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O Problema do Justo na Paidéia Grega

Sem Categoria | 16/12/2014 | |

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Parthenon Grego

Resumo: Somos herdeiros da filosofia grega e sua capacidade de inquietação acerca de uma aceitação acrítica da vida, no afã de buscar as respostas para uma vida racionalmente significativa, plena de sentido e em harmonia com o mundo, alcançou o problema do justo.  Como os gregos puderam compreender e criticar o próprio modus vivendi e a ideia de justiça nele havida? A literatura e a filosofia procuraram desenvolver algumas respostas que foram além do senso comum e, nesse sentido, forneceram as bases para a constituição posterior de uma episteme da justiça em Roma. No mundo grego, literatura e filosofia pareciam refletir as divisões essenciais do espirito humano: aceitação e rejeição do status quo, desejo de ordem e de transgressão, relações de imanência e de transcendência, defesa de padrões convencionais e ceticismo diante deles, aquiescência do papel social e refutação deste. A polis grega já tinha uma certa intuição de que a justiça deveria corresponder a uma expressão unitária e integrante dos cosmos e dos valores de convivência social, porque já se percebia que um justo natural antecedia um justo legal, servindo-lhe de limite ético. É uma correlação de origem grega e, em virtude do modo de sentir e da tradição grega, por sua íntima razão e força, sempre ressurge ao longo da história e jamais foi superada.

 

O PROBLEMA DO JUSTO NA ANTIGUIDADE DA HÉLADE: OS APORTES EPISTEMOLÓGICOS DA FILOSOFIA E DA LITERATURA DA PAIDEIA GREGA

ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES[**]

  1. Introdução.

Qualquer discussão sobre os conceitos relativos à ideia de justiça deve ser feita dentro da esfera de um modus vivendi que indique não apenas as chaves de interpretação, mas também o contexto existencial de sua especulação. Somos tributários da herança filosófica grega e um de seus mais importantes atributos está em transcender a aceitação acrítica da vida convencional: buscar e identificar condições para uma existência racionalmente significativa, plena de sentido e em harmonia com o mundo que nos circunda.

Essa tarefa não é fácil. Passaram-se séculos e o homem ainda se debruça sobre ela. Várias soluções – algumas mais duradouras que as outras, mas todas limitadas no tempo histórico – foram apresentadas. Independentemente da solução proposta, a questão da justiça sempre tem um lugar proeminente, porque o homem não quer apenas viver, mas viver bem: “os homens sempre atuam tendo em vista o que lhes parece bom” (ARISTÓTELES, 2005: 1252 a).

Foi na Grécia, entre os séculos V e III a.C., que a questão da justiça aflorou pela primeira vez. Mas como os gregos puderam compreender e criticar o próprio modus vivendi e a ideia de justiça nele havida? A literatura e a filosofia procuraram desenvolver algumas respostas que foram além do senso comum e, nesse sentido, contribuíram para a formação posterior de uma perene episteme acerca da justiça[1].

No mundo grego, literatura e filosofia pareciam refletir as divisões essenciais do espirito humano. Divisões entre aceitação e rejeição do status quo, desejo de ordem e de transgressão, relações de imanência e de transcendência, defesa de padrões convencionais e ceticismo diante deles, aquiescência do papel social e refutação deste.

Nesse trabalho analítico de compreensão e crítica, os gregos souberam, de maneira então inédita, manejar dois mecanismos que marcaram o universo espiritual da polis: a preeminência da palavra sobre outros instrumentos de poder e a plena publicidade das manifestações mais importantes da vida social, dentre as quais estavam as leis da polis, as quais motivaram exegeses e interpretações que eram costumeiramente veiculadas justamente pelo uso da palavra por parte dos filósofos e dramaturgos gregos.

Morrison (2006:24) lembra que “muitos dos filhos de Zeus e Têmis tornaram-se fiadores das leis e da estabilidade social, em particular Dike, Eunomia e Irene. Dike passou a personificar o ideal de justiça que colocava o homem acima do mundo animal (…). Como deusa, Dike levava os juízes a se empenhar em deliberar com integridade lógica em vez de tomar decisões arbitrárias; sua irmã Eunomia representava a harmonia social e jurídica que resulta desse comportamento racional e Irene expressava a paz. Em conjunto, configuravam a ideia social de homonoia, ou o ideal de uma comunidade urbana harmoniosa”.

Os Sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles, na filosofia, e Sófocles, com sua célebre “Antígona”, na literatura, assumiram a tarefa de compreender esse ideal, correlacionando-o ao problema do justo. Porque os gregos já tinham uma certa intuição de que a justiça deveria corresponder a uma expressão unitária e integrante dos cosmos e dos valores de convivência social.

A justiça deveria ser o verdadeiro pressuposto de toda ordem jurídica no mundo espiritual da polis, onde já se percebia que um justo natural antecedia um justo legal, servindo-lhe de limite ético. É uma correlação de origem grega e, em virtude do modo de sentir e da tradição grega, por sua íntima razão e força, sempre ressurge ao longo da história e jamais foi superada.

Frise-se que a importância do contributo grego para a noção de um justo natural decorre justamente do fato de, pela primeira vez na história, o homem ter despertado para a consciência do problema. Não houve uma proposta deliberada de composição epistêmica de critérios capazes de distinguir a juridicidade da legalidade, o justo natural do justo legal. Até porque, como a polis era a expressão mais alta da vida ética na Hélade e tudo convergia para a manifestação do indivíduo na vida política, de certa forma, não havia a necessidade daquela distinção.

 

  1. Mecanismos do universo espiritual da polis.

O advento da polis, entre os séculos VIII e VII a. C., é um fato decisivo na história do pensamento grego: por intermédio dela, a vida social e as relações entre os homens tomam um novo rumo, cuja originalidade, os ônus e o bônus serão plenamente percebidos pelos gregos. Neste novo sistema social, a palavra transforma-se no instrumento político por excelência, a chave de toda autoridade estatal e o meio de comando sobre a coletividade.

