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Considerações sobre o atentado em Paris: cultura ocidental e extremismo (por Cesar A. Ranquetat Jr.)

Política e Sociologia | 06/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em 7 de janeiro o mundo assistiu com um misto de perplexidade e revolta as imagens do atentado ocorrido em Paris contra os cartunistas e jornalistas do semanário Charlie Hebdo. Três homens armados – vinculados a grupos extremistas islâmicos – foram os autores do massacre.  O pretexto absurdo para a ação jihadista foi de que este jornal havia publicado charges em tom de zombaria com a figura mais importante da religião muçulmana o profeta Maomé. Ato bárbaro, covarde e, sob todos os aspectos, injustificável que ilustra de maneira cabal o caráter doentio do fanatismo e do extremismo político e religioso.

Este nefando acontecimento, contudo, enseja uma reflexão sobre o tema da liberdade de expressão e dos destinos da cultura ocidental. Para muitos analistas apressados estaríamos diante de um confronto entre os valores sacrossantos do laicismo, da democracia e das liberdades ocidentais contra a selvageria e o primitivismo religioso islâmico. Embate entre a ilustrada e racionalista cultura francesa e a retrógada e arcaica cultura oriental muçulmana.  Sinto frustrá-los, mas a questão não é tão simples assim.

Em primeiro lugar, os jihadistas não representam a totalidade da tradicional e milenar civilização oriental islâmica, mas uma facção “moderna”, minoritária e belicosa do islã que, equivocadamente, instrumentaliza a religião para fins políticos. Por outro lado, a cultura liberal e iluminista francesa é apenas uma expressão secularizada, particular, e, ainda, muito recente da denominada civilização ocidental. Cultura iluminista e laicista que, cabe destacar, em seus primórdios fora marcada pelo seu ódio medular e irracional ao cristianismo. Em síntese, o Ocidente não é apenas o iluminismo francês.

Além disso, importa lembrar que o semanário Charlie Hebdo não apenas escarneceu – através de desenhos de gosto duvidoso – da imagem do profeta Maomé, mas sucessivas vezes zombou de maneira irresponsável dos símbolos mais caros às tradições cristãs e judaicas. Blasfemar e ultrajar imagens religiosas são também atitudes condenáveis e, ademais, sacrílegas. Há um inegável laivo de barbarismo e mesmo de satanismo em blasfemar contra o divino.

Ao contrário do que pensam os porta-vozes da cultura ilustrada, a liberdade de expressão não é um valor absoluto e um direito ilimitado. A liberdade infrene acaba por descambar em libertinagem e licenciosidade. Uma liberdade vazia, sem conteúdo, irresponsável e autodestrutiva, aliás, vigora hoje na sociedade ocidental moderna.

Os corifeus do anarquismo pós-moderno e do “socialismo libertário” defendem ardorosamente e inescrupulosamente a bandeira de uma falsa liberdade que destrói os pilares da civilização ocidental, de acordo com a penetrante observação do diplomata e cientista político Mário Vieira de Mello:

 A liberdade – que está sendo carregada como o pavilhão, a bandeira, o símbolo essencial da civilização contemporânea – não é a verdadeira liberdade. Em nome desse falso símbolo se criticam, se rejeitam, se desmerecem valores que são legítimos representantes da substância cultural do Ocidente.

Reina soberanamente uma concepção radical e anárquica da liberdade, uma liberdade espúria e destrutiva para ofender, mentir, perverter, vilipendiar, blasfemar, atiçar ódios e paixões ignóbeis. Liberdade bastarda que não tem direção nem medida, hostil a qualquer vínculo e compromisso moral e alérgica a todo tipo de norma e ordem. O homem moderno parece ter esquecido a lição elementar de que a liberdade deve estar orientada pela verdade, conforme assevera o teólogo Joseph Ratzinger: “[…] a liberdade está associada a uma medida, a medida da realidade, que é a verdade. A liberdade de destruir a si mesmo ou destruir o outro não é liberdade, mas uma paródia demoníaca”.

Não tenho dúvidas, os desenhos satíricos e ofensivos do semanário francês, assim como o fundo ideológico anarquista e progressista radical que alimenta este periódico, são uma expressão e um sintoma doentio da própria corrosão interna e da dissolução moral que assola a civilização europeia contemporânea.

Por sua vez, o laicismo, a licenciosidade e o relativismo moral hoje dominantes no ocidente moderno não são barreiras protetoras contra o avanço do fundamentalismo islâmico; pelo contrário. A cultura ocidental moderna desvinculada de suas raízes morais e religiosas tradicionais torna-se uma presa fácil para qualquer tipo de radicalismo e extremismo, pois encontra-se espiritualmente vazia e privada de fundamentos superiores e sólidos. Segundo a arguta colocação do filósofo Rob Riemen

[…] a ameaça que o fundamentalismo islâmico representa para a nossa sociedade é muito menor do que a crise inerente à sociedade de massas – a crise moral, a trivialidade e o embrutecimento crescente que minam a nossa sociedade. Esta crise da civilização representa a verdadeira ameaça aos nossos valores fundamentais, esses valores que devemos proteger e salvaguardar para possamos continuar a ser uma sociedade civilizada.

Como afirma o escritor espanhol Juan Manuel de Prada, uma cultura que renega suas tradições espirituais está pronta para ser conquistada e dominada por bárbaros. A verdadeira civilização ocidental, a autêntica e grandiosa cultura europeia não se encontra bem representada no Charlie Hebdo. Devemos procurá-la em outras fontes, instituições, símbolos, convicções, normas e valores.

 

Cesar A. Ranquetat Jr é Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor universitário

Publicado originalmente no site da Revista Dicta&Contradicta. 

