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Sínodo das Famílias: o que muda?

Teologia | 14/10/2016 | | IFE CAMPINAS

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Imagem: Carmadélio, em http://blog.comshalom.org

Imagem: Carmadélio, em http://blog.comshalom.org

 

Desde o ano passado [2015], quando foi inaugurado pelo Papa Francisco, o Sínodo das Famílias têm despertado visões e análises muito diversas dentro e fora da Igreja Católica.

Muitos agentes da grande mídia mundial viram no Sínodo “novos ares de mudança”; para os católicos progressistas, intérpretes equivocados do Concílio Vaticano II, trata-se de uma oportunidade ímpar para um novo “aggiornamento” da Igreja que poderá se constituir numa oportunidade de alterar a doutrina bimilenar da Igreja a respeito da família; para os defensores da Tradição, o Sínodo cambaleia numa linha tênue entre a misericórdia pastoral e a heresia. Os moderados vêem uma certa coragem em discutir o tema, mas não creêm em mudanças doutrinárias.

Todas essas discordâncias são fruto de propostas aventadas por alguns cardeais que sugeriram, por exemplo, a liberação da Sagrada Comunhão aos divorciados pensando em reintegrá-los não só à participação plena da Eucaristia, mas também ao Sacramento da Confissão. O uso de contraceptivos e a integração mais efetiva de membros homossexuais às comunidades cristãs e os pretensos “novos modelos de família” também foram assuntos discutidos.

A Igreja e mesmo seu líder visível, o Papa Francisco não possuem, como muitos imaginam, a prerrogativa de anular o que Deus mesmo instituiu e inscreveu na Lei Natural, e, aliás, nem parece ser esse o intuito do pontífice que mais de uma vez, quando questionado sobre a moral católica não se pronunciou recordando que o que ele pensa já está expresso no Catecismo da Igreja Católica. O papa da grande mídia parece mais uma caricatura daquilo que muitos desejam que a Igreja seja do que realmente é. Como tudo, isso tem seu lado positivo: muita gente que não dava atenção a nada do que dizia a Igreja, passa agora a olhá-la de modo mais familiar, mas por outro lado não deixa de surpreender muitos católicos com afirmações constantemente descontextualizadas da fala real do pontífice.

A comunhão aos divorciados, com todo respeito que essas pessoas merecem – já que somente elas e o próprio Deus podem saber dos sofrimentos que tiveram em seus matrimônios – é um exemplo claro de algo que doutrinariamente nunca poderá ser admitido, visto que se constituiria na demolição completa da moral católica,ou seja, uma chancela da Igreja para relações extraconjugais, mesmo ainda mantendo o vínculo válido de um casamento anterior. O afrouxamento neste ponto de doutrina seria a destruição de três sacramentos fundamentais: a Eucaristia, a Confissão e o Matrimônio. Este último seria afetado em seu aspecto indissolúvel, a Eucaristia seria afetada porque se daria a comunhão a pessoas que estão objetivamente em estado de pecado mortal e por fim, afetaria o Sacramento da Penitência porque a pessoa recasada não estaria obrigada a se confessar e nem a se arrepender de um pecado mortal, o que abriria um precedente para os demais pecados mortais, de modo que o arrependimento e a correção dos próprios erros para obter o perdão divino já não poderia ser algo requerido do fiel.

È preciso agir e pensar com misericórdia e é necessário sim que a Igreja acolha esses seus filhos que sofrem com o desmantelamento de seus matrimônios, mas a Igreja, fiel aos ensinamentos de Cristo que nos disse que o “homem não deve separar o que Deus uniu” (Mc. 10,9), não pode, não deve e nunca mudará a doutrina sobre o matrimônio. O mesmo se diga dos “novos modelos de família”, um eufemismo que mascara a Ideologia de Gênero. Só existe um único modelo natural de família: pais, mães e filhos. Quanto a questões de fé, de moral e mesmo de cidadania, embasadas nos pressupostos da Lei Natural, esses são princípios inegociáveis. Não podemos servir a dois senhores. Ou servimos à Cristo (modelo de homem por excelência) ou lutamos contra Ele. Não há meio termo.

Luiz Raphael Tonon é professor de História e Filosofia, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas e leigo consagrado da comunidade Católica Pantokrator (raphaeltonon@ife.org.br).

Artigo publicado originalmente no jornal Correio Popular, Página A-2, Opinião, edição 20 de Outubro de 2015.

Ventos do leste: a participação de católicos e ortodoxos na política ucraniana (por Tarcísio Amorim)

Política e Sociologia | 09/04/2015 | | IFE RIO

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Em novembro de 2013, uma crise teve início na Ucrânia quando protestos contra a decisão do presidente Viktor Yanukovych de suspender os planos de um acordo comercial com a União Europeia suscitou uma escalda de acontecimentos que resultou na derrubada do governo. De acordo com o Yanukovych, uma associação com a UE não seria vantajosa visto que a dependência de recursos energéticos dos países do eixo oriental (Rússia, Belarus e Cazaquistão) não seria compensada pelos níveis de exportações para os países ocidentais. Apesar da insistência em reafirmar as bases econômicas da medida, tal evento deflagrou uma série de manifestações nas quais clamores evocando uma identidade europeia evidenciaram que um conflito cultural também estava em jogo.

Com a escalada da violência nos protestos o parlamento votou pela descontinuidade do governo, levando Yanukovych a deixar o país. Tal fato, porém, contribuiu para que uma nova crise se instaurasse em algumas províncias orientais onde a população de fala russa ainda predomina. Após a tomada da Crimeia pelas forças do Kremlin, Donetsk e Luhansk têm estado sobre intervenção do exército ucraniano desde Abril de 2014, quando grupo locais declararam independência à Kiev.

