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“Estado da Arte”: A Poética de Aristóteles

Filosofia | 15/07/2016 | | IFE CAMPINAS

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O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 5 de dezembro de 2014.

A Poética de Aristóteles

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“Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”? Talvez. Mas entre as não sonhadas jamais houve uma que não tenha atraído o olhar e o tato de Aristóteles. Primeiro e maior sistematizador da história do pensamento, seu Corpus enciclopédico definiu a epistemologia que está na base dos currículos de ensino superior ao redor do mundo. E, como se não bastasse a teoria, nos deixou também a chave para a prática do saber. No comando de algumas das cabeças mais competentes da Grécia, formaria em seu Liceu o primeiro centro de pesquisa científica aplicada, antecipando o aparato de produção de dados das academias contemporâneas.

Curiosamente, dentre suas numerosas obras, poucas, ou talvez nenhuma, teria uma repercussão comparável à de sua pequena apostila de teoria literária. Desafiando o lugar comum de que gosto não se discute, a Poética apresenta uma análise criteriosa não só dos elementos que compõem a poesia, mas das qualidades que brilham na boa poesia. Para o historiador da literatura grega Albin Lesky, “uma história da Poética e dos seus influxos deveria representar uma parte importante da vida cultural do Ocidente e ser, ao mesmo tempo, a história de erros grandiosos”. Após um período de hibernação milenar, o opúsculo renasceria incompleto ao olhar dos humanistas modernos. Popularizado como um “manual” de composição dramática, se revelou crucial para a formação da ópera italiana e do teatro barroco e neoclássico, suscitando mais de uma polêmica literária literalmente “homérica”. E mesmo hoje, não poucos roteiristas de Hollywood recorrem às lições da Poética para aprimorar a sua arte. Assim – quer saibamos quer não – Aristóteles segue exercendo uma influência decisiva sobre o modo como concebemos nossas histórias, vivemos nossos dramas e experimentamos o horror e a beleza do mundo.

Convidados

– André Malta, professor de língua e literatura grega da Universidade de São Paulo.

– Vicente Sampaio, tradutor da Poética e pesquisador do departamento de filosofia da Universidade Estadual de Campinas.

– Fernando Gazoni, tradutor da Poética e professor de língua e literatura grega na Universidade Federal de São Paulo.

Referências
  • A Poética de Aristóteles, tradução e comentários de Fernando Gazoni (http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-08012008-101252/pt-br.php).
  • Aristotle’s Poetics e The Aesthethics of Mimesis de Stephen Halliwell (Princenton).
  • “Aristotle’s Poetics” em In our time (http://www.bbc.co.uk/programmes/b00xw210).
  • A Poética de Aristóteles, tradução e comentários de Vicente Sampaio (Bamboo Editorial – no prelo).
  • “O método analítico e o método dialético na Poética de Aristóteles” de Fernando Gazoni nos Anais de Filosofia Clássica v. 2, 2008 (http://www.ifcs.ufrj.br/~afc/).
  • Principes de la tragédie: En marge de la poétique d’Aristote de Jean Racine (Nizet)
  • A Poética de Aristóteles. Mímese e Verossimilhança de Ligia Militz da Costa (Atica).
  • “Aristotle: Poetics” na Internet Encyclopedia of Philosophy (http://www.iep.utm.edu/aris-poe/).
  • Aristóteles em Nova Perspectiva de Olavo de Carvalho (Vide Editorial).
  • La Poétique d’Aristote com prefácio de T. Todorov e tradução e comentários de R. Dupont-Roc e J. Lallot (Seuil).
  • Aristotle’s Theory of Poetry and Fine Art de Samuel Butcher (https://archive.org/details/aristotlestheor00butcgoog).

Apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Echo’s Studio

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/a-poetica-de-aristoteles/

Os Caminhos para a Revelação (por José Freire Nunes)

Teologia | 24/06/2016 | | IFE SÃO PAULO

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"Adoração dos pastores", de Gerard van Honthorst (1622).

“Adoração dos pastores”, de Gerard van Honthorst (1622).

 

Este artigo é uma singela síntese do curso ministrado pelo professor Thomas D’Andrea – membro do Departamento de Filosofia na Universidade de Cambridge – em São Paulo entre os dias 9 de 16 de Janeiro de 2016. Longe de sequer chegar perto do brilhantismo dos valores e idéias apresentados naquela semana de estudo e comunhão, o artigo visa oferecer ao leitor uma amostra ainda que modesta das horas desfrutadas em companhia de expoentes do pensamento ocidental, como Platão e Santo Tomás de Aquino, além da alegria de ter conhecido entre os participantes pessoas que nutrem profundo zelo e estima pela busca da Verdade.

Numa conferência em 1967[1], Leo Strauss começou sua exposição com as seguintes palavras:

Todas as esperanças que mantemos em meios às confusões e perigos do presente são fundadas positiva e negativamente, direta ou indiretamente nas experiências do passado. Essas experiências, as mais amplas e profundas que preocupam nós homens do Ocidente, são indicadas pelos nomes de duas cidades, Jerusalém e Atenas. O homem Ocidental tornou-se o que ele é e é o que ele é pelo advento simultâneo da fé bíblica e do pensamento grego. Para compreendermos a nós mesmos e para iluminar o nosso caminho sem pistas para o futuro, nós precisamos entender Jerusalém e Atenas.

Este artigo conta a história do casamento dessas duas cidades e do filho gerado por elas.

Segundo Jacques Maritain, os gregos foram o “povo escolhido” da razão, os primeiros a propor uma explicação abrangente da ordem cosmológica em que estavam inseridos. Além da mitologia grega – que por sua vez representava alegoricamente eventos centrais como a criação, o decaimento da natureza humana e a morte – em Atenas desenvolveu-se a filosofia: amor ao conhecimento.

O conhecimento, para os primeiros filósofos, era visto como uma força libertadora capaz de fazer com que o homem alcançasse seu propósito: viver uma boa vida; sendo uma boa vida aquela centrada na contemplação. Para Aristóteles, essa questão era de suma importância.

Em seu texto “Protrepticus”, dirigido ao Rei de Ciprus em 350 A.C[2], Aristóteles busca persuadir o governante a reconhecer que uma boa vida só pode ser alcançada por meio da contemplação e que aquela é consequência da busca pelo conhecimento amparada na razão.

Segundo Aristóteles, as coisas existem por desígnio do pensamento, da natureza ou por mero acaso. Aquelas produto do acaso, muito embora sejam boas incidentalmente, são necessariamente de ordem inferior, porquanto não tem propósito nem fim previamente determinados. De outra forma, tudo aquilo que é produto do pensamento traz consigo um propósito e um fim (afinal, todo artesão realiza seu trabalho por um motivo almejando um resultado).

Aquelas coisas oriundas do pensamento são boas e belas à medida que seu propósito e fim estejam bem orientados: a arte da medicina é a arte de curar doenças, não de adoentar pacientes; a arte da arquitetura consiste em construir moradias, não as dilapidar. Com isso, todas as coisas, desde que propriamente orientadas, trazem consigo um bom fim e propósito.

Isso dito, dado que tudo tem um fim e propósito, quais seriam então o propósito e o fim do homem?

Segundo Pitágoras o homem existiria “para contemplar os céus[3]”; para Anaxágoras: “para contemplar tudo aquilo que se relaciona aos céus e às estrelas e à lua e ao sol nos céus, todo o restante não tendo importância[4]”. Com isso, o homem seria orientado à contemplação daquilo que o transcende.

Foi em Atenas que essa atitude filosófica floresceu. Dela salta aos olhos seu caráter especulativo e ascendente: por meio da indagação, os filósofos se engajam em especulações acerca da existência e, pelo esforço do intelecto guiado pela razão, conseguem ascender a um patamar mais elevado de entendimento como se num salto. Essa é a atitude que marca Atenas.

Muito foi dito sobre Atenas, mas resta perguntar: estaria essa atitude de acordo com aquela de Jerusalém?

Em sua Carta aos Hebreus[5], São Paulo salienta o principal aspecto da mentalidade de Jerusalém: a obediência a Deus.

Pela fé Abraão obedeceu quando Deus o chamou, e partiu para uma terra que lhe prometia dar, como uma herança. E foi, sem mesmo saber para onde ia. Sempre em resultado da sua fé, ele aceitou habitar nessa outra terra como um estrangeiro, vivendo em tendas, tal como Isaac e Jacob, aos quais Deus fez também a mesma promessa.  É que Abraão esperava aquela cidade solidamente estabelecida, cujo arquiteto e construtor é Deus mesmo.

Para os judeus, essa atitude dos gregos seria uma maneira dissonante de relacionar-se com Aquele que transcende o tempo e espaço. Ao passo que os gregos tinham sua filosofia, os judeus tinham sua Revelação.

Por que Revelação? Precisamente por ser inacessível ao homem especulativamente. A escolha do povo de Israel, o envio dos profetas e a Aliança foram atos unilaterais de vontade de Deus para instruir seu povo, visto que o conteúdo dessa instrução era inacessível pela mera via ascendente da razão. E a Lei, uma vez que vem de Deus, deve ser aceita sem titubear, como a instrução de um pai a seu filho ou o comando de um pastor ao seu rebanho. Ou seja, trata-se de uma relação assimétrica pela qual Deus comunica seu designo ao homem, restando a este exercitar o que o Cardeal John Henry Newman chamou de “gramática do assentimento”.

Toda a história dos judeus narrada no Antigo Testamento, desde a Aliança com Abraão, passando pela escravidão no Egito, o Êxodo e a chegada à Terra Prometida são capítulos marcados pela necessidade de se obedecer resolutamente aos comandos de Yahweh.

Percebe-se então que Atenas e Jerusalém são cidades que aparentemente se desenvolveram de maneiras antitéticas quanto à maneira pela qual o homem se relaciona com a vida e o conhecimento. Resta, portanto, a seguinte indagação: como esses relatos aparentemente conflitantes moldaram o desenvolvimento do Ocidente? Como os filósofos e teólogos medievais lidaram com a tensão latente entre filosofia e Revelação, razão e fé, Atenas e Jerusalém?

Uma das maneiras de lidar com essa tensão foi desenvolvida por um filósofo árabe cuja forma latina do nome é Averroes, o qual deu ensejo à escola de pensamento conhecida como Averroísmo.

Averroes, nascido na Espanha no século XII, desenvolveu seu método como reação ao teologismo de alguns de seus compatriotas árabes. Para ele, a Verdade não seria encontrada em nenhuma forma de revelação, mas nos trabalhos de Aristóteles. Ele dizia que um estudo teológico bem orientado não somente sugere, mas insta a todo aquele que deseja conhecer a Deus o uso da razão para contemplar a obra Deste. Sendo assim, uma boa metafísica deve ser embasada em fundamentos lógicos sólidos, sendo necessário então o estudo da Lógica para entender o designo Deus.

Isso dito, uma questão surge: se a revelação impele o homem a buscar Deus racionalmente, porque Deus revelaria algo? A própria razão como entendida pelos gregos não seria suficiente? Para encarar esse problema, Averroes debruçou-se sobre os trabalhos de Aristóteles.

Segundo Aristóteles, existem três classes de homens e cada uma delas pode ser persuadida por um dos seguintes tipos de argumentos: (a) aqueles retoricamente atrativos; (b) aqueles que deixam probabilidades dialéticas abertas; e (c) aqueles cujas conclusões derivam necessariamente de premissas claras.

O homem comum seria persuadido pelo primeiro tipo de argumento, usualmente associado a uma figura carismática que por meio de artifícios retóricos é capaz de encantar seu interlocutor com um bom relato e deflagrar os sentimentos certos em seus espectadores.  Segundo Averroes, a maioria das pessoas faria parte dessa primeira classe de homens. Com um homem prático, ele entendia isso e não via problemas, afinal: “Você não civilizará uma tribo de Beduínos por meio de metafísica[6]”.

Não da mesma forma com a segunda classe de homens. Apesar de também serem instigados a crer por um bom pregador, eles querem ao menos alguma evidência de que sua fé seja razoável. Felizmente, nada é mais simples do que achar evidências para reforçar crenças já existentes. Quanto à teologia, ela se restringiria a mostrar a razoabilidade da fé e o fato de que ela em nada contraria a razão, restando aos teólogos um papel secundário.

Todavia, o cenário é bem diferente para os homens da terceira classe. Para eles – os filósofos – todas as conclusões derivaram necessariamente de premissas claramente articuladas, não havendo espaço para nenhum tipo de revelação divina, dado que a razão seria suficiente para se adquirir conhecimento, dispensando-se a necessidade de recorrer a artifícios retóricos ou meras probabilidades dialéticas.

Em síntese: revelação seria filosofia simplificada aos néscios.

Apesar de sua tenaz defesa da metafísica, Averroes ficava embasbacado com a força civilizatória da Revelação ao elevar povos imersos no mais baixo grau de barbarismo aos mais elevados patamares de civilização. Isso nunca nenhum filósofo conseguiu alcançar, ficando seu ensinamento sempre restrito a um pequeno círculo de discípulos.

Ora, essa postura aparentemente conciliatória desagrada tanto o teólogo como o filósofo. Enquanto aquele não se conforma com a afirmação que sua fé é uma mera simplificação da filosofia para pessoas intelectualmente limitadas, este fica incomodado com fato de que a teologia também contenha aspectos da verdade mais acessíveis. Ou seja, Averroes conseguiu a proeza de desagradar gregos e troianos com sua abordagem conciliatória. Alguns séculos depois, David Hume se encontrou na mesma posição: “(…) pobre Hume, que do seu lado do mar é considerado de tão pouca religião, é aqui considerado como tendo muita[7]”. Visto o fracasso de Averroes, restou a Santo Tomás de Aquino no século XIII conciliar Atenas e Jerusalém.

Segundo Santo Tomás, razão e fé são ferramentas epistemológicas aplicadas a dois grupos diferentes de fenômenos. Enquanto ter fé é crer em algo porque foi relevado por Deus, ter ciência é assentir a algo percebido à luz da razão. Em outros termos, existe uma diferença entre saber que algo é verdadeiro e crer que algo é verdadeiro, e essa distinção delimita o campo de atuação da filosofia e da teologia. Se alguém sabe que algo é verdadeiro, o objeto da ciência não é passível de crença, dado que se se sabe é impossível crer. Igualmente, ninguém pode ter ciência de um objeto de crença, porque, se assim o fosse, o objeto seria de ciência, não de crença. Com isso, o ponto crucial é descobrir quais são as características do objeto estudado.

Dizer que os fundamentos da teologia – os chamados “artigos de fé” – são demonstráveis faria com que eles não fossem mais objeto dessa disciplina, ficando o homem somente com a teologia natural: metafísica. Cabe ressaltar que os artigos de fé não são meras probabilidades, mas sim a certeza de que Deus os comunicou por meio da Revelação. Todavia, quais sãos os fundamentos que levam a crer que Deus realmente falou? Os milagres, os profetas por Ele enviados, as profecias que se cumpriram e o nascimento de sua Igreja.

Santo Tomás continua e afirma que, além de artigos de fé, como a Trindade e a Encarnação, a Revelação também traz consigo elementos que podem ser percebidos racionalmente, tais como a existência de Deus e a imortalidade da alma.

Contudo, se a Revelação foi obra de Deus pelo fato dos artigos de fé serem inalcançáveis pela razão, por que ela também conteria doutrinas racionalmente acessíveis? “Porque embora existam poucos metafísicos, todos devem ser salvos[8]”. Mesmo a afirmação de que a existência de Deus e a imortalidade da alma podem ser percebidas pela razão foi recepcionada com profundo ceticismo, como por Guilherme de Ockham, quando não com a mais profunda revolta, como no caso de Voltaire. Dessa forma, com o intuito de atingir um maior número de pessoas e pacificar ocasionais querelas filosóficas, Deus teria incluído esses aspectos à Revelação.

Sendo assim, Santo Tomás logrou conciliar Jerusalém e Atenas, fé e razão e teologia e filosofia. Contudo, embora sua síntese contenha elementos de ambas as cidades, ela não pode ser vista meramente como realocação de algumas peças para formar uma nova escultura; como afirma Pierre Manent: “Nem profeta ou filósofo sozinho é capaz de manter o Ocidente[9]”. Diante disso, Santo Tomás personificou a atitude do filho de Atenas e Jerusalém: Roma, cidade de onde a Boa-Nova espalhou-se pelo mundo.