A palavra deixa o campo do rito ou da fórmula justa e migra para a seara do debate contraditório, da discussão e da argumentação. Supõe uma plateia de ouvintes à qual a palavra é dirigida e, na posição de magistrado soberano, essa mesma plateia, persuadida racionalmente, elegerá um discurso em detrimento dos demais. Vernant (2011:54) afirma que:

as questões de interesse geral que o Soberano tinha por função regularizar e que definem o campo da arché são agora submetidas à arte oratória e deverão resolver-se na conclusão de um debate; é preciso, pois, que possam ser formuladas em discursos, amoldadas às demonstrações antitéticas e às argumentações opostas. Entre a política e o logos, há assim relação estreita, vínculo recíproco. A arte política é essencialmente exercício da linguagem; e o logos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua eficácia, por intermédio de sua função política. Historicamente, são a retórica e a sofística que, pela análise que empreendem das formas do discurso como instrumento de vitória nas lutas da assembleia e do tribunal, abrem caminho às pesquisas de Aristóteles ao definir, ao lado de uma técnica da persuasão, regras da demonstração e ao por uma lógica do verdadeiro, própria do saber teórico, em face da lógica do verossímil ou do provável, que preside aos debates arriscados na prática”.

 Ao lado da palavra, outro mecanismo típico da polis reside na plena publicidade outorgada às manifestações mais destacadas da vida social. Aliás, a polis existe apenas na medida em que surgiu um domínio público, em dois sentidos diferentes, porém complementares: um setor de interesse comum, oposto ao privado, e um âmbito de práticas abertas, em oposição aos processos e rituais secretos.

Essa exigência de publicidade faz com que todas as condutas, processos e conhecimentos submetam-se ao olhar alheio o que, na gênese, era um privilégio do basileus. No plano intelectual, esse movimento acarretará efeitos decisivos. Vernant (2011:55) afirma que:

a cultura grega constitui-se, dando-se a um círculo sempre mais amplo – finalmente ao demos todo – o acesso do mundo espiritual, reservado ao início a uma aristocracia de caráter guerreiro e sacerdotal (a epopeia homérica é um primeiro exemplo desse processo: uma poesia de corte, cantada primeiramente na sala dos palácios; depois sai deles, desenvolve-se e transpõe-se em poesia de festa). Mas esse desenvolvimento comporta uma profunda transformação. Tornando-se elementos de uma cultura comum, os conhecimentos, os valores, as técnicas mentais são levados à praça pública, sujeitos à crítica e à controvérsia. Não são mais conservados, como garantia de poder, no recesso de tradições familiares”.

Assim, tais conhecimentos, saberes e valores, ao serem submetidos aos processos de publicização na polis, motivarão exegeses, interpretações, ilações, oposições, contraditórios e debates acirrados. Doravante, a retórica e a argumentação serão alçadas à condição de armas na arena intelectual e política.

A comunidade passa a ter controle sobre as criações do espírito, mediante aferição da retidão por instrumentos de natureza dialética. E, nesse ponto, as leis não escaparão. Ao serem escritas, assegura-lhes vigência e eficácia. Subtraem-se à autoridade privada e ao saber oculto do basileus, cuja principal função era jurisdicional, ou seja, a de dizer o direito.

Demóstenes (GILISSEN, 1988:78), no Discurso contra Timócrates (353 a. C.), diz como pode ser proposta e aprovada uma lei em Atenas:

<<Nas leis que nos regem, Atenienses, contêm-se prescrições tão precisas como claras sobre todo o processo a seguir na propositura das leis. Antes de mais, fixam a época em que a ação legislativa é admitida. Em segundo lugar, mesmo então, não permitem a todo o cidadão exercê-lo à sua fantasia. É necessário por um lado, que o texto seja transcrito e fixado à vista de todos perante os Epónimos; por outro lado, que a lei proposta se aplique igualmente a todos os cidadãos; enfim que as leis contrárias sejam derrogadas; sem falar de outras prescrições, cuja exposição, parece-me, não teria interesse para nós neste momento. Em caso de infração a uma só destas regras, qualquer cidadão pode denunciá-la>>.

Com o fenômeno da publicização, as leis tornam-se bem comum e regra geral aplicável a todos os cidadãos da polis. E a dike, sem prejuízo de ainda permanecer como um valor sagrado, poderá, por meio da lei[2], encarnar-se num plano propriamente humano e ser submetida ao debate – literário e filosófico – acerca de sua essência.

 

  1. Sófocles e o dilema de Antígona.

Antígona é a última peça da trilogia tebana de Sófocles, escrita no século V. a. C., e deve ser analisada no contexto trinitário que o próprio autor criou: “Édipo”, “Édipo em Colona” e “Antígona”. É uma trilogia trágica sobre a qual se debruçaram muitos estudiosos ao longo da história.

Antígona era uma das filhas de Édipo, essa figura funesta do poder masculino que havia sido amaldiçoada pelos deuses, por ter assassinado seu pai, o rei de Tebas, por engano e, em seguida, casado com sua mãe e assumido o trono do reino[3].

Com a morte de Édipo, irrompeu uma guerra civil entre seus dois filhos, Polínicles e Etéocles, os quais disputam entre si o comando da cidade que, em princípio, haviam concordado em comandar alternadamente. Por trás da disputa entre os irmãos, temos a figura do tio, interessado em que ambos se destruam e assim ele, Creonte, ficaria com o poder inconteste. Este é um dos lamentos que está presente no enredo da peça: a ambição e a manipulação pelo poder.

Antígona e sua irmã Ismênia veem a disputa acontecer e nada podem fazer para impedir que seus irmãos Etéocles e Polínicles se destruam. Mas, após a guerra, Etéocles é morto em combate e recebe um enterro digno, com honras militares, enquanto Polínicles, que também faleceu, é condenado por um decreto de Creonte a permanecer insepulto para que os animais comessem suas carnes, porque tinha lutado contra ele.

A pena é promulgada para conhecimento de todos, como decorrente do legítimo poder civil que detém o governante de uma cidade. A infração ao decreto acarretaria ao autor a sumária aplicação da pena de morte. Um edito cruel, porque pune o defunto com uma morte eterna, sem sepultamento e a ser comido pelos abutres.

A peça inicia com o diálogo entre Ismênia e sua irmã, Antígona, a qual não aceita a determinação de seu tio Creonte e, em segredo, planeja sepultar seu irmão. Antígona sente-se atrelada a um dever normativo que transcende sua posição de súdita do tio. Ismênia, invocando os horrores já sofridos pela família, apela que Antígona respeite o decreto real.