Em meio às disputas étnicas que persistem nos discursos e nas decisões acerca de políticas nacionais, ora enfatizando uma identidade ucraniana com um governo em moldes ocidentais ora uma visão histórica de uma cultura pan-eslávica em linha com o modelo Russo, outro fator tem se mostrado relevante na definição indenitária dos cidadãos ucranianos: a religião. Imagens de sacerdotes intercedendo junto aos protestos, bem como o uso de igrejas como hospitais e ponto de apoio, além de discursos e intervenções de lideranças religiosas desde o início da crise evidenciam a força social que Igrejas e comunidades religiosas tem ajudado a fomentar naquele país. Nesse artigo, procuro demonstrar como ortodoxos e católicos, as duas maiores confissões em número de adeptos no país, tendem a estabelecer padrões de identidade cultural que afetam as relações étnicas nessa república pós-soviética.

 

Raízes históricas do conflito

Em 1991 a Ucrânia tornou-se independente, criando suas próprias instituições políticas, moeda e sistema bancário. Mesmo assim, os longos anos do regime comunista parecem ter influenciado na estruturação de sua economia política já que, com as privatizações altamente restringidas e licenças para a condução de negócios ainda concentradas no corpo executivo, o país construía seu sistema político pautado no verticalismo soviético, criando um aparelho burocrático no qual antigas oligarquias acumulavam poder político e econômico.

Nos primórdios da republica ucraniana, Vyacheslav Chornovil candidatou-se a presidência visando introduzir reformas no sistema político em linha com o projeto de Lech Wałęsa na Polônia. O vendedor, porém, foi Leonid Kravchuk, um ex-membro do Conselho Legislativo da Ucrânia Soviética, que era controlado pelo Partido Comunista. Kravchuk procurou manter o centralismo político com uma constituição que provia fortes poderes ao braço executivo, enquanto estendia sua influência sobre o setor legislativo e judiciário aproveitando-se das brechas e inconsistências que a Carta Magna trazia.

Os poderes presidenciais tornaram-se ainda mais fortes quando, seguindo a vitória de Leonid Kuchma em 1994, uma nova constituição garantiu-lhe o poder de nomear todos os membros do Gabinete executivo, com exceção do primeiro-ministro, e os líderes regionais. Kuchma fora diretor de uma fábrica de misseis no regime soviético e favoreceu os laços com o Kremlin.

Com a consolidação das estruturas verticais do sistema político ucraniano, o país permaneceu por muito tempo sob o controle dos oligarcas que muitas vezes detinham assentos no parlamento e controlavam os partidos políticos. Em meio a escândalos de corrupção, assassinatos de motivação política, e manobras do executivo sobre os outros poderes um novo movimento surgia com força na década de 2000 demandando transparência e democratização das estruturas de poder. Nas eleições presidenciais de 2004 a vitória de Viktor Yanukovych, um candidato pro-Rússia do Partido das Regiões, sob suspeitas de fraude deu início a uma série de protestos liderados por Viktor Yushchenko e Yuliya Tymoshenko, dois líderes favoráveis à reforma política e à aproximação da Ucrânia com a União Europeia. Apelidada de Revolução Laranja, as manifestações contribuíram para que a Suprema Corte anulasse o primeiro resultado e promovesse uma nova disputa eleitoral. Dessa vez, o saldo dava a vitória a Viktor Yushchenko com 52% dos votos, contra 44% de Yanukovych. Pela primeira vez o nome Maidan era usado como símbolo revolucionário a partir de Kiev.

Ainda assim, com as eleições legislativas de 2006, divergências no Parlamento entre o Partido das Regiões e o Bloco de Yuliya Tymoshenko (ByuT) levaram a um impasse sobre a possibilidade de obtenção da maioria prevista para que as reformas constitucionais fossem implementadas. Viktor Yanukovych subira ao cargo de primeiro-ministro e os círculos de empresários, liderados por Petro Poroshenko, correligionário de Yushchenko no partido Nossa Ucrânia (e atual presidente do país), demandavam uma aliança com o Partido das Regiões – o que era visto como uma traição dos ideais da revolução pela extrema-direita[i]. Somado a isso, desentendimentos entre Yuliya Tymoshenko e Viktor Yushchenko ajudaram a dividir ainda mais o Parlamento, acentuando o clima de instabilidade política. Como a constituição ucraniana prevê a possibilidade de novas eleições no caso de um fracasso na formação das coalizões parlamentares, as partes envolvidas concordaram em convocar um novo sufrágio a se realizar em setembro de 2007.

Dessa vez, Yuliya conseguiu fazer Yushchenko concordar com uma “Coalizão Laranja”, dando aos líderes da revolução uma ligeira maioria no Parlamento, com a união do ByuT com o Nossa Ucrânia, reforçada ainda pelo Bloco Lytvyn, de orientação centrista. Tymoshenko, por sua vez, acendia ao cargo de primeiro-ministro, confirmando o governo revolucionário. A aliança ainda era frágil pois ao deixar o Partido das Regiões na oposição os “Laranjas” não conseguiriam obter os 301 votos necessários para emendar a constituição. Em todo caso, ela representou uma vitória temporária da Revolução ao consolidar o domínio do Parlamento combinado com as duas principais posições do executivo.

Tal cenário não se estabeleceu por muito tempo, pois o governo de Yushchenko foi extremamente marcado por intrigas e escândalos de corrupção que acabaram minaram sua base aliada. Em 2010, Viktor Yanukovych derrotou Yuliya Tymoshenko nas eleições presidenciais, restabelecendo os círculos de poder em torno das estruturas oligárquicas estabelecidas e, mais tarde, suspendendo os planos em prol de um tratado comercial com a UE.