Não é exagero afirmar que o evento mais surpreendente da História foi o nascimento de uma criança filho de uma moça judia e de um rapaz descendente de Davi. Esse evento mudaria os rumos, não somente de Roma, mas do mundo. No Evangelho Segundo Lucas[10], a passagem que narra esse nascimento é magistral pela sua sutileza e seu caráter sintético:

Naqueles dias César Augusto publicou um decreto ordenando o recenseamento de todo o império romano. Este foi o primeiro recenseamento feito quando Quirino era governador da Síria. E todos iam para a sua cidade natal, a fim de alistar-se. Assim, José também foi da cidade de Nazaré da Galileia para a Judeia, para Belém, cidade de Davi, porque pertencia à casa e à linhagem de Davi. Ele foi a fim de alistar-se, com Maria, que lhe estava prometida em casamento e esperava um filho.

Enquanto estavam lá, chegou o tempo de nascer o bebê, e ela deu à luz o seu primogênito. Envolveu-o em panos e o colocou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria.

São Lucas, após rapidamente apresentar o panorama do que se passava, chamou atenção ao fato singular merecedor de toda atenção: o nascimento de Jesus Cristo.

Aos olhos de Roma, o ensinamento de Jesus, a formação em seu redor de um círculo de apóstolos, seus ensinamentos e morte pouco representaram além de um foco de resistência local que logo feneceria com a morte do pastor do rebanho. Apesar disso, de ovelhas sem pastor, os cristãos surpreendentemente cresceram em número e passaram a ser ferozmente perseguidos. De maneira ainda mais surpreendente, depois de anos submetidos à perseguição, em 380 D.C o imperador Teodósio I editou o Édito da Tessalônica estabelecendo o cristianismo como a religião oficial do Império Romano. Nesse sentido, são quase proféticas as palavras proferidas por Gamaliel nos Atos dos Apóstolos[11]:

Mas, levantando-se no conselho um certo fariseu, chamado Gamaliel, doutor da lei, venerado por todo o povo, mandou que por um pouco levassem para fora os apóstolos;

E disse-lhes: Homens israelitas, acautelai-vos a respeito do que haveis de fazer a estes homens, Porque antes destes dias levantou-se Teudas, dizendo ser alguém; a este se ajuntou o número de uns quatrocentos homens; o qual foi morto, e todos os que lhe deram ouvidos foram dispersos e reduzidos a nada.

Depois deste levantou-se Judas, o galileu, nos dias do alistamento, e levou muito povo após si; mas também este pereceu, e todos os que lhe deram ouvidos foram dispersos.

E agora vos digo: Dai de mão a estes homens, e deixai-os, porque, se este conselho ou esta obra é de homens, se desfará,
Mas, se é de Deus, não podereis desfazê-la; para que não aconteça serdes também achados combatendo contra Deus.

Olhando-se para trás, percebe-se que a obra não foi desfeita. Ao invés do abatimento, a fé cristã se fortaleceu. Não somente Antioquia, Jerusalém e Alexandria foram testemunhas da pregação apostólica, mas logo mais Roma, Londres e Paris também o seriam. Posteriormente, não somente a Europa, a Ásia e a África estariam influenciadas pela fé cristã, mas todo o mundo desde a América até a Oceania. A Igreja, que se estabeleceu em Roma no bojo do ensinamento apostólico, foi o epicentro de onde a Boa Nova da Ressurreição de Jesus espalhou-se. Nesse contexto, a Igreja, inspirada nas cartas de São Paulo, cresceu como o Corpo Místico de Cristo, do qual participam todos os fiéis espalhados pelo mundo unidos pela mesma cidade: Roma.

Roma, então, é o filho de Atenas e Jerusalém, a cidade mediadora da tensão entre fé e razão. De Atenas, ela herdou a razão de Platão e Aristóteles. De Jerusalém, a fé dos profetas e as promessas da vinda do Messias. Por sua vez, Roma absorveu as lições dessas cidades para contar uma história: a história da encarnação de Deus. Nessa história, os judeus constituem o povo escolhido por Yahweh para o qual foi prometido um Messias. Por sua vez, os gregos foram o povo que entenderam os aspectos racionalmente acessíveis da Revelação, preparando a mentalidade dos pagãos para recebê-la.

Jerusalém e Atenas trilharam caminhos diferentes que se comunicam, aplainando montanhas e desbravando o território para chegarem a Roma. Foram esses os caminhos que levaram ao desenvolvimento do Ocidente. Desses caminhos, outros surgiram, alguns se distanciando mais e outros menos. No entanto, algo inegável e observado por Scott Hahn é que, no final, todos os caminhos levam a Roma[12].

José Freire Nunes é estudante da Faculdade de Direito do Largo São Francisco

Artigo enviado a nós pelo IFE São Paulo.

NOTAS:

[1] Conferência de 1967, publicada em inglês (Strauss, 1997, pp. 377-405). Tradução: Teresinha Costa e Marília Mazzucchelli. Revisão: Mario Miranda Filho. Tradução concedida de Jewish philosophy and the crisis of modernity: essays and lectures in modern jewish thought (ed. K. H. Green). Nova Iorque: State University of New York Press, 1997.

[2] ARISTOTLE, Protrepticus. Notre Dame. University of Notre Dame Press. Translated by Anton-Hermann Chroust. 1964.

[3] Ibid.p.8

[4] Ibid.p.8

[5] Hebreus 11:8-10

[6] GILSON, Etienne. Reason and Revelation in the Middle Ages. In: The Richards Lectures in the University of Virginia, 1939, Virginia, New York: Charles Scribner’s Sons, 1939. p.43.

[7] CAMPBELL, Mossner. The Life of Hume, Londres, 1954, p.485, citando uma carta de James MacDonald de 6 de junho de 1764.

[8] GILSON, Etienne. Reason and Revelation in the Middle Ages. In: The Richards Lectures in the University of Virginia, New York: Charles Scribner’s Sons, 1939. p.82.

[9] MANENT, Pierre. Between Athens and Jerusalem. 2012: http://www.firstthings.com/article/2012/02/between-athens-and-jerusalem

[10] Lc 2:1-7

[11] At 5:34-39

[12] Referência ao livro “Todos os Caminhos Levam a Roma”, escrito pelo casal Scott e Kimberly Hahn no qual eles narram suas respectivas jornadas espirituais e como isso os levou a converterem-se ao catolicismo.

Reflexões sobre o “Direto Natural” de Aristóteles (por Heloísa Gusmão*)

Filosofia | 08/12/2015 | | IFE CAMPINAS

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I – CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

Ao analisar as formas de poder mais elementares da πόλις, Aristóteles descobre três modos distintos de constituições legais, conforme nos mostra a sua Política. Esta constituição do direito para Aristóteles é considerada pela literatura secundária como a fundamentação do chamado Direito Naturali. Mas, para uma boa construção ou descoberta da História da Filosofia, esta é uma afirmação de pouco significado se não se cultiva um cuidado interpretativo para que não se cometam com isto erros graves, como atribuir a Aristóteles um Direito Natural que não é seu ou mesmo juntá-lo a um grupo de autores “jusnaturalistas” pelo único motivo da semelhança de vocabulário, sem analisar as grandes diferenças no uso deste, não unívoco, para cada um dos filósofos em questão.

Neste artigo, portanto, buscaremos distinguir o que podemos significar por Direito Natural para Aristóteles. Um trabalho de direito natural comparado, apontando semelhanças e disparidades entre suas concepções para vários autores do jusnaturalismo clássico e moderno cumpriria com maior êxito a intenção a que esta pesquisa se propõe. O critério monográfico aqui usado, porém, há de permitir uma maior delicadeza hermenêutica para com o texto aristotélico, bem como que o trabalho seja curto, em conformidade com as normas de publicação do site. A pesquisa se fundará na interpretação de textos gregos antigos com uma grande frequência de reedições (os chamados códices ou, na filologia lusofônica contemporânea, testemunhos), que usaremos comparativamente em grego, inglês e em português, fato que nos leva a atentar para os critérios de edição usados pelos tradutores e comentadores. Este cuidado se faz necessário porque, como assinala o professor César Nardelli Cambraia em sua Introdução à Crítica Textual, tal como numa brincadeira de telefone sem fio, “a cada cópia que se faz de um texto, a constituição deste muda – seja por ato voluntário, seja por ato involuntário de quem o copia” ii.

Assim, o método filológico de crítica textual se nos apresenta como o mais prudente para a análise dos textos com os quais trabalharemos, pois, conforme também salienta Lausberg, “a tarefa básica do filólogo consiste em salvar os textos da destruição material”, enquanto que “a tarefa central [do mesmo] consiste na conservação do sentido que se deve dar ao teor do texto”iii, de modo que com esta técnica buscaremos recuperar nos textos o sentido mais próximo o possível do original. Não obstante o esforço exigido pela técnica adotada, um artigo de Filosofia não se pode esgotar por ela, pois, se assim fosse, seria tão somente um trabalho de Filologia. Sabemos que, apesar de complementares, são trabalhos distintos, sendo a ocupação principal num artigo filosófico a proposta de um problema filosófico, a clarificação dos pressupostos do mesmo nos textos trabalhados e das dificuldades de resolvê-lo, bem como a explicitação do caminho argumentativo que fizeram os filósofos e comentadores, a fim de que se abram novas possibilidades de se pensar a questão ou se confirmem as anteriores.

II – DIREITO NATURAL

Em Das Problem der Naturrechtslehre, Eric Wolf enumera 17 sentidos em que se pode usar o termo “natural” e 15 outros para o termo “direito”, contabilizando o impressionante número de 255 sentidos com os quais se pode dizer “direito natural”. Michel Villey parece pensar nisso quando, no artigo Abrégé Du Droit Naturel, aponta a falta de conhecimento dos juristas contemporâneos acerca do termo e mesmo certa ingenuidade de críticos como Kelsen ao “Direito Natural”iv. Segundo Villey, há uma forma principal e autêntica que deve ser buscada diretamente em seus inventores: Aristóteles, o pai da doutrina, e São Tomás, maravilhoso (sic) intérprete do texto de Aristóteles, para além do fato de tê-lo coroado com a doutrina católicav. Segundo ele, este direito natural autêntico não é conhecido, mesmo da Escola moderna de Direito Natural, pois esta está submergida numa cosmovisão neokantiana incompatível com a forma clássica de se pensar, que deve ser como que propedeuticamente desterritorializadavi para assim se fazer a experiência de compreensão do pensamento clássico.

Esta forma autêntica teria como principal característica a relação de implicação mútua entre a noção de direito a de justiça. Os exemplos dados por Villey são retirados do Livro V da Ética a Nicômaco e da Suma Teológica, IIa IIae qu. 57, nos quais são usados os mesmos termos (δίκαιον e jus) para designar tanto uma quanto outra noção. O termo grego encontra sua origem nos relatos sobre a deusa Δίκη, filha de Zeus e deusa da justiça, que, segundo Hesíodo, perseguia a injustiça por sobre a terra, punia os injustos e impunha equidade entre os homens. Em 943ª das Leis, Platão descreve esta deusa com o atributo da virgindade, pois sua justiça é de natureza incorruptível. Também em outros exemplos do direito clássico encontramos esta relação, não só do uso dos mesmos termos, mas propriamente da necessidade da justiça para a constituição do direito, como ao lermos o final do Livro II da República de Cícero: “sine summa iustitia rem publicam geri nullo modo posse”: sem a suprema justiça, a República não se pode realizar.

A justiça é alma e essência do direito natural e, à atividade dos juristas, a doutrina clássica atribui uma finalidade transcendente, a serviço da justiça. Tanto é assim que os dois exemplos citados por Villey são considerados pelos comentadores tanto como tratados da lei quanto como teorias da justiça. O Livro V da Ética Nicomaqueia nos desperta uma dúvida inicial: qual sentido de justiça equivale à noção de direito? Aristóteles inicia o trecho (1129ª27) mostrando que há vários significados para justiça e injustiça, pois estas podem ser ditas de vários modos. Quando os diferentes significados se dispersam em equívocos, eles não são imediatamente distinguíveis, como são as palavras equívocas de sentidos completamente distintos, por exemplo, a palavra designada para significar clavícula e chave no grego antigo:

ἔοικε δὲ πλεοναχῶς λέγεσθαι  δικαιοσύνη καὶ  ἀδικία,ἀλλὰ διὰ τὸ σύνεγγυς εἶναι τὴν ὁμωνυμίαν αὐτῶνλανθάνει καὶ οὐχ ὥσπερ ἐπὶ τῶν πόρρω δήλη μᾶλλον,(γὰρ διαφορὰ πολλὴ  κατὰ τὴν ἰδέαν) οἷον ὅτι καλεῖταικλεὶς ὁμωνύμως  τε ὑπὸ τὸν αὐχένα τῶν ζῴων καὶ  τὰςθύρας κλείουσιν. (Bywater)

Now ‘justice’ and ‘injustice’ seem to be ambiguous. But because the homonymy is close, it escapes notice and is not obvious as it is, comparatively, when the meaning are far apart, e.g. (for here the difference in outward form is great) as the homonymy in the use of kleis for the collar-bone of an animal and for that with which we lock a door”. (Barnes)

A partir deste alerta, Aristóteles faz uma distinção entre a justiça em sentido amplo (que é a equiparação do justo com o direito) e a justiça em sentido estrito (a equiparação do justo com a virtude do correto e do equitativo). E nossa primeira dúvida, sobre qual tipo de justiça se equipara com a letra da lei, ou seja, com a constituição escrita, à primeira vista parece ser respondida por este sentido primário, segundo o qual as pessoas que infringem as leis do direito, a constituição promulgada de um Estado, são consideradas injustas. O interesse de Aristóteles no livro V é, porém, fazer exame da segunda acepção de justiça, aquela que é uma parte da excelência moral, pois desde o livro IV vinha enumerando as outras virtudes humanas: a liberdade, a magnificência, a magnanimidade, a virtude que é meio termo entre os vícios de ambição e da negligência para com os bens, a jovialidade, a afabilidade, a sinceridade, a espirituosidade e o pudor. Aristóteles enxerga então uma subdivisão neste segundo sentido de justiça, chegando assim à ideia de justiça distributiva e de justiça corretiva. Por fim, passa a analisar os demais sentidos do termo: a justiça como reciprocidade, a justiça política e espécies análogas, justiça natural, justiça legal, além de apresentar uma escala dos graus de injustiça. Dedica o final das investigações do livro a questionar se se pode tratar alguém voluntariamente de modo injusto, se a culpa por injustiça na distribuição cabe a quem distribui ou se a culpa deve ser imputada a quem recebe, se é possível praticar injustiça consigo mesmo. A grande conclusão do tratado é que a prática da justiça é mais difícil do que se apresenta, por não se tratar de uma maneira de agir, mas de uma disposição íntima.

III – O LIVRO I DA POLÍTICA

Para compreendermos qual é a natureza desta justiça que se equipara com o direito em seu sentido mais ligado às constituições, é cabível lembrar que na Política Aristóteles faz um estudo das mesmas e este estudo é resultado da intelecção de uma relação causal entre a própria constituição material de um Estado e a sua constituição formal e escrita em modo de lei. Por isso olhemos com maior atenção o seu livro primeiro, considerado por tantos tão somente como um “tratado de economia doméstica” por quem deixa escapar que nele o Filósofo analisa as formas mais rudimentares da πόλις com o objetivo de depois explicitar esta relação causal entre as células constitutivas da πόλις e o seu todo.