A história esquecida da pós-modernidade (por Rein Staal)

Filosofia | 30/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em fevereiro de 1943, no Sportpalast de Berlim, diante de milhares de leais membros do partido nazista, Josef Goebbels fez apelo à “guerra total”. A guerra total veio, e poucos anos depois o Sportpalast era parte das ruínas fumegantes do movimento nacional-socialista.

Martin Heidegger, um dos ex-membros mais famosos do movimento, disse que  “a verdade e a grandeza internas” da visão nazista “consistiam no encontro do homem moderno com a tecnologia global”. Ao observar os destroços desse encontro que ficaram depois da guerra, o escritor alemão Romano Guardini viu neles também o corolário e o colapso do projeto damodernidade. Os anseios que inspiraram os fundadores do pensamento moderno – a conquista da natureza por meio da ciência e, em última análise, a conquista da natureza humana por meio da ciência e conseqüentemente a emancipação do poder com relação a qualquer limite moral – foram concretizados de uma maneira que ultrapassou mesmo os sonhos mais loucos. E esse sucesso transformou-se em cinzas antes de poder ter sido desfrutado.

Guardini sentiu-se compelido a escrever o seu clássico trabalho O fim dos tempos modernos e o seu complemento Poder e responsabilidade. A essência da modernidade, afirmava, repousa no “divórcio entre poder e pessoa”. Depois de séculos de reducionismo e espoliação, a pessoalidade foi reduzida à mera subjetividade, à delgada afirmação de valores sem ancoragem ou horizonte. O poder lançou sua sombra sobre o homem por meio de instituições impessoais e processos que seguiam a sua própria lógica desalmada. “Não há ser que não tenha um mestre”, e o poder demoníaco preencheu o vácuo deixado pelo eclipse da responsabilidade pessoal. Uma vez dissipado o capital moral do cristianismo, restou aos modernos pouco que gastar.

Ultimamente, diante das nossas próprias ruínas, temos visto por toda a parte um raciocínio aparentemente similar: o pensamento moderno percorreu o seu caminho, deixando para trás apenas um ceticismo penetrante acerca de toda a visão significativa da natureza e do destino humanos. Tanto o pós-modernismo acadêmico como o popular estabelecem um tabu contra o exame da realidade última das coisas, justificando-se com um relativismo tão leviano que faria Protágoras corar. E, no entanto, Guardini viu que a verdadeira lição corre no sentido contrário: apenas um entendimento cristão pode dar sentido à condição humana pós-moderna.

Noutras palavras, a crise da modernidade foi atingida bem antes dos modismos acadêmicos do nosso tempo. O pós-modernismo que domina a atmosfera intelectual hoje é um fenômeno secundário, algo derivado e não verdadeiramente radical. Guardini viu isso e foi além: fez um apelo a uma nova antropologia filosófica, que pudesse retomar o entendimento cristão da pessoa como agente participativo numa realidade compartilhada e também como um locus de responsabilidade.

Havia outros pensadores trabalhando na mesma seara. Esse renascimento teísta, esse pós-modernismo primevo brotou das reflexões de um grupo de pensadores europeus que encontraram a resposta para a crise da modernidade no patrimônio espiritual do Ocidente. Nenhum deles viu as patologias da modernidade como a expressão final ou real do significado do Ocidente. Pelo contrário, afirmaram que o fim da modernidade revela a realidade radical da liberdade e dignidade humanas. Viram também que o embate entre o reducionismo naturalista moderno e o subjetivismo pós-moderno é uma briga de família prenunciada pelo eclipse da pessoa.

A maior parte desses pensadores eram figuras marginais no seu tempo. Poucos tinham atuação política e nenhum deles demonstrava simpatia pelo nacional-socialismo ou pelo comunismo soviético. Todos – com a ambígua exceção de José Ortega y Gasset – eram teístas. Alguns deles estavam a meio caminho entre o judaísmo e o cristianismo e quase todos tinham consciência da sua dívida para com uma visão cristã da natureza humana e do destino.

Assim, por exemplo, no outono de 1940, na Paris ocupada pelos alemães, Henri Bergson, já idoso e adoentado, ficou horas em pé sob uma chuva gelada à espera da estrela amarela que seria o seu estigma na nova Europa. Um dos poucos filósofos a ganhar o prêmio Nobel de Literatura, Bergson recusou a proteção do governo Vichy e escolheu abraçar o destino do seu povo. Ele viria a falecer dentro de poucos meses, mas não sem antes renunciar, em meio a protestos, a todos os seus postos e glórias, num passo profundo para alguém que antes tinha sido professor de filosofia numa das maiores universidades da Europa. Não quis converter-se totalmente ao cristianismo, convencido de que a sua cruz na Europa nazista era morrer judeu.

Num francês primoroso, valendo-se de imagens penetrantes e intuições que desafiavam os sistemas e as definições da filosofia técnica, Bergson ofereceu uma crítica contínua ao que nomeou “razão eleática” da modernidade, por causa da cidade natal dos antigos metafísicos gregos Parmênides e Zenão: o desejo de explicar tudo por meio de categorias intelectuais pré-formadas que não deixam espaço para as experiências humanas – a liberdade, a memória, o amor, o drama e a comédia – que resistem à razão fria e impessoal.

A sua última grande obra, As duas fontes da moral e da religião, publicada em 1932, propunha que toda sociedade, tal como toda alma, podia estar “fechada” ou “aberta” à experiência da transcendência pela qual os seres humanos são capazes de romper os ciclos e processos naturais. Essa abertura, concluía Bergson, só podia fundamentar-se, em última análise, num entendimento cristão da pessoa e da fraternidade universal. E foi para expressar tal fraternidade que ele escolheu morrer usando a estrela amarela.