Antígona permanece firme em seu intento e libera a irmã de auxiliá-la, porque o dilema que sofre é pessoal: um dilema que antagoniza dois conjuntos de obrigações e leis. Por um lado, vê-se adstrita às leis divinas que prescrevem o sepultamento do irmão; por outro, a lei tebana (ou o decreto de Creonte) determina a deixá-lo insepulto. Ismênia também reconhece o conflito de normas, quando resolve não desafiar o rei por não se sentir “forte o bastante para ir contra o poder do Estado”[4].

Antígona parte para sepultar o irmão, resignada com a punição que a aguarda, uma morte honrosa para uma existência digna, pois, para ela, seria melhor assim do que continuar a viver sem um sentido, decorrente de sua incapacidade de agir contra o edito de Creonte. Depois de um sepultamento simbólico, algum tempo depois, ela é descoberta e confessa o que fez. Questionada por Creonte sobre seus atos, ela declara que não aceitava o decreto e acreditava ter feito o que era certo.

 CREONTE: E tiveste a ousadia de infringir a lei?

ANTÍGONA: Sim, essa ordem não veio de Zeus. A justiça que emana dos deuses não conhece essa lei. Não considero que tuas leis sejam fortes o bastante para revogar as leis não escritas e inalteráveis dos deuses, uma vez que não passas de um homem. Elas não são de ontem nem de hoje, mas eternas, ainda que ninguém conheça suas origens. Nenhum mortal poderá culpar-me por transgressão perante os deuses. Por certo, sabia que teria de morrer, com ou sem o teu decreto. E, se minha morte é iminente, tanto melhor para mim. Quem, como eu, vive em meio a tantos tormentos, só tem a ganhar com ela[5].

 Creonte, nessa altura dos acontecimentos, percebe a gravidade da situação e a necessidade de levar a sanção pelo descumprimento de seu edito às últimas consequências:

CREONTE: Aquele a quem o Estado confere o poder deve ser obedecido até as mínimas coisas, sejam elas justas ou injustas. E, sem dúvida, aquele que sabe governar sua casa irá tornar-se o mais sábio dos reis ou o mais fiel dos súditos. Será ele o homem com o qual todos poderão contar na tempestade da guerra (…). Não existe maior desgraça do que a desobediência: ela destrói os Estados, leva os lares à ruína e, nos combates, traz consigo a derrotas dos exércitos. Por outro lado, a simples obediência salva as vidas de centenas de pessoas honestas. É preciso, pois, apegar-se às leis com total lealdade[6].

Antígona é condenada a uma morte cruel, será emparedada numa espécie de muro onde permanecerá até morrer de inanição. Ela aceita sua pena, pois reconhece haver desafiado as leis do Estado, embora não as aceitasse.

Em linhas gerais, a obra, sob o ângulo estritamente jurídico, debate o conflito entre as exigências do justo natural (Direito Natural) e o justo legal (Direito Positivo). Sófocles expõe esse conflito normativo ao colocar em oposição o edito de Creonte, a lei do Estado, e o dever de sepultamento dos mortos, a lei dos deuses.

Acreditamos que o decreto do novo rei de Tebas, impedindo apenas e tão somente o funeral de Polínicles e cominando a pena de morte para quem lhe desse uma sepultura, é uma lei injusta, porque carece da generalidade e da permanência que sempre caracterizam qualquer lei positiva no momento de sua integração ao ordenamento normativo[7].

Além da falta desses atributos essenciais, foi um decreto promulgado ex post facto, o que, no mínimo, macula a idoneidade de sua ratio legis. E lex iniusta non est lex, a lei injusta não é lei, como afirmou, com acerto, muitos séculos depois de Sófocles, Tomás de Aquino. Assim, Antígona, ao respeitar a lei dos deuses, fez prevalecer o justo por natureza, ainda que com o preço de seu sangue.

 

  1. Os Filósofos Pré-Socráticos, os Sofistas, Sócrates e Platão.

O advento de sucessivas poleis gregas, a partir do século VIII a. C., proporcionou alguns problemas de convívio e de cooperação entre seus habitantes. Até então, o paradigma ético residia no legado histórico-literário homérico (composto no século IX a. C.), com um ideal de homem virtuoso que já não mais atendia aos anseios do cidadão grego. O ethos da obra homérica lastreava-se na areté ou excelência dos chefes das famílias aristocráticas, consistente na aptidão retórica e guerreira geradora de honra e prestígio sociais.

Para reverter o quadro de litigiosidade, foi introduzido o nomos ou lei, a fim de que novas formas de capacidade e de virtudes ganhassem corpo social, em superação das antigas aretai em estado de agonia, no contexto racional da polis e de seu equilíbrio proporcionado pela boa lei. O desenho teórico e empírico da nova areté visava justamente à capacidade de moderar os desejos individuais, a irascibilidade (típica do guerreiro) e as emoções particulares em prol dos ditames legais.

Uma noção rudimentar de justiça já se faz presente nos primórdios da cultura grega. O relato homérico sobre a guerra de Tróia assenta-se na fundação de um ethos voltado para o ideal da reparação de uma injustiça. Os ensinamentos e as leis de Sólon (século VI a. C.) tomam parte nesta comunhão entre a visão grega do universo e a busca de condutas e normas voltadas para a prática da justiça.

No campo filosófico, aquela noção rudimentar começa a tomar uma certa forma teórica. O filósofo pré-socrático Anaximandro (século VI a. C.) referira-se à “injustiça” que existe quando há conflitos durante os movimentos naturais dos corpos. Mais tarde, outro filósofo pré-socrático, Heráclito (século V a. C.), dele divergira, ao afirmar que todo conflito que provoca injustiça é inerente ao império de um processo universal ordenado.

Segundo Heráclito, o devir não é anárquico, está dominado por uma medida, um logos e um sentido, à qual o homem deveria amoldar seu agir, advindo, dessa correlação, alguns princípios de conduta ou normas naturais. Cuida-se, pois, de um ponto de vista metafísico, restrito à mera cogitação, sem a formação de uma doutrina acerca da justiça.

Mais tarde, os sofistas logo submeteram o nomos ou a lei a uma crítica acertada, de tal sorte que a solução legal – o justo legal – logo pareceu inconsistente: como mestres da retórica e pessoas com uma visão cosmopolita, acusaram a diversidade desse paradigma legal, reduzindo-o ao campo do estritamente convencional, o que fomentaria a canalização exclusiva das demandas decorrentes do poder dos mais fortes.