No Capítulo I Aristóteles tem como pressuposto tácito – e, talvez, já demonstrado em suas Éticas ou em aulas precedentes a seus discípulos – que a πόλις é a mais elevada forma de comunidade e visa ao bem maior dos cidadãos. Mas este pressuposto é posto à prova durante o capítulo por seu método analítico, a partir do qual ele analisa a composição da cidade em seus elementos básicos e a finalidade destes elementos, de modo que a abstração das particularidades dos fins menores visados pelas partes leva o leitor a apreender o fim geral a que o todo visa. Por isso Aristóteles inicia um exame da comunidade doméstica, a família. No capítulo segundo ele toma como objeto de estudo a escravidão e questiona se ela é ou não natural, oferecendo objeções à naturalidade da escravidão e termina por mostrar como a arte de comandar escravos difere da arte de comandar pessoas livres. No capítulo terceiro, que é considerado um tratado econômico propriamente dito, Aristóteles investiga as riquezas e o modo de adquiri-las, defendendo que estas não devem ser adquiridas por si mesmas (tese elogiada por Marx no início do Capital), mostra a diferença entre o acúmulo de riquezas natural e o acúmulo de riquezas que é contrário à natureza e conclui com uma análise genética da origem da moeda. No capítulo quarto ele mostra que o acúmulo natural de riquezas é necessário à família e à cidade e mostra a importância das finanças no governo da cidade.

Ao último capítulo deste livro primeiro, Aristóteles analisa as relações entre marido e mulher e entre pais e filhos, e extrai disso prescrições de como deve ser a administração da comunidade doméstica. Examina também as qualidades morais nas pessoas livres e nos escravos, deixando claro que tais exames particulares devem levar à compreensão mais universal de como é e deve ser a disposição moral de um governante, dos súditos, como são e devem ser as constituições etc. Os capítulos que compõem o final do primeiro livro da Política nos permitem compreender a intenção de Aristóteles ao fazer uso de seu método analítico para decompor o Estado em suas partes mínimas e mostrar que a parte elementar do Estado não pode ser o indivíduo isolado, tal como T. Hobbes sugere no Leviatã. Um exemplo para explicar o argumento de Aristóteles é pensar que se eu disponho de um litro de água para analisar este composto em sua parte mais elementar, a decomposição química a ser feita não pode ir para além da fórmula H²O. Se, na análise, chego ao elemento hidrogênio, isolado do composto inicialmente analisado (água), é porque passei do limite da elementariedade do composto. De modo semelhante, Aristóteles quer analisar a πολιτεία grega e chegar às partes que, isoladas, ainda possuam as características essenciais do composto. Para isto, é necessário saber o que é o composto e por este motivo é que ele começa o livro oferecendo a definição de Estado, inserida nos seguintes argumentos:

Argumento 1)

P1: Toda comunidade visa a um bem;

P2: Toda cidade-estado é uma comunidade

.: Logo, toda cidade-estado visa a um bem

Argumento 2)

P1: O mais elevado visa a um bem mais elevado;

P2: A cidade-estado é a mais elevada forma de comunidade

.: Logo, a cidade-estado visa ao bem mais elevado

Nestes dois silogismos, Aristóteles apresenta uma definição preliminar de cidade-estado. Lembremos, das várias passagens da Metafísica, o enunciado “o ser se diz de vários modos”, e as várias outras, como a mais famosa dos Analíticos Posteriores, na qual ele diz que “conhecimento é conhecimento pelas causas”. Os vários modos de se dizer o ser, do ponto de vista da explicação do ser pelas suas causas, são os quatro recortes diferentes da realidade correspondentes às quatro causas: se eu digo que uma escrivaninha é um objeto de madeira, disse o que ela é em termos de causa material, mas várias outras coisas que não são escrivaninha e são também um objeto de madeira e, por isso, não se esgota a ideia de escrivaninha ao se fornecer a causa material. Tampouco se eu fornecer sua causa formal, dizendo que é um objeto de madeira com determinada disposição espacial, pelo mesmo motivo. Digo, então, que a escrivaninha passou por um certo processo de fabricação até chegar à loja e ser por mim adquirida com meu dinheiro, e por isso ela é um pertence meu, de modo que ofereci a causa eficiente (ao menos uma das causas eficientes) disto que eu digo ser uma escrivaninha. Mas também não basta, pois várias outras coisas são fruto do meu trabalho e não são escrivaninhas, de modo que, se quero oferecer uma definição essencial de algo, devo esgotar as causas necessárias e suficientes para que ele seja definido a ponto de não mais poder ser confundindo com outra essência. Dizer de uma escrivaninha qualquer que ela é, portanto, um objeto com uma superfície horizontal fabricada para se apoiar livros, cadernos entre outros objetos relacionados à atividade de leitura e escrita, é fornecer a definição que melhor a esgote. Objetos particulares (esta escrivaninha que tenho à minha frente) podem ser melhor descritos ao se fornecer conjuntamente todas as suas causas. Cabe lembrar aqui o trecho da Física em que Aristóteles define inclusive a própria causalidade:

“Uma coisa será chamada causa numa acepção se for um constituinte a partir do qual alguma coisa vem a existir (por exemplo, o bronze da estátua, a prata do cálice e seus gêneros); em outra acepção, se for a forma e o padrão, isto é, a fórmula de sua essência, e os gêneros desta (por exemplo, 2:1, e em geral o número, da oitava), e as partes presentes no relato; em outra ainda, se for a fonte do primeiro princípio da mudança ou do repouso (por exemplo, o homem que delibera é uma causa, e o pai da criança, e em geral aquele que faz aquilo que está mudando); e em mais uma acepção, se é uma espécie de meta – isto é, aquilo em busca de quê (por exemplo, a saúde da atividade física – Por que ele está se exercitando? – dizemos: “A fim de ser saudável”, e ao assim nos pronunciar julgamos ter enunciado a causa); e também todas as coisas que, quando alguma outra coisa as mudou, se acham entre o agente da mudança e a meta – por exemplo, o emagrecimento ou a purgação ou remédios ou instrumentos de saúde; porque todas essas coisas existem em função da busca da meta, diferindo entre si por serem algumas instrumentos e outras ações”. (Ph 194b23-195ª3)

Quais são, então, as causas da cidade-estado para que possamos decompô-lo em suas partes elementares sem que sua essência nos escape? No capítulo 1 é apresentada “a diferença específica da comunidade política em relação às outras formas de comunidades humanas mais restritas, principalmente a família”. Sabemos, a princípio, que a πόλις é uma comunidade, logo, a decomposição da πόλις que faremos deve chegar à comunidade mínima, ou seja, na relação entre duas pessoas, ou, como será explicado adiante, entre duas pessoas em algum aspecto diferentes. Francis Wolff, na obra “Aristóteles e a Política”, defende que uma das diferenças específicas entre a cidade-estado e as outras comunidades mais elementares é o fato dela possuir uma πολιτεία, ou seja, uma constituição ou regime político. Vejamos:

“[uma] ‘diferença’ da cidade em relação às outras comunidades: o fato de que ela tenha uma ‘constituição’, um ‘regime’ (em grego, πολιτεία). Ora, a πολιτεία de uma cidade é, como diz Aristóteles, ‘uma certa ordem (τάξις) instituída entre as pessoas que habitam a cidade (III 1, 1274b38). Em outros termos, é aquilo que organiza, estrutura e ordena as relações entre as partes da cidade, fazendo destas partes um todo, em suma, dando forma à matéria”vii

A ideia é condizente com o capítulo 1 da Política, no entanto Wolff se esquece de demarcar bem em que o fato da cidade-estado possuir uma πολιτεία difere das comunidades elementares. De fato, estas não possuem uma constituição, não cabe ao chefe da casa ou da aldeia promulgar positivamente leis, como faz o chefe do Estado. No entanto, há, sim, uma forma de organização política nas comunidades mais restritas, que não é uma πολιτεία, mas um ἀρχή, ou seja, um princípio interno ordenador, ou melhor, uma lei natural. Concordamos com Wolff, portanto, em dizer que a causa formal é diferente nas diferentes formas de comunidades que Aristóteles quer investigar, sendo a causa formal da cidade-estado a sua constituição (ou seja, a promulgação positiva de um regime político), enquanto que a causa formal das pequenas comunidades, como a família, é a lei que se baseia na natureza de quem legisla e de quem é legislado (senhor e escravo, homem e mulher, pai e filhos). Obviamente, se há uma promulgação de lei na cidade-estado e esta constitui sua causa formal, então aquele ou aqueles cuja responsabilidade é promulgar a lei se torna a causa eficiente da cidade. E o mesmo se sucede com o chefe da família ou aldeia, responsável por pôr em prática aquilo que a lei natural dispõe como tendência. As causas formal e eficiente, no entanto, não são suficientes para limitar a análise da cidade-estado à comunidade familiar, pois a própria constituição do indivíduo é, para Aristóteles, uma espécie de comunidade, que relaciona faculdades inferiores e superiores da alma.

Aristóteles precisa se valer, portanto, das outras causas para explicar por quê a célula elementar da πόλις é a relação entre dois indivíduos e não a própria constituição anímica individual. Por isto, no capítulo 2 é exposta “a maneira pela qual essa comunidade procede naturalmente das comunidades mais restritas e acaba por lhes atribuir um fim próprio: o bem, para além de uma sobrevivência confortável”viii. E fica claro, na célebre passagem onde Aristóteles define o ser humano como naturalmente um ser político, que uma sobrevivência confortável é causa final desta parte elementar da cidade-estado (que são as famílias e vilarejos, possíveis apenas a partir da associação humana) e que a cidade-estado possui uma característica específica que estas comunidades mais fundamentais não possuem, já exposta no segundo argumento e trabalhada novamente aqui: a cidade-estado visa o bem final, aquele a que todos os bens particulares buscados pelas comunidades restritas visam.

No capítulo 3, Aristóteles investiga, na célula elementar que serve de base para a cidade, a relação do senhor com sua domesticidade servil. Os capítulos de 4 a 6 são dedicados a demonstrar “o caráter, ora natural, ora convencional, da condição servil” para, no capítulo 7, afastar “das preocupações nobres do cidadão a tarefa de dirigir esse tipo de mão de obra”. Dos capítulos de 8 a 11, Aristóteles distingue um modo natural e limitado de adquirir riquezas (ligados à agricultura), de um modo não natural e ilimitado, favorecido pelo uso da moeda (ligado ao comércio). Richard Bodéus, na obra “Aristóteles, a Justiça e a Cidade”, reforça a ideia de que a principal preocupação de Aristóteles parece ser a de indicar até onde a riqueza, que não é um fim em si, é necessária para a cidade. Vamos investigar aqui qual é o valor filosófico dos capítulos 12 e 13 para a compreensão desta lei que se baseia na natureza dos legisladores e dos legislados, nos quais Aristóteles analisa, os outros membros da família, mulher e filhos, confiados à autoridade do senhor da casa.

III – ANÁLISE DE 1259a – 1260b

O precedente resumo do livro I teve um importante objetivo neste artigo, pois com ele vimos que o primeiro livro não se trata de apenas uma descrição especulativa das formas elementares de comunidade, ou seja, Aristóteles não se resume, nestas passagens, a tão somente descrever os fundamentos das comunidades familiares e das relações de poder entre senhor e servo, homem e mulher, pais e filhos. Vem de encontro ao nosso objetivo a advertência que Richard Bodéus faz, com a intenção de justamente propor uma visão geral do texto aqui trabalhado. Ele, após enumerar resumidamente todas as exposições presentes no livro I, adverte:

“O grau de detalhamento dessas exposições, mais ricas e desconcertantes do que parece aqui em seu resumo, fez com que o livro I fosse apresentado de bom grado como um ‘tratado de economia doméstica’. Esse tipo de apresentação é abusivo e mascara as preocupações de Aristóteles que sustentam, do início ao fim, as investigações efetuadas nesse livro. Essas preocupações estão ligadas a uma convicção global e muito profunda segundo a qual a economia, tão necessária para a política, no fundo não é objeto da própria política. Essa convicção é uma das mais significativas do pensamento aristotélico. Ela possui um alcance decisivo para apreciar os princípios mais fundamentais desse pensamento”. (BODÉUS, Richard. Aristóteles, a Justiça e a cidade).

Os capítulos 12 e 13 são um resumo do livro 1 e uma forma bastante didática do Filósofo apresentar exemplos concretos de uma realidade política que poderia parecer um pouco ideal, descolada da realidade, dado que havia no começo do livro aquela questão, em diálogo com As Leis de Platão, sobre a natureza do poder e se existiam ou não diferenças entre o poder que um patriarca exerce sobre sua família e o poder que um rei exerce sobre o reino e assim sucessivamente com cada forma de poder. Aristóteles o inicia, de fato, dizendo que a economia doméstica é composta de três partes: a ordem do senhor ao escravo; a ordem do marido à esposa e a ordem do pai aos filhos:

ἐπεὶ δὲ τρία μέρη τῆς οἰκονομικῆς ἦνἓν μὲν δεσποτικήπερὶ ἧς εἴρηται πρότερονἓν δὲ πατρική,τρίτον δὲ γαμική (καὶ γὰρ γυναικὸς ἄρχει καὶ τέκνωνὡς ἐλευθέρων [40] μὲν ἀμφοῖνοὐ τὸναὐτὸν δὲ τρόπον τῆς ἀρχῆςἀλλὰ γυναικὸς μὲν πολιτικῶς τέκνων δὲ βασιλικῶς:

“Acerca da economia doméstica nós vimos que nela há três partes – uma é a ordem do senhor para os servos, que já foi discutida, outra é a do pai e uma terceira a do marido. Um marido e pai, como vimos, ordena a mulher e as crianças, ambos livres, mas os ordenamentos são diferentes, sendo monárquica a ordem sobre as crianças e, sobre a esposa, uma ordem constitucional”.

Oἰκονομικῆς é um termo importante nos textos gregos e designa não somente o que nós compreendemos por administração de nossos bens de uso e consumo. É mais acertada a aproximação feita com o termo, um pouco já fora de uso, de “economia doméstica”, mas para compreendermos este nosso termo, é necessária à compreensão deste primeiro em grego. Ele aparece no Alcebíades, no Fedro, no Memorabilia do Xenofontes entre outros, e não se refere a um domínio privado que nada tem que ver com a vida pública e, por isso, política, Oἰκονομικῆς é sempre aplicado neste sentido de ser a atividade de cunho político exercida pelo homem grego livre nos domínios de suas propriedades.

[1259β] τό τε γὰρἄρρεν φύσει τοῦ θήλεος ἡγεμονικώτερονεἰ μή που συνέστηκε παρὰ φύσινκαὶ τὸ πρεσβύτερονκαὶ τέλειον τοῦ νεωτέρου καὶ ἀτελοῦς, ἐν  μὲν  οὖν  ταῖς  πολιτικαῖς  ἀρχαῖς ταῖς [5] πλείσταιςμεταβάλλει τὸ ἄρχον καὶ τὸ ἀρχόμενον (ἐξ ἴσου γὰρ εἶναι βούλεται τὴν φύσιν καὶ διαφέρεινμηδέν), ὅμως δέὅταν τὸ μὲν ἄρχῃ τὸ δ᾽ ἄρχηταιζητεῖ διαφορὰν εἶναι καὶ σχήμασι καὶ λόγοιςκαὶ τιμαῖςὥσπερ καὶ Ἄμασις εἶπε τὸν περὶ τοῦ ποδανιπτῆρος λόγοντὸ δ᾽ ἄρρεν ἀεὶ πρὸς [10] τὸθῆλυ τοῦτον ἔχει τὸν τρόπον δὲ τῶν τέκνων ἀρχὴ βασιλικήτὸ γὰρ γεννῆσαν καὶ κατὰ φιλίανἄρχον καὶ κατὰ πρεσβείαν ἐστίνὅπερ ἐστὶ βασιλικῆς εἶδος ἀρχῆςδιὸ καλῶς Ὅμηρος τὸν Δίαπροσηγόρευσεν εἰπὼνπατὴρ  ἀνδρῶν  τε  θεῶν τεHom. Il. 1.544

τὸν  βασιλέα  τούτων  ἁπάντων.  φύσει  γὰρ  [15]  τὸν  βασιλέα  διαφέρειν  μὲν  δεῖ,  τῷ  γένει  δ᾽ εἶναι  τὸναὐτόνὅπερ  πέπονθε  τὸ πρεσβύτερον  πρὸς  τὸ νεώτερον  καὶ   γεννήσας πρὸς τὸ τέκνον.