Como se percebe, a história política ucraniana tem sido caracterizada por instabilidades na base de poder, propiciada por um sistema constitucional que facilita as ligações entre elites empresárias e o poder público, além das clivagens entre os cidadãos do país, que até recentemente tinham atitudes ambivalentes em relação ao modelo político a ser adotado.

 

Religião e política na Ucrânia

Os ucranianos, assim como os Bielorrussos e por vezes os poloneses, eram chamados de Rutênios até o princípio do século XX. Herdado do mesmo termo que costumava designar as origens comuns dos povos eslavos (“Rus”), este nome fora usado em contraposição a Rossiya, especificamente aplicado aos Russos. Rutênia Vermelha era o antigo nome atribuído à Ucrânia Ocidental, enquanto Rutênia Branca, ou Bielo-Russia, deu origem a Belarus. Após a capitulação dos Mongóis, a Ucrânia ficou sob o domínio da Polônia e da Lituânia e isto contribuiu para que eles desenvolvessem uma cultura própria, marcada por diferenças linguísticas e sensibilidades diversas. De todo modo, compartilhando os mesmos mitos de origem e percebendo-se como herdeiros da mesma linhagem eslava, as fronteiras culturais entre a Ucrânia e a Rússia por muito tempo permaneceram fluidas, enquanto Kiev continuava politicamente atrelado às nações vizinhas até o final da era soviética.

Anne Applebaum sublinha que a religião poderia particularmente ter impactado no fortalecimento das fronteiras entre os dois povos. Como ela reconhece, os Ucranianos do ocidente praticavam uma religião distinta, caracterizada por uma espiritualidade bem especifica que se baseava em ritos orientais mas ainda mantinha laços com Roma[ii]. A Igreja Católica Grega surgiu pela União de Brest em 1596, quando a Ucrânia ainda estava sob o governo polonês, e tais laços dos católicos orientais com o Ocidente devem ser levados em conta na análise das relações étnicas entre ucranianos e russos.

No presente, os ortodoxos do Patriarcado de Kiev constituem cerca de 50,4% da população da Ucrânia, seguido daqueles fiéis ao Patriarcado de Moscou, com 26,1%. Os católicos gregos vêm em seguida com 8%, enquanto outros ortodoxos, católicos latinos, protestantes e judeus compõem 7.2%, 2.2%, 2.2% e 0.6%, respectivamente[iii].

Embora fiéis de outras religiões têm tido uma posição ativa nos recentes eventos que vêm definindo o cenário político na Ucrânia, ortodoxos e católicos somam mais de 90% da população do país e suas tradições históricas marcam a herança nacional de modo particular.

O Patriarcado de Kiev foi formado após um cisma com o Patriarcado de Moscou, seguindo a queda da União Soviética e a independência da Ucrânia. Reivindicando mais autonomia para a Igreja de Kiev, o Patriarca Filaret Denysenko, até então responsável pelo Patriarcado Russo na Ucrânia, afastou-se de seus pares e buscou implantar uma Igreja em linhas nacionais com o apoio do presidente Leonid Kravchuk, acima mencionado. O Patriarcado de Moscou não reconheceu tal separação e a Igreja Ortodoxa Ucraniana é até hoje considerada um órgão autocéfalo e ilegítimo de acordo com o direito canônico da Comunhão Ortodoxa.

Por sua vez, a presença dos católicos gregos, especialmente na Ucrânia ocidental, tem sido de maior importância para o entendimento de padrões sociais de comportamento político no país. Durante o período comunista, a Igreja Greco-Católica foi proibida nos territórios da URSS, enquanto seus membros eram perseguidos pelos líderes soviéticos. Após a Guerra Fria, a Igreja católica na Ucrânia experenciou um reavivamento religioso, que vai bem além do aspecto meramente espiritual. Agindo como um centro de disseminação intelectual em associação com instituições europeias nos arredores de Lviv, seu clero teve uma especial participação nos protestos que marcaram a Revolução Laranja, bem como da recente comoção chamada de “Revolução Euromaidan”. Como pontuou o Arcebispo Sviatoslav Shevchuk, líder da Igreja Greco-Católica ucraniana, seus proponentes não eram “nacionalistas radicais” mas sim defensores de uma Ucrânia “livre, democrática e Europeia”[iv].

É importante sublinhar que os conflitos entre a Igreja Ortodoxa Ucraniana e o Patriarcado de Moscou tem sido um fator decisivo na aliança da primeira com a Igreja Greco-Católica no que diz respeito à promoção dos valores nacionais contra a influência do Kremlin. Com efeito, o clero de Kiev tem rejeitado o conceito de “Russkiy Mir” (Mundo Russo), avançado pela Igreja de Moscou como uma visão teológica de um universalismo eclesiástico centrado no mito de uma civilização eslava sob a liderança da Rússia, da qual Ucrânia e Belarus seriam parte. Contra essa ideia, a Igreja de Kiev vem favorecendo uma concepção de cultura encarnada, na qual a imersão nas línguas e costumes locais são elementos essenciais do desenvolvimento da santidade. Como expressa o teólogo ortodoxo Dr. J. Buciora: embora a realidade contextual dos santos são sempre apresentadas em um prisma de transfiguração, esta “pressupõe sofrimentos, dores, lutas, e imagens de uma situação particular”[v]. É neste sentido que a vida dos santos Ucranianos torna-se inspiração para os féis e veículo de transformação.