Sob a ótica dos sofistas, o justo legal, representado pelo direito positivo, era dotado de relatividade. Não haveria um justo natural fundado num direito natural, porquanto, por natureza, nada seria verdadeiro e tudo derivaria do homem, o sentido último de todas as coisas, na expressão de Protágoras. Por conseguinte, os sofistas realizaram um giro copernicano na visão de mundo de Heráclito.

Daí a importância atribuída à techne retórica por eles ensinada, de maneira que uma argumentação mais convincente pudesse fazer impor, pelo consenso, os interesses diretamente buscados. Inclusive, a questão do justo legal desatrelada de qualquer lastro no justo natural fora tratada por Sófocles em Antígona (século IV a. C.), obra contemporânea ao período aqui enfocado e já abordada no tópico anterior.

Por outro lado, Sócrates (469-399 a. C.) foi um incansável adversário da proposta sofista, a qual, segundo o filósofo, correspondia a um saber falso e aparente (a opinião, doxa) que se camufla na argumentação retórica. Nessa empreitada que lhe custou a vida depois de uma dose de cicuta, Sócrates atuou em duas frentes: refutou a pretensão sofista de possuir pela via da techne retórica o saber sobre as virtudes cívicas da polis e propôs uma alternativa de saber verdadeiro e universal acerca da justiça, na qual a validade do justo legal derivaria diretamente de sua justaposição aos princípios do justo natural.

Na primeira frente, Sócrates tentou demonstrar que a techne sofista era ambivalente, na medida em que era apta a produzir injustiça natural. Na segunda frente, no afã de tentar resolver o problema prático do equilíbrio entre o individual e o social – fundamentado na premissa de que o justo legal deveria justamente provocar a moderação dos desejos que muitas vezes se sobrepunham aos requerimentos da vida em sociedade – questionou o modo de vida desmedido, inspirado na hybris, que, segundo ele, por estar divorciada do justo natural, não proporcionaria a eudaimonia da comunidade e, indiretamente, de seus membros.

A saída socrática consistiu na apropriação do cuidado da alma, influenciado pelo orfismo e pelo pitagorismo: extraiu do contexto religioso o pensamento da alma, colocando-o no centro e no fim de seu discurso moral, para “fundar sobre a concepção da alma como ‘verdadeiro eu’ aquela equação de justiça e felicidade que, sem esse suplemento, como se viu, parecia não poder com os golpes da crítica sofista” (VEGETTI, 1989:91).

A justiça realizar-se-ia, então, somente na alma, como fruto de uma vida examinada, regulada por uma episteme, uma ciência de justiça que sabe discernir o certo e o errado, o justo natural. A equação formada por justiça, felicidade, ciência e virtude na alma era uma conclusão que podia ser válida para Sócrates, que reputava a alma como imortal e atemporal.

Entretanto, seu zelo pela vida refletida portava uma aporia interna que a investigação platônica não só não resolveu como acentuou ainda mais: entre Sócrates e a polis foi aberto um dissídio, porque a polis rejeitou a mediação socrática entre a alma e a polis, culminada com a condenação do filósofo numa sociedade em que não havia espaço para seu saber inovador.

Platão herdou o problema acerca da episteme da justiça natural, que assegura ordem à alma individual e à comunidade[8]. Nos diálogos “A República” (L. I, 338-340), “Górgias” (482-484) e “Protágoras” (337d), Platão afirma que os sofistas buscavam muitas perspectivas de compreensão da lei e da justiça, oscilando entre a conveniência do mais forte, o resultado de uma convenção e a expressão de tendências naturais contra os abusos da legalidade positiva.

Trasímaco identifica a justiça como a vantagem do mais forte ou superior; Cálicles antepõe o direito natural dos mais fortes à tática das leis defensivas a que recorrem os mais débeis, que se satisfazem com a igualdade; Hípias escolhe as leis não-escritas, pois a lei positiva, tirana dos homens, obriga a muitas coisas contrárias à natureza.

Na República, Platão procurou superar as dificuldades internas da filosofia socrática, a fim de superar as ambiguidades sofistas. Para ele, a postura socrática não considerava dois conflitos internos, o da polis, revelado pela constante oposição entre abastados e pobres, e o da alma, dramatizado na tragédia do teatro grego, como no caso de Antígona.

Sua proposta de episteme deveria, então, criar condições para o império simultâneo do justo natural tanto na polis quanto na alma, pois a sociedade é homem escrito com letras maiúsculas: “não há indivíduo justo a não ser numa sociedade justa, mas não há sociedade justa se não o são, desse ponto de vista, os seus membros singulares. Parece, aliás, que, desse ponto de vista, a moral individual tem prioridade: os costumes da polis são os dos seus cidadãos”. (VEGETTI, 1989:117). Por isso, na República, Platão inicia com a justiça da cidade (Livros II e III) e passa para a justiça da alma (Livro IV).

Nos dois âmbitos, as partes distintas do conflito são reconduzidas a um todo ordenado a um fim único: a felicidade na polis como corolário da felicidade de cada alma, por intermédio da atuação do justo natural, caracterizado como aquela ordem em que cada parte desenvolve uma função específica no todo, segundo uma específica excelência ou virtude.

E a ordem é estabelecida por uma ciência em cada segmento social: a sophia, restrita dos governantes da cidade; para os guerreiros, era a coragem e, para os produtores, a temperança. Cada uma delas atuando dentro de seu respectivo âmbito de destinatários. Paralelamente, no interior da alma, inovando na tradição de então, surge a tripartição da alma platônica. A parte racional era governada pela sophia, a parte irascível pela coragem e a parte concupiscível pela temperança.

A ordem das partes no todo decorre de um saber específico, que abarca a ideia das inúmeras partes num todo à luz da ideia suprema de uma totalidade ordenada segundo uma ideia de Bem. Tal fato não decorre da experiência e não é deduzível a partir dos fenômenos mutáveis do mundo sensível. É inato e provém da anamnese, deduz-se da visão das ideias que foram previamente inscritas na alma de cada homem.

Assim, para Platão, o fundamento ontológico do justo natural está no arquétipo, ao qual todas as coisas deveriam se conformar. A ideia de justo natural deriva da ideia de bem, a qual se submete à ideia divina da ordem jurídica universal. O justo natural platônico é um justo natural ideal, efeito direto da contemplação das ideias. As ideias eternas estão preordenadas pela mente divina e a elas vinculam-se todo o conhecimento do justo e do injusto natural.