“A menos que haja exceções na ordem da natureza, o homem é naturalmente mais capacitado para ordenar que a mulher, assim como o idoso e experiente é superior ao jovem e imaturo. [5] Mas na maioria dos Estados constitucionais os cidadãos governam e são governados por turnos, pois as ideia de Estado Constitucional implica que a natureza dos cidadãos é igual e não difere em aspecto algum. No entanto, quando um governa e outros são governados, nós somos levados a criar uma diferença de apresentações, nomes e títulos de honra, o que pode ser ilustrado pelo dito de Amasis sobre sua bacia de lava-pés. A relação do homem com a mulher é sempre deste gênero. O ordenamento de um pai sobre suas crianças é monárquico, pois ele ordena em virtude do amor e do respeito à idade, exercendo o poder de um rei. Por este motivo Homero apropriadamente chamou a Zeus de “pai dos deuses e dos homens”, pois ele é rei de todos e porque um rei é por natureza superior aos seus súditos, mas ele deve ter o mesmo sangue ou etnia que eles, e assim é a relação do mais velho para com o mais jovem e do pai para com os filhos”.

Onde há uma πολιτεία, a igualdade política está implicada. Todas as diferenças, como os títulos de honra, são temporais e puramente oficiais. A referência feita aqui é à História de Heródoto, na qual o rei Amasis, vindo de origem não nobre, transformou uma bacia de lavar pés em uma estatua de um deus. “Assim como esta bacia se transformou em deus, eu me transformei em rei!”. A conexão é a seguinte: entre dois iguais, onde um legisla e outro é legislado, nós criamos uma distinção artificial em nomes e em títulos. Mas este não é o caso do marido e da esposa, pois a distinção entre eles existe e é permanente, ou seja, é segundo a natureza. O homem, por uma lei natural, é superior à mulher para ordenar, dada a hierarquia dos seres e o quanto que a mulher pode realizar da potência anímica humana em relação ao quanto que o homem o pode. Aristóteles lembra ainda que a menos que haja um acidente (no exemplo de São Tomás de Aquino no comentário à Política, aquilo que ocorre a homens efeminados, mas também poderíamos lembrar-nos de um acidente que ocorresse à mulher que optasse ou fosse fadada a não realizar a plenitude de sua natureza feminina e, portanto, não fosse naturalmente legislada por suas obrigações domésticas de procriação e cuidado com os filhos e com a casa), a relação entre um homem e uma mulher permanecerá a mesma, marido e esposa não mudarão de funções por turnos.

φανερὸν τοίνυν ὅτι πλείων  σπουδὴ τῆς οἰκονομίας περὶ τοὺς ἀνθρώπους  περὶ τὴν τῶν ἀψύχωνκτῆσινκαὶ [20] περὶ τὴν ἀρετὴν τούτων  περὶ τὴν τῆς κτήσεωςὃν καλοῦμεν πλοῦτονκαὶ τῶνἐλευθέρων μᾶλλον  δούλωνπρῶτον μὲν οὖν περὶ δούλων ἀπορήσειεν ἄν τιςπότερον ἔστινἀρετή τις δούλου παρὰ τὰς ὀργανικὰς καὶ διακονικὰς ἄλλη τιμιωτέρα τούτωνοἷον σωφροσύνηκαὶ ἀνδρεία καὶ δικαιοσύνη καὶ [25] τῶν ἄλλων τῶν τοιούτων ἕξεων οὐκ ἔστιν οὐδεμία παρὰτὰς σωματικὰς ὑπηρεσίας (ἔχει γὰρ ἀπορίαν ἀμφοτέρωςεἴτε γὰρ ἔστιντί διοίσουσι τῶνἐλευθέρωνεἴτε μὴ ἔστινὄντων ἀνθρώπων καὶ λόγου κοινωνούντων ἄτοπον). σχεδὸν δὲ ταὐτόνἐστι τὸ ζητούμενον καὶ περὶ γυναικὸς καὶ παιδός[30] πότερα καὶ τούτων εἰσὶν ἀρεταίκαὶ δεῖ τὴνγυναῖκα εἶναι σώφρονα καὶ ἀνδρείαν καὶ δικαίανκαὶ παῖς ἔστι καὶ ἀκόλαστος καὶ σώφρων οὔ;καθόλου δὴ τοῦτ᾽ ἐστὶν ἐπισκεπτέον περὶ ἀρχομένου φύσει καὶ ἄρχοντοςπότερον  αὐτὴ ἀρετὴ ἑτέραεἰ μὲν γὰρ δεῖ ἀμφοτέρους μετέχειν καλοκαγαθίας[35] διὰ τί τὸν μὲν ἄρχειν δέοι ἂν τὸν δὲἄρχεσθαι καθάπαξοὐδὲ γὰρ τῷ μᾶλλον καὶ ἧττον οἷόν τε διαφέρειντὸ μὲν γὰρ ἄρχεσθαι καὶἄρχειν εἴδει διαφέρειτὸ δὲ μᾶλλον καὶ ἧττον οὐδένεἰ δὲ τὸν μὲν δεῖ τὸν δὲ μήθαυμαστόνεἴτεγὰρ  ἄρχων μὴ ἔσται σώφρων καὶ δίκαιος[40] πῶς ἄρξει καλῶςεἴθ᾽  ἀρχόμενοςπῶςἀρχθήσεται καλῶς;ix

Por isto está claro que a economia doméstica visa mais aos homens do que à aquisição de coisas inanimadas; mais à excelência moral [virtude] que a excelência na prática de adquirir propriedade, quais chamamos de bens. Mais à excelência dos homens livres que dos servos. Uma questão precisa ser adicionada: se há alguma excelência qualquer num servo para além da excelência como instrumento e servo – se pode ter excelência moral [virtude] da temperança, coragem, justiça, e outras do gênero, ou servos possuem apenas a excelência dos serviços corporais. E, qualquer que seja a forma como respondamos a esta pergunta, uma dificuldade surge. Pois, se eles possuem excelência moral, em quê eles diferem do homem livre? Por outro lado, parece absurdo dizer que eles não possuem excelência moral, uma vez que são seres humanos e, por isso, dotados de um princípio racional. Uma questão semelhante surge acerca das mulheres e crianças, porque ambos são dotados de virtudes morais. Pode uma mulher ser temperante, ou corajosa ou justa e uma criança ser chamada de temperante ou intemperante ou não? Mas em geral nós podemos perguntar sobre o naturalmente governantes e sobre os naturalmente governados, se eles possuem o mesmo ou não no que diz respeito à excelência moral [virtude]. Pois, se sim, se uma alta excelência moral é requerida a ambos, por que um sempre deve sempre ordenar e outro sempre ser ordenado? Nós não podemos nem ao menos dizer que é uma questão de grau, pois a diferença entre quem ordena e quem é ordenado é de qualidade, não uma diferença de mais ou menos. Além do mais, quão estranha é a suposição de que um tenha e o outro não, pois e se o que ordena for intemperante e injusto, como poderá ordenar bem? E se o ordenado não possuir tais virtudes, como poderá obedecer bem?

A principal intenção da economia doméstica não é o acúmulo de propriedade, mas a educação moral dos participantes da família. O motivo disto é a hierarquia das finalidades: a propriedade é visada para o bem do homem e o homem visa à εὐδαιμονία.

 [1260α] ἀκόλαστος γὰρ ὢν καὶ δειλὸς οὐδὲν ποιήσει τῶν προσηκόντων.φανερὸν τοίνυν ὅτι ἀνάγκη μὲν μετέχειν ἀμφοτέρους ἀρετῆςταύτης δ᾽ εἶναι διαφοράς,(ὥσπερκαὶ  τῶν  φύσει  ἀρχομένων.  καὶ  τοῦτο  εὐθὺς  ὑφήγηται  τὰ περὶ τὴν  [5] ψυχήνἐν ταύτῃ  γάρ  ἐστιφύσει τὸ μὲν ἄρχον τὸ δ᾽ ἀρχόμενονὧν ἑτέραν φαμὲν εἶναι ἀρετήνοἷον τοῦ λόγον ἔχοντος καὶτοῦ ἀλόγουδῆλον τοίνυν ὅτι τὸν αὐτὸν τρόπον ἔχει καὶ ἐπὶ τῶν ἄλλωνὥστε φύσει πλείω τὰἄρχοντα καὶ ἀρχόμεναἄλλον γὰρ τρόπον τὸ ἐλεύθερον τοῦ δούλου [10] ἄρχει καὶ τὸ ἄρρεν τοῦθήλεος καὶ ἀνὴρ παιδόςκαὶ πᾶσιν ἐνυπάρχει μὲν τὰ μόρια τῆς ψυχῆςἀλλ᾽ ἐνυπάρχειδιαφερόντως μὲν γὰρ δοῦλος ὅλως οὐκ ἔχει τὸ βουλευτικόντὸ δὲ θῆλυ ἔχει μένἀλλ᾽ ἄκυρονδὲ παῖς ἔχει μένἀλλ᾽ ἀτελές[15] διὸ τὸν μὲν ἄρχοντα τελέαν ἔχειν δεῖ τὴν διανοητικὴν ἀρετήντὸ γὰρ ἔργον ἐστὶν ἁπλῶς τοῦ ἀρχιτέκτονος δὲ λόγος ἀρχιτέκτων), τῶν δ᾽ ἄλλων ἕκαστονὅσον ἐπιβάλλει αὐτοῖςὁμοίως τοίνυν ἀναγκαίως ἔχειν καὶ περὶ τὰς ἠθικὰς ἀρετὰς ὑποληπτέον,δεῖν μὲν μετέχειν πάνταςἀλλ᾽ οὐ τὸν αὐτὸν

“Se ele for libidinoso ou covarde, ele certamente não fará o que lhe foi estabelecido. Fica claro, portanto, que ambos têm de ter uma cota de virtudes, mas variando acerca dos objetos assim como varia entre eles mesmos. Aqui, a própria constituição da alma nos mostra o caminho. Nela, uma parte naturalmente ordena e outra naturalmente é ordenada – a primeira sendo a potência racional e a outra sendo a parte irracional. Agora é óbvio que o mesmo princípio se aplica genericamente, e, portanto, todas as coisas ordenam e são ordenadas de acordo com a natureza. Mas o tipo de leis difere: o senhor ordena o servo de modo diferente que o marido ordena a esposa e o pai ordena o filho. E, mesmo que as partes da alma estejam presentes em todos eles, elas estão presentes em graus diferentes. O servo não dispõem de sua faculdade deliberativa. A mulher dispõe, mas sem autoridade. E a criança dispõe, mas de maneira ainda prematura. Então é necessário supor o mesmo para as excelências morais, todas [as virtudes] participam deles, mas apenas do modo e grau que forem necessárias para o cumprimento de suas funções. Disto, o que ordena deve ter excelência moral em grau de perfeição, pois sua função, tomada em absoluto, demanda uma liderança máxima e a razão é esta liderança. Aos ordenados por outro lado, requer-se apenas a medida da excelência moral própria de cada um”.

A passagem que diz “a própria constituição da alma nos mostra o caminho” é uma passagem famosa por ser causa de muita contradição entre os tradutores e comentadores de Aristóteles. A leitura de comum acordo remete a São Tomás, com a ideia de que há uma regra, uma normatividade em relação a superioridade e inferioridade, não apenas nos estados, mas na própria constituição anímica. O verbo ὑφήγηται  nesta passagem é traduzido por Bonitz assim: “e esta diferença é indicada na alma”. A discussão aqui é para saber se a diferença está na alma ou se, o que se quer dizer no texto é que a alma indica esta diferença. Mas, se for este segundo caso, temos que submetê-lo à teoria da causalidade e nos questionar o que, na alma, tem a potência de indicar esta diferença, senão uma própria diferença na constituição da alma. Comenta São Tomás que é necessário que tanto o que governa quando o que é governado participem da virtude. De outro modo, nem o primeiro ordenaria corretamente, nem o outro obedeceria. A diferença na virtude de ambos está manifesta nas coisas que, por natureza, submetem-se a outras. Como é o caso da alma, onde a parte racional governa o apetite irascível e concupiscível. Cada uma destas partes da alma tem sua própria virtude, diferente uma da outra. “A virtude da parte racional é a prudência, enquanto que a virtude da parte irracional é a temperança, a fortaleza e outras virtudes semelhantes”

[20] τρόπονἀλλ᾽ ὅσον ἑκάστῳ πρὸς τὸ αὑτοῦ ἔργον.ὥστε φανερὸν ὅτι ἔστιν ἠθικὴ ἀρετὴ τῶν εἰρημένων πάντωνκαὶ οὐχ  αὐτὴ σωφροσύνη γυναικὸςκαὶ ἀνδρόςοὐδ᾽ ἀνδρεία καὶ δικαιοσύνηκαθάπερ ᾤετο Σωκράτηςἀλλ᾽  μὲν ἀρχικὴ ἀνδρεία δ᾽ ὑπηρετικήὁμοίως δ᾽ ἔχει καὶ περὶ τὰς ἄλλας. δῆλον  δὲ  τοῦτο  καὶ  κατὰ  μέρος  μᾶλλον  [25] ἐπισκοποῦσιν:  καθόλου  γὰρ  οἱ λέγοντες  ἐξαπατῶσινἑαυτοὺς  ὅτι τὸ εὖ ἔχειν τὴν ψυχὴν  ἀρετή τὸ  ὀρθοπραγεῖν τι τῶν τοιούτωνπολὺ γὰρ ἄμεινονλέγουσιν οἱ ἐξαριθμοῦντες τὰς ἀρετάςὥσπερ Γοργίαςτῶν οὕτως ὁριζομένωνδιὸ δεῖὥσπερ ποιητὴς εἴρηκε περὶ γυναικόςοὕτω νομίζειν ἔχειν [30] περὶ πάντων: “γυναικὶ κόσμον  σιγὴ φέρει,” Soph. Aj. 293

ἀλλ᾽ ἀνδρὶ οὐκέτι τοῦτοἐπεὶ δ᾽  παῖς ἀτελήςδῆλον ὅτι τούτου μὲν καὶ [32]  ἀρετὴ  οὐκ  αὐτοῦπρὸς αὑτόν ἐστινἀλλὰ πρὸς τὸ τέλος καὶ τὸν ἡγούμενονὁμοίως δὲ καὶ δούλου πρὸς δεσπότην.

Fica claro, então, que a excelência moral pertence a todos, mas a temperança de um homem e de uma mulher, ou a coragem e justiça, não são, como Sócrates julgava, as mesmas. A coragem de uma homem é manifestada no comando, enquanto que a de uma mulher, na obediência. E isto ampara todas as outras virtudes, como fica mais evidente se olharmos para cada uma em detalhes, pois aqueles que dizem genericamente que a virtude consiste em uma boa disposição da alma, ou em fazer o correto, ou coisa que o valha, apenas iludem a si mesmos. Melhor que estas definições foi o modo de falar daquele que, como Górgias, enumerou as diferentes virtudes. Todas as classes demandam seus atributos especiais, bem como disse o poeta sobre as mulheres: “O silêncio é a glória da mulher”, mas não é, igualmente, a glória do homem. A criança é imperfeita, e portanto é óbvio que sua virtude não é relativa a si mesma sozinha, mas sim a um homem perfeito e ao seu preceptor. E de modo semelhante é o servo em relação ao seu senhor.

No Menon de Platão, Sócrates defende a necessidade de alguma definição geral de virtude contra Górgias que, incapaz de apreender as ideias gerais, confunde o todo das virtudes com suas partes. (O Teeteto no começo do diálogo também não consegue abstrair o desenho que faz diante de Sócrates para fornecer uma explicação genérica da geometria). O Sócrates de Platão faz algo que Aristóteles está buscando a permissão lógica de fazer: defender que há uma ideia comum de virtude. Este Górgias, sofista e na infância da filosofia, é incapaz de compreender esta ideia geral e consegue apenas a enumeração avulsa de cada virtude. A tendência do texto aristotélico de se referir a Platão, pois a citação de Górgias e a oposição entre a ideia geral de virtudes e as virtudes particulares são prova suficientes de que o texto aqui se refere ao Menon.