Mais ou menos na mesma época, um tipo simples que vivia uma vida simples nos Alpes suíços chegou a uma conclusão similar à de Bergson, mas ainda mais radical, revestida de uma linguagem mais poética. Em 1934, uma obra memorável intitulada A fuga de Deus foi publicada por Max Picard, um judeu que mais tarde se converteria ao cristianismo.

Picard viu o Ocidente secular e moderno como um sistema de amnésia espiritual que se autoperpetua: histericamente ocupado sem realizar nada, cheio de comunicação mas falto de diálogo, cheio de brilho e sons altos mas ao mesmo tempo sem sentido e mudo. O amor, a amizade e a lealdade existem apenas como fragmentos no mundo em fuga de Deus: retalhos evanescentes de experiências que vêm e vão. Eis o porquê de as palavras, nos tempos modernos, se terem tornado meros sinais, sem conexão com a pessoa que as pronuncia: “sussurros e sinais substituem as palavras no mundo da fuga… Se dois navios desejam comunicar-se, pequenas bandeiras são içadas numa corda; assim também as palavras tremulam nas frases. Quando dois homens falam um com o outro usando sinais em vez de palavras, a distância entre eles é tão grande quanto a distância entre dois navios: há todo um oceano entre eles, o oceano da fuga”.

A desconstrução impessoal supõe a reconstrução pessoal. As palavras dispersas e fragmentadas devem ser reunidas em oração e enviadas a Deus, pois “apenas diante dEle que é eterno e completo em Si mesmo os mortos e fragmentados podem tornar-se um todo novamente”. Apenas num mundo constituído pela fé num Deus pessoal as relações entre as pessoas humanas desenvolvem consistência e integridade.

Um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, Picard publicou Hitler em nós mesmos, em que diagnosticava aquilo que Hannah Arendt viria a caracterizar como a “banalidade do mal”. Picard detém-se na figura do nazista cumpridor que, no contexto da sua ocupação profissional como atendente, seria capaz de atravessar a rua correndo para devolver uma moeda a alguém que a tivesse esquecido no balcão de sua loja, mas que seria capaz, noutras circunstâncias, de levar a cabo com a mesma facilidade uma ordem de homicídio em massa. E Picard vai mais longe: vê o nazismo como a expressão última e demoníaca da fragmentação humana, da redução da pessoa a uma entidade aleijada e fechada, apenas capaz de relacionar-se com os outros quando os manipula como objetos.

Enquanto Picard viveu e escreveu na sua montanha na Suíça, os cafés e salões de Paris eram o ponto nevrálgico da história intelectual do século XX, enriquecidos por montes de pensadores émigrés – principalmente russos na década de 1920 e judeus de toda a Europa na década de 1930. Um dos maiores dentre eles foi um judeu russo chamado Lev Shestov, cujos últimos escritos falavam de “cavaleiros da fé” como São Paulo e Martinho Lutero. Shestov está entre os mais ferrenhos críticos do racionalismo nas letras do século XX. Exilado da Rússia após a tomada do poder pelos bolcheviques, via a Primeira Guerra Mundial e as penúrias do país natal como uma lição acerca da loucura do orgulho humano, especialmente a pretensão intelectual de que a razão humana por si só pode organizar e controlar toda a realidade.

Shestov anunciava a necessidade, nas suas palavras, de uma “filosofia bíblica”, que renunciaria à busca filosófica pela explicação da razão necessária das coisas e, em vez disso, poria ênfase na liberdade humana que deriva da liberdade ilimitada de Deus. A filosofia começa não no maravilhamento, mas no desespero, na noite do silêncio e no deserto da solidão. Shestov tomou o Salmo 130 como ponto de partida: “Do fundo do abismo, clamo a vós, Senhor; Senhor, ouvi minha oração… Ponho a minha esperança no Senhor. Minha alma tem confiança em sua palavra”.

O último livro de Shestov chama-se Atenas e Jerusalém, em que o autor contrasta o templo da razão auto-suficiente com a cidade da justiça e mede forças com todos os filósofos, de Heráclito a Husserl. Voluntariamente cego para a possível síntese entre razão e revelação, Shestov falou em voz profética a um mundo em que a vida intelectual foi consistentemente desarraigada das suas fundações espirituais. O seu pesadelo de um mundo moldado pelo racionalismo foi descrito por seu amigo Nicolai Berdiaev como “um universo arredondado em que não há mais individualidade, risco ou criação nova”.

Para pensadores mais jovens como Walter Benjamin, Leo Strauss e Alexandre Kojève, Shestov foi a alternativa teísta mais sólida em meio às correntes atéias dominantes. Benjamin escreveu para Gerhard Scholem acerca do poder do fideísmo de Shestov. Strauss viria a escrever mais tarde um livro sutil em que inverteria o título da obra final de Shestov e Kojève tornar-se-ia um teórico e ativista daquilo que descreveria como “o estado universal e homogêneo”. É possível que a visão de Strauss sobre a história da filosofia política, bem como a sua visão de uma ordem tecno-burocrática universal no fim da História, tenham surgido em parte como uma reação à filosofia bíblica e personalista de Shestov.

Outra voz proeminente da Paris do entre-guerras foi Gabriel Marcel, que passou gradualmente do racionalismo neo-hegeliano à Igreja Católica e estabeleceu-se como um grande filósofo cristão. Em relativa obscuridade (ele não publicou nada sequer remotamente sistemático até a década de 1940), Marcel esboçou os grandes temas da filosofia teísta pós-moderna. A condição humana, pensava, deve ser entendida nos termos de uma participação que transcende a antítese entre sujeito e objeto que infestava a filosofia moderna. Cada existência humana participa de uma realidade marcada pela tensão entre sujeito e objeto: isolemos um deles e estaremos excluindo o outro. E então só restará uma abstração, que é um indivíduo solipsista ou um objeto impessoal.