 

  1. Aristóteles.

Entra em cena Aristóteles. O Estagirita herdou o legado platônico e continuou na busca do saber sobre a ordem na alma e na polis, mas a submeteu a partir de outro método, a fim de vencer as vicissitudes subjacentes na resposta platônica. E suas ideias não só marcariam sua época, mas seus influxos constituiriam um imponente substrato do pensamento moral ocidental até os dias atuais.

Aristóteles logo notou a principal aporia no ideário platônico: a separação (chorismós)entre mundo inteligível e mundo sensível, cuja relação era fundada pela correspondência das coisas às ideias. Sob o ângulo da polis, tal cisão demandava o conhecimento das ideias por via da reminiscência (anamnese), o que provocava um choque radical com o senso comum, segundo o qual o acesso ao saber era fruto do embate entre as opiniões dos cidadãos.

Como efeito, as relações entre o governante-filósofo e a polis seriam um tanto dissonantes, aporia essa que, segundo Thomsen (1990:225-236), permanece insuperável no pensamento platônico. Rejeitando o chorismós e introduzindo as ideias nas realidades sensíveis, ou seja, descendo com as ideias do mundo inteligível ao mundo sensível – as formas da matéria – Aristóteles abriu uma nova senda para a ontologia.

Sob o ângulo do sujeito na relação de conhecimento com o objeto, o homem é visto como um ser capaz de conhecer a natureza das coisas, isto é, a verdade intrínseca de cada uma delas. Do ponto de vista do objeto, as realidades sensíveis, em virtude da forma nelas subjacentes, são naturalmente cognoscíveis. Para a vida na polis, abre-se a possibilidade de que os cidadãos tenham opiniões verdadeiras sobre os assuntos da polis – desde que correspondam à natureza da coisa opinada – e, assim, o filósofo pode e deve tomar as opiniões práticas como ponto de partida de sua investigação especulativa.

Sem dúvida, uma inversão completa do caminho do modelo platônico. O homem aristotélico não vai mais buscar na teoria da reminiscência o acesso ao conhecimento das realidades físicas e dos assuntos da polis, mas no caminho da abstração da experiência sensível. Isto é, a forma (a ideia platônica) está na substância de cada ser (no mundo sensível e não mais no mundo inteligível). E também no ser das ações humanas multifacetadas que tomam parte na vida da polis.

A investigação filosófica aristotélica rompe com a unicidade do saber platônico: um conhecimento das ideias incindivelmente teórico e prático, posto que as ideias, situadas no mundo inteligível, constituem o substrato sobre o qual são formadas as realidades do mundo sensível. Uma investigação do saber que contempla as ideias e que, por isso, configura-se num saber infalível, na ótica platônica, porque forma as coisas segundo as ideias.

Aristóteles, inspirado pela episteme do conhecimento platônico, que tentou conciliar a primeira crise histórica da filosofia, desencadeada pela questão da mutabilidade entre Parmênides (mundo imutável) e Heráclito (devir constante e perpétuo), propõe que, no âmbito do saber humano, a realidade sensível, objeto de estudo da física e da metafísica, tem, em si mesma, o princípio (ou o motor) de seus movimentos. E as ações humanas (tanto aquelas voltadas para o agir ou para o fazer) têm seu princípio no homem.

O resultado de uma arte (como a escultura ou a pintura) tem seu princípio na arte (techne) de quem a produz. A ação humana que se encerra em si mesma (como o ajudar alguém ou se omitir a fazê-lo) tem seu princípio na escolha. Assim, para Aristóteles, o saber com relação ao puro saber é teórico. No que toca às coisas feitas ou produzidas externamente (como o labor de um artesão), é um saber poiético. No que concerne ao agir, é prático.

A diversidade nos objetos e na relação dos respectivos saberes com os objetos volta ao ponto de partida, sob a denominação aristotélica de filosofia teórica e filosofia prática: ambas investigam a verdade e a causa que proporciona essa realidade. E, logo, são episteme. Todavia, a filosofia teórica busca a verdade como um fim em si mesma. A filosofia prática busca a verdade que é posteriormente ordenada à obra a ser feita aqui e agora[9]. O saber prático não é um fim em si mesmo, como o saber teórico, mas sempre tem em vista o horizonte de outro fim[10], ou seja, da ação.

Na investigação ética e política – os campos por excelência da filosofia prática – o objeto é conhecido de molde a poder ser posto em obra pelo agente da ação[11]. A partir de então, a ética passa a ser encarada como uma disciplina filosófica específica, com objeto, método e conceitos próprios. Para a vida na polis, essa revolução no campo das ideias significou uma revolução no campo da praxis: no seio da polis, as ações deixam de conduzidas pelo saber teórico do filósofo, o justo e o político platônicos, e passam a ser regidas pelo saber prático do bom político, iluminada pela phrónesis[12].

A filosofia prática aristotélica investiga o modo pelo qual a phrónesis é o princípio das escolhas e ações humanas que são tidas como virtuosas no ethos da polis. Ensina Giuseppe Abbà (2011, p.74) que:

o ponto de partida da filosofia prática são as “aparências” do sábio (phrónimos), do virtuoso (spoudaios) no ethos da polis: isto é, os seus juízos sobre a excelência de determinar as ações concretas e, de modo mais geral, os éndoxa, as opiniões de autoridade acerca do modo conveniente e nobre de viver e de agir. Ademais, o filósofo prático começa sua investigação, mais em geral, a partir dos legómena, as opiniões correntes acerca dos assuntos humanos, das excelências e dos bens humanos. O filósofo prático visa a dar razão dessas opiniões mediante processo diaporético: isto é, examina as eventuais aporias às quais as opiniões conduzem e busca resolver as aporias explicando a parte de verdade e a parte de erro contida nas opiniões. Mais em geral, o filósofo prático procede dialeticamente: examina as opiniões possíveis acerca de um problema prático, descarta, com argumentação contra-interrogativa ou refutatória, aquelas que levam a aporias ou que incorrem em contradição ou que contravêm os éndoxa. As opiniões que resistem ao exame ele as considera verdadeiras e mostra a sua compatibilidade. Assim procedendo, o filósofo prático parte do ‘quê’, isto é, das opiniões sobre as ações justas, boas, convenientes e remonta aos seu ‘porque’, isto é, à razão (logos) que as justifica. Este procedimento não é exclusivo da filosofia prática, pois também se acha na filosofia teórica (física e metafísica): é a via para se recobrar o conhecimento dos princípios próprios de uma ciência, princípios dos quais parte, então, a argumentação apodítica para explicar por que certas propriedades pertencem necessariamente ao objeto específico estudado por aquela ciência. O que diferencia a filosofia prática é o fato de que o ‘quê’ do qual ela parte é-lhe fornecido pelo ethos da polis, ethos que, por via da educação e da disciplina, tornou-se çthos ou caráter do indivíduo que age bem. Assim, o ponto de partida da investigação filosófica ‘ética’ é o mesmo a partir do qual tem início o raciocínio prático do phrónimos.

