recursos e de instrumentos para agirmos sobre a realidade. Mas elas nunca nos darão o escopo desta ação. Podem produzir muita riqueza e energia, mas não nos indicam o que fazer com elas. Podem por armas em nossas mãos, mas não nos dizem pelo que lutar. Fornecerão todo o material de que precisamos, mas não nos mostrarão o que construir, e assim como tijolos, vidro, cimento e ferro espalhados por terra não se erguem sozinhos num palácio ou numa catedral, elas podem bem nos dar os meios, mas nunca conquistarão os fins. Sozinhas, jamais construirão uma “casa comum”.

Creio que isto, caro leitor, é algo ao qual deveríamos estar atentos, se quisermos que o olhar da posteridade nos reserve palavras mais dignas e menos complacentes que as deixadas por T.S. Eliot:

 … Here were decent godless people:

their only monument the asphalt road

and a thousand lost golf balls

 

Marcelo Consentino é bacharel em Direito pela PUC-SP, mestre em Filosofia pela Ponteficia Università della Santa Croce, doutor em Filosofia da Religião pela PUC-SP e presidente do Instituto de Formação e Educação (IFE).

Artigo originalmente publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta & Contradicta, Edição nº 3 – Junho de 2009.

NOTA:

¹ “Aqui havia um povo decente e ateu; / os seus únicos monumentos são as estradas de asfalto / e bolas de golfe perdidas”.

“Estado da Arte”: As Epopeias Greco-Romanas

Literatura | 26/10/2015 | | IFE CAMPINAS

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O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 19 de março de 2015

As Epopeias Greco-Romas

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Segundo Werner Jaeger “nenhum outro povo criou para si mesmo formas de espírito comparáveis àquelas da literatura grega. Dela nos vem a tragédia, a comédia, o tratado filosófico, o diálogo, o tratado científico sistemático, a história crítica, a biografia, a oratória jurídica e panegírica, a descrição de viagens e as memórias, as coleções de cartas, as confissões e os ensaios”. Mas no princípio, como a raiz de todos os frutos, estava Homero. Ninguém justificou tão completamente a expressão de Hölderlin de que “o que permanece é obra dos poetas”. Ironicamente – ou talvez consequentemente – do próprio poeta, não permaneceu virtualmente nada. Como se a vida desse homem tivesse se consumido por completo nas suas criaturas, dele, malgrado os esforços épicos dos historiadores modernos, seguimos não sabendo sequer se foi um homem ou dois ou uma multidão, ou até – por que não? – uma mulher. Mas não há campo da criação humana que não tenha sido inspirado pelo sopro de seu espírito demiúrgico. Da religião à filosofia, da literatura às artes plásticas, do drama à música, ano após ano, século após século, milênio após milênio, dia após dia, seus deuses e heróis continuam a morrer e a renascer para dar vida a essa “segunda natureza” que chamamos Cultura. Talvez por isso o poeta Charles Péguy pudesse soar tão convincente ao dizer que “nesta manhã Homero ainda é novo e nada pode ser mais velho que o jornal de hoje”.

Um gênero capaz de acolher todos os gêneros – um microcosmo capaz de registrar o mundo que foi, de espelhar o mundo que é, e de pressagiar o mundo que será –, a epopeia jamais deixou de expandir seu império aos confins do universo humano, de ressuscitar as glórias do passado, de penetrar os segredos mais escondidos do nosso coração. E se Homero foi o “educador de toda a Grécia” e a Grécia é a “educadora da humanidade”, aquele que foi, talvez, o maior de seus legatários, o romano Virgílio, estaria destinado a conduzir Dante, e com ele todo o imaginário cristão, do fundo do Inferno às portas do Paraíso. A seu respeito T.S. Eliot diria, com devoção filial porém realista, que foi “o pai do Ocidente”.


 Convidados

– Christian Werner: livre-docente de Língua e Literatura Grega na Universidade de São Paulo e tradutor de Homero e Hesíodo.

– Fernando Rodrigues: professor doutor de Línguas Clássicas na Universidade de São Paulo e tradutor da Argonáuticade Apolônio.

– Marcos Martinho: professor do programa de pós-graduação em Letras Clássicas da Universidade de São Paulo e autor de Os Mitos Gregos e a Música.


 Referências

  • Paideia. A formação do homem grego (Paidia. Die formung des Griechischen Menschen) de Werner Jaeger (Martins Fontes).
  • História da Literatura Grega de Albin Lesky (Fundação Calouste Gulbenkian).
  • “Virgílio e o mundo Cristão” em De poesia e poetas (“Virgil and the Christian World, On Poetry and Poets) de T.S. Eliot (Brasiliense).
  • Virgile. Poéte, artiste et penseur de A.M. Guillemin (Albin Michel).
  • A Guide to Hellenistic Literature de K. Gutzwiller (Wiley-Blackwell).
  • Os Mitos Gregos e a Música de Marcos Martinho (Editora Ática).
  • “A Literatura grega” e o “O Mundo romano” na História da Literatura Ocidental, Volume 1, de Otto Maria Carpeaux (Edições do Senado Federal).
  • Gêneros Poéticos na Grécia Antiga, Vários Autores (Humanitas).
  • Vergil. Vater des Abendlandes de Theodor Haecker (Gebundene Ausgabe).
  • Cambridge Companion to Homer e The Cambridge Companion do Virgil, Vários Autores (Cambridge University Press).
  • O Mundo de Ulisses (The World of Odysseus) de M.I. Finley (Presença).
  • The Best of the Argonauts de J. J. Clauss (University of California Press)
  • The Heroic Age de H. Munro Chadwick em https://archive.org/details/heroicage00chad.
  • Virgile de Jacques Perret (Éditions du Seuil).
  • Herrlichkeit: Eine theologische, Asthetik. Band III, 1: Im Raum der Metaphysic. Alterium de Hans Urs von Balthasar (Johannes Verlag).
  • The Argonautica of Apollonius. Literary Studies de R. L. Hunter (Cambridge University Press).
  • L’Iliade ou Le Poème de la Force de Simone Weil.
  • Virgil and his meaning to the World Today de John William Mackail.
  • Lectures on Greek Poetry de John William Mackail.