A existência humana é essa tensão realmente vivida; podemos distinguir o sujeito do objeto, mas não podemos concebê-los isoladamente. Os seres humanos não têm outra natureza que não seja viver uma condição. A sua natureza e a sua liberdade são inextricáveis. Embora seja freqüentemente rotulado como o fundador do existencialismo, Marcel é melhor entendido como alguém que construiu a sua filosofia sobre uma compreensão cristã da pessoa como um “ser encarnado”, que não é nem tem um corpo, mas que é inconcebível fora da sua misteriosa relação com um corpo.

Como o grande filósofo judeu amigo de Shestov, Martin Buber, Marcel acreditava que a realidade pessoal recebe a sua expressão mais clara quando um ser dirige-se a outro usando o vocativo, a segunda pessoa. A primeira pessoa, o eu, pode ser apenas uma máscara para sensações e impulsos transitórios, ao passo que identificar as pessoas como ele,ela ou eles é começar a transformá-las em objetos. A condição de presença mútua, a segunda pessoa, o tu ou o vós, é o pressuposto de qualquer relação marcadamente pessoal: amor, amizade, fraternidade, cidadania e louvor. Deus é o Tu absoluto, que é uma presença pessoal, ainda quando escondida, e que nunca pode ser para nós um simples objeto, ou seja, um ídolo.

Todas as teorias que afirmam explicar a causalidade da ação humana acabam por ser uma abstração pessoal da razão de quem as pensa. Eis a mais pura verdade acerca dos diferentes tipos de relativismo e reducionismo, que ostentam uma espécie de “exceção garantida por contrato” que lhes confere um status epistemológico que é negado aos outros. “Mistério”, para Marcel, denota essas experiências que desafiam qualquer explicação baseada na razão instrumental ou causalidade natural. Nesse sentido, sobressaem as realidades da identidade pessoal e da ação humana, inclusive o pensamento.

Também o espanhol Miguel de Unamuno, que passou parte da década de 1920 exilado em Paris, escreveu uma obra memorável às vésperas da Primeira Guerra Mundial: Do sentimento trágico da vida. Nela, como Shestov, faz um apelo por uma filosofia que venha das profundezas do abismo. Na sua crítica à civilização secularista contemporânea, Unamuno comparou o típico intelectual moderno a um parasita intestinal que nega a existência da visão e da audição porque sobrevive sem ambos. Por séculos, os modernos desfrutaram das compensações da liberdade e da dignidade enquanto propunham teorias que as excluíam. Numa formulação particularmente elegante e perigosa ao mesmo tempo, Unamuno escreveu (jogando com a semelhança entre os verbos espanhóis creer e crear) que os homens criam Deus quando crêem num Deus pessoal, um Deus que por sua vez já os criou.

O outro grande pensador espanhol da época, José Ortega y Gasset, proclamou, à sua maneira mais leve e jocosa, a morte daquilo que chamava de “tradição moderna” – as tentações gêmeas do pensamento moderno: o relativismo e o racionalismo. Ortega viu que os sistemas racionalistas predominantes no pensamento moderno eram tirânicos, que mascaravam a ambição de subordinar a contingência e a espontaneidade da vida à lógica da teoria. Ortega y Gasset também identificou o  relativismo como “teoria suicida”, hipócrita e inconsistente em si mesma. A sensibilidade moderna é “desconfiança e desprezo por qualquer coisa espontânea e imediata; entusiasmo por todas as construções da razão”.

A fim de superar as teorias modernas intelectualmente falidas, Ortega propôs uma doutrina que chamou por vezes de “razão vital”. A verdade do relativismo é que cada pessoa é dona de um ponto de vista único; a verdade do racionalismo é que tais pontos de vista miram uma realidade suprapessoal. Embora use um vocabulário distinto, Ortega elaborou uma teoria da participação similar à de Marcel. No epílogo da Idade Moderna, o Ocidente precisa aprender a reconhecer as raízes da patologia da modernidade tardia, escrita em toda a fisionomia assustada do século XX.

Há uma série de razões pelas quais esses pensadores não são mais discutidos hoje. Apesar de alguns deles terem se conhecido, não formaram uma escola organizada de pensamento. Embora alguns tenham sido professores universitários, escreveram em sua maioria como intelectuais públicos, não como acadêmicos profissionais. A maior parte deles dominava com maestria a prosa em sua língua, o que suscitava suspeita entre os acadêmicos profissionais. Poucos eram ativistas políticos. Nenhum deles aderiu ao comunismo ou ao nazismo.

Além do mais, todos esses pensadores – novamente com a possível exceção de Ortega -acreditavam em Deus. O seu pensamento foi sendo formado nas décadas que culminaram com a Segunda Guerra e cristalizou-se logo após o seu fim. Os traços mais críticos do retrato que fizeram da modernidade e da pós-modernidade talvez tenham sido melhor capturados pelo psiquiatra vienense e sobrevivente de Auschwitz Viktor Frankl, que escreveu que a sua geração pode conhecer a existência humana como algo que abrangia tanto o ser que inventou as câmaras de gás como aquele que entrou naquelas câmaras de cabeça erguida, tendo nos lábios o Pai-nosso ou o Shemá Yisrael”.

Na tentativa de uma explicação, Frankl diagnosticou as patologias siamesas da “objetivação da existência” e da “subjetivação do logos”. A primeira descreve a redução do homem a um joguete das forças impessoais e que não é conhecido como um tu. A segunda descreve a redução do sentido à subjetividade humana. O racionalismo e o relativismo, como notou Ortega, são um duplo aspecto do pensamento impessoal a conspirar em favor do esfacelamento da identidade pessoal e da erosão da responsabilidade pessoal.