ἔθεμεν δὲ πρὸς τἀναγκαῖα χρήσιμον εἶναι τὸν δοῦλονὥστε δῆλον ὅτι καὶ ἀρετῆς δεῖται μικρᾶς,καὶ τοσαύτης ὅπως μήτε δι᾽ ἀκολασίαν μήτε διὰ δειλίαν ἐλλείψῃ τῶν ἔργωνἀπορήσειε δ᾽ ἄν τις,τὸ νῦν εἰρημένον εἰ ἀληθέςἆρα καὶ τοὺς τεχνίτας δεήσει ἔχειν ἀρετήνπολλάκις γὰρ δι᾽ἀκολασίαν ἐλλείπουσι τῶν ἔργων διαφέρει τοῦτο πλεῖστον μὲν γὰρ [40] δοῦλος κοινωνὸςζωῆς δὲ πορρώτερονκαὶ τοσοῦτον ἐπιβάλλει ἀρετῆς ὅσον περ καὶ δουλείας:

Nós determinamos que o servo age em vistas da preservação da vida e, por isso, ele obviamente há de requerer o tanto de virtude que o preserve de cair na preguiça ou de perder o autocontrole. Alguém haverá de questionar se, se o que estamos dizendo é verdade, a virtude será também requerida nos trabalhadores livres, para que também não se distraiam de suas ocupações pela perda de autocontrole. Mas não há uma grande diferença nos dois casos? Pois o servo participa da vida de seu senhor, enquanto que o trabalhador livre é menos achegado a ele e apenas adquire virtude à medida em que se torna um servo.

 [1260β]  γὰρβάναυσος τεχνίτης ἀφωρισμένην τινὰ ἔχει δουλείανκαὶ  μὲν δοῦλος τῶν φύσεισκυτοτόμος δ᾽οὐθείςοὐδὲ τῶν ἄλλων τεχνιτῶνφανερὸν τοίνυν ὅτι τῆς τοιαύτης ἀρετῆς αἴτιον εἶναι δεῖ τῷδούλῳ τὸν δεσπότηνἀλλ᾽ οὐ τὴν διδασκαλικὴν ἔχοντα τῶν [5] ἔργων δεσποτικήνδιὸ λέγουσινοὐ καλῶς οἱ λόγου τοὺς δούλους ἀποστεροῦντες καὶ φάσκοντες ἐπιτάξει χρῆσθαι μόνον:νουθετητέον γὰρ μᾶλλον τοὺς δούλους  τοὺς παῖδας. ἀλλὰ  περὶ  μὲν τούτων διωρίσθω τὸν τρόπον τοῦτονπερὶ δ᾽ ἀνδρὸς καὶ γυναικόςκαὶ τέκνων καὶπατρόςτῆς τε περὶ

Um servo o é por natureza, e o mesmo não se pode dizer de um sapateiro ou de outro trabalhador livre. Está claro, portanto, que o senhor é a origem da virtude do servo, e não apenas um mero possuidor da técnica de como treinar servos em suas funções. Por isso é que estão enganados os que se esquecem de conversar com os servos e dizem que devemos apenas lhes dar ordens, pois os servos precisam de mais admoestações que as crianças.

Não se pode dizer o mesmo de um sapateiro ou de qualquer outro trabalhador livre (que é artesão), pois toda arte, toda τεχνῆ, foi descoberta pela razão, enquanto que o trabalho servil foi colocado pela natureza. O argumento que opera aqui se relaciona com a passagem da Ética que mostra que nós possuímos uma inclinação natural à virtude. Sendo o trabalho servil um trabalho natural, requer-se virtude moral para bem executá-lo.

[10] ἕκαστον αὐτῶν ἀρετῆς καὶ τῆς πρὸς σφᾶς αὐτοὺς ὁμιλίαςτί τὸ καλῶς καὶμὴ καλῶς ἐστικαὶ πῶς δεῖ τὸ μὲν εὖ διώκειν τὸ δὲ κακῶς φεύγεινἐν τοῖς περὶ τὰς πολιτείαςἀναγκαῖον ἐπελθεῖνἐπεὶ γὰρ οἰκία μὲν πᾶσα μέρος πόλεωςταῦτα δ᾽ οἰκίαςτὴν δὲ τοῦ μέρουςπρὸς τὴν τοῦ ὅλου δεῖ βλέπειν [15] ἀρετήνἀναγκαῖον πρὸς τὴν πολιτείαν βλέποντας παιδεύεινκαὶ τοὺς παῖδας καὶ τὰς γυναῖκαςεἴπερ τι διαφέρει πρὸς τὸ τὴν πόλιν εἶναι σπουδαίαν καὶ τὸτοὺς παῖδας εἶναι σπουδαίους καὶ τὰς γυναῖκας σπουδαίαςἀναγκαῖον δὲ διαφέρειναἱ μὲν γὰργυναῖκες ἥμισυ μέρος τῶν ἐλευθέρωνἐκ δὲ τῶν παίδων οἱ [20] κοινωνοὶ γίνονται τῆς πολιτείας.ὥστ᾽ἐπεὶ περὶ μὲν τούτων διώρισταιπερὶ δὲ τῶν λοιπῶν ἐν ἄλλοις λεκτέονἀφέντες ὡς τέλοςἔχοντας τοὺς νῦν λόγουςἄλλην ἀρχὴν ποιησάμενοι λέγωμενκαὶ πρῶτον ἐπισκεψώμεθα περὶτῶν ἀποφηναμένων περὶ τῆς πολιτείας τῆς ἀρίστης.

Dizemos muito para este assunto. As relações entre marido e esposa, pai e filhos, suas virtudes próprias, o que em seu intercâmbio com os outros é bom e o que é mal, e como nós podemos perseguir o bem e evitar o mal, nós iremos discutir quando nós falarmos das diferentes formas de governo. Pois, na medida em que cada família é uma parte do estado, e estas relações são parte da família, e a excelência da parte deve conduzir à excelência do todo, mulheres e crianças devem ser treinadas, por meio da educação, com um olho na constituição, se a virtude deles supostamente faz alguma diferença na virtude do Estado. E necessariamente faz: porque as crianças crescerão e se tornarão cidadãos, e metade das pessoas livres em um estado são mulheres. Sobre este assunto, já dizemos o bastante. Sobre o que falta, falaremos em outra hora. Considero, portanto, nossa investigação presente concluída. Nós faremos um novo começo. E, em primeiro lugar, vamos examinar as várias teorias de um estado perfeito.

Há de se tomar muito cuidado, por fim, ao se atribuir um “direito natural” a Aristóteles, pois este direito natural não é uma ideia criada para se contrapor à ideia de um direito positivo como convenção, assim como é feito em seguimentos do jusnaturalismo moderno. Para Aristóteles, toda lei, promulgada em forma de πολιτεία ou conduzida no interior de uma aldeia ou família, é natural desde que vise o bem a que visam aqueles que a ela estão submetidos, pois o conceito de natureza aqui usado refere-se a finalidade, ou, usando um equivalente agostiniano, a bem. Não haveria outro direito que não fosse natural e tudo o que atenta contra a natureza é injusto. Para Aristóteles, a justiça possui uma anterioridade ontológica ao direito e, correlativamente, a noção de justiça uma anterioridade lógica à noção de direito.

NOTAS:

i Optamos pelo termo “direito natural” como uso amplo, não determinado, deixando a expressão “lei natural” para usos mais específicos no interior das análises das obras, prevendo que, por exemplo, nas traduções para o português de São Tomás o uso de “lei natural” restringe-se à parte do direito natural destinada à participação do homem naquilo que se chama lei Eterna (cf. Tratado da Lei, edições Loyola). Outras precauções foram tomadas tendo em vista a concordância com os termos técnicos mais usados pelos comentadores aqui citados.

ii CAMBRAIA, C. N.  Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 1.

iii LAUSBERG, H. Linguística Românica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981. PP. 21-22.

iv A crítica de Villey a Kelsen é desenvolvida na obra “Questões de Tomás de Aquino Sobre o Direito e Política”, numa parte dedicada a expor os três argumentos mais usados por Kelsen: a falácia naturalista, a ausência de concordância sobre direito natural e a necessidade da existência do direito positivo. A tese de Villey é que, entre os tantos direitos naturais, o verdadeiro não é atingido por estes argumentos. Agradeço ao amigo Bruno Zampier pela referência.

v “La form premiére et authentique du droit naturel doit être directement cherchèe chez ses inventeurs; Aritote, pére de la douctrine, ou Saint-Thomas, qui le couronne d’une théologie, mais pour le reste est son merveilleux interprète”. VILLEY, M. “Abrégé Du Droit Naturel Classique”, in Archives de Philosophie Du Droit.

vi Aproprio-me aqui de um termo técnico muito usado nos cursos de História da Filosofia do grande professor Rodrigo Brandão.

vii WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. Discurso Editorial. São Paulo, 1999.

viii BODÉUS, idem. P. 22.

ix Aristotle. ed. W. D. Ross, Aristotle’s Politica. Oxford, Clarendon Press. 1957. A tradução que segue o texto é própria, feita com base no dicionário Perseus e comparada com a versão americana de Barnes, 1985.

BIBLIOGRAFIA:

ARISTOTLE. The Complete Works. Org. Barnes. Princeton University Press.

_________ Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1997.

_________ Ética a Nicômacos. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1992.

_________Ética a Nicômaco. Trad. António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009.

_________ ed. J. Bywater, Aristotle’s Ethica Nicomachea. Oxford, Clarendon Press. 1894.

BODÉUS, Richard. Aristóteles, a Justiça e a Cidade. Edições Loyola. São Paulo, 2007.

AQUINO, São Tomás. Org. O.P. Condensado de Santo Tomás de Aquino e Pedro de Alvérnia à Política de Aristóteles. Disponível em: http://www.documenta-catholica.eu/

WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. Discurso Editorial. São Paulo, 1999.

Heloísa Gusmão é graduanda em Filosofia pela UFPR e é membro do Instituto de Formação e Educação do Paraná (IFE-PR).

Texto publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, em 24 de Outubro de 2015, disponível [online] em <http://www.dicta.com.br/reflexoes-sobre-o-direto-natural-de-aristoteles/> Acesso em 08/12/2015.

Sobre a felicidade e a prática das virtudes em Aristóteles: um breve comentário – por Natália Gama

Filosofia | 15/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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“Criança na cozinha” (1904), de Carl von Bergen (1853-1933)

 

Vivemos em um tempo em que, paradoxalmente, por um lado, o acesso a bens culturais, científicos e tecnológicos é ampliado; por outro, o número de quadros de ansiedades, web depressões e afazeres da ordem do dia aumenta vertiginosamente. Para reinterpretar essas contradições e iluminar a moldura existencial dos dias de hoje, recordamos algumas reflexões de Aristóteles sobre a felicidade e a prática das virtudes.

Aristóteles, em Ética a Nicômaco, diz que “toda arte, toda investigação e igualmente todo empreendimento e projeto previamente deliberado colimam algum bem, pelo que se tem dito, com razão, ser o bem a finalidade de todas as coisas.”[1]

Segundo Aristóteles, é natural, faz parte da nossa essência, direcionarmos as ações para um fim, já que há sempre uma intenção última. Mas a questão é: qual seria este objetivo final? Na compreensão do Estagirita, há um bem maior que é a finalidade de todos os demais bens, um bem absoluto que prevalece sobre todas as coisas: a felicidade. Todavia a felicidade é uma matéria polêmica, difícil de classificar.

 As pessoas ordinárias a identificam como algum bem óbvio e visível, tais como o prazer, ou a riqueza ou a honra, umas dizendo uma coisa e outras algo diferente; na verdade, com muita frequência, o mesmo indivíduo diz coisas diferentes em ocasiões diferentes: quando fica doente, pensa ser a saúde a felicidade; quando é pobre, julga a riqueza a felicidade. Em outras oportunidades, sentindo-se consciente de sua própria ignorância, os indivíduos (comuns) admiram aqueles que propõem algo grandioso que ultrapassa a compreensão deles e tem sido sustentado por alguns pensadores, que além de muitas coisas boas que mencionamos há um outro bem, que é bom em si mesmo, e se coloca em relação a todos aqueles bens como causa de serem bons.[2]

Para um melhor entendimento do que vem a ser a felicidade, esse “bom em si mesmo”, Aristóteles não exclui a presença de bens relativos, como a saúde, riqueza, honra, etc. Pelo contrário, os enxerga, em boa medida, como bens úteis para a obtenção de uma vida feliz. Ainda sobre este ponto,

parece haver diversas finalidades visadas por nossas ações; entretanto, ao elegermos algumas delas, por exemplo a riqueza, ou flautas e instrumentos em geral – como um meio para algo -, fica claro que nem todas elas são finalidades completas, ao passo que o bem mais excelente (o bem supremo) parece ser algo completo. Consequentemente, se houver alguma coisa que, por si só, seja a finalidade completa, essa coisa – ou se houver várias finalidades completas, aquela entre elas que for a mais completa – será o bem que é objeto de nossa investigação.”[3]

Aristóteles, durante toda a discussão apresentada na Ética a Nicômaco, especialmente no Livro I, sublinha a completude presente em algo que seja uma finalidade em si mesmo em contraste com algo que se busque como meio para um determinado fim. Em consonância com tal distinção, o filósofo define a felicidade como absolutamente completa, “uma vez que sempre optamos por ela por ela mesma e jamais como um meio para algo mais, enquanto a honra, o prazer, a inteligência e a virtude sob suas várias formas, embora optemos por elas mesmas (…), também optamos por elas pela felicidade na crença de que constituirão um meio de assegurarmos a felicidade.”[4]

Contudo, para suprir a carência de uma avaliação mais explícita do que seja a felicidade, Aristóteles propõe determinar a função do ser humano. Se um artesão reside na função que ocupa, semelhantemente, seria possível sustentar que o bem humano reside na função humana, no caso do ser humano ter uma função. Dentro desse raciocínio, o filósofo destaca a racionalidade, diferencial do homem em relação aos demais seres vivos. A partir dela, a função do ser humano seria o exercício ativo das faculdades da alma, e conclui que “o bem humano é o exercício ativo das faculdades da alma em conformidade com a virtude, ou se houver diversas virtudes, em conformidade com a melhor e mais perfeita delas. (…) de forma a ocupar uma existência completa, pois (…) um dia ou um efêmero período de felicidade não torna alguém excelsamente feliz.”[5]

Se a felicidade é uma atividade da alma em conformidade com a virtude perfeita, torna-se necessário compreender a natureza da virtude. Segundo Aristóteles, a felicidade humana significa excelência da alma, não do corpo; logo, para estabelecer uma coerência com o pensamento aristotélico, a felicidade examinada é uma atividade da alma. Ao analisar a alma, o filósofo a apresenta como sendo bipartida, uma parte irracional (faculdade vital presente em todas as coisas vivas que permite a nutrição e o crescimento) e uma parte racional. De acordo com esse princípio de divisão, as virtudes também são agrupadas em duas modalidades: as intelectuais e as morais. As primeiras devem, em grande parte, seu desenvolvimento ao ensino, e por isso requerem experiência e tempo; enquanto que as virtudes morais são adquiridas em resultado do hábito, não nos são naturais, tendo em vista que nada que existe por natureza pode ser alterado por um costume. Podemos notar essa relação da repetição rotineira com aquisição da virtude quando descrevermos o caráter (disposições morais) de alguém. Não dizemos que se trata de alguém capaz de entendimento ou de grande sabedoria, mas o caracterizamos como alguém sóbrio ou moderado, destacando a continuidade das ações.

De forma prática, as virtudes, para Aristóteles, estão intimamente relacionadas com as ações e as paixões, e cada uma delas é acompanhada por prazer ou sofrimento. Essa associação é importante porque as virtudes e os vícios do homem se relacionam com as mesmas coisas, o nobre e o vil, o agradável e o doloroso, entre outros pares. Para equilibrar essas relações, a virtude passa a ser compreendida como o hábito de escolher o justo meio, aquilo que está entre o excesso e a falta. Assim, o meio termo seria algo único para todos os homens, uma virtude de mediania, isto é, capaz de aplicar uma sabedoria prática.