De modo semelhante, a identificação dos greco-católicos com o legado da Igreja de Kiev propicia uma teologia enraizada nas tradições ucranianas e na experiência do passado. De acordo com o Bispo Borys Gudziak, antigo reitor da Universidade Católica de Lviv (a qual os ucranianos costumam referir-se como a única Universidade Católica do antigo mundo soviético), o objetivo da instituição é construir uma “nova síntese social, intelectual e teológica” do legado dos mártires ucranianos – o que John L. Allen classificou como uma teologia “nascida das catacumbas”[vi].

Embora, como veremos, os ortodoxos ficaram divididos com relação a um projeto político social nos primeiros anos da República, as tendências autônomas do Patriarcado de Kiev, especialmente na atual conjuntura política nacional, tem contribuído para unir Católicos e Ortodoxos na luta pela democracia. Como afirmou o Reverendo Cyril Hovorum, antigo responsável pelo Departamento de Relações Externas na Igreja Ortodoxa Ucraniana:

“Maidan, além de um importante evento civil, parece ter sido um importante evento religioso… Havia orações senso executadas todos dias de manhã e de noite. Foi um fenômeno religioso além de ter sido um fenômeno político e social, e também foi um evento ecumênico porque a revolução Maidan realmente uniu muitas Igrejas, muitos líderes que antes nunca tinham se comunicado uns com os outros”[vii].

 

O voto católico e ortodoxo nas eleições parlamentares de 2007

Dito isto, é valido analisar como Católicos e Ortodoxos tem se comportado politicamente com relação às disputas entre as coalisões pró-europeias e pro-russas. Como as informações sobre o atual cenário sócio-político ainda são escassas no país, tomo como ponto de referência os dados sobre votos para a coalizão laranja (liderada por Yuliya Tymoshenko e Viktor Yushchenko) e azul (liderada por Viktor Yanukovych pelo Partido das Regiões). Minha fonte é a pesquisa publicada pela Associação de Dados Arquivísticos de Religião, sob título de “International Social Survey Programme 2008: Religion III”[viii].

Tendo em conta os dados apresentados, eu combinei a variável relacionada à confissão religiosa e produzi dummies, isto é, novas variáveis na qual o valor 0 corresponde a um não-seguidor e 1 representa um seguidor. O mesmo foi feito com relação aos votos para a coalizão laranja e azul, com 0 para “não votou” e 1 para “votou”[ix]. A partir dos resultados obtidos pelos cálculos de software, eu executei uma regressão logística[x] para calcular a probabilidade estatística de um voto católico ou ortodoxo para as duas coalizões, que eu chamei pró-europeia (Pro-EUR) e pro-russa (Pro-RUS).

Como se observa, enquanto os votos de ortodoxos dão resultados próximos a 50% para cada coalizão, sem atingir o requisito mínimo de 95% de significância estatística[xi], os católicos favorecem massivamente os partidos associados à coalizão laranja, embora figurem em menor número na pesquisa (137 para 1270).

 

Regressão: Católico (x = 1) – Voto EUR (y = 1)

=============================================

Católico              2.717***

(0.435)

Constante          -0.449***

(0.071)

———————————————

Observações               898

Log Prob                    -577.532

Akaike Inf. Crit.          1,159.063

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.3896937

P[y=1|x=1] = 0.9062514[xii]

 

Por essa amostra, percebe-se a probabilidade de um voto pro-EUR sobe de aproximadamente 39% para 90% para o caso de o indivíduo ser católico. Este resultado é estatisticamente significante ao nível de 99% (p < 0.01).

Para ortodoxos, temos:

 

Regressão: Ortodoxo (x = 1) – Voto EUR (y = 1)

=============================================

Ortodoxo           0.08487

(0.140)

Constante         -0.35004***

(0.112)

———————————————

Observações               898

Log Prob                    -577.532

Akaike Inf. Crit.          1,159.063

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.41337

P[y=1|x=1] = 0.43409[xiii]

 

Como se percebe, a probabilidade de um voto pro-EUR para ortodoxos é de 43%, e sobe apenas 2 pontos com relação a um voto de um não ortodoxo. Como se tratam de dummies e não há outras variáveis, o resultado para votos Pro-RUS é o inverso: aproximadamente 58% para não ortodoxos e 56% para ortodoxos.  De todo modo, como não há indicador de significância para a variável ortodoxo, isso quer dizer que a análise não atingiu o mínimo de 95% requerido, o que implica que a pesquisa não encontrou um padrão significativo no voto ortodoxo, impossibilitando uma apreciação acurada da margem de erro.

De todo modo, como religião é uma categoria que se sobrepõe a outros elementos a influenciar no resultado, pode-se adicionar variáveis de controle[xiv], visando um cálculo mais preciso do impacto da religião para o voto por meio da exclusão de outras variáveis. Uma delas é a região, pois se sabe que os ucranianos na parte ocidental do país tendem a votar em partidos ligados à UE, enquanto no Oriente os laços com o vizinho oriental são mais fortes, dada a concentração de cidadãos de fala russa naquelas regiões. Outra variável a ser controlada, é a visão política (esquerda ou direita), pois ao isolarmos seu efeito, pode-se verificar se a preferência partidária teve um papel fundamental no resultado ou se a religião é mesmo o principal fator a influenciar o voto. Por último, a renda pode ter um papel decisivo, pois sabe-se que o sistema oligárquico produzido pelas estruturas políticas ucranianas favorece as elites ligadas ao governo Russo. Como para todas as outras categorias, eu converti esse elemento em uma variável dummy, na qual cidadãos ganhando mais de 3200 UAH figuram como 1, e os outros como 0.