Produção e apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Jukebox

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/as-epopeias-greco-romanas/

O Problema do Justo na Paidéia Grega

Sem Categoria | 16/12/2014 | |

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Parthenon Grego

Resumo: Somos herdeiros da filosofia grega e sua capacidade de inquietação acerca de uma aceitação acrítica da vida, no afã de buscar as respostas para uma vida racionalmente significativa, plena de sentido e em harmonia com o mundo, alcançou o problema do justo.  Como os gregos puderam compreender e criticar o próprio modus vivendi e a ideia de justiça nele havida? A literatura e a filosofia procuraram desenvolver algumas respostas que foram além do senso comum e, nesse sentido, forneceram as bases para a constituição posterior de uma episteme da justiça em Roma. No mundo grego, literatura e filosofia pareciam refletir as divisões essenciais do espirito humano: aceitação e rejeição do status quo, desejo de ordem e de transgressão, relações de imanência e de transcendência, defesa de padrões convencionais e ceticismo diante deles, aquiescência do papel social e refutação deste. A polis grega já tinha uma certa intuição de que a justiça deveria corresponder a uma expressão unitária e integrante dos cosmos e dos valores de convivência social, porque já se percebia que um justo natural antecedia um justo legal, servindo-lhe de limite ético. É uma correlação de origem grega e, em virtude do modo de sentir e da tradição grega, por sua íntima razão e força, sempre ressurge ao longo da história e jamais foi superada.

 

O PROBLEMA DO JUSTO NA ANTIGUIDADE DA HÉLADE: OS APORTES EPISTEMOLÓGICOS DA FILOSOFIA E DA LITERATURA DA PAIDEIA GREGA

ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES[**]

  1. Introdução.

Qualquer discussão sobre os conceitos relativos à ideia de justiça deve ser feita dentro da esfera de um modus vivendi que indique não apenas as chaves de interpretação, mas também o contexto existencial de sua especulação. Somos tributários da herança filosófica grega e um de seus mais importantes atributos está em transcender a aceitação acrítica da vida convencional: buscar e identificar condições para uma existência racionalmente significativa, plena de sentido e em harmonia com o mundo que nos circunda.

Essa tarefa não é fácil. Passaram-se séculos e o homem ainda se debruça sobre ela. Várias soluções – algumas mais duradouras que as outras, mas todas limitadas no tempo histórico – foram apresentadas. Independentemente da solução proposta, a questão da justiça sempre tem um lugar proeminente, porque o homem não quer apenas viver, mas viver bem: “os homens sempre atuam tendo em vista o que lhes parece bom” (ARISTÓTELES, 2005: 1252 a).

Foi na Grécia, entre os séculos V e III a.C., que a questão da justiça aflorou pela primeira vez. Mas como os gregos puderam compreender e criticar o próprio modus vivendi e a ideia de justiça nele havida? A literatura e a filosofia procuraram desenvolver algumas respostas que foram além do senso comum e, nesse sentido, contribuíram para a formação posterior de uma perene episteme acerca da justiça[1].

No mundo grego, literatura e filosofia pareciam refletir as divisões essenciais do espirito humano. Divisões entre aceitação e rejeição do status quo, desejo de ordem e de transgressão, relações de imanência e de transcendência, defesa de padrões convencionais e ceticismo diante deles, aquiescência do papel social e refutação deste.

Nesse trabalho analítico de compreensão e crítica, os gregos souberam, de maneira então inédita, manejar dois mecanismos que marcaram o universo espiritual da polis: a preeminência da palavra sobre outros instrumentos de poder e a plena publicidade das manifestações mais importantes da vida social, dentre as quais estavam as leis da polis, as quais motivaram exegeses e interpretações que eram costumeiramente veiculadas justamente pelo uso da palavra por parte dos filósofos e dramaturgos gregos.

Morrison (2006:24) lembra que “muitos dos filhos de Zeus e Têmis tornaram-se fiadores das leis e da estabilidade social, em particular Dike, Eunomia e Irene. Dike passou a personificar o ideal de justiça que colocava o homem acima do mundo animal (…). Como deusa, Dike levava os juízes a se empenhar em deliberar com integridade lógica em vez de tomar decisões arbitrárias; sua irmã Eunomia representava a harmonia social e jurídica que resulta desse comportamento racional e Irene expressava a paz. Em conjunto, configuravam a ideia social de homonoia, ou o ideal de uma comunidade urbana harmoniosa”.

Os Sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles, na filosofia, e Sófocles, com sua célebre “Antígona”, na literatura, assumiram a tarefa de compreender esse ideal, correlacionando-o ao problema do justo. Porque os gregos já tinham uma certa intuição de que a justiça deveria corresponder a uma expressão unitária e integrante dos cosmos e dos valores de convivência social.

A justiça deveria ser o verdadeiro pressuposto de toda ordem jurídica no mundo espiritual da polis, onde já se percebia que um justo natural antecedia um justo legal, servindo-lhe de limite ético. É uma correlação de origem grega e, em virtude do modo de sentir e da tradição grega, por sua íntima razão e força, sempre ressurge ao longo da história e jamais foi superada.

Frise-se que a importância do contributo grego para a noção de um justo natural decorre justamente do fato de, pela primeira vez na história, o homem ter despertado para a consciência do problema. Não houve uma proposta deliberada de composição epistêmica de critérios capazes de distinguir a juridicidade da legalidade, o justo natural do justo legal. Até porque, como a polis era a expressão mais alta da vida ética na Hélade e tudo convergia para a manifestação do indivíduo na vida política, de certa forma, não havia a necessidade daquela distinção.

 

  1. Mecanismos do universo espiritual da polis.

O advento da polis, entre os séculos VIII e VII a. C., é um fato decisivo na história do pensamento grego: por intermédio dela, a vida social e as relações entre os homens tomam um novo rumo, cuja originalidade, os ônus e o bônus serão plenamente percebidos pelos gregos. Neste novo sistema social, a palavra transforma-se no instrumento político por excelência, a chave de toda autoridade estatal e o meio de comando sobre a coletividade.

A palavra deixa o campo do rito ou da fórmula justa e migra para a seara do debate contraditório, da discussão e da argumentação. Supõe uma plateia de ouvintes à qual a palavra é dirigida e, na posição de magistrado soberano, essa mesma plateia, persuadida racionalmente, elegerá um discurso em detrimento dos demais. Vernant (2011:54) afirma que:

as questões de interesse geral que o Soberano tinha por função regularizar e que definem o campo da arché são agora submetidas à arte oratória e deverão resolver-se na conclusão de um debate; é preciso, pois, que possam ser formuladas em discursos, amoldadas às demonstrações antitéticas e às argumentações opostas. Entre a política e o logos, há assim relação estreita, vínculo recíproco. A arte política é essencialmente exercício da linguagem; e o logos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua eficácia, por intermédio de sua função política. Historicamente, são a retórica e a sofística que, pela análise que empreendem das formas do discurso como instrumento de vitória nas lutas da assembleia e do tribunal, abrem caminho às pesquisas de Aristóteles ao definir, ao lado de uma técnica da persuasão, regras da demonstração e ao por uma lógica do verdadeiro, própria do saber teórico, em face da lógica do verossímil ou do provável, que preside aos debates arriscados na prática”.