Também a virtude consiste na justiça que é praticada em relação ao próximo. Com efeito, a justiça completa, no mais próprio e pleno sentido do termo, aquilo que é próprio da virtude. A justiça é uma espécie de meio-termo que confere ao justo, por escolha própria, o discernimento de não dar mais do que convém a si mesmo e menos do que convém a seu próximo.

Aristóteles, ao longo de toda investigação sobre a natureza da felicidade e de como podemos alcançá-la, defende que a vida feliz não é um bem realizável totalmente, mas uma busca constante, acompanhada pela aquisição e desenvolvimento das virtudes. Um percurso que é direcionado à polis, ao bem comum, visto ser o homem um animal político. E a felicidade, de acordo com essa moldura do pensamento aristotélico, é uma busca em que se justifica a boa ação humana, um bem almejado por si mesmo não em vista de outra coisa, um bem para o qual todas as ações estão voltadas.

Recuperamos essas reflexões sobre a felicidade e a prática das virtudes na tentativa de propor uma releitura das estruturas da ação humana, especialmente para os dias de hoje. Recordar essas noções nos permite reconfigurar, em certa medida, os paradoxos atuais, a finalidade das ações realizadas, as crescentes incongruências entre vida exterior e vida interior, nossos hábitos e objetivos. Confere-nos instrumentos para agir no mundo. Uma sabedoria prática que reside entre o fazer e a esperança de bem-viver.

*Natália da Silva Gama é Doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2013.

NOTAS:

[1] ARISTÓTELES, 2013, p. 37.

[2] Ibdem, p.40, 41.

[3] Ibdem, p. 47, 48.

[4] Ibdem, p.48.

[5] Ibdem, p.50.

 

Artigo publicado no site Dicta&Contradicta em 14/09/2015. Disponível [online] no link <http://www.dicta.com.br/sobre-a-felicidade-e-a-pratica-das-virtudes-em-aristoteles-um-breve-comentario/>

O Problema do Justo na Paidéia Grega

Sem Categoria | 16/12/2014 | |

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Parthenon Grego

Resumo: Somos herdeiros da filosofia grega e sua capacidade de inquietação acerca de uma aceitação acrítica da vida, no afã de buscar as respostas para uma vida racionalmente significativa, plena de sentido e em harmonia com o mundo, alcançou o problema do justo.  Como os gregos puderam compreender e criticar o próprio modus vivendi e a ideia de justiça nele havida? A literatura e a filosofia procuraram desenvolver algumas respostas que foram além do senso comum e, nesse sentido, forneceram as bases para a constituição posterior de uma episteme da justiça em Roma. No mundo grego, literatura e filosofia pareciam refletir as divisões essenciais do espirito humano: aceitação e rejeição do status quo, desejo de ordem e de transgressão, relações de imanência e de transcendência, defesa de padrões convencionais e ceticismo diante deles, aquiescência do papel social e refutação deste. A polis grega já tinha uma certa intuição de que a justiça deveria corresponder a uma expressão unitária e integrante dos cosmos e dos valores de convivência social, porque já se percebia que um justo natural antecedia um justo legal, servindo-lhe de limite ético. É uma correlação de origem grega e, em virtude do modo de sentir e da tradição grega, por sua íntima razão e força, sempre ressurge ao longo da história e jamais foi superada.

 

O PROBLEMA DO JUSTO NA ANTIGUIDADE DA HÉLADE: OS APORTES EPISTEMOLÓGICOS DA FILOSOFIA E DA LITERATURA DA PAIDEIA GREGA

ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES[**]

  1. Introdução.

Qualquer discussão sobre os conceitos relativos à ideia de justiça deve ser feita dentro da esfera de um modus vivendi que indique não apenas as chaves de interpretação, mas também o contexto existencial de sua especulação. Somos tributários da herança filosófica grega e um de seus mais importantes atributos está em transcender a aceitação acrítica da vida convencional: buscar e identificar condições para uma existência racionalmente significativa, plena de sentido e em harmonia com o mundo que nos circunda.

Essa tarefa não é fácil. Passaram-se séculos e o homem ainda se debruça sobre ela. Várias soluções – algumas mais duradouras que as outras, mas todas limitadas no tempo histórico – foram apresentadas. Independentemente da solução proposta, a questão da justiça sempre tem um lugar proeminente, porque o homem não quer apenas viver, mas viver bem: “os homens sempre atuam tendo em vista o que lhes parece bom” (ARISTÓTELES, 2005: 1252 a).

Foi na Grécia, entre os séculos V e III a.C., que a questão da justiça aflorou pela primeira vez. Mas como os gregos puderam compreender e criticar o próprio modus vivendi e a ideia de justiça nele havida? A literatura e a filosofia procuraram desenvolver algumas respostas que foram além do senso comum e, nesse sentido, contribuíram para a formação posterior de uma perene episteme acerca da justiça[1].

No mundo grego, literatura e filosofia pareciam refletir as divisões essenciais do espirito humano. Divisões entre aceitação e rejeição do status quo, desejo de ordem e de transgressão, relações de imanência e de transcendência, defesa de padrões convencionais e ceticismo diante deles, aquiescência do papel social e refutação deste.

Nesse trabalho analítico de compreensão e crítica, os gregos souberam, de maneira então inédita, manejar dois mecanismos que marcaram o universo espiritual da polis: a preeminência da palavra sobre outros instrumentos de poder e a plena publicidade das manifestações mais importantes da vida social, dentre as quais estavam as leis da polis, as quais motivaram exegeses e interpretações que eram costumeiramente veiculadas justamente pelo uso da palavra por parte dos filósofos e dramaturgos gregos.

Morrison (2006:24) lembra que “muitos dos filhos de Zeus e Têmis tornaram-se fiadores das leis e da estabilidade social, em particular Dike, Eunomia e Irene. Dike passou a personificar o ideal de justiça que colocava o homem acima do mundo animal (…). Como deusa, Dike levava os juízes a se empenhar em deliberar com integridade lógica em vez de tomar decisões arbitrárias; sua irmã Eunomia representava a harmonia social e jurídica que resulta desse comportamento racional e Irene expressava a paz. Em conjunto, configuravam a ideia social de homonoia, ou o ideal de uma comunidade urbana harmoniosa”.

Os Sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles, na filosofia, e Sófocles, com sua célebre “Antígona”, na literatura, assumiram a tarefa de compreender esse ideal, correlacionando-o ao problema do justo. Porque os gregos já tinham uma certa intuição de que a justiça deveria corresponder a uma expressão unitária e integrante dos cosmos e dos valores de convivência social.

A justiça deveria ser o verdadeiro pressuposto de toda ordem jurídica no mundo espiritual da polis, onde já se percebia que um justo natural antecedia um justo legal, servindo-lhe de limite ético. É uma correlação de origem grega e, em virtude do modo de sentir e da tradição grega, por sua íntima razão e força, sempre ressurge ao longo da história e jamais foi superada.

Frise-se que a importância do contributo grego para a noção de um justo natural decorre justamente do fato de, pela primeira vez na história, o homem ter despertado para a consciência do problema. Não houve uma proposta deliberada de composição epistêmica de critérios capazes de distinguir a juridicidade da legalidade, o justo natural do justo legal. Até porque, como a polis era a expressão mais alta da vida ética na Hélade e tudo convergia para a manifestação do indivíduo na vida política, de certa forma, não havia a necessidade daquela distinção.

 

  1. Mecanismos do universo espiritual da polis.

O advento da polis, entre os séculos VIII e VII a. C., é um fato decisivo na história do pensamento grego: por intermédio dela, a vida social e as relações entre os homens tomam um novo rumo, cuja originalidade, os ônus e o bônus serão plenamente percebidos pelos gregos. Neste novo sistema social, a palavra transforma-se no instrumento político por excelência, a chave de toda autoridade estatal e o meio de comando sobre a coletividade.

A palavra deixa o campo do rito ou da fórmula justa e migra para a seara do debate contraditório, da discussão e da argumentação. Supõe uma plateia de ouvintes à qual a palavra é dirigida e, na posição de magistrado soberano, essa mesma plateia, persuadida racionalmente, elegerá um discurso em detrimento dos demais. Vernant (2011:54) afirma que:

as questões de interesse geral que o Soberano tinha por função regularizar e que definem o campo da arché são agora submetidas à arte oratória e deverão resolver-se na conclusão de um debate; é preciso, pois, que possam ser formuladas em discursos, amoldadas às demonstrações antitéticas e às argumentações opostas. Entre a política e o logos, há assim relação estreita, vínculo recíproco. A arte política é essencialmente exercício da linguagem; e o logos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua eficácia, por intermédio de sua função política. Historicamente, são a retórica e a sofística que, pela análise que empreendem das formas do discurso como instrumento de vitória nas lutas da assembleia e do tribunal, abrem caminho às pesquisas de Aristóteles ao definir, ao lado de uma técnica da persuasão, regras da demonstração e ao por uma lógica do verdadeiro, própria do saber teórico, em face da lógica do verossímil ou do provável, que preside aos debates arriscados na prática”.

 Ao lado da palavra, outro mecanismo típico da polis reside na plena publicidade outorgada às manifestações mais destacadas da vida social. Aliás, a polis existe apenas na medida em que surgiu um domínio público, em dois sentidos diferentes, porém complementares: um setor de interesse comum, oposto ao privado, e um âmbito de práticas abertas, em oposição aos processos e rituais secretos.

Essa exigência de publicidade faz com que todas as condutas, processos e conhecimentos submetam-se ao olhar alheio o que, na gênese, era um privilégio do basileus. No plano intelectual, esse movimento acarretará efeitos decisivos. Vernant (2011:55) afirma que:

a cultura grega constitui-se, dando-se a um círculo sempre mais amplo – finalmente ao demos todo – o acesso do mundo espiritual, reservado ao início a uma aristocracia de caráter guerreiro e sacerdotal (a epopeia homérica é um primeiro exemplo desse processo: uma poesia de corte, cantada primeiramente na sala dos palácios; depois sai deles, desenvolve-se e transpõe-se em poesia de festa). Mas esse desenvolvimento comporta uma profunda transformação. Tornando-se elementos de uma cultura comum, os conhecimentos, os valores, as técnicas mentais são levados à praça pública, sujeitos à crítica e à controvérsia. Não são mais conservados, como garantia de poder, no recesso de tradições familiares”.

Assim, tais conhecimentos, saberes e valores, ao serem submetidos aos processos de publicização na polis, motivarão exegeses, interpretações, ilações, oposições, contraditórios e debates acirrados. Doravante, a retórica e a argumentação serão alçadas à condição de armas na arena intelectual e política.

A comunidade passa a ter controle sobre as criações do espírito, mediante aferição da retidão por instrumentos de natureza dialética. E, nesse ponto, as leis não escaparão. Ao serem escritas, assegura-lhes vigência e eficácia. Subtraem-se à autoridade privada e ao saber oculto do basileus, cuja principal função era jurisdicional, ou seja, a de dizer o direito.

Demóstenes (GILISSEN, 1988:78), no Discurso contra Timócrates (353 a. C.), diz como pode ser proposta e aprovada uma lei em Atenas:

<<Nas leis que nos regem, Atenienses, contêm-se prescrições tão precisas como claras sobre todo o processo a seguir na propositura das leis. Antes de mais, fixam a época em que a ação legislativa é admitida. Em segundo lugar, mesmo então, não permitem a todo o cidadão exercê-lo à sua fantasia. É necessário por um lado, que o texto seja transcrito e fixado à vista de todos perante os Epónimos; por outro lado, que a lei proposta se aplique igualmente a todos os cidadãos; enfim que as leis contrárias sejam derrogadas; sem falar de outras prescrições, cuja exposição, parece-me, não teria interesse para nós neste momento. Em caso de infração a uma só destas regras, qualquer cidadão pode denunciá-la>>.

Com o fenômeno da publicização, as leis tornam-se bem comum e regra geral aplicável a todos os cidadãos da polis. E a dike, sem prejuízo de ainda permanecer como um valor sagrado, poderá, por meio da lei[2], encarnar-se num plano propriamente humano e ser submetida ao debate – literário e filosófico – acerca de sua essência.

 

  1. Sófocles e o dilema de Antígona.

Antígona é a última peça da trilogia tebana de Sófocles, escrita no século V. a. C., e deve ser analisada no contexto trinitário que o próprio autor criou: “Édipo”, “Édipo em Colona” e “Antígona”. É uma trilogia trágica sobre a qual se debruçaram muitos estudiosos ao longo da história.

Antígona era uma das filhas de Édipo, essa figura funesta do poder masculino que havia sido amaldiçoada pelos deuses, por ter assassinado seu pai, o rei de Tebas, por engano e, em seguida, casado com sua mãe e assumido o trono do reino[3].

Com a morte de Édipo, irrompeu uma guerra civil entre seus dois filhos, Polínicles e Etéocles, os quais disputam entre si o comando da cidade que, em princípio, haviam concordado em comandar alternadamente. Por trás da disputa entre os irmãos, temos a figura do tio, interessado em que ambos se destruam e assim ele, Creonte, ficaria com o poder inconteste. Este é um dos lamentos que está presente no enredo da peça: a ambição e a manipulação pelo poder.

Antígona e sua irmã Ismênia veem a disputa acontecer e nada podem fazer para impedir que seus irmãos Etéocles e Polínicles se destruam. Mas, após a guerra, Etéocles é morto em combate e recebe um enterro digno, com honras militares, enquanto Polínicles, que também faleceu, é condenado por um decreto de Creonte a permanecer insepulto para que os animais comessem suas carnes, porque tinha lutado contra ele.

A pena é promulgada para conhecimento de todos, como decorrente do legítimo poder civil que detém o governante de uma cidade. A infração ao decreto acarretaria ao autor a sumária aplicação da pena de morte. Um edito cruel, porque pune o defunto com uma morte eterna, sem sepultamento e a ser comido pelos abutres.

A peça inicia com o diálogo entre Ismênia e sua irmã, Antígona, a qual não aceita a determinação de seu tio Creonte e, em segredo, planeja sepultar seu irmão. Antígona sente-se atrelada a um dever normativo que transcende sua posição de súdita do tio. Ismênia, invocando os horrores já sofridos pela família, apela que Antígona respeite o decreto real.

Antígona permanece firme em seu intento e libera a irmã de auxiliá-la, porque o dilema que sofre é pessoal: um dilema que antagoniza dois conjuntos de obrigações e leis. Por um lado, vê-se adstrita às leis divinas que prescrevem o sepultamento do irmão; por outro, a lei tebana (ou o decreto de Creonte) determina a deixá-lo insepulto. Ismênia também reconhece o conflito de normas, quando resolve não desafiar o rei por não se sentir “forte o bastante para ir contra o poder do Estado”[4].

Antígona parte para sepultar o irmão, resignada com a punição que a aguarda, uma morte honrosa para uma existência digna, pois, para ela, seria melhor assim do que continuar a viver sem um sentido, decorrente de sua incapacidade de agir contra o edito de Creonte. Depois de um sepultamento simbólico, algum tempo depois, ela é descoberta e confessa o que fez. Questionada por Creonte sobre seus atos, ela declara que não aceitava o decreto e acreditava ter feito o que era certo.

 CREONTE: E tiveste a ousadia de infringir a lei?

ANTÍGONA: Sim, essa ordem não veio de Zeus. A justiça que emana dos deuses não conhece essa lei. Não considero que tuas leis sejam fortes o bastante para revogar as leis não escritas e inalteráveis dos deuses, uma vez que não passas de um homem. Elas não são de ontem nem de hoje, mas eternas, ainda que ninguém conheça suas origens. Nenhum mortal poderá culpar-me por transgressão perante os deuses. Por certo, sabia que teria de morrer, com ou sem o teu decreto. E, se minha morte é iminente, tanto melhor para mim. Quem, como eu, vive em meio a tantos tormentos, só tem a ganhar com ela[5].