Ademais, a filosofia ética diferencia-se pelos motivos pelos quais alcança o procedimento dialético. Tal justificativa reside numa concepção normativa da vida boa e das excelências que a constituem. Superada esta etapa, o filósofo prático pode estipular e fundamentar normas gerais de como se deve agir em vários planos práticos para realizar a vida boa.

Concomitantemente, a filosofia ética assume um perfil tipológico, porquanto não indica uma concepção absolutamente delimitada e rigorosa da vida boa e das excelências para o homem, bem como dos meios ou das ações necessárias para tanto. A ética limita-se a informar os postulados gerais (typos) do bem supremo realizável pelo homem, sem fazê-lo de maneira certa e determinada.

O procedimento tipológico confere-lhe o caráter de ciência e diferencia-se da phrónesis, que não pode ser uma ciência, na medida em que extrai do ethos os princípios do raciocínio prático para determinar, no caso concreto, a ação que convém ser feita para viver bem nas circunstâncias contingentes. Ao passo que a filosofia prática procura justificar os fins das virtudes éticas, refluindo-os a uma concepção normativa da vida boa e descreve os atributos do raciocínio prático com o qual o sábio aplica às situações os fins virtuosos que definem a vida boa.

Logo, conclui-se facilmente que a filosofia prática aristotélica, ao contrário da filosofia platônica do Bem, é perfeitamente compatível com o ethos da polis e os éndoxa. E o filósofo prático não se limita a observar a realidade empírica e comentá-la, digamos, como um sociólogo nos dias atuais: ele vai além, pois compreende o ethos da polis, submete-o a uma argumentação dialética e diaporética, identifica uma concepção normativa de vida boa e, nessa tarefa, acaba por ser um crítico do mesmo ethos, buscando aprimorá-lo.

A distinção entre sabedoria prática (phrónesis) e filosofia ética requeria um giro copernicano em relação à posição platônica: se a justiça era considerada primeiro na polis e depois na alma, Aristóteles, ainda que concordasse com a máxima platônica de que o regime da polis e de suas leis educavam o caráter moral e as excelências do cidadão, inverte a mão de direção e inicia a consideração da justiça pela vida boa dos cidadãos, prescindindo-a do regime político ao qual estava afeta, a despeito do benefício decorrente de seus efeitos pedagógicos na situação singular de cada cidadão.

Nessa consideração, a ideia de justo natural foi posta sobre a essência imutável dos seres. Essa ideia, segundo já exposto, não é transcendente, mas imanente e a forma, na visão aristotélica, era o princípio que determinava o modo de ser, o fim ao qual tende o ser, sua essência. Se há uma essência comum a uma dada categoria de seres, como o homem, a universalidade dessa essência demanda um comportamento definido, expresso em imperativos naturais e, no que toca ao agir social, em imperativos moldados por um justo natural.

É o conceito teleológico de natureza. Por conseguinte, ao lado de um direito – universal e imutável – ligado às exigências naturais do homem, Aristóteles propôs um outro âmbito normativo humano: o direito da cidade, de caráter contingente e variável, com a função de prescrever o direito positivo relativo às coisas e às relações entre os homens no seio da polis. Aquele direito correspondia ao justo por natureza; este, por sua vez, consistia na representação do justo legal e, necessariamente, por aquele devia ser balizado[13].

Nessa mesma consideração, Aristóteles situou o problema do justo natural no campo da vida boa cm si mesma, entendida como vida humana virtuosa, o locus, por excelência, da phrónesis, o saber prático exercitado pelo indivíduo na condução de uma vida boa e feliz: uma ética que é vista sob o ângulo do agente na direção do fim por ele realizado, exercitando sua sabedoria prática.

Como consequência, na filosofia aristotélica, a justiça, a ética, a prudência e a vida boa são conceitos entrelaçados que desembocam na felicidade. E onde? No mundo da polis, um mundo em que a política representa a expressão mais existencial do homem, enquanto se dedica ao plano do agir.

Na tarefa de condução dos destinos da polis, o homem grego vê-se inserido no meio das relações entre filosofia prática e filosofia política. Para Aristóteles, a ética assume uma função normativa, pois estabelece o fim em ordem do qual devem ser constituídos os regimes políticos e as leis e, como somente pode ser realizado no âmbito da polis, a especulação ética deve ser complementada por uma investigação sobre uma constituição da polis que propicie efeito pedagógico junto à tarefa singular de cada cidadão em auferir as virtudes necessárias para aquele mesmo fim. E, qualquer que fosse a constituição, ela deveria assegurar um campo fértil para a realização dos ditames de um justo natural por intermédio do justo legal.

E Aristóteles resolve escrever A Política, um verdadeiro tratado sobre teoria geral do Estado, no qual o Direito assume uma posição de destaque, ainda que, naquela época, não existisse uma palavra própria para mencioná-la, porque o conceito fundia-se, essencial e intuitivamente, na noção universal de justo: como o fogo que arde na Grécia e na Pérsia.

 

  1. Conclusão

O problema do justo é uma herança da antiguidade grega, cuja sociedade era dominada pelo pensamento de que existência humana se baseia numa lei natural, precedente, universal e de validade perene. As palavras de Antígona, diante de um inquisitivo Creonte, no seio de uma obra de literatura, de que existem leis não escritas e imutáveis, que não são nem de ontem, nem de hoje, mas têm uma origem imemorial, é um sinal inequívoco da consciência desse problema.