 Ao lado da palavra, outro mecanismo típico da polis reside na plena publicidade outorgada às manifestações mais destacadas da vida social. Aliás, a polis existe apenas na medida em que surgiu um domínio público, em dois sentidos diferentes, porém complementares: um setor de interesse comum, oposto ao privado, e um âmbito de práticas abertas, em oposição aos processos e rituais secretos.

Essa exigência de publicidade faz com que todas as condutas, processos e conhecimentos submetam-se ao olhar alheio o que, na gênese, era um privilégio do basileus. No plano intelectual, esse movimento acarretará efeitos decisivos. Vernant (2011:55) afirma que:

a cultura grega constitui-se, dando-se a um círculo sempre mais amplo – finalmente ao demos todo – o acesso do mundo espiritual, reservado ao início a uma aristocracia de caráter guerreiro e sacerdotal (a epopeia homérica é um primeiro exemplo desse processo: uma poesia de corte, cantada primeiramente na sala dos palácios; depois sai deles, desenvolve-se e transpõe-se em poesia de festa). Mas esse desenvolvimento comporta uma profunda transformação. Tornando-se elementos de uma cultura comum, os conhecimentos, os valores, as técnicas mentais são levados à praça pública, sujeitos à crítica e à controvérsia. Não são mais conservados, como garantia de poder, no recesso de tradições familiares”.

Assim, tais conhecimentos, saberes e valores, ao serem submetidos aos processos de publicização na polis, motivarão exegeses, interpretações, ilações, oposições, contraditórios e debates acirrados. Doravante, a retórica e a argumentação serão alçadas à condição de armas na arena intelectual e política.

A comunidade passa a ter controle sobre as criações do espírito, mediante aferição da retidão por instrumentos de natureza dialética. E, nesse ponto, as leis não escaparão. Ao serem escritas, assegura-lhes vigência e eficácia. Subtraem-se à autoridade privada e ao saber oculto do basileus, cuja principal função era jurisdicional, ou seja, a de dizer o direito.

Demóstenes (GILISSEN, 1988:78), no Discurso contra Timócrates (353 a. C.), diz como pode ser proposta e aprovada uma lei em Atenas:

<<Nas leis que nos regem, Atenienses, contêm-se prescrições tão precisas como claras sobre todo o processo a seguir na propositura das leis. Antes de mais, fixam a época em que a ação legislativa é admitida. Em segundo lugar, mesmo então, não permitem a todo o cidadão exercê-lo à sua fantasia. É necessário por um lado, que o texto seja transcrito e fixado à vista de todos perante os Epónimos; por outro lado, que a lei proposta se aplique igualmente a todos os cidadãos; enfim que as leis contrárias sejam derrogadas; sem falar de outras prescrições, cuja exposição, parece-me, não teria interesse para nós neste momento. Em caso de infração a uma só destas regras, qualquer cidadão pode denunciá-la>>.

Com o fenômeno da publicização, as leis tornam-se bem comum e regra geral aplicável a todos os cidadãos da polis. E a dike, sem prejuízo de ainda permanecer como um valor sagrado, poderá, por meio da lei[2], encarnar-se num plano propriamente humano e ser submetida ao debate – literário e filosófico – acerca de sua essência.

 

  1. Sófocles e o dilema de Antígona.

Antígona é a última peça da trilogia tebana de Sófocles, escrita no século V. a. C., e deve ser analisada no contexto trinitário que o próprio autor criou: “Édipo”, “Édipo em Colona” e “Antígona”. É uma trilogia trágica sobre a qual se debruçaram muitos estudiosos ao longo da história.

Antígona era uma das filhas de Édipo, essa figura funesta do poder masculino que havia sido amaldiçoada pelos deuses, por ter assassinado seu pai, o rei de Tebas, por engano e, em seguida, casado com sua mãe e assumido o trono do reino[3].

Com a morte de Édipo, irrompeu uma guerra civil entre seus dois filhos, Polínicles e Etéocles, os quais disputam entre si o comando da cidade que, em princípio, haviam concordado em comandar alternadamente. Por trás da disputa entre os irmãos, temos a figura do tio, interessado em que ambos se destruam e assim ele, Creonte, ficaria com o poder inconteste. Este é um dos lamentos que está presente no enredo da peça: a ambição e a manipulação pelo poder.

Antígona e sua irmã Ismênia veem a disputa acontecer e nada podem fazer para impedir que seus irmãos Etéocles e Polínicles se destruam. Mas, após a guerra, Etéocles é morto em combate e recebe um enterro digno, com honras militares, enquanto Polínicles, que também faleceu, é condenado por um decreto de Creonte a permanecer insepulto para que os animais comessem suas carnes, porque tinha lutado contra ele.

A pena é promulgada para conhecimento de todos, como decorrente do legítimo poder civil que detém o governante de uma cidade. A infração ao decreto acarretaria ao autor a sumária aplicação da pena de morte. Um edito cruel, porque pune o defunto com uma morte eterna, sem sepultamento e a ser comido pelos abutres.

A peça inicia com o diálogo entre Ismênia e sua irmã, Antígona, a qual não aceita a determinação de seu tio Creonte e, em segredo, planeja sepultar seu irmão. Antígona sente-se atrelada a um dever normativo que transcende sua posição de súdita do tio. Ismênia, invocando os horrores já sofridos pela família, apela que Antígona respeite o decreto real.

Antígona permanece firme em seu intento e libera a irmã de auxiliá-la, porque o dilema que sofre é pessoal: um dilema que antagoniza dois conjuntos de obrigações e leis. Por um lado, vê-se adstrita às leis divinas que prescrevem o sepultamento do irmão; por outro, a lei tebana (ou o decreto de Creonte) determina a deixá-lo insepulto. Ismênia também reconhece o conflito de normas, quando resolve não desafiar o rei por não se sentir “forte o bastante para ir contra o poder do Estado”[4].

Antígona parte para sepultar o irmão, resignada com a punição que a aguarda, uma morte honrosa para uma existência digna, pois, para ela, seria melhor assim do que continuar a viver sem um sentido, decorrente de sua incapacidade de agir contra o edito de Creonte. Depois de um sepultamento simbólico, algum tempo depois, ela é descoberta e confessa o que fez. Questionada por Creonte sobre seus atos, ela declara que não aceitava o decreto e acreditava ter feito o que era certo.

 CREONTE: E tiveste a ousadia de infringir a lei?