Para votos Pro-EUR, eu controlei para regiões de fala ucraniana (ocidente) e visão política de direita, enquanto para votos Pro-Russia eu controlei para regiões de fala Russa (oriente) e posicionamento de esquerda, visto que a maioria dos partidos da coalizão azul endossam uma identidade comunista e soviética. Com esse procedimento, obtemos o seguinte quadro:

 

Regressão: Católico (X=1) – Voto EUR (Y=1) + controles

=============================================

Católico              1.556***

(0.511)

Ocidente             2.376***

(0.182)

Direita                15.065

(538.018)

Renda 1              -0.507

(0.754)

Constante          -1.477***

(0.126)

———————————————

Observações               756

Log Prob                    -377.739

Akaike Inf. Crit.           765.477

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.4107

P[y=1|x=1] = 0.7675[xv]

 

Como vemos, mesmo depois de controlar para região, visão política e renda, a probabilidade de um voto católico para a aliança laranja é de aproximadamente 77%, mais de 35% de diferença para não católicos (41,07%), e o resultado ainda é significativo a 99%.

Para ortodoxos e voto pro-Rússia, temos:

 

Regressão: Ortodoxo (X=1) – Voto pro-RUS (Y=1)  + controles

=============================================

Ortodoxo            0.269

(0.197)

Oriente               2.383***

(0.189)

Esquerda           17.171

(443.815)

Renda 1             0.415

(0.759)

Constante         -18.181

(443.816)

———————————————

Observações               756

Log Prob                    -358.342

Akaike Inf. Crit.          726.684

=============================================

Note:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.1521

P[y=1|x=1] = 0.190149[xvi]

 

A probabilidade de um voto ortodoxo para um partido pro-Rússia sobe de aproximadamente 15% para 19% em relação a não ortodoxos, quando executamos o teste com as variáveis de controle. Há um decréscimo de aproximadamente 25% com relação à probabilidade de um voto Pro-RUS para ortodoxos quando não se controla para as outras variáveis (de 56,59% para 19%). Para católicos, o decréscimo é de aproximadamente 14% (de 90,62% para 76,75%), o que indica que a religião tem maior impacto no voto para católicos que para ortodoxos. Isso se percebe também pelo fato de que a região e outras variáveis têm maior peso na escolha de um partido pro-RUS, o que pode ser verificado pelo nível de significância de Oriente (99%) nessa regressão, sendo os outros elementos estatisticamente insignificantes.

Ainda assim, é possível perceber que a renda 1 (acima de 3200 UAH) influi positivamente para o voto pro-RUS e negativamente para o voto pro-EUR. O posicionamento político, por sua vez, é praticamente insignificante, dado o alto valor do erro padrão nas duas amostras (538.018 e 443.815), o que impossibilita uma generalização precisa a partir das respostas à pesquisa.

Considerações finais

A partir dessa análise, pode-se concluir que os católicos tenderam a votar massivamente para os partidos da aliança laranja nas eleições de 2007. Para os ortodoxos, porém, o teste mostra resultados ambivalentes, o que pode estar relacionado à própria indefinição cultural na qual a Ucrânia se insere, estando na fronteira entre a Europa e o mundo Russo. As variações na escolha do voto para os cidadãos ucranianos converge com a política de neutralidade endossada pelo clero da Igreja de Kiev nos anos que antecederam a revolução Maidan. Apoiada pela classe política ucraniana na época em que ainda era próxima aos aliados do Oriente, ela permaneceu distante da Europa, ainda que separada da Rússia. Os greco-católicos, pelo contrário, tendo construído sua identidade sobre os laços culturais com a Polônia e a Lituânia, o que também lhe valeu a perseguição sofrida durante o período soviético, vem sendo bem mais assertivos em seu posicionamento político. Como reconheceu o Reverendo Cyril Hovorun: “os greco-católicos, ou Católicos de rito Oriental leais a Roma, foram os que primeira e mais ativamente apoiaram os protestos”[xvii].

Em termos gerais, isso significa que os católicos na Ucrânia, ainda que constituindo uma minoria, têm demostrado um claro comprometimento com uma concepção democrata e cristã de governo, assinalando o impacto dos valores articulados pelas visões religiosas na percepção identitária e na escolha individual –  que adquire claramente um caráter comunitário. Por outro lado, os ortodoxos mostraram mais moderação em suas visões políticas, refletindo as condições culturais da sociedade ucraniana como um ponto de equilíbrio entre o Oriente e o Ocidente.

Apesar disso, a recente tomada da Crimeia e a atual crise no leste da Ucrânia são fatores que tendem a mudar esse cenário, já que a escalada da violência tem levado cada vez mais o clero ortodoxo e membros de outras religiões a apoiarem o movimento de democratização em termos patrióticos. Ademais, a interferência do Patriarcado de Moscou, com suas declarações contra o novo governo ucraniano e seus aliados, incluindo os Greco-Católicos e os Ortodoxos de Kiev, mais do que nunca tem sido interpretado no país como uma tentativa de deslegitimar não somente a autonomia e especificidade da Igreja de Kiev, mas também a soberania política do país, com uma visão pan-eslávica fundada no universalismo russo. Como Andrew Sorokowski sublinha:

Para Moscou, a própria ideia de uma Ucrânia é uma traição da unidade eslava oriental, enquanto a união que resultou na Igreja Greco-Católica é uma traição da solidariedade ortodoxa. A premissa de fundo é que Moscou é o árbitro e garantidor de ambas – como a capital tanto de uma única Igreja Russa como de um único “Mundo Russo”.

A Ucrânia, e sua Igreja Greco-Católica, desafia essa concepção. A Ucrânia como nação pressupõe o pluralismo étnico, cultural e nacional, em um mundo onde a unidade é fortalecida, não ameaçada, pela diversidade[xviii].                