É neste contexto que podemos apreciar toda a força do alerta feito por Guardini, de que o homem moderno defronta o chamado de dominar o poder. Esses pensadores, de uma maneira ou de outra, contemplavam a existência humana como uma forma de participação. O trabalho deles reflete, em certo sentido, o que hoje chamaríamos de sensibilidade pós-moderna, mas que está fundamentada numa antropologia filosófica inconcebível fora de uma compreensão cristã da pessoa.

O pensamento impessoal empala a mente ou num dos dois chifres do dilema esboçado acima – no caso do pensador realmente rigoroso – ou em ambos simultaneamente, o que é mais provável.

O fim da modernidade não marcou uma guinada do racionalismo iluminista em direção à subjetividade pós-moderna. A própria modernidade pôs o homem face a face com tudo aquilo que estava em jogo na oposição entre pessoal e impessoal. O que foi desacreditado não foi a razão, mas a hybris dos grandes sistemas impessoais, seja o reducionismo naturalista do cientificismo moderno, seja o ilusionismo dialético que as ideologias modernas operam na mente.

A intuição central dessa renascença teísta – desse pós-modernismo primevo – é a irredutibilidade da pessoa. As patologias da vida moderna, desde a atrocidade da guerra total até a banalidade da burocracia, trouxeram à luz a demanda de uma existência pessoal. Esses escritores teístas viam a condição humana como um universo aberto constituído de individualidade, risco e novas criações. O fim da modernidade escancarou a realidade radical da liberdade e dignidade humanas entre as tentativas, práticas e teóricas, de aniquilá-las.

O aviso de Guardini de que não há um ser sem um mestre captura o caráter dual da Imago Dei que está no cerne do mistério da identidade pessoal. Como seres encarnados e arraigados na nossa própria natureza, somos responsáveis por honrar essa natureza em todas as nossas obras. A história do mundo moderno termina com uma nota que não é de cinismo nem de resignação, mas de esperança e responsabilidade.

Copyright © 2008 First Things (dezembro de 2008).

 Rein Staal é professor de Ciências Políticas no William Jewell College.

Tradução de Grace Guimarães Mosquera, bacharel em Lingüística pela FFLCH-USP.

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 3, Jun/2009. Disponível [online] no link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/a-historia-esquecida-da-pos-modernidade/

A “neutralidade” da laicidade

Política e Sociologia | 21/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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“Em recente documento destinado às igrejas protestantes que aceitam o divórcio como algo legítimo, o Papa Francisco enunciou algumas recomendações solicitando que tais posicionamentos fossem revistos. Defendendo a indissolubilidade do matrimônio, o líder máximo da Igreja Católica afirmou que, dada a autoridade moral que os pastores protestantes exercem sobre seus fiéis, seria oportuno abolir qualquer tipo de pregação favorável ao divórcio.”

Calma, caro leitor. Essa notícia não é verídica. Mas, se um dia ouvíssemos algo do tipo, certamente estranharíamos: pois, por que o Papa teria a ousadia de interferir tão abertamente em outras denominações religiosas? Afinal, uma coisa é discordar e expor os motivos claramente. Outra coisa é falar como quem tem autoridade legítima para influir na doutrina de outras religiões. Nesse sentido, se um documento desse tipo fosse publicado, na mesma hora, surgiriam clamores inflamados bradando pela liberdade de religião.

O fato é que, há alguns dias, o Comitê de Direitos da Criança da ONU publicou um relatório conclusivo sobre a Santa Sé. Os trechos mais noticiados foram aqueles relacionados a casos de pedofilia por parte de clérigos, em que se exigia firmeza na aplicação de penas convenientes ao crime em questão.

Porém, além desse tema explosivo – que gerou respostas dos representantes da Igreja e réplicas dos críticos –, o citado relatório do Comitê se lançou a fazer apontamentos bastante diretos, como recomendar que a Igreja supere “todas as barreiras e tabus em torno da sexualidade adolescente, que atrapalham o acesso à informação sexual e reprodutiva”, ou sugerir que se repense a postura em relação ao aborto, “identificando circunstâncias em que o acesso a este poderia ser permitido”. Assim sendo, continua o documento, a Igreja deveria garantir que uma “educação sexual, de saúde reprodutiva e de prevenção do HIV fosse parte do currículo obrigatório das escolas católicas”.

Por que, a princípio, parece razoável aceitar a legitimidade desse documento da ONU? Porque se trata de uma instituição laica: e, por isso, ela partiria de uma perspectiva “privilegiada”, da qual emitiria juízos sem viés ou preconceitos religiosos, apelando apenas a argumentos pragmáticos. E é aqui que está o grande equívoco no qual caímos quase sem perceber: equiparamos laicidade à neutralidade.

Pois, ao demandar que a Igreja permita o aborto em determinados casos, ou que modifique sua doutrina em temas relativos à educação sexual, a ONU não está se pronunciando a partir de um ponto de vista neutro: apesar de não fazer um discurso religioso, está tirando conclusões a partir de julgamentos morais específicos, que não tem nada de “imparciais”. No caso, são juízos influenciados pelas chamadas “teorias de gênero” que estão na moda, mas que, do ponto de vista argumentativo, são frágeis: em poucas palavras, elas priorizam a liberdade individual em relação à vida humana, e enxergam a sexualidade como algo meramente “físico” ou, no máximo, “afetivo”. Premissas bastante questionáveis.

Esse caso é apenas um exemplo entre tantos em que se faz necessário realizar o exercício de desmascarar a pretensa “neutralidade” advinda de determinados discursos provenientes de instituições laicas.

Com isso, não se está negando o direito de se pronunciar sobre os mais variados temas. A liberdade de expressão é algo profundamente valioso nas sociedades democráticas contemporâneas. Porém, não é razoável que a comunidade internacional, a imprensa e os cidadãos comuns acolham esses pronunciamentos de maneira ingênua, não atentando para o fato de que há opções morais específicas – ou seja, algo além do mero “pragmatismo neutro” – sendo defendidas, provenientes de grupos também específicos, que muitas vezes possuem opiniões pouco acertadas.