ANTÍGONA: Sim, essa ordem não veio de Zeus. A justiça que emana dos deuses não conhece essa lei. Não considero que tuas leis sejam fortes o bastante para revogar as leis não escritas e inalteráveis dos deuses, uma vez que não passas de um homem. Elas não são de ontem nem de hoje, mas eternas, ainda que ninguém conheça suas origens. Nenhum mortal poderá culpar-me por transgressão perante os deuses. Por certo, sabia que teria de morrer, com ou sem o teu decreto. E, se minha morte é iminente, tanto melhor para mim. Quem, como eu, vive em meio a tantos tormentos, só tem a ganhar com ela[5].

 Creonte, nessa altura dos acontecimentos, percebe a gravidade da situação e a necessidade de levar a sanção pelo descumprimento de seu edito às últimas consequências:

CREONTE: Aquele a quem o Estado confere o poder deve ser obedecido até as mínimas coisas, sejam elas justas ou injustas. E, sem dúvida, aquele que sabe governar sua casa irá tornar-se o mais sábio dos reis ou o mais fiel dos súditos. Será ele o homem com o qual todos poderão contar na tempestade da guerra (…). Não existe maior desgraça do que a desobediência: ela destrói os Estados, leva os lares à ruína e, nos combates, traz consigo a derrotas dos exércitos. Por outro lado, a simples obediência salva as vidas de centenas de pessoas honestas. É preciso, pois, apegar-se às leis com total lealdade[6].

Antígona é condenada a uma morte cruel, será emparedada numa espécie de muro onde permanecerá até morrer de inanição. Ela aceita sua pena, pois reconhece haver desafiado as leis do Estado, embora não as aceitasse.

Em linhas gerais, a obra, sob o ângulo estritamente jurídico, debate o conflito entre as exigências do justo natural (Direito Natural) e o justo legal (Direito Positivo). Sófocles expõe esse conflito normativo ao colocar em oposição o edito de Creonte, a lei do Estado, e o dever de sepultamento dos mortos, a lei dos deuses.

Acreditamos que o decreto do novo rei de Tebas, impedindo apenas e tão somente o funeral de Polínicles e cominando a pena de morte para quem lhe desse uma sepultura, é uma lei injusta, porque carece da generalidade e da permanência que sempre caracterizam qualquer lei positiva no momento de sua integração ao ordenamento normativo[7].

Além da falta desses atributos essenciais, foi um decreto promulgado ex post facto, o que, no mínimo, macula a idoneidade de sua ratio legis. E lex iniusta non est lex, a lei injusta não é lei, como afirmou, com acerto, muitos séculos depois de Sófocles, Tomás de Aquino. Assim, Antígona, ao respeitar a lei dos deuses, fez prevalecer o justo por natureza, ainda que com o preço de seu sangue.

 

  1. Os Filósofos Pré-Socráticos, os Sofistas, Sócrates e Platão.

O advento de sucessivas poleis gregas, a partir do século VIII a. C., proporcionou alguns problemas de convívio e de cooperação entre seus habitantes. Até então, o paradigma ético residia no legado histórico-literário homérico (composto no século IX a. C.), com um ideal de homem virtuoso que já não mais atendia aos anseios do cidadão grego. O ethos da obra homérica lastreava-se na areté ou excelência dos chefes das famílias aristocráticas, consistente na aptidão retórica e guerreira geradora de honra e prestígio sociais.

Para reverter o quadro de litigiosidade, foi introduzido o nomos ou lei, a fim de que novas formas de capacidade e de virtudes ganhassem corpo social, em superação das antigas aretai em estado de agonia, no contexto racional da polis e de seu equilíbrio proporcionado pela boa lei. O desenho teórico e empírico da nova areté visava justamente à capacidade de moderar os desejos individuais, a irascibilidade (típica do guerreiro) e as emoções particulares em prol dos ditames legais.

Uma noção rudimentar de justiça já se faz presente nos primórdios da cultura grega. O relato homérico sobre a guerra de Tróia assenta-se na fundação de um ethos voltado para o ideal da reparação de uma injustiça. Os ensinamentos e as leis de Sólon (século VI a. C.) tomam parte nesta comunhão entre a visão grega do universo e a busca de condutas e normas voltadas para a prática da justiça.

No campo filosófico, aquela noção rudimentar começa a tomar uma certa forma teórica. O filósofo pré-socrático Anaximandro (século VI a. C.) referira-se à “injustiça” que existe quando há conflitos durante os movimentos naturais dos corpos. Mais tarde, outro filósofo pré-socrático, Heráclito (século V a. C.), dele divergira, ao afirmar que todo conflito que provoca injustiça é inerente ao império de um processo universal ordenado.

Segundo Heráclito, o devir não é anárquico, está dominado por uma medida, um logos e um sentido, à qual o homem deveria amoldar seu agir, advindo, dessa correlação, alguns princípios de conduta ou normas naturais. Cuida-se, pois, de um ponto de vista metafísico, restrito à mera cogitação, sem a formação de uma doutrina acerca da justiça.

Mais tarde, os sofistas logo submeteram o nomos ou a lei a uma crítica acertada, de tal sorte que a solução legal – o justo legal – logo pareceu inconsistente: como mestres da retórica e pessoas com uma visão cosmopolita, acusaram a diversidade desse paradigma legal, reduzindo-o ao campo do estritamente convencional, o que fomentaria a canalização exclusiva das demandas decorrentes do poder dos mais fortes.

Sob a ótica dos sofistas, o justo legal, representado pelo direito positivo, era dotado de relatividade. Não haveria um justo natural fundado num direito natural, porquanto, por natureza, nada seria verdadeiro e tudo derivaria do homem, o sentido último de todas as coisas, na expressão de Protágoras. Por conseguinte, os sofistas realizaram um giro copernicano na visão de mundo de Heráclito.

Daí a importância atribuída à techne retórica por eles ensinada, de maneira que uma argumentação mais convincente pudesse fazer impor, pelo consenso, os interesses diretamente buscados. Inclusive, a questão do justo legal desatrelada de qualquer lastro no justo natural fora tratada por Sófocles em Antígona (século IV a. C.), obra contemporânea ao período aqui enfocado e já abordada no tópico anterior.

Por outro lado, Sócrates (469-399 a. C.) foi um incansável adversário da proposta sofista, a qual, segundo o filósofo, correspondia a um saber falso e aparente (a opinião, doxa) que se camufla na argumentação retórica. Nessa empreitada que lhe custou a vida depois de uma dose de cicuta, Sócrates atuou em duas frentes: refutou a pretensão sofista de possuir pela via da techne retórica o saber sobre as virtudes cívicas da polis e propôs uma alternativa de saber verdadeiro e universal acerca da justiça, na qual a validade do justo legal derivaria diretamente de sua justaposição aos princípios do justo natural.