Em meio aos protestos do Patriarca de Kiev[xix] contra o apoio do clero russo aos rebeldes no leste, e dada a queda substancial no suporte à liderança do Kremlin após sua intervenção militar no país[xx], é possível prever que o particularismo eclesiástico da Ucrânia deverá se desenvolver de modo a fortalecer seu ideário nacional, unindo católicos e ortodoxos e fazendo jus aos tradicionais laços entre religião e sociedade nesse país. Para as nações ocidentais, a visão dessa aliança pode servir de inspiração para lembrar aos europeus que o vigor da crença pode dar um novo alento à democracia, a fim de que não se perca na frieza de um legalismo burocrático desvinculado de suas raízes.

 

[i] Pawel Wolowski. Ukrainian politics after the Orange Revolution – how far from democratic consolidation? In: Sabine Fischer (ed.) Ukraine: quo vadis?. Chaillot Paper, n. 108. Feb, 2008. Disponível em: <http://www.iss.europa.eu/uploads/media/cp108.pdf>.

[ii] Anne Applebaum. Between East and West. Pan Macmillan Australia Pty,  1995.

[iii] Cf. http://www.scu.edu/ethics-center/world-affairs/politics/By_Countries_Regions/Ukraine.cfm

[iv] John L. Allen Jr. A Church with verve is at risk in Ukraine. Crux, 13 Sep, 2014. Disponível em: <http://www.cruxnow.com/church/2014/09/13/a-church-with-verve-is-at-risk-in-ukraine/>.

[v] Fr. Dr. J. Buciora. The Moscow Patriarchate’s Utopian Vision Of Russian Civilization. Risu, 2011. Disponível em:http://risu.org.ua/en/index/studios/studies_of_religions/41614/.

[vi] John L. Allen Jr. For the future of new evangelization, look to Ukraine. NCR online, 22 Oct. 2012. Disponível em:  <http://ncronline.org/blogs/ncr-today/future-new-evangelization-look-ukraine>.

[vii] Sophia Kishkovsky. Ukrainian crisis may split Russian Orthodox church. Religion News Service, 2014. Disponível em:  <http://www.religionnews.com/2014/03/14/ukrainian-crisis-may-split-russian-orthodox-church/>

[viii] International Social Survey Programme 2008: Religion III. Association of Religion Data Archives. Dados disponíveis em: <http://www.thearda.com/Archive/Files/Descriptions/ISSP08.asp>. Todos os dados quantitativos presentes neste artigo resultam da manipulação das variáveis e da tabulação feita pelo autor, a partir do banco de dados original, por meio do uso do Software “R”.

[ix] Eu classifiquei os votos em Pro-EUR (Europa) e Pro-RUS (Russia), a partir das respostas fornecidas pelos entrevistados acerca de seu voto nas eleições parlamentares de 2007, tendo em conta os partidos mencionados na pesquisa, a saber: Pro-EUR [Bloco de Yuliya Tymoshenko (ByuT)/União Toda Ucrânia Terra Pátria, Nossa Ucrânia/Defesa Popular/Movimento dos Povos da Ucrânia, Bloco Lytvyn/Partido Popular, União Toda Ucrânia pela Liberdade]; Pro-Rússia [Partido das Regiões, Partido Comunista da Ucrânia, Partido Socialista da Ucrânia, Partido Socialista Progressista da Ucrânia].

[x] Regressões são utilizadas em análises estatísticas quando se quer identificar uma função que possibilite ao pesquisador encontrar o resultado de uma variável dependente (Y), dado o valor/posição da variável independente (X) em um gráfico. Uma linha de regressão pode ser estabelecida no mesmo gráfico a partir da média dos resultados em Y dado os valores de X. Geralmente essa função é descrita como Y = β0 + β1X, em que β0 é o ponto onde Y intercepta X (constante) e β1 é a proporção na qual Y varia em função de X. Quando a variável dependente (Y) tem um valor binário (com os resultados variando somente entre 0 e 1), utilizamos a regressão logística (log), pois como não existem valores intermediários, a linha de regressão só pode representar a probabilidade de um resultado 0 e 1. A fórmula para este tipo de caso é P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*)), em que Y* é o valor de Y em uma regressão comum (Y = β0 + β1X).

[xi] Em análises estatísticas, o valor p determina o grau de significância para a amostra, a partir de um cálculo que indica se os padrões encontrados são realmente representativos da população em geral ou se os resultados são devido ao acaso. Em ciências sociais, 95% (p < 0.05) é o valor comumente aceito para se determinar a significância de uma análise. Em termos gerais, ele indica que caso a pesquisa fosse repetida infinitas vezes, em 95% dos casos o mesmo resultado seria encontrado.

[xii]   y* = -0.4486 + 2.7173X

y* [y=1|x=0] =  -0.4486

y* [y=1|x=1] = 2.2687

 

P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (4486*))

P[y=1|x=0] = 0.3896937

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-2.2687*))

P[y=1|x=1] = 0.9062514

 

[xiii]   y* =  -0.35004 + 0.08487X

y* [y=1|x=0] =  -0.35004

y* [y=1|x=1] = -0.26517

 

P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (0.35004))

P[y=1|x=0] = 0.41337

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (0.26517))

P[y=1|x=1] = 0.43409

 

[xiv] Variáveis de controle são utilizadas em regressões quando outros elementos, que não a principal variável independente, podem impactar no resultado da variável dependente, dificultando uma análise precisa da influência de cada um desses elementos, pois aparecem muitas vezes sobrepostos à principal variável independente. Por exemplo, ao se analisar o impacto da aquisição de um grau universitário para o valor do salário, o pesquisador pode ter que controlar para outras variáveis como “pro-ativismo”, pois esse elemento pode influir tanto na aquisição do grau quanto no desempenho laboral, que por sua vez impacta no salário. A fórmula para regressões com variáveis de controle é: Y =  β0 + β1X + β2A + β3B + … … BnZ. Em regressão logística: Y =  β0 + β1X + β2(meanA) + β3(meanB) + … … Bn(meanZn), em que mean é o termo usado para “média”, ou seja, o valor médio de uma variável em uma dada amostra (no caso de dummies, algo entre 0 e 1).