 Creonte, nessa altura dos acontecimentos, percebe a gravidade da situação e a necessidade de levar a sanção pelo descumprimento de seu edito às últimas consequências:

CREONTE: Aquele a quem o Estado confere o poder deve ser obedecido até as mínimas coisas, sejam elas justas ou injustas. E, sem dúvida, aquele que sabe governar sua casa irá tornar-se o mais sábio dos reis ou o mais fiel dos súditos. Será ele o homem com o qual todos poderão contar na tempestade da guerra (…). Não existe maior desgraça do que a desobediência: ela destrói os Estados, leva os lares à ruína e, nos combates, traz consigo a derrotas dos exércitos. Por outro lado, a simples obediência salva as vidas de centenas de pessoas honestas. É preciso, pois, apegar-se às leis com total lealdade[6].

Antígona é condenada a uma morte cruel, será emparedada numa espécie de muro onde permanecerá até morrer de inanição. Ela aceita sua pena, pois reconhece haver desafiado as leis do Estado, embora não as aceitasse.

Em linhas gerais, a obra, sob o ângulo estritamente jurídico, debate o conflito entre as exigências do justo natural (Direito Natural) e o justo legal (Direito Positivo). Sófocles expõe esse conflito normativo ao colocar em oposição o edito de Creonte, a lei do Estado, e o dever de sepultamento dos mortos, a lei dos deuses.

Acreditamos que o decreto do novo rei de Tebas, impedindo apenas e tão somente o funeral de Polínicles e cominando a pena de morte para quem lhe desse uma sepultura, é uma lei injusta, porque carece da generalidade e da permanência que sempre caracterizam qualquer lei positiva no momento de sua integração ao ordenamento normativo[7].

Além da falta desses atributos essenciais, foi um decreto promulgado ex post facto, o que, no mínimo, macula a idoneidade de sua ratio legis. E lex iniusta non est lex, a lei injusta não é lei, como afirmou, com acerto, muitos séculos depois de Sófocles, Tomás de Aquino. Assim, Antígona, ao respeitar a lei dos deuses, fez prevalecer o justo por natureza, ainda que com o preço de seu sangue.

 

  1. Os Filósofos Pré-Socráticos, os Sofistas, Sócrates e Platão.

O advento de sucessivas poleis gregas, a partir do século VIII a. C., proporcionou alguns problemas de convívio e de cooperação entre seus habitantes. Até então, o paradigma ético residia no legado histórico-literário homérico (composto no século IX a. C.), com um ideal de homem virtuoso que já não mais atendia aos anseios do cidadão grego. O ethos da obra homérica lastreava-se na areté ou excelência dos chefes das famílias aristocráticas, consistente na aptidão retórica e guerreira geradora de honra e prestígio sociais.

Para reverter o quadro de litigiosidade, foi introduzido o nomos ou lei, a fim de que novas formas de capacidade e de virtudes ganhassem corpo social, em superação das antigas aretai em estado de agonia, no contexto racional da polis e de seu equilíbrio proporcionado pela boa lei. O desenho teórico e empírico da nova areté visava justamente à capacidade de moderar os desejos individuais, a irascibilidade (típica do guerreiro) e as emoções particulares em prol dos ditames legais.

Uma noção rudimentar de justiça já se faz presente nos primórdios da cultura grega. O relato homérico sobre a guerra de Tróia assenta-se na fundação de um ethos voltado para o ideal da reparação de uma injustiça. Os ensinamentos e as leis de Sólon (século VI a. C.) tomam parte nesta comunhão entre a visão grega do universo e a busca de condutas e normas voltadas para a prática da justiça.

No campo filosófico, aquela noção rudimentar começa a tomar uma certa forma teórica. O filósofo pré-socrático Anaximandro (século VI a. C.) referira-se à “injustiça” que existe quando há conflitos durante os movimentos naturais dos corpos. Mais tarde, outro filósofo pré-socrático, Heráclito (século V a. C.), dele divergira, ao afirmar que todo conflito que provoca injustiça é inerente ao império de um processo universal ordenado.

Segundo Heráclito, o devir não é anárquico, está dominado por uma medida, um logos e um sentido, à qual o homem deveria amoldar seu agir, advindo, dessa correlação, alguns princípios de conduta ou normas naturais. Cuida-se, pois, de um ponto de vista metafísico, restrito à mera cogitação, sem a formação de uma doutrina acerca da justiça.

Mais tarde, os sofistas logo submeteram o nomos ou a lei a uma crítica acertada, de tal sorte que a solução legal – o justo legal – logo pareceu inconsistente: como mestres da retórica e pessoas com uma visão cosmopolita, acusaram a diversidade desse paradigma legal, reduzindo-o ao campo do estritamente convencional, o que fomentaria a canalização exclusiva das demandas decorrentes do poder dos mais fortes.

Sob a ótica dos sofistas, o justo legal, representado pelo direito positivo, era dotado de relatividade. Não haveria um justo natural fundado num direito natural, porquanto, por natureza, nada seria verdadeiro e tudo derivaria do homem, o sentido último de todas as coisas, na expressão de Protágoras. Por conseguinte, os sofistas realizaram um giro copernicano na visão de mundo de Heráclito.

Daí a importância atribuída à techne retórica por eles ensinada, de maneira que uma argumentação mais convincente pudesse fazer impor, pelo consenso, os interesses diretamente buscados. Inclusive, a questão do justo legal desatrelada de qualquer lastro no justo natural fora tratada por Sófocles em Antígona (século IV a. C.), obra contemporânea ao período aqui enfocado e já abordada no tópico anterior.

Por outro lado, Sócrates (469-399 a. C.) foi um incansável adversário da proposta sofista, a qual, segundo o filósofo, correspondia a um saber falso e aparente (a opinião, doxa) que se camufla na argumentação retórica. Nessa empreitada que lhe custou a vida depois de uma dose de cicuta, Sócrates atuou em duas frentes: refutou a pretensão sofista de possuir pela via da techne retórica o saber sobre as virtudes cívicas da polis e propôs uma alternativa de saber verdadeiro e universal acerca da justiça, na qual a validade do justo legal derivaria diretamente de sua justaposição aos princípios do justo natural.

Na primeira frente, Sócrates tentou demonstrar que a techne sofista era ambivalente, na medida em que era apta a produzir injustiça natural. Na segunda frente, no afã de tentar resolver o problema prático do equilíbrio entre o individual e o social – fundamentado na premissa de que o justo legal deveria justamente provocar a moderação dos desejos que muitas vezes se sobrepunham aos requerimentos da vida em sociedade – questionou o modo de vida desmedido, inspirado na hybris, que, segundo ele, por estar divorciada do justo natural, não proporcionaria a eudaimonia da comunidade e, indiretamente, de seus membros.

A saída socrática consistiu na apropriação do cuidado da alma, influenciado pelo orfismo e pelo pitagorismo: extraiu do contexto religioso o pensamento da alma, colocando-o no centro e no fim de seu discurso moral, para “fundar sobre a concepção da alma como ‘verdadeiro eu’ aquela equação de justiça e felicidade que, sem esse suplemento, como se viu, parecia não poder com os golpes da crítica sofista” (VEGETTI, 1989:91).

A justiça realizar-se-ia, então, somente na alma, como fruto de uma vida examinada, regulada por uma episteme, uma ciência de justiça que sabe discernir o certo e o errado, o justo natural. A equação formada por justiça, felicidade, ciência e virtude na alma era uma conclusão que podia ser válida para Sócrates, que reputava a alma como imortal e atemporal.

Entretanto, seu zelo pela vida refletida portava uma aporia interna que a investigação platônica não só não resolveu como acentuou ainda mais: entre Sócrates e a polis foi aberto um dissídio, porque a polis rejeitou a mediação socrática entre a alma e a polis, culminada com a condenação do filósofo numa sociedade em que não havia espaço para seu saber inovador.

Platão herdou o problema acerca da episteme da justiça natural, que assegura ordem à alma individual e à comunidade[8]. Nos diálogos “A República” (L. I, 338-340), “Górgias” (482-484) e “Protágoras” (337d), Platão afirma que os sofistas buscavam muitas perspectivas de compreensão da lei e da justiça, oscilando entre a conveniência do mais forte, o resultado de uma convenção e a expressão de tendências naturais contra os abusos da legalidade positiva.

Trasímaco identifica a justiça como a vantagem do mais forte ou superior; Cálicles antepõe o direito natural dos mais fortes à tática das leis defensivas a que recorrem os mais débeis, que se satisfazem com a igualdade; Hípias escolhe as leis não-escritas, pois a lei positiva, tirana dos homens, obriga a muitas coisas contrárias à natureza.

Na República, Platão procurou superar as dificuldades internas da filosofia socrática, a fim de superar as ambiguidades sofistas. Para ele, a postura socrática não considerava dois conflitos internos, o da polis, revelado pela constante oposição entre abastados e pobres, e o da alma, dramatizado na tragédia do teatro grego, como no caso de Antígona.

Sua proposta de episteme deveria, então, criar condições para o império simultâneo do justo natural tanto na polis quanto na alma, pois a sociedade é homem escrito com letras maiúsculas: “não há indivíduo justo a não ser numa sociedade justa, mas não há sociedade justa se não o são, desse ponto de vista, os seus membros singulares. Parece, aliás, que, desse ponto de vista, a moral individual tem prioridade: os costumes da polis são os dos seus cidadãos”. (VEGETTI, 1989:117). Por isso, na República, Platão inicia com a justiça da cidade (Livros II e III) e passa para a justiça da alma (Livro IV).

Nos dois âmbitos, as partes distintas do conflito são reconduzidas a um todo ordenado a um fim único: a felicidade na polis como corolário da felicidade de cada alma, por intermédio da atuação do justo natural, caracterizado como aquela ordem em que cada parte desenvolve uma função específica no todo, segundo uma específica excelência ou virtude.

E a ordem é estabelecida por uma ciência em cada segmento social: a sophia, restrita dos governantes da cidade; para os guerreiros, era a coragem e, para os produtores, a temperança. Cada uma delas atuando dentro de seu respectivo âmbito de destinatários. Paralelamente, no interior da alma, inovando na tradição de então, surge a tripartição da alma platônica. A parte racional era governada pela sophia, a parte irascível pela coragem e a parte concupiscível pela temperança.

A ordem das partes no todo decorre de um saber específico, que abarca a ideia das inúmeras partes num todo à luz da ideia suprema de uma totalidade ordenada segundo uma ideia de Bem. Tal fato não decorre da experiência e não é deduzível a partir dos fenômenos mutáveis do mundo sensível. É inato e provém da anamnese, deduz-se da visão das ideias que foram previamente inscritas na alma de cada homem.

Assim, para Platão, o fundamento ontológico do justo natural está no arquétipo, ao qual todas as coisas deveriam se conformar. A ideia de justo natural deriva da ideia de bem, a qual se submete à ideia divina da ordem jurídica universal. O justo natural platônico é um justo natural ideal, efeito direto da contemplação das ideias. As ideias eternas estão preordenadas pela mente divina e a elas vinculam-se todo o conhecimento do justo e do injusto natural.

 

  1. Aristóteles.

Entra em cena Aristóteles. O Estagirita herdou o legado platônico e continuou na busca do saber sobre a ordem na alma e na polis, mas a submeteu a partir de outro método, a fim de vencer as vicissitudes subjacentes na resposta platônica. E suas ideias não só marcariam sua época, mas seus influxos constituiriam um imponente substrato do pensamento moral ocidental até os dias atuais.

Aristóteles logo notou a principal aporia no ideário platônico: a separação (chorismós)entre mundo inteligível e mundo sensível, cuja relação era fundada pela correspondência das coisas às ideias. Sob o ângulo da polis, tal cisão demandava o conhecimento das ideias por via da reminiscência (anamnese), o que provocava um choque radical com o senso comum, segundo o qual o acesso ao saber era fruto do embate entre as opiniões dos cidadãos.

Como efeito, as relações entre o governante-filósofo e a polis seriam um tanto dissonantes, aporia essa que, segundo Thomsen (1990:225-236), permanece insuperável no pensamento platônico. Rejeitando o chorismós e introduzindo as ideias nas realidades sensíveis, ou seja, descendo com as ideias do mundo inteligível ao mundo sensível – as formas da matéria – Aristóteles abriu uma nova senda para a ontologia.

Sob o ângulo do sujeito na relação de conhecimento com o objeto, o homem é visto como um ser capaz de conhecer a natureza das coisas, isto é, a verdade intrínseca de cada uma delas. Do ponto de vista do objeto, as realidades sensíveis, em virtude da forma nelas subjacentes, são naturalmente cognoscíveis. Para a vida na polis, abre-se a possibilidade de que os cidadãos tenham opiniões verdadeiras sobre os assuntos da polis – desde que correspondam à natureza da coisa opinada – e, assim, o filósofo pode e deve tomar as opiniões práticas como ponto de partida de sua investigação especulativa.

Sem dúvida, uma inversão completa do caminho do modelo platônico. O homem aristotélico não vai mais buscar na teoria da reminiscência o acesso ao conhecimento das realidades físicas e dos assuntos da polis, mas no caminho da abstração da experiência sensível. Isto é, a forma (a ideia platônica) está na substância de cada ser (no mundo sensível e não mais no mundo inteligível). E também no ser das ações humanas multifacetadas que tomam parte na vida da polis.

A investigação filosófica aristotélica rompe com a unicidade do saber platônico: um conhecimento das ideias incindivelmente teórico e prático, posto que as ideias, situadas no mundo inteligível, constituem o substrato sobre o qual são formadas as realidades do mundo sensível. Uma investigação do saber que contempla as ideias e que, por isso, configura-se num saber infalível, na ótica platônica, porque forma as coisas segundo as ideias.

Aristóteles, inspirado pela episteme do conhecimento platônico, que tentou conciliar a primeira crise histórica da filosofia, desencadeada pela questão da mutabilidade entre Parmênides (mundo imutável) e Heráclito (devir constante e perpétuo), propõe que, no âmbito do saber humano, a realidade sensível, objeto de estudo da física e da metafísica, tem, em si mesma, o princípio (ou o motor) de seus movimentos. E as ações humanas (tanto aquelas voltadas para o agir ou para o fazer) têm seu princípio no homem.

O resultado de uma arte (como a escultura ou a pintura) tem seu princípio na arte (techne) de quem a produz. A ação humana que se encerra em si mesma (como o ajudar alguém ou se omitir a fazê-lo) tem seu princípio na escolha. Assim, para Aristóteles, o saber com relação ao puro saber é teórico. No que toca às coisas feitas ou produzidas externamente (como o labor de um artesão), é um saber poiético. No que concerne ao agir, é prático.

A diversidade nos objetos e na relação dos respectivos saberes com os objetos volta ao ponto de partida, sob a denominação aristotélica de filosofia teórica e filosofia prática: ambas investigam a verdade e a causa que proporciona essa realidade. E, logo, são episteme. Todavia, a filosofia teórica busca a verdade como um fim em si mesma. A filosofia prática busca a verdade que é posteriormente ordenada à obra a ser feita aqui e agora[9]. O saber prático não é um fim em si mesmo, como o saber teórico, mas sempre tem em vista o horizonte de outro fim[10], ou seja, da ação.

Na investigação ética e política – os campos por excelência da filosofia prática – o objeto é conhecido de molde a poder ser posto em obra pelo agente da ação[11]. A partir de então, a ética passa a ser encarada como uma disciplina filosófica específica, com objeto, método e conceitos próprios. Para a vida na polis, essa revolução no campo das ideias significou uma revolução no campo da praxis: no seio da polis, as ações deixam de conduzidas pelo saber teórico do filósofo, o justo e o político platônicos, e passam a ser regidas pelo saber prático do bom político, iluminada pela phrónesis[12].