Na primeira frente, Sócrates tentou demonstrar que a techne sofista era ambivalente, na medida em que era apta a produzir injustiça natural. Na segunda frente, no afã de tentar resolver o problema prático do equilíbrio entre o individual e o social – fundamentado na premissa de que o justo legal deveria justamente provocar a moderação dos desejos que muitas vezes se sobrepunham aos requerimentos da vida em sociedade – questionou o modo de vida desmedido, inspirado na hybris, que, segundo ele, por estar divorciada do justo natural, não proporcionaria a eudaimonia da comunidade e, indiretamente, de seus membros.

A saída socrática consistiu na apropriação do cuidado da alma, influenciado pelo orfismo e pelo pitagorismo: extraiu do contexto religioso o pensamento da alma, colocando-o no centro e no fim de seu discurso moral, para “fundar sobre a concepção da alma como ‘verdadeiro eu’ aquela equação de justiça e felicidade que, sem esse suplemento, como se viu, parecia não poder com os golpes da crítica sofista” (VEGETTI, 1989:91).

A justiça realizar-se-ia, então, somente na alma, como fruto de uma vida examinada, regulada por uma episteme, uma ciência de justiça que sabe discernir o certo e o errado, o justo natural. A equação formada por justiça, felicidade, ciência e virtude na alma era uma conclusão que podia ser válida para Sócrates, que reputava a alma como imortal e atemporal.

Entretanto, seu zelo pela vida refletida portava uma aporia interna que a investigação platônica não só não resolveu como acentuou ainda mais: entre Sócrates e a polis foi aberto um dissídio, porque a polis rejeitou a mediação socrática entre a alma e a polis, culminada com a condenação do filósofo numa sociedade em que não havia espaço para seu saber inovador.

Platão herdou o problema acerca da episteme da justiça natural, que assegura ordem à alma individual e à comunidade[8]. Nos diálogos “A República” (L. I, 338-340), “Górgias” (482-484) e “Protágoras” (337d), Platão afirma que os sofistas buscavam muitas perspectivas de compreensão da lei e da justiça, oscilando entre a conveniência do mais forte, o resultado de uma convenção e a expressão de tendências naturais contra os abusos da legalidade positiva.

Trasímaco identifica a justiça como a vantagem do mais forte ou superior; Cálicles antepõe o direito natural dos mais fortes à tática das leis defensivas a que recorrem os mais débeis, que se satisfazem com a igualdade; Hípias escolhe as leis não-escritas, pois a lei positiva, tirana dos homens, obriga a muitas coisas contrárias à natureza.

Na República, Platão procurou superar as dificuldades internas da filosofia socrática, a fim de superar as ambiguidades sofistas. Para ele, a postura socrática não considerava dois conflitos internos, o da polis, revelado pela constante oposição entre abastados e pobres, e o da alma, dramatizado na tragédia do teatro grego, como no caso de Antígona.

Sua proposta de episteme deveria, então, criar condições para o império simultâneo do justo natural tanto na polis quanto na alma, pois a sociedade é homem escrito com letras maiúsculas: “não há indivíduo justo a não ser numa sociedade justa, mas não há sociedade justa se não o são, desse ponto de vista, os seus membros singulares. Parece, aliás, que, desse ponto de vista, a moral individual tem prioridade: os costumes da polis são os dos seus cidadãos”. (VEGETTI, 1989:117). Por isso, na República, Platão inicia com a justiça da cidade (Livros II e III) e passa para a justiça da alma (Livro IV).

Nos dois âmbitos, as partes distintas do conflito são reconduzidas a um todo ordenado a um fim único: a felicidade na polis como corolário da felicidade de cada alma, por intermédio da atuação do justo natural, caracterizado como aquela ordem em que cada parte desenvolve uma função específica no todo, segundo uma específica excelência ou virtude.

E a ordem é estabelecida por uma ciência em cada segmento social: a sophia, restrita dos governantes da cidade; para os guerreiros, era a coragem e, para os produtores, a temperança. Cada uma delas atuando dentro de seu respectivo âmbito de destinatários. Paralelamente, no interior da alma, inovando na tradição de então, surge a tripartição da alma platônica. A parte racional era governada pela sophia, a parte irascível pela coragem e a parte concupiscível pela temperança.

A ordem das partes no todo decorre de um saber específico, que abarca a ideia das inúmeras partes num todo à luz da ideia suprema de uma totalidade ordenada segundo uma ideia de Bem. Tal fato não decorre da experiência e não é deduzível a partir dos fenômenos mutáveis do mundo sensível. É inato e provém da anamnese, deduz-se da visão das ideias que foram previamente inscritas na alma de cada homem.

Assim, para Platão, o fundamento ontológico do justo natural está no arquétipo, ao qual todas as coisas deveriam se conformar. A ideia de justo natural deriva da ideia de bem, a qual se submete à ideia divina da ordem jurídica universal. O justo natural platônico é um justo natural ideal, efeito direto da contemplação das ideias. As ideias eternas estão preordenadas pela mente divina e a elas vinculam-se todo o conhecimento do justo e do injusto natural.

 

  1. Aristóteles.

Entra em cena Aristóteles. O Estagirita herdou o legado platônico e continuou na busca do saber sobre a ordem na alma e na polis, mas a submeteu a partir de outro método, a fim de vencer as vicissitudes subjacentes na resposta platônica. E suas ideias não só marcariam sua época, mas seus influxos constituiriam um imponente substrato do pensamento moral ocidental até os dias atuais.

Aristóteles logo notou a principal aporia no ideário platônico: a separação (chorismós)entre mundo inteligível e mundo sensível, cuja relação era fundada pela correspondência das coisas às ideias. Sob o ângulo da polis, tal cisão demandava o conhecimento das ideias por via da reminiscência (anamnese), o que provocava um choque radical com o senso comum, segundo o qual o acesso ao saber era fruto do embate entre as opiniões dos cidadãos.

Como efeito, as relações entre o governante-filósofo e a polis seriam um tanto dissonantes, aporia essa que, segundo Thomsen (1990:225-236), permanece insuperável no pensamento platônico. Rejeitando o chorismós e introduzindo as ideias nas realidades sensíveis, ou seja, descendo com as ideias do mundo inteligível ao mundo sensível – as formas da matéria – Aristóteles abriu uma nova senda para a ontologia.

Sob o ângulo do sujeito na relação de conhecimento com o objeto, o homem é visto como um ser capaz de conhecer a natureza das coisas, isto é, a verdade intrínseca de cada uma delas. Do ponto de vista do objeto, as realidades sensíveis, em virtude da forma nelas subjacentes, são naturalmente cognoscíveis. Para a vida na polis, abre-se a possibilidade de que os cidadãos tenham opiniões verdadeiras sobre os assuntos da polis – desde que correspondam à natureza da coisa opinada – e, assim, o filósofo pode e deve tomar as opiniões práticas como ponto de partida de sua investigação especulativa.