[xv]   y* = -1.4767 + 1.5557X + 2.3757*0.4621 + 15.0655*0.02079002 – 0.5068*0,5825

y* = -0.360888 + 1.5557X

 

y* [y=1|x=0] =  -0.360888

y* [y=1|x=1] = 1.1948

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (0.360888*))

P[y=1|x=0] = 0.4107

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-1.1948*))

P[y=1|x=1] = 0.7675

 

[xvi]  y* = -18.1808 + 0.2690X + 2.3832*0.5378193 + 17.1705*0.8700624 + 0.4148*0,5825

y* = -1.718042 + 0.2690X

 

y* [y=1|x=0] =  -1.718042

y* [y=1|x=1] = -1.449042

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (1.718042*))

P[y=1|x=0] = 0.1521

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (1.449042*))

P[y=1|x=1] = 0.190149

 

[xvii] Sophia Kishkovsky. Ukrainian crisis may split Russian Orthodox church. Religion News Service, 2014. Disponível em:  <http://www.religionnews.com/2014/03/14/ukrainian-crisis-may-split-russian-orthodox-church/>.

[xviii] Sorokowski,  Andrew. Russia and the Uniates. Risu, 2014. Disponível em: <http://risu.org.ua/en/index/expert_thought/authors_columns/asorokowski_column/57958/>.

[xix] Em junho de 2014, o Patriarca Filaret enviou uma carta ao Patrirca Kirill em Moscou, em nome da Igreja Ortodoxa Ucraniana, na qual urgia o mesmo a conversar com Vladimir Putin pedindo a este para interromper a intervenção militar em terras ucranianas. Filaret criticou veementemente o Patriarca de Moscou por não reconhecer a soberania da Ucrânia e apoiar a política russa em nome da concepção de Mundo Russo (Russky Mir). Ver Filaret. Letter to Patriarch Kirill of Moscow. Risu, 2014. Disponível em: <http://risu.org.ua/en/index/all_news/community/religion_and_policy/56778/>.

[xx] Dados da organização Gallup mostram uma queda de cerca de 90% no apoio à uma concepção russa de governo para antes e depois da crise, com um maior impacto nas regiões do leste da Ucrânia. Ver Julie Ray and Neli Esipova,Ukrainian Approval of Russia’s Leadership Dives Almost 90%. Gallup 2014. Disponível em: <http://www.gallup.com/poll/180110/ukrainian-approval-russia-leadership-dives-almost.aspx>.

 

Tarcísio Amorim é Doutorando em Ciência Política pela University College Dublin e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Texto publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta em 01/04/2015.  Disponível no link: http://www.dicta.com.br/ventos-do-leste-a-participacao-de-catolicos-e-ortodoxos-na-politica-ucraniana/

Bienal 2014 – Uma Prova; Uma Provocação (por Iura Breyner Botelho)

Artes | 16/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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Bienal - 2Dia 06 de setembro do mês passado deu-se a abertura da 31ª BIENAL DE ARTES DE SÃO PAULO no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, Parque do Ibirapuera, evento que perdura até o dia 07 de dezembro deste ano.

Segundo consta no site da Wikipédia, “a Bienal de São Paulo (ou ainda Bienal Internacional de Arte de São Paulo) é uma exposição de artes (em geral de grandes proporções) que, como o nome indica, ocorre a cada dois anos na cidade de São Paulo, mais propriamente no chamado Pavilhão da Bienal, do Parque Ibirapuera. (Wikipédia – http://pt.wikipedia.org/wiki/Bienal_Internacional_de_Arte_de_S%C3%A3o_Paulo – acesso em 06/10/2014)”.

Marca registrada deste evento, como na maior parte dos que o antecederam, é a polêmica de cunho religioso e/ou moral, gerada pela presença de trabalhos abertamente acintosos para a religião e a moral cristã,  mais especificamente católicas. Constam entre elas:

– Estruturas de armação, tulhe vermelho e fita cinza com os dizeres: “útero: mi boca cerrada y mi útero abierto” sob o título de “Espaço para abortar” evocando o tema sobre a liberação total do aborto;

– Uma imagem barroca da Virgem da Conceição e o Menino Jesus em uma redoma de vidro com baratas e escorpiões;

– Um Cristo crucificado, sendo devorado por corvos;

– A Santa Ceia dentro de uma frigideira, para ser fritada, e uma imagem de Nossa Senhora, prestes a ser triturada por um ralador de cozinha;

– Outra imagem da Virgem com uma serpente totalmente enrolada em seu corpo, esmagando-a;

– Duas figuras transexuais de mãos dadas, numa foto, unidas por uma espécie de “veia comum”, ligando o coração de um ao de outro sob o titulo “Deus é maricas”;

– Corpos andrógenos e relações homoeróticas em frente a imagens religiosas, como a da Virgem de Guadalupe”;

– Uma Virgem barbada num quadro com moldura dourada”;

– Uma petição a que os grupos são convidados a assinar no final da visita endereçada ao Papa Francisco, para que ele decrete o “fim do conceito de inferno”; entre outras.