A filosofia prática aristotélica investiga o modo pelo qual a phrónesis é o princípio das escolhas e ações humanas que são tidas como virtuosas no ethos da polis. Ensina Giuseppe Abbà (2011, p.74) que:

o ponto de partida da filosofia prática são as “aparências” do sábio (phrónimos), do virtuoso (spoudaios) no ethos da polis: isto é, os seus juízos sobre a excelência de determinar as ações concretas e, de modo mais geral, os éndoxa, as opiniões de autoridade acerca do modo conveniente e nobre de viver e de agir. Ademais, o filósofo prático começa sua investigação, mais em geral, a partir dos legómena, as opiniões correntes acerca dos assuntos humanos, das excelências e dos bens humanos. O filósofo prático visa a dar razão dessas opiniões mediante processo diaporético: isto é, examina as eventuais aporias às quais as opiniões conduzem e busca resolver as aporias explicando a parte de verdade e a parte de erro contida nas opiniões. Mais em geral, o filósofo prático procede dialeticamente: examina as opiniões possíveis acerca de um problema prático, descarta, com argumentação contra-interrogativa ou refutatória, aquelas que levam a aporias ou que incorrem em contradição ou que contravêm os éndoxa. As opiniões que resistem ao exame ele as considera verdadeiras e mostra a sua compatibilidade. Assim procedendo, o filósofo prático parte do ‘quê’, isto é, das opiniões sobre as ações justas, boas, convenientes e remonta aos seu ‘porque’, isto é, à razão (logos) que as justifica. Este procedimento não é exclusivo da filosofia prática, pois também se acha na filosofia teórica (física e metafísica): é a via para se recobrar o conhecimento dos princípios próprios de uma ciência, princípios dos quais parte, então, a argumentação apodítica para explicar por que certas propriedades pertencem necessariamente ao objeto específico estudado por aquela ciência. O que diferencia a filosofia prática é o fato de que o ‘quê’ do qual ela parte é-lhe fornecido pelo ethos da polis, ethos que, por via da educação e da disciplina, tornou-se çthos ou caráter do indivíduo que age bem. Assim, o ponto de partida da investigação filosófica ‘ética’ é o mesmo a partir do qual tem início o raciocínio prático do phrónimos.

Ademais, a filosofia ética diferencia-se pelos motivos pelos quais alcança o procedimento dialético. Tal justificativa reside numa concepção normativa da vida boa e das excelências que a constituem. Superada esta etapa, o filósofo prático pode estipular e fundamentar normas gerais de como se deve agir em vários planos práticos para realizar a vida boa.

Concomitantemente, a filosofia ética assume um perfil tipológico, porquanto não indica uma concepção absolutamente delimitada e rigorosa da vida boa e das excelências para o homem, bem como dos meios ou das ações necessárias para tanto. A ética limita-se a informar os postulados gerais (typos) do bem supremo realizável pelo homem, sem fazê-lo de maneira certa e determinada.

O procedimento tipológico confere-lhe o caráter de ciência e diferencia-se da phrónesis, que não pode ser uma ciência, na medida em que extrai do ethos os princípios do raciocínio prático para determinar, no caso concreto, a ação que convém ser feita para viver bem nas circunstâncias contingentes. Ao passo que a filosofia prática procura justificar os fins das virtudes éticas, refluindo-os a uma concepção normativa da vida boa e descreve os atributos do raciocínio prático com o qual o sábio aplica às situações os fins virtuosos que definem a vida boa.

Logo, conclui-se facilmente que a filosofia prática aristotélica, ao contrário da filosofia platônica do Bem, é perfeitamente compatível com o ethos da polis e os éndoxa. E o filósofo prático não se limita a observar a realidade empírica e comentá-la, digamos, como um sociólogo nos dias atuais: ele vai além, pois compreende o ethos da polis, submete-o a uma argumentação dialética e diaporética, identifica uma concepção normativa de vida boa e, nessa tarefa, acaba por ser um crítico do mesmo ethos, buscando aprimorá-lo.

A distinção entre sabedoria prática (phrónesis) e filosofia ética requeria um giro copernicano em relação à posição platônica: se a justiça era considerada primeiro na polis e depois na alma, Aristóteles, ainda que concordasse com a máxima platônica de que o regime da polis e de suas leis educavam o caráter moral e as excelências do cidadão, inverte a mão de direção e inicia a consideração da justiça pela vida boa dos cidadãos, prescindindo-a do regime político ao qual estava afeta, a despeito do benefício decorrente de seus efeitos pedagógicos na situação singular de cada cidadão.

Nessa consideração, a ideia de justo natural foi posta sobre a essência imutável dos seres. Essa ideia, segundo já exposto, não é transcendente, mas imanente e a forma, na visão aristotélica, era o princípio que determinava o modo de ser, o fim ao qual tende o ser, sua essência. Se há uma essência comum a uma dada categoria de seres, como o homem, a universalidade dessa essência demanda um comportamento definido, expresso em imperativos naturais e, no que toca ao agir social, em imperativos moldados por um justo natural.

É o conceito teleológico de natureza. Por conseguinte, ao lado de um direito – universal e imutável – ligado às exigências naturais do homem, Aristóteles propôs um outro âmbito normativo humano: o direito da cidade, de caráter contingente e variável, com a função de prescrever o direito positivo relativo às coisas e às relações entre os homens no seio da polis. Aquele direito correspondia ao justo por natureza; este, por sua vez, consistia na representação do justo legal e, necessariamente, por aquele devia ser balizado[13].

Nessa mesma consideração, Aristóteles situou o problema do justo natural no campo da vida boa cm si mesma, entendida como vida humana virtuosa, o locus, por excelência, da phrónesis, o saber prático exercitado pelo indivíduo na condução de uma vida boa e feliz: uma ética que é vista sob o ângulo do agente na direção do fim por ele realizado, exercitando sua sabedoria prática.

Como consequência, na filosofia aristotélica, a justiça, a ética, a prudência e a vida boa são conceitos entrelaçados que desembocam na felicidade. E onde? No mundo da polis, um mundo em que a política representa a expressão mais existencial do homem, enquanto se dedica ao plano do agir.

Na tarefa de condução dos destinos da polis, o homem grego vê-se inserido no meio das relações entre filosofia prática e filosofia política. Para Aristóteles, a ética assume uma função normativa, pois estabelece o fim em ordem do qual devem ser constituídos os regimes políticos e as leis e, como somente pode ser realizado no âmbito da polis, a especulação ética deve ser complementada por uma investigação sobre uma constituição da polis que propicie efeito pedagógico junto à tarefa singular de cada cidadão em auferir as virtudes necessárias para aquele mesmo fim. E, qualquer que fosse a constituição, ela deveria assegurar um campo fértil para a realização dos ditames de um justo natural por intermédio do justo legal.

E Aristóteles resolve escrever A Política, um verdadeiro tratado sobre teoria geral do Estado, no qual o Direito assume uma posição de destaque, ainda que, naquela época, não existisse uma palavra própria para mencioná-la, porque o conceito fundia-se, essencial e intuitivamente, na noção universal de justo: como o fogo que arde na Grécia e na Pérsia.

 

  1. Conclusão

O problema do justo é uma herança da antiguidade grega, cuja sociedade era dominada pelo pensamento de que existência humana se baseia numa lei natural, precedente, universal e de validade perene. As palavras de Antígona, diante de um inquisitivo Creonte, no seio de uma obra de literatura, de que existem leis não escritas e imutáveis, que não são nem de ontem, nem de hoje, mas têm uma origem imemorial, é um sinal inequívoco da consciência desse problema.

Em que pese a particular posição dos sofistas, pensamos que a afirmação de Antígona define magistralmente o modo de sentir a tradição da Hélade quanto ao problema da justiça, cujos influxos, mais tarde, não só repercutiriam, mas influenciaram decisivamente a análise do mesmo problema pelos jurisconsultos romanos, pelos padres da Patrística e, alguns séculos mais tarde, pelos filósofos da Escolástica.

No pensamento contemporâneo, a tradição grega, ao lado do legado do Direito Romano, pensamos, poderia ser um virtuoso e fecundo caminho para a inquisição do problema da justiça nos dias atuais. O aporte epistemológico do justo natural serviria de firme ponto de apoio axiológico para a sustentação do edifício do Direito, porque as outras vias de compreensão do mesmo problema estão chegando ao limite da inoperância.

 

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VERNANT, J.P. As Origens do Pensamento Grego. Rio de Janeiro: Difel, 2011.

 

NOTAS

[**] André Fernandes é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito titular de entrância final. Pesquisador do grupo Paideia, na linha de ética, política e educação (FE/UNICAMP) e professor do CEU-IICS Escola de Direito. Coordenador do IFE Campinas. Articulista da Escola Paulista da Magistratura, da qual é também Juiz Instrutor, e do Correio Popular de Campinas, com especialidade na área de Filosofia do Direito, Deontologia Jurídica, Estado e Sociedade. Experiência profissional na área de Direito, com especialidade em Direito Civil, Direito de Família, Direito Constitucional, Deontologia Jurídica, Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica. Membro da Escola do Pensamento do IFE (www.ife.org.br), do Comitê Científico do CCFT Working Group (Diálogos entre Cultura, Ciência, Filosofia e Teologia), da União dos Juristas Católicos de São Paulo e da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas. Autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas.

[1]Reale (1993:628) destaca que “em primeiro lugar, devemos reconhecer que em Roma já se fundava uma autônoma ciência do direito. O Direito não é cultivado apenas por moralistas, por filósofos, teólogos ou sacerdotes. Já surge a figura do jurisconsulto, que tem consciência do objeto próprio de sua indagação, e, aos poucos, se converte em um especialista ou profissional de uma nova Ciência ou Arte, cultivando a justiça em seu sentido prático, como voluntas, e não como um dos aspectos teóricos da sabedoria. O Direito Romano é, efetivamente, uma criação nova, que pressupõe em quem cultiva a convicção de que a experiência humana, por ele estudada, se subordina a categorias próprias, sendo suscetível de ordenação em um todo unitário, sistêmico e coerente. (…) Por outro lado, sabemos que os romanos não foram grandes apaixonados pelos estudos filosóficos, como os gregos, dos quais herdaram a especulação para a justiça, nem pelos pressupostos gerais da vida jurídica, atraídos de preferência pelo plano da atividade prática”.

[2] “Para os pensadores gregos, a fonte do direito é o nomos, que se traduz geralmente por lei. A noção, desconhecida nos poemas homéricos, aparece em Hesíodo (século VII a. C.). Píndaro (século V a. C.) dirá que <<a lei é a rainha de todas as coisas>>. Um autor posterior, o Pseudo-Demóstenes, dá uma definição: <<Os nomói são uma coisa comum, regulada, idêntica para todos, querendo o justo, o belo, o útil; chama-se nomos o que é erigido em disposição geral, uniforme e igual para todos. O nomos é sobretudo o meio de limitar o poder da autoridade, porque a liberdade política consiste em não ter que obedecer senão à lei. Mas a lei é humana e laica; já não tem nada de religioso, de divino (GILISSEN, 1988:75-76) (grifos nossos)”.

[3] A tragicidade marca a vida de Antígona, do nascimento à morte: Em “Édipo Rei”, Édipo tem em conta o terrível dilema de identidade de seus filhos com Jocasta, sua mãe biológica. Antígona é, ao mesmo tempo, sua irmã e filha. As regras não escritas de parentesco e atribuição de identidade haviam sido infringidas e todos os efeitos da hybris grega recairiam sobre sua família mais cedo ou mais tarde.

[4] Antígona, Prólogo, 78-79.

[5] Antígona, 1º, II, 449-464.

[6] Antígona, 2º, III, 661-676.

[7] Hervada (2008: 264-265) afirma que “a lei não é estabelecida para pessoas singulares – físicas ou morais – mas para a generalidade delas. Nessa afirmação estão envolvidas duas questões: uma, a oposição à existência de privilégios, que seriam contrários ao princípio de igualdade que vigora em nossas comunidades políticas (…). A marca da generalidade da lei já foi destacada (…) por Ulpiano: ‘Iura non in singulas personas, sed generaliter constituuntur’. Os direitos não se estabelecem levando em conta os indivíduos, e sim em geral. Com mais exatidão, Papiniano classificou a lei como praeceptum commune, como um preceito comum (…). Ao ser direcionada para a comunidade, a lei é norma comum ou geral, no sentido de compreender por si só quantos casos iguais ou semelhantes foram produzidos na comunidade, porquanto ficam englobados no fato hipotético da lei que abrange uma generalidade de casos; por isso, o fato hipotético da lei não poder ser singular, mas deve ser redigido com aquele grau de abstração suficiente para compreender uma multiplicidade de casos concretos”. Silva Pereira (2011:53) assinala a permanência como outra característica da lei, pois “é próprio da lei a duração, a extensão no tempo (…) toda lei, como elaboração humana, é contingente. Nasce, vive e morre, como o homem que a concebe. Pode ter existência mais ou menos longa, pode destinar-se a regular uma situação que perdure mais ou menos extensamente, pode ter vigência indeterminada (…). Mas não se pode destinar a uma única aplicação”.

[8] A força é a negação da justiça. Contudo, sem o manejo da força, paradoxalmente, a humanidade jamais teria sido capaz de descobrir o que é a justiça e como se deve agir para ser justo. “Este foi, sem dúvida, o ponto de partida de Platão. Não apenas seu ponto da partida na obra mais diretamente voltada para a reflexão sobre a justiça – o diálogo que adquiriu um nome impróprio de “República” – mas também foi o ponto de partida que orientou toda sua reflexão filosófica, cujo ato inaugural está na indignação perante uma injustiça que marcou sua juventude. Ao assistir à condenação de Sócrates, que era, em sua opinião, ‘o mais justo dos homens de meu tempo’ (Platão, Carta VII), sua vida tomou um novo rumo: a busca de uma reflexão a partir da qual fosse possível encontrar o significado teórico e a aplicação prática do conceito de justiça: significado teórico no sentido de encontrar o conteúdo da ideia de justiça, mas também significado prático, no sentido de encontrar um modo pelo qual fosse possível uma nova ordem política que restituísse a justiça às sociedades humanas. Platão não foi o primeiro, entre os gregos antigos, a procurar entender o significado da justiça. Foi, sem dúvida, um dos que mais intensamente investigaram o tema e, principalmente, um dos primeiros cujos textos tiveram a sorte de serem conservados para a leitura das gerações futuras. Mais ainda: sua obra sobre justiça se tornou referência para tudo quanto, depois dele, foi escrito sobre o tema. Se a morte de Sócrates ensinou a Platão de que modo a vida humana está vinculada ao conceito de justiça, a vida lhe ensinou que não é possível à condição humana viver sem uma reflexão inerente à prática da justiça” (FABBRINI, 2007: 17).

[9] Metafísica, L. II 1, 993 b 19-23.

[10] Da Alma, L. I 3, 407 a 23-25.

[11] Ética a Nicômaco L. I 3, 1095 a 5-6; L. II 2, 1103 b 26-30; L. X 10, 1179 a 35-b 2.

[12] A prudência é tratada ex professo no livro VI da “Ética a Nicômaco”, que trata das virtudes dianoéticas, e no capítulo 34 do Livro I da Magna Moralia. Segundo Pierre Aubenque, “a tradição moral do Ocidente pouco reteve da definição aristotélica de prudência. Enquanto as definições estóicas de phronêsis como ‘ciência das coisas a fazer e a não fazer’ ou ‘ciência dos bens e dos males, assim como das coisas indiferentes’, facilmente se impuseram à posteridade, a definição dada por Aristóteles no livro VI da Ética Nicomaquéia apresenta um caráter demasiado elaborado ou, se se prefere, demasiado técnico para poder conhecer a mesma fortuna. Ali, a prudência é definida como uma ‘disposição prática acompanhada de regra verdadeira concernente ao que é bom ou mau para o homem (L. VI, 5, 1140 b 20 e 1140 b 5)” (AUBENQUE, 2003:59-60).

[13] Essa antinomia foi expressa por Aristóteles em “Ética a Nicômaco” (L. V, 7, 1134 b 18-23 e 24-28): “O justo vivido na comunidade política (politikon dikaíon), ou é por natureza, ou é por lei. É justo por natureza (fysikon dikaíon), o que tem validade em toda parte e ninguém está em condições de o aceitar ou rejeitar. O justo legal (nomikón dikaíon) é indiferente se, no princípio, admite diversos modos de formulação, mas, uma vez estabelecido seu conteúdo, ordena-se como tal e não é mais indiferente (…) Alguns pensam que a justiça é só por convenção, porque o que é por natureza é imutável e tem o mesmo poder em toda parte – por exemplo, o fogo que arde aqui e na Pérsia – , por outro lado, veem a justiça sempre a alterar-se”. Em “A Retórica” (L. I, 1368 b-1377), Aristóteles retoma, com outro enfoque, a mesma antinomia.