Sem dúvida, uma inversão completa do caminho do modelo platônico. O homem aristotélico não vai mais buscar na teoria da reminiscência o acesso ao conhecimento das realidades físicas e dos assuntos da polis, mas no caminho da abstração da experiência sensível. Isto é, a forma (a ideia platônica) está na substância de cada ser (no mundo sensível e não mais no mundo inteligível). E também no ser das ações humanas multifacetadas que tomam parte na vida da polis.

A investigação filosófica aristotélica rompe com a unicidade do saber platônico: um conhecimento das ideias incindivelmente teórico e prático, posto que as ideias, situadas no mundo inteligível, constituem o substrato sobre o qual são formadas as realidades do mundo sensível. Uma investigação do saber que contempla as ideias e que, por isso, configura-se num saber infalível, na ótica platônica, porque forma as coisas segundo as ideias.

Aristóteles, inspirado pela episteme do conhecimento platônico, que tentou conciliar a primeira crise histórica da filosofia, desencadeada pela questão da mutabilidade entre Parmênides (mundo imutável) e Heráclito (devir constante e perpétuo), propõe que, no âmbito do saber humano, a realidade sensível, objeto de estudo da física e da metafísica, tem, em si mesma, o princípio (ou o motor) de seus movimentos. E as ações humanas (tanto aquelas voltadas para o agir ou para o fazer) têm seu princípio no homem.

O resultado de uma arte (como a escultura ou a pintura) tem seu princípio na arte (techne) de quem a produz. A ação humana que se encerra em si mesma (como o ajudar alguém ou se omitir a fazê-lo) tem seu princípio na escolha. Assim, para Aristóteles, o saber com relação ao puro saber é teórico. No que toca às coisas feitas ou produzidas externamente (como o labor de um artesão), é um saber poiético. No que concerne ao agir, é prático.

A diversidade nos objetos e na relação dos respectivos saberes com os objetos volta ao ponto de partida, sob a denominação aristotélica de filosofia teórica e filosofia prática: ambas investigam a verdade e a causa que proporciona essa realidade. E, logo, são episteme. Todavia, a filosofia teórica busca a verdade como um fim em si mesma. A filosofia prática busca a verdade que é posteriormente ordenada à obra a ser feita aqui e agora[9]. O saber prático não é um fim em si mesmo, como o saber teórico, mas sempre tem em vista o horizonte de outro fim[10], ou seja, da ação.

Na investigação ética e política – os campos por excelência da filosofia prática – o objeto é conhecido de molde a poder ser posto em obra pelo agente da ação[11]. A partir de então, a ética passa a ser encarada como uma disciplina filosófica específica, com objeto, método e conceitos próprios. Para a vida na polis, essa revolução no campo das ideias significou uma revolução no campo da praxis: no seio da polis, as ações deixam de conduzidas pelo saber teórico do filósofo, o justo e o político platônicos, e passam a ser regidas pelo saber prático do bom político, iluminada pela phrónesis[12].

A filosofia prática aristotélica investiga o modo pelo qual a phrónesis é o princípio das escolhas e ações humanas que são tidas como virtuosas no ethos da polis. Ensina Giuseppe Abbà (2011, p.74) que:

o ponto de partida da filosofia prática são as “aparências” do sábio (phrónimos), do virtuoso (spoudaios) no ethos da polis: isto é, os seus juízos sobre a excelência de determinar as ações concretas e, de modo mais geral, os éndoxa, as opiniões de autoridade acerca do modo conveniente e nobre de viver e de agir. Ademais, o filósofo prático começa sua investigação, mais em geral, a partir dos legómena, as opiniões correntes acerca dos assuntos humanos, das excelências e dos bens humanos. O filósofo prático visa a dar razão dessas opiniões mediante processo diaporético: isto é, examina as eventuais aporias às quais as opiniões conduzem e busca resolver as aporias explicando a parte de verdade e a parte de erro contida nas opiniões. Mais em geral, o filósofo prático procede dialeticamente: examina as opiniões possíveis acerca de um problema prático, descarta, com argumentação contra-interrogativa ou refutatória, aquelas que levam a aporias ou que incorrem em contradição ou que contravêm os éndoxa. As opiniões que resistem ao exame ele as considera verdadeiras e mostra a sua compatibilidade. Assim procedendo, o filósofo prático parte do ‘quê’, isto é, das opiniões sobre as ações justas, boas, convenientes e remonta aos seu ‘porque’, isto é, à razão (logos) que as justifica. Este procedimento não é exclusivo da filosofia prática, pois também se acha na filosofia teórica (física e metafísica): é a via para se recobrar o conhecimento dos princípios próprios de uma ciência, princípios dos quais parte, então, a argumentação apodítica para explicar por que certas propriedades pertencem necessariamente ao objeto específico estudado por aquela ciência. O que diferencia a filosofia prática é o fato de que o ‘quê’ do qual ela parte é-lhe fornecido pelo ethos da polis, ethos que, por via da educação e da disciplina, tornou-se çthos ou caráter do indivíduo que age bem. Assim, o ponto de partida da investigação filosófica ‘ética’ é o mesmo a partir do qual tem início o raciocínio prático do phrónimos.

Ademais, a filosofia ética diferencia-se pelos motivos pelos quais alcança o procedimento dialético. Tal justificativa reside numa concepção normativa da vida boa e das excelências que a constituem. Superada esta etapa, o filósofo prático pode estipular e fundamentar normas gerais de como se deve agir em vários planos práticos para realizar a vida boa.

Concomitantemente, a filosofia ética assume um perfil tipológico, porquanto não indica uma concepção absolutamente delimitada e rigorosa da vida boa e das excelências para o homem, bem como dos meios ou das ações necessárias para tanto. A ética limita-se a informar os postulados gerais (typos) do bem supremo realizável pelo homem, sem fazê-lo de maneira certa e determinada.

O procedimento tipológico confere-lhe o caráter de ciência e diferencia-se da phrónesis, que não pode ser uma ciência, na medida em que extrai do ethos os princípios do raciocínio prático para determinar, no caso concreto, a ação que convém ser feita para viver bem nas circunstâncias contingentes. Ao passo que a filosofia prática procura justificar os fins das virtudes éticas, refluindo-os a uma concepção normativa da vida boa e descreve os atributos do raciocínio prático com o qual o sábio aplica às situações os fins virtuosos que definem a vida boa.

Logo, conclui-se facilmente que a filosofia prática aristotélica, ao contrário da filosofia platônica do Bem, é perfeitamente compatível com o ethos da polis e os éndoxa. E o filósofo prático não se limita a observar a realidade empírica e comentá-la, digamos, como um sociólogo nos dias atuais: ele vai além, pois compreende o ethos da polis, submete-o a uma argumentação dialética e diaporética, identifica uma concepção normativa de vida boa e, nessa tarefa, acaba por ser um crítico do mesmo ethos, buscando aprimorá-lo.