Portanto, se enxergarmos que laicidade não é sinônimo de neutralidade, estaremos em melhores condições para avaliar o debate público, identificando a existência de juízos morais que nem sempre estão explicitados abertamente. Isso favorece o embate argumentativo e o discurso racional, evitando posicionamentos simplistas que negam de antemão opiniões advindas de pessoas que professam alguma religião.

Guilherme Melo de Freitas é professor, mestre em sociologia pela USP e Gestor do Núcleo de Sociologia do IFE Campinas (gmelo.freitas@gmail.com).

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, 22 de Fevereiro de 2014, Página A2 – Opinião.

Ilustração: Reprodução de ilustração que acompanha este artigo publicado no jornal Correio Popular, 22 de Fevereiro de 2014, Página A2 – Opinião.

Ventos do leste: a participação de católicos e ortodoxos na política ucraniana (por Tarcísio Amorim)

Política e Sociologia | 09/04/2015 | | IFE RIO

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Em novembro de 2013, uma crise teve início na Ucrânia quando protestos contra a decisão do presidente Viktor Yanukovych de suspender os planos de um acordo comercial com a União Europeia suscitou uma escalda de acontecimentos que resultou na derrubada do governo. De acordo com o Yanukovych, uma associação com a UE não seria vantajosa visto que a dependência de recursos energéticos dos países do eixo oriental (Rússia, Belarus e Cazaquistão) não seria compensada pelos níveis de exportações para os países ocidentais. Apesar da insistência em reafirmar as bases econômicas da medida, tal evento deflagrou uma série de manifestações nas quais clamores evocando uma identidade europeia evidenciaram que um conflito cultural também estava em jogo.

Com a escalada da violência nos protestos o parlamento votou pela descontinuidade do governo, levando Yanukovych a deixar o país. Tal fato, porém, contribuiu para que uma nova crise se instaurasse em algumas províncias orientais onde a população de fala russa ainda predomina. Após a tomada da Crimeia pelas forças do Kremlin, Donetsk e Luhansk têm estado sobre intervenção do exército ucraniano desde Abril de 2014, quando grupo locais declararam independência à Kiev.

Em meio às disputas étnicas que persistem nos discursos e nas decisões acerca de políticas nacionais, ora enfatizando uma identidade ucraniana com um governo em moldes ocidentais ora uma visão histórica de uma cultura pan-eslávica em linha com o modelo Russo, outro fator tem se mostrado relevante na definição indenitária dos cidadãos ucranianos: a religião. Imagens de sacerdotes intercedendo junto aos protestos, bem como o uso de igrejas como hospitais e ponto de apoio, além de discursos e intervenções de lideranças religiosas desde o início da crise evidenciam a força social que Igrejas e comunidades religiosas tem ajudado a fomentar naquele país. Nesse artigo, procuro demonstrar como ortodoxos e católicos, as duas maiores confissões em número de adeptos no país, tendem a estabelecer padrões de identidade cultural que afetam as relações étnicas nessa república pós-soviética.

 

Raízes históricas do conflito

Em 1991 a Ucrânia tornou-se independente, criando suas próprias instituições políticas, moeda e sistema bancário. Mesmo assim, os longos anos do regime comunista parecem ter influenciado na estruturação de sua economia política já que, com as privatizações altamente restringidas e licenças para a condução de negócios ainda concentradas no corpo executivo, o país construía seu sistema político pautado no verticalismo soviético, criando um aparelho burocrático no qual antigas oligarquias acumulavam poder político e econômico.

Nos primórdios da republica ucraniana, Vyacheslav Chornovil candidatou-se a presidência visando introduzir reformas no sistema político em linha com o projeto de Lech Wałęsa na Polônia. O vendedor, porém, foi Leonid Kravchuk, um ex-membro do Conselho Legislativo da Ucrânia Soviética, que era controlado pelo Partido Comunista. Kravchuk procurou manter o centralismo político com uma constituição que provia fortes poderes ao braço executivo, enquanto estendia sua influência sobre o setor legislativo e judiciário aproveitando-se das brechas e inconsistências que a Carta Magna trazia.

Os poderes presidenciais tornaram-se ainda mais fortes quando, seguindo a vitória de Leonid Kuchma em 1994, uma nova constituição garantiu-lhe o poder de nomear todos os membros do Gabinete executivo, com exceção do primeiro-ministro, e os líderes regionais. Kuchma fora diretor de uma fábrica de misseis no regime soviético e favoreceu os laços com o Kremlin.

Com a consolidação das estruturas verticais do sistema político ucraniano, o país permaneceu por muito tempo sob o controle dos oligarcas que muitas vezes detinham assentos no parlamento e controlavam os partidos políticos. Em meio a escândalos de corrupção, assassinatos de motivação política, e manobras do executivo sobre os outros poderes um novo movimento surgia com força na década de 2000 demandando transparência e democratização das estruturas de poder. Nas eleições presidenciais de 2004 a vitória de Viktor Yanukovych, um candidato pro-Rússia do Partido das Regiões, sob suspeitas de fraude deu início a uma série de protestos liderados por Viktor Yushchenko e Yuliya Tymoshenko, dois líderes favoráveis à reforma política e à aproximação da Ucrânia com a União Europeia. Apelidada de Revolução Laranja, as manifestações contribuíram para que a Suprema Corte anulasse o primeiro resultado e promovesse uma nova disputa eleitoral. Dessa vez, o saldo dava a vitória a Viktor Yushchenko com 52% dos votos, contra 44% de Yanukovych. Pela primeira vez o nome Maidan era usado como símbolo revolucionário a partir de Kiev.