Em que pese a particular posição dos sofistas, pensamos que a afirmação de Antígona define magistralmente o modo de sentir a tradição da Hélade quanto ao problema da justiça, cujos influxos, mais tarde, não só repercutiriam, mas influenciaram decisivamente a análise do mesmo problema pelos jurisconsultos romanos, pelos padres da Patrística e, alguns séculos mais tarde, pelos filósofos da Escolástica.

No pensamento contemporâneo, a tradição grega, ao lado do legado do Direito Romano, pensamos, poderia ser um virtuoso e fecundo caminho para a inquisição do problema da justiça nos dias atuais. O aporte epistemológico do justo natural serviria de firme ponto de apoio axiológico para a sustentação do edifício do Direito, porque as outras vias de compreensão do mesmo problema estão chegando ao limite da inoperância.

 

  1. Referências bibliográficas

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VERNANT, J.P. As Origens do Pensamento Grego. Rio de Janeiro: Difel, 2011.

 

NOTAS

[**] André Fernandes é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito titular de entrância final. Pesquisador do grupo Paideia, na linha de ética, política e educação (FE/UNICAMP) e professor do CEU-IICS Escola de Direito. Coordenador do IFE Campinas. Articulista da Escola Paulista da Magistratura, da qual é também Juiz Instrutor, e do Correio Popular de Campinas, com especialidade na área de Filosofia do Direito, Deontologia Jurídica, Estado e Sociedade. Experiência profissional na área de Direito, com especialidade em Direito Civil, Direito de Família, Direito Constitucional, Deontologia Jurídica, Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica. Membro da Escola do Pensamento do IFE (www.ife.org.br), do Comitê Científico do CCFT Working Group (Diálogos entre Cultura, Ciência, Filosofia e Teologia), da União dos Juristas Católicos de São Paulo e da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas. Autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas.

[1]Reale (1993:628) destaca que “em primeiro lugar, devemos reconhecer que em Roma já se fundava uma autônoma ciência do direito. O Direito não é cultivado apenas por moralistas, por filósofos, teólogos ou sacerdotes. Já surge a figura do jurisconsulto, que tem consciência do objeto próprio de sua indagação, e, aos poucos, se converte em um especialista ou profissional de uma nova Ciência ou Arte, cultivando a justiça em seu sentido prático, como voluntas, e não como um dos aspectos teóricos da sabedoria. O Direito Romano é, efetivamente, uma criação nova, que pressupõe em quem cultiva a convicção de que a experiência humana, por ele estudada, se subordina a categorias próprias, sendo suscetível de ordenação em um todo unitário, sistêmico e coerente. (…) Por outro lado, sabemos que os romanos não foram grandes apaixonados pelos estudos filosóficos, como os gregos, dos quais herdaram a especulação para a justiça, nem pelos pressupostos gerais da vida jurídica, atraídos de preferência pelo plano da atividade prática”.

[2] “Para os pensadores gregos, a fonte do direito é o nomos, que se traduz geralmente por lei. A noção, desconhecida nos poemas homéricos, aparece em Hesíodo (século VII a. C.). Píndaro (século V a. C.) dirá que <<a lei é a rainha de todas as coisas>>. Um autor posterior, o Pseudo-Demóstenes, dá uma definição: <<Os nomói são uma coisa comum, regulada, idêntica para todos, querendo o justo, o belo, o útil; chama-se nomos o que é erigido em disposição geral, uniforme e igual para todos. O nomos é sobretudo o meio de limitar o poder da autoridade, porque a liberdade política consiste em não ter que obedecer senão à lei. Mas a lei é humana e laica; já não tem nada de religioso, de divino (GILISSEN, 1988:75-76) (grifos nossos)”.

[3] A tragicidade marca a vida de Antígona, do nascimento à morte: Em “Édipo Rei”, Édipo tem em conta o terrível dilema de identidade de seus filhos com Jocasta, sua mãe biológica. Antígona é, ao mesmo tempo, sua irmã e filha. As regras não escritas de parentesco e atribuição de identidade haviam sido infringidas e todos os efeitos da hybris grega recairiam sobre sua família mais cedo ou mais tarde.

[4] Antígona, Prólogo, 78-79.

[5] Antígona, 1º, II, 449-464.

[6] Antígona, 2º, III, 661-676.

[7] Hervada (2008: 264-265) afirma que “a lei não é estabelecida para pessoas singulares – físicas ou morais – mas para a generalidade delas. Nessa afirmação estão envolvidas duas questões: uma, a oposição à existência de privilégios, que seriam contrários ao princípio de igualdade que vigora em nossas comunidades políticas (…). A marca da generalidade da lei já foi destacada (…) por Ulpiano: ‘Iura non in singulas personas, sed generaliter constituuntur’. Os direitos não se estabelecem levando em conta os indivíduos, e sim em geral. Com mais exatidão, Papiniano classificou a lei como praeceptum commune, como um preceito comum (…). Ao ser direcionada para a comunidade, a lei é norma comum ou geral, no sentido de compreender por si só quantos casos iguais ou semelhantes foram produzidos na comunidade, porquanto ficam englobados no fato hipotético da lei que abrange uma generalidade de casos; por isso, o fato hipotético da lei não poder ser singular, mas deve ser redigido com aquele grau de abstração suficiente para compreender uma multiplicidade de casos concretos”. Silva Pereira (2011:53) assinala a permanência como outra característica da lei, pois “é próprio da lei a duração, a extensão no tempo (…) toda lei, como elaboração humana, é contingente. Nasce, vive e morre, como o homem que a concebe. Pode ter existência mais ou menos longa, pode destinar-se a regular uma situação que perdure mais ou menos extensamente, pode ter vigência indeterminada (…). Mas não se pode destinar a uma única aplicação”.