A distinção entre sabedoria prática (phrónesis) e filosofia ética requeria um giro copernicano em relação à posição platônica: se a justiça era considerada primeiro na polis e depois na alma, Aristóteles, ainda que concordasse com a máxima platônica de que o regime da polis e de suas leis educavam o caráter moral e as excelências do cidadão, inverte a mão de direção e inicia a consideração da justiça pela vida boa dos cidadãos, prescindindo-a do regime político ao qual estava afeta, a despeito do benefício decorrente de seus efeitos pedagógicos na situação singular de cada cidadão.

Nessa consideração, a ideia de justo natural foi posta sobre a essência imutável dos seres. Essa ideia, segundo já exposto, não é transcendente, mas imanente e a forma, na visão aristotélica, era o princípio que determinava o modo de ser, o fim ao qual tende o ser, sua essência. Se há uma essência comum a uma dada categoria de seres, como o homem, a universalidade dessa essência demanda um comportamento definido, expresso em imperativos naturais e, no que toca ao agir social, em imperativos moldados por um justo natural.

É o conceito teleológico de natureza. Por conseguinte, ao lado de um direito – universal e imutável – ligado às exigências naturais do homem, Aristóteles propôs um outro âmbito normativo humano: o direito da cidade, de caráter contingente e variável, com a função de prescrever o direito positivo relativo às coisas e às relações entre os homens no seio da polis. Aquele direito correspondia ao justo por natureza; este, por sua vez, consistia na representação do justo legal e, necessariamente, por aquele devia ser balizado[13].

Nessa mesma consideração, Aristóteles situou o problema do justo natural no campo da vida boa cm si mesma, entendida como vida humana virtuosa, o locus, por excelência, da phrónesis, o saber prático exercitado pelo indivíduo na condução de uma vida boa e feliz: uma ética que é vista sob o ângulo do agente na direção do fim por ele realizado, exercitando sua sabedoria prática.

Como consequência, na filosofia aristotélica, a justiça, a ética, a prudência e a vida boa são conceitos entrelaçados que desembocam na felicidade. E onde? No mundo da polis, um mundo em que a política representa a expressão mais existencial do homem, enquanto se dedica ao plano do agir.

Na tarefa de condução dos destinos da polis, o homem grego vê-se inserido no meio das relações entre filosofia prática e filosofia política. Para Aristóteles, a ética assume uma função normativa, pois estabelece o fim em ordem do qual devem ser constituídos os regimes políticos e as leis e, como somente pode ser realizado no âmbito da polis, a especulação ética deve ser complementada por uma investigação sobre uma constituição da polis que propicie efeito pedagógico junto à tarefa singular de cada cidadão em auferir as virtudes necessárias para aquele mesmo fim. E, qualquer que fosse a constituição, ela deveria assegurar um campo fértil para a realização dos ditames de um justo natural por intermédio do justo legal.

E Aristóteles resolve escrever A Política, um verdadeiro tratado sobre teoria geral do Estado, no qual o Direito assume uma posição de destaque, ainda que, naquela época, não existisse uma palavra própria para mencioná-la, porque o conceito fundia-se, essencial e intuitivamente, na noção universal de justo: como o fogo que arde na Grécia e na Pérsia.

 

  1. Conclusão

O problema do justo é uma herança da antiguidade grega, cuja sociedade era dominada pelo pensamento de que existência humana se baseia numa lei natural, precedente, universal e de validade perene. As palavras de Antígona, diante de um inquisitivo Creonte, no seio de uma obra de literatura, de que existem leis não escritas e imutáveis, que não são nem de ontem, nem de hoje, mas têm uma origem imemorial, é um sinal inequívoco da consciência desse problema.

Em que pese a particular posição dos sofistas, pensamos que a afirmação de Antígona define magistralmente o modo de sentir a tradição da Hélade quanto ao problema da justiça, cujos influxos, mais tarde, não só repercutiriam, mas influenciaram decisivamente a análise do mesmo problema pelos jurisconsultos romanos, pelos padres da Patrística e, alguns séculos mais tarde, pelos filósofos da Escolástica.

No pensamento contemporâneo, a tradição grega, ao lado do legado do Direito Romano, pensamos, poderia ser um virtuoso e fecundo caminho para a inquisição do problema da justiça nos dias atuais. O aporte epistemológico do justo natural serviria de firme ponto de apoio axiológico para a sustentação do edifício do Direito, porque as outras vias de compreensão do mesmo problema estão chegando ao limite da inoperância.

 

  1. Referências bibliográficas

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NOTAS

[**] André Fernandes é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito titular de entrância final. Pesquisador do grupo Paideia, na linha de ética, política e educação (FE/UNICAMP) e professor do CEU-IICS Escola de Direito. Coordenador do IFE Campinas. Articulista da Escola Paulista da Magistratura, da qual é também Juiz Instrutor, e do Correio Popular de Campinas, com especialidade na área de Filosofia do Direito, Deontologia Jurídica, Estado e Sociedade. Experiência profissional na área de Direito, com especialidade em Direito Civil, Direito de Família, Direito Constitucional, Deontologia Jurídica, Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica. Membro da Escola do Pensamento do IFE (www.ife.org.br), do Comitê Científico do CCFT Working Group (Diálogos entre Cultura, Ciência, Filosofia e Teologia), da União dos Juristas Católicos de São Paulo e da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas. Autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas.

[1]Reale (1993:628) destaca que “em primeiro lugar, devemos reconhecer que em Roma já se fundava uma autônoma ciência do direito. O Direito não é cultivado apenas por moralistas, por filósofos, teólogos ou sacerdotes. Já surge a figura do jurisconsulto, que tem consciência do objeto próprio de sua indagação, e, aos poucos, se converte em um especialista ou profissional de uma nova Ciência ou Arte, cultivando a justiça em seu sentido prático, como voluntas, e não como um dos aspectos teóricos da sabedoria. O Direito Romano é, efetivamente, uma criação nova, que pressupõe em quem cultiva a convicção de que a experiência humana, por ele estudada, se subordina a categorias próprias, sendo suscetível de ordenação em um todo unitário, sistêmico e coerente. (…) Por outro lado, sabemos que os romanos não foram grandes apaixonados pelos estudos filosóficos, como os gregos, dos quais herdaram a especulação para a justiça, nem pelos pressupostos gerais da vida jurídica, atraídos de preferência pelo plano da atividade prática”.