Ainda assim, com as eleições legislativas de 2006, divergências no Parlamento entre o Partido das Regiões e o Bloco de Yuliya Tymoshenko (ByuT) levaram a um impasse sobre a possibilidade de obtenção da maioria prevista para que as reformas constitucionais fossem implementadas. Viktor Yanukovych subira ao cargo de primeiro-ministro e os círculos de empresários, liderados por Petro Poroshenko, correligionário de Yushchenko no partido Nossa Ucrânia (e atual presidente do país), demandavam uma aliança com o Partido das Regiões – o que era visto como uma traição dos ideais da revolução pela extrema-direita[i]. Somado a isso, desentendimentos entre Yuliya Tymoshenko e Viktor Yushchenko ajudaram a dividir ainda mais o Parlamento, acentuando o clima de instabilidade política. Como a constituição ucraniana prevê a possibilidade de novas eleições no caso de um fracasso na formação das coalizões parlamentares, as partes envolvidas concordaram em convocar um novo sufrágio a se realizar em setembro de 2007.

Dessa vez, Yuliya conseguiu fazer Yushchenko concordar com uma “Coalizão Laranja”, dando aos líderes da revolução uma ligeira maioria no Parlamento, com a união do ByuT com o Nossa Ucrânia, reforçada ainda pelo Bloco Lytvyn, de orientação centrista. Tymoshenko, por sua vez, acendia ao cargo de primeiro-ministro, confirmando o governo revolucionário. A aliança ainda era frágil pois ao deixar o Partido das Regiões na oposição os “Laranjas” não conseguiriam obter os 301 votos necessários para emendar a constituição. Em todo caso, ela representou uma vitória temporária da Revolução ao consolidar o domínio do Parlamento combinado com as duas principais posições do executivo.

Tal cenário não se estabeleceu por muito tempo, pois o governo de Yushchenko foi extremamente marcado por intrigas e escândalos de corrupção que acabaram minaram sua base aliada. Em 2010, Viktor Yanukovych derrotou Yuliya Tymoshenko nas eleições presidenciais, restabelecendo os círculos de poder em torno das estruturas oligárquicas estabelecidas e, mais tarde, suspendendo os planos em prol de um tratado comercial com a UE.

Como se percebe, a história política ucraniana tem sido caracterizada por instabilidades na base de poder, propiciada por um sistema constitucional que facilita as ligações entre elites empresárias e o poder público, além das clivagens entre os cidadãos do país, que até recentemente tinham atitudes ambivalentes em relação ao modelo político a ser adotado.

 

Religião e política na Ucrânia

Os ucranianos, assim como os Bielorrussos e por vezes os poloneses, eram chamados de Rutênios até o princípio do século XX. Herdado do mesmo termo que costumava designar as origens comuns dos povos eslavos (“Rus”), este nome fora usado em contraposição a Rossiya, especificamente aplicado aos Russos. Rutênia Vermelha era o antigo nome atribuído à Ucrânia Ocidental, enquanto Rutênia Branca, ou Bielo-Russia, deu origem a Belarus. Após a capitulação dos Mongóis, a Ucrânia ficou sob o domínio da Polônia e da Lituânia e isto contribuiu para que eles desenvolvessem uma cultura própria, marcada por diferenças linguísticas e sensibilidades diversas. De todo modo, compartilhando os mesmos mitos de origem e percebendo-se como herdeiros da mesma linhagem eslava, as fronteiras culturais entre a Ucrânia e a Rússia por muito tempo permaneceram fluidas, enquanto Kiev continuava politicamente atrelado às nações vizinhas até o final da era soviética.

Anne Applebaum sublinha que a religião poderia particularmente ter impactado no fortalecimento das fronteiras entre os dois povos. Como ela reconhece, os Ucranianos do ocidente praticavam uma religião distinta, caracterizada por uma espiritualidade bem especifica que se baseava em ritos orientais mas ainda mantinha laços com Roma[ii]. A Igreja Católica Grega surgiu pela União de Brest em 1596, quando a Ucrânia ainda estava sob o governo polonês, e tais laços dos católicos orientais com o Ocidente devem ser levados em conta na análise das relações étnicas entre ucranianos e russos.

No presente, os ortodoxos do Patriarcado de Kiev constituem cerca de 50,4% da população da Ucrânia, seguido daqueles fiéis ao Patriarcado de Moscou, com 26,1%. Os católicos gregos vêm em seguida com 8%, enquanto outros ortodoxos, católicos latinos, protestantes e judeus compõem 7.2%, 2.2%, 2.2% e 0.6%, respectivamente[iii].

Embora fiéis de outras religiões têm tido uma posição ativa nos recentes eventos que vêm definindo o cenário político na Ucrânia, ortodoxos e católicos somam mais de 90% da população do país e suas tradições históricas marcam a herança nacional de modo particular.

O Patriarcado de Kiev foi formado após um cisma com o Patriarcado de Moscou, seguindo a queda da União Soviética e a independência da Ucrânia. Reivindicando mais autonomia para a Igreja de Kiev, o Patriarca Filaret Denysenko, até então responsável pelo Patriarcado Russo na Ucrânia, afastou-se de seus pares e buscou implantar uma Igreja em linhas nacionais com o apoio do presidente Leonid Kravchuk, acima mencionado. O Patriarcado de Moscou não reconheceu tal separação e a Igreja Ortodoxa Ucraniana é até hoje considerada um órgão autocéfalo e ilegítimo de acordo com o direito canônico da Comunhão Ortodoxa.