Os grupos de militância das causas feministas e homossexuais usualmente tomam posturas radicalmente anti-cristãs/católicas em suas manifestações; isto já é esperado, especialmente quando o assunto é cultura e arte. O discurso comum é que “o Cristianismo e a Igreja Católica inventaram uma crença sobre um Deus Patriarcal e Machista, que só escolhe homens para o seu serviço, que domina as mulheres com a desculpa de que foi Eva ‘quem caiu na tentação e ofereceu o fruto proibido a Adão’ e a imposição do duplo “tabu” sobre a virgindade/maternidade sagradas, únicas opções válidas para a mulher”, etc, etc, etc…

Que sua produção cultural reflita tais idéias e “ideais” é mesmo coisa previsível; o inaceitável numa sociedade chamada pluralista e democrática é a exposição e promoção pública de obras que agridam crenças e valores – quaisquer que sejam – intrínsecas a outros grupos humanos co-habitantes da mesma sociedade. Afinal, se as palavras-chave desta são convivência e respeito mútuo“toda fobia será castigada…” – por que não valeria a regra quando a cultura objeto da fobia é a cristã ou católica?

O título do evento deste ano – “Como (…) coisas que não existem” – é, segundo a explicação do texto do site oficial, “uma invocação poética do potencial da arte e de sua capacidade de agir e intervir em locais e comunidades onde ela se manifesta.”. Neste parêntesis leem-se os seguintes verbos: ouvir, sentir, ler, entender, usar, imaginar, encontrar, lutar com, sonhar com, aprender com, falar sobre, viver com.  Seu logotipo se baseia em um desenho comissionado e uma estrutura tipográfica. O desenho, espécie de carapaça em espiral no formato de uma torre de Babel carregada por um conjunto de pernas e pés humanos, simboliza o esforço conjunto da equipe curatorial unida num caminhar – ainda que incerto (?)* – na mesma direção.

Neste sentido, a equipe caminhou para uma conclusão comum em relação à proposta do trabalho, que é a tangibilidade de tais coisas – que não existem, segundo eles – em ocasiões de confronto entre o que se experimenta como realidade e o que se deseja na vida humana. Tais situações provocam o ser humano no sentido de uma resposta, que pode ser uma fuga ou uma mudança radical – uma “virada” – necessária, urgente, mas nem sempre linear e/ou progressiva.

Para que tal “virada” de fato se dê na mostra como um todo sendo ela mesma uma provocação de “virada” para cada expectador, a equipe curatorial se propõe analisar diversas maneiras de gerar conflito através das obras, já muitas vezes contraditórias em si, bem como através do diálogo e o confronto entre elas. Neste caso a equipe teria alcançado seu intento, antes mesmo de abrir a mostra à visitação pública, na medida em que as temáticas anti-católicas são radicalíssimas e tremendamente agressivas.

Segundo o texto oficial do site “as dinâmicas geradas por esses conflitos apontam para a necessidade de pensar e agir coletivamente, modo mais poderoso e enriquecedor do que a lógica individualista que nos é geralmente imposta (31ª Bienal – Como (…) coisas que não existem. – http://www.31bienal.org.br/pt/information/754; último acesso em 08.10.2014)”. Muito bem, belo intento! Imperou, pois na equipe o respeito mútuo e as opiniões e valores de todos! Pena que tal sentença não foi considerada em relação às comunidades externas ao evento; pelo que esqueceram a regra de ouro: “não fazer para os demais o que não se quereria que se fizesse consigo”.

Em outro desenho, um desdobramento do principal, uma espécie de tronco recortado por linhas espirais multiplica-se em raízes que tocam o “chão” e o “céu” do espaço em pontos diversos. Esta figura, pode talvez representar melhor a proposta deste evento que se funda, segundo o texto explicativo, não em objetos de arte, mas em pessoas que trabalham intrincadamente com projetos colaborativos de grupos, implicando numa espécie de espiral humana aberta que desemboca dinamicamente em diversos setores da sociedade, incluindo os visitantes e seus próprios grupos sociais.

“Essa abertura do processo precisa ser entendida como um meio de aprendizagem: uma troca educacional estabelecida ao longo e em cada um dos níveis e que é, por conseguinte, não resolvida e experimental. (idem; Bienal 2014)” – diz o texto curatorial e nos faz pensar. Diz o refrão que a crítica, para ser válida, tem que ser construtiva e não o oposto. É educativo ridicularizar e menosprezar publicamente crenças e valores morais alheios? A pergunta é lançada à equipe curatorial e ao público leigo, qualquer que seja sua posição em relação ao ponto citado, simultaneamente, através deste artigo, que pretende chegar a uns e a outros.

A expectativa da equipe curatorial é de que todos os que entrem em contato com esta Bienal possam explorar algumas das possibilidades que ela oferece através dos trabalhos, levando consigo algo novo e transformador. Um dado interessante neste sentido é que os trabalhos – instalações, obras e performances – são “itinerantes”, isto é, mudam de lugar constantemente até o fim da exposição. Assim, por meio do que o texto explicativo denomina de “atos artísticos da vontade”, “espera-se desta Bienal que as coisas que não existem possam ser trazidas à existência, contribuindo para uma visão diferente do mundo – potencial provável da arte”.

Neste sentido espera-se que a própria equipe seja provocada, não por uma resposta escandalizada e esparsa à polêmica criada, mas pela pressão da opinião pública em geral que, talvez possa, com ajuda dos profissionais ligados à Arte e à Imprensa abrir-se ao novo e ao inusitado, mas sem gratuitamente engolir fezes humanas a ela lançadas.

Bienal - 1

*A figura em si mesma é dúbia, pois, se por um lado os pés apontam para uma direção que pode mudar em algum momento, por outro, a “cabeça” aponta indubitavelmente para frente e para cima – para o céu e/ou contra ele.

 

por Iura Breyner Botelho, especialista em História da Arte e Crítica de Arte.