[2] “Para os pensadores gregos, a fonte do direito é o nomos, que se traduz geralmente por lei. A noção, desconhecida nos poemas homéricos, aparece em Hesíodo (século VII a. C.). Píndaro (século V a. C.) dirá que <<a lei é a rainha de todas as coisas>>. Um autor posterior, o Pseudo-Demóstenes, dá uma definição: <<Os nomói são uma coisa comum, regulada, idêntica para todos, querendo o justo, o belo, o útil; chama-se nomos o que é erigido em disposição geral, uniforme e igual para todos. O nomos é sobretudo o meio de limitar o poder da autoridade, porque a liberdade política consiste em não ter que obedecer senão à lei. Mas a lei é humana e laica; já não tem nada de religioso, de divino (GILISSEN, 1988:75-76) (grifos nossos)”.

[3] A tragicidade marca a vida de Antígona, do nascimento à morte: Em “Édipo Rei”, Édipo tem em conta o terrível dilema de identidade de seus filhos com Jocasta, sua mãe biológica. Antígona é, ao mesmo tempo, sua irmã e filha. As regras não escritas de parentesco e atribuição de identidade haviam sido infringidas e todos os efeitos da hybris grega recairiam sobre sua família mais cedo ou mais tarde.

[4] Antígona, Prólogo, 78-79.

[5] Antígona, 1º, II, 449-464.

[6] Antígona, 2º, III, 661-676.

[7] Hervada (2008: 264-265) afirma que “a lei não é estabelecida para pessoas singulares – físicas ou morais – mas para a generalidade delas. Nessa afirmação estão envolvidas duas questões: uma, a oposição à existência de privilégios, que seriam contrários ao princípio de igualdade que vigora em nossas comunidades políticas (…). A marca da generalidade da lei já foi destacada (…) por Ulpiano: ‘Iura non in singulas personas, sed generaliter constituuntur’. Os direitos não se estabelecem levando em conta os indivíduos, e sim em geral. Com mais exatidão, Papiniano classificou a lei como praeceptum commune, como um preceito comum (…). Ao ser direcionada para a comunidade, a lei é norma comum ou geral, no sentido de compreender por si só quantos casos iguais ou semelhantes foram produzidos na comunidade, porquanto ficam englobados no fato hipotético da lei que abrange uma generalidade de casos; por isso, o fato hipotético da lei não poder ser singular, mas deve ser redigido com aquele grau de abstração suficiente para compreender uma multiplicidade de casos concretos”. Silva Pereira (2011:53) assinala a permanência como outra característica da lei, pois “é próprio da lei a duração, a extensão no tempo (…) toda lei, como elaboração humana, é contingente. Nasce, vive e morre, como o homem que a concebe. Pode ter existência mais ou menos longa, pode destinar-se a regular uma situação que perdure mais ou menos extensamente, pode ter vigência indeterminada (…). Mas não se pode destinar a uma única aplicação”.

[8] A força é a negação da justiça. Contudo, sem o manejo da força, paradoxalmente, a humanidade jamais teria sido capaz de descobrir o que é a justiça e como se deve agir para ser justo. “Este foi, sem dúvida, o ponto de partida de Platão. Não apenas seu ponto da partida na obra mais diretamente voltada para a reflexão sobre a justiça – o diálogo que adquiriu um nome impróprio de “República” – mas também foi o ponto de partida que orientou toda sua reflexão filosófica, cujo ato inaugural está na indignação perante uma injustiça que marcou sua juventude. Ao assistir à condenação de Sócrates, que era, em sua opinião, ‘o mais justo dos homens de meu tempo’ (Platão, Carta VII), sua vida tomou um novo rumo: a busca de uma reflexão a partir da qual fosse possível encontrar o significado teórico e a aplicação prática do conceito de justiça: significado teórico no sentido de encontrar o conteúdo da ideia de justiça, mas também significado prático, no sentido de encontrar um modo pelo qual fosse possível uma nova ordem política que restituísse a justiça às sociedades humanas. Platão não foi o primeiro, entre os gregos antigos, a procurar entender o significado da justiça. Foi, sem dúvida, um dos que mais intensamente investigaram o tema e, principalmente, um dos primeiros cujos textos tiveram a sorte de serem conservados para a leitura das gerações futuras. Mais ainda: sua obra sobre justiça se tornou referência para tudo quanto, depois dele, foi escrito sobre o tema. Se a morte de Sócrates ensinou a Platão de que modo a vida humana está vinculada ao conceito de justiça, a vida lhe ensinou que não é possível à condição humana viver sem uma reflexão inerente à prática da justiça” (FABBRINI, 2007: 17).

[9] Metafísica, L. II 1, 993 b 19-23.

[10] Da Alma, L. I 3, 407 a 23-25.

[11] Ética a Nicômaco L. I 3, 1095 a 5-6; L. II 2, 1103 b 26-30; L. X 10, 1179 a 35-b 2.

[12] A prudência é tratada ex professo no livro VI da “Ética a Nicômaco”, que trata das virtudes dianoéticas, e no capítulo 34 do Livro I da Magna Moralia. Segundo Pierre Aubenque, “a tradição moral do Ocidente pouco reteve da definição aristotélica de prudência. Enquanto as definições estóicas de phronêsis como ‘ciência das coisas a fazer e a não fazer’ ou ‘ciência dos bens e dos males, assim como das coisas indiferentes’, facilmente se impuseram à posteridade, a definição dada por Aristóteles no livro VI da Ética Nicomaquéia apresenta um caráter demasiado elaborado ou, se se prefere, demasiado técnico para poder conhecer a mesma fortuna. Ali, a prudência é definida como uma ‘disposição prática acompanhada de regra verdadeira concernente ao que é bom ou mau para o homem (L. VI, 5, 1140 b 20 e 1140 b 5)” (AUBENQUE, 2003:59-60).

[13] Essa antinomia foi expressa por Aristóteles em “Ética a Nicômaco” (L. V, 7, 1134 b 18-23 e 24-28): “O justo vivido na comunidade política (politikon dikaíon), ou é por natureza, ou é por lei. É justo por natureza (fysikon dikaíon), o que tem validade em toda parte e ninguém está em condições de o aceitar ou rejeitar. O justo legal (nomikón dikaíon) é indiferente se, no princípio, admite diversos modos de formulação, mas, uma vez estabelecido seu conteúdo, ordena-se como tal e não é mais indiferente (…) Alguns pensam que a justiça é só por convenção, porque o que é por natureza é imutável e tem o mesmo poder em toda parte – por exemplo, o fogo que arde aqui e na Pérsia – , por outro lado, veem a justiça sempre a alterar-se”. Em “A Retórica” (L. I, 1368 b-1377), Aristóteles retoma, com outro enfoque, a mesma antinomia.