[8] A força é a negação da justiça. Contudo, sem o manejo da força, paradoxalmente, a humanidade jamais teria sido capaz de descobrir o que é a justiça e como se deve agir para ser justo. “Este foi, sem dúvida, o ponto de partida de Platão. Não apenas seu ponto da partida na obra mais diretamente voltada para a reflexão sobre a justiça – o diálogo que adquiriu um nome impróprio de “República” – mas também foi o ponto de partida que orientou toda sua reflexão filosófica, cujo ato inaugural está na indignação perante uma injustiça que marcou sua juventude. Ao assistir à condenação de Sócrates, que era, em sua opinião, ‘o mais justo dos homens de meu tempo’ (Platão, Carta VII), sua vida tomou um novo rumo: a busca de uma reflexão a partir da qual fosse possível encontrar o significado teórico e a aplicação prática do conceito de justiça: significado teórico no sentido de encontrar o conteúdo da ideia de justiça, mas também significado prático, no sentido de encontrar um modo pelo qual fosse possível uma nova ordem política que restituísse a justiça às sociedades humanas. Platão não foi o primeiro, entre os gregos antigos, a procurar entender o significado da justiça. Foi, sem dúvida, um dos que mais intensamente investigaram o tema e, principalmente, um dos primeiros cujos textos tiveram a sorte de serem conservados para a leitura das gerações futuras. Mais ainda: sua obra sobre justiça se tornou referência para tudo quanto, depois dele, foi escrito sobre o tema. Se a morte de Sócrates ensinou a Platão de que modo a vida humana está vinculada ao conceito de justiça, a vida lhe ensinou que não é possível à condição humana viver sem uma reflexão inerente à prática da justiça” (FABBRINI, 2007: 17).

[9] Metafísica, L. II 1, 993 b 19-23.

[10] Da Alma, L. I 3, 407 a 23-25.

[11] Ética a Nicômaco L. I 3, 1095 a 5-6; L. II 2, 1103 b 26-30; L. X 10, 1179 a 35-b 2.

[12] A prudência é tratada ex professo no livro VI da “Ética a Nicômaco”, que trata das virtudes dianoéticas, e no capítulo 34 do Livro I da Magna Moralia. Segundo Pierre Aubenque, “a tradição moral do Ocidente pouco reteve da definição aristotélica de prudência. Enquanto as definições estóicas de phronêsis como ‘ciência das coisas a fazer e a não fazer’ ou ‘ciência dos bens e dos males, assim como das coisas indiferentes’, facilmente se impuseram à posteridade, a definição dada por Aristóteles no livro VI da Ética Nicomaquéia apresenta um caráter demasiado elaborado ou, se se prefere, demasiado técnico para poder conhecer a mesma fortuna. Ali, a prudência é definida como uma ‘disposição prática acompanhada de regra verdadeira concernente ao que é bom ou mau para o homem (L. VI, 5, 1140 b 20 e 1140 b 5)” (AUBENQUE, 2003:59-60).

[13] Essa antinomia foi expressa por Aristóteles em “Ética a Nicômaco” (L. V, 7, 1134 b 18-23 e 24-28): “O justo vivido na comunidade política (politikon dikaíon), ou é por natureza, ou é por lei. É justo por natureza (fysikon dikaíon), o que tem validade em toda parte e ninguém está em condições de o aceitar ou rejeitar. O justo legal (nomikón dikaíon) é indiferente se, no princípio, admite diversos modos de formulação, mas, uma vez estabelecido seu conteúdo, ordena-se como tal e não é mais indiferente (…) Alguns pensam que a justiça é só por convenção, porque o que é por natureza é imutável e tem o mesmo poder em toda parte – por exemplo, o fogo que arde aqui e na Pérsia – , por outro lado, veem a justiça sempre a alterar-se”. Em “A Retórica” (L. I, 1368 b-1377), Aristóteles retoma, com outro enfoque, a mesma antinomia.

A verdadeira tradição

Literatura | 08/07/2014 | | IFE CAMPINAS

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Nunca me sai da memória o poema Gesso, de Manuel Bandeira – para o meu gosto, o maior poeta brasileiro. “Essa minha estatuazinha de gesso quando nova, o gesso muito branco, as linhas muitos puras” são os versos iniciais. Uma rápida paráfrase: a partir de um pequeno acidente doméstico – a queda de uma estátua de gesso – o poeta realiza uma consideração filosófica. Após colar os pedaços do objeto, olha novamente para a estátua refeita e conclui: “só é verdadeiramente vivo o que já sofreu”. A simplicidade profunda!

Pois bem. Outro dia estava lendo uma coletânea de poemas franceses traduzidos por Guilherme de Almeida. Encontrei um chamado o verso partido, de Sully Prudhome. São poemas bem diferentes, já que o do brasileiro é em versos livres e o de Prudhome é composto por quadras de versos de oito sílabas. Contudo, o tema é semelhante. O poeta francês conta que um vaso é derrubado por um leque. Ele trinca, mas ninguém nota. Por isso “Ill est brise, n’y touchez pas” (“já se quebrou, não toquem não”). Assim ocorre com o coração de quem teve uma desilusão amorosa.

Essa semelhança em poemas tão diferentes lembrou-me do que é a tradição.

O assunto não é nada novo, já que Cícero, com a herança grega em mãos, refletiu sobre a tradição e modos de não ser mero imitador daquela cultura.Tratava-se, então, de uma questão relevante, já que a literatura romana “nasce sob o signo da tradução, e sob o impulso de um grego de Tarento, Lívio Andronico, que traduz a Odisseia e ainda outras tragédias e comédias gregas.” (Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica II – Cultura Romana, Calouste Gulbenkian, 2002, p. 63).

Também Petrarca, tido como o primeiro dos humanistas dizia, a respeito da relação da arte nova e a tradição: “Devemos cuidar para que, quando uma coisa for semelhante, muitas sejam diferentes, e o que é semelhante deve estar tão escondido que só possa ser captado pela busca silenciosa da mente, sendo mais inteligível do que descritível. Portanto, devemos recorrer ao tom e à qualidade interiores de outro homem, mas evitar suas palavras, pois um tipo de semelhança está oculto, e o outro salienta; uma cria poetas, a outra, macacos” (Francesco Petrarca, Le familiari, XXIII, apud. Ernst Gombrich, Norma e forma, Martins Fontes, 1990, p. 161).

Bandeira leu Prudhomme e escreveu: “Foi ele que me deu a vontade de estudar a prosódia poética francesa” (Itinerário da Pasárgada, p. 43). Vase brise e Gesso mostram o valor de uma tradição bem entendida: não mera imitação, mas recriação a partir de tópicas semelhantes ou iguais.

A morte do antigo sempre acaba na morte do novo que, sem referência, pensa que cria, mas repete. Quando cria, é vazio, inflado apenas de… nada.

Eduardo Gama (IFE Campinas)