Por sua vez, a presença dos católicos gregos, especialmente na Ucrânia ocidental, tem sido de maior importância para o entendimento de padrões sociais de comportamento político no país. Durante o período comunista, a Igreja Greco-Católica foi proibida nos territórios da URSS, enquanto seus membros eram perseguidos pelos líderes soviéticos. Após a Guerra Fria, a Igreja católica na Ucrânia experenciou um reavivamento religioso, que vai bem além do aspecto meramente espiritual. Agindo como um centro de disseminação intelectual em associação com instituições europeias nos arredores de Lviv, seu clero teve uma especial participação nos protestos que marcaram a Revolução Laranja, bem como da recente comoção chamada de “Revolução Euromaidan”. Como pontuou o Arcebispo Sviatoslav Shevchuk, líder da Igreja Greco-Católica ucraniana, seus proponentes não eram “nacionalistas radicais” mas sim defensores de uma Ucrânia “livre, democrática e Europeia”[iv].

É importante sublinhar que os conflitos entre a Igreja Ortodoxa Ucraniana e o Patriarcado de Moscou tem sido um fator decisivo na aliança da primeira com a Igreja Greco-Católica no que diz respeito à promoção dos valores nacionais contra a influência do Kremlin. Com efeito, o clero de Kiev tem rejeitado o conceito de “Russkiy Mir” (Mundo Russo), avançado pela Igreja de Moscou como uma visão teológica de um universalismo eclesiástico centrado no mito de uma civilização eslava sob a liderança da Rússia, da qual Ucrânia e Belarus seriam parte. Contra essa ideia, a Igreja de Kiev vem favorecendo uma concepção de cultura encarnada, na qual a imersão nas línguas e costumes locais são elementos essenciais do desenvolvimento da santidade. Como expressa o teólogo ortodoxo Dr. J. Buciora: embora a realidade contextual dos santos são sempre apresentadas em um prisma de transfiguração, esta “pressupõe sofrimentos, dores, lutas, e imagens de uma situação particular”[v]. É neste sentido que a vida dos santos Ucranianos torna-se inspiração para os féis e veículo de transformação.

De modo semelhante, a identificação dos greco-católicos com o legado da Igreja de Kiev propicia uma teologia enraizada nas tradições ucranianas e na experiência do passado. De acordo com o Bispo Borys Gudziak, antigo reitor da Universidade Católica de Lviv (a qual os ucranianos costumam referir-se como a única Universidade Católica do antigo mundo soviético), o objetivo da instituição é construir uma “nova síntese social, intelectual e teológica” do legado dos mártires ucranianos – o que John L. Allen classificou como uma teologia “nascida das catacumbas”[vi].

Embora, como veremos, os ortodoxos ficaram divididos com relação a um projeto político social nos primeiros anos da República, as tendências autônomas do Patriarcado de Kiev, especialmente na atual conjuntura política nacional, tem contribuído para unir Católicos e Ortodoxos na luta pela democracia. Como afirmou o Reverendo Cyril Hovorum, antigo responsável pelo Departamento de Relações Externas na Igreja Ortodoxa Ucraniana:

“Maidan, além de um importante evento civil, parece ter sido um importante evento religioso… Havia orações senso executadas todos dias de manhã e de noite. Foi um fenômeno religioso além de ter sido um fenômeno político e social, e também foi um evento ecumênico porque a revolução Maidan realmente uniu muitas Igrejas, muitos líderes que antes nunca tinham se comunicado uns com os outros”[vii].

 

O voto católico e ortodoxo nas eleições parlamentares de 2007

Dito isto, é valido analisar como Católicos e Ortodoxos tem se comportado politicamente com relação às disputas entre as coalisões pró-europeias e pro-russas. Como as informações sobre o atual cenário sócio-político ainda são escassas no país, tomo como ponto de referência os dados sobre votos para a coalizão laranja (liderada por Yuliya Tymoshenko e Viktor Yushchenko) e azul (liderada por Viktor Yanukovych pelo Partido das Regiões). Minha fonte é a pesquisa publicada pela Associação de Dados Arquivísticos de Religião, sob título de “International Social Survey Programme 2008: Religion III”[viii].

Tendo em conta os dados apresentados, eu combinei a variável relacionada à confissão religiosa e produzi dummies, isto é, novas variáveis na qual o valor 0 corresponde a um não-seguidor e 1 representa um seguidor. O mesmo foi feito com relação aos votos para a coalizão laranja e azul, com 0 para “não votou” e 1 para “votou”[ix]. A partir dos resultados obtidos pelos cálculos de software, eu executei uma regressão logística[x] para calcular a probabilidade estatística de um voto católico ou ortodoxo para as duas coalizões, que eu chamei pró-europeia (Pro-EUR) e pro-russa (Pro-RUS).

Como se observa, enquanto os votos de ortodoxos dão resultados próximos a 50% para cada coalizão, sem atingir o requisito mínimo de 95% de significância estatística[xi], os católicos favorecem massivamente os partidos associados à coalizão laranja, embora figurem em menor número na pesquisa (137 para 1270).

 

Regressão: Católico (x = 1) – Voto EUR (y = 1)

=============================================

Católico              2.717***

(0.435)

Constante          -0.449***

(0.071)

———————————————

Observações               898

Log Prob                    -577.532

Akaike Inf. Crit.          1,159.063

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.3896937

P[y=1|x=1] = 0.9062514[xii]

 

Por essa amostra, percebe-se a probabilidade de um voto pro-EUR sobe de aproximadamente 39% para 90% para o caso de o indivíduo ser católico. Este resultado é estatisticamente significante ao nível de 99% (p < 0.01).

Para ortodoxos, temos:

 

Regressão: Ortodoxo (x = 1) – Voto EUR (y = 1)

=============================================

Ortodoxo           0.08487

(0.140)

Constante         -0.35004***

(0.112)

———————————————

Observações               898

Log Prob                    -577.532

Akaike Inf. Crit.          1,159.063

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.41337

P[y=1|x=1] = 0.43409[xiii]

 

Como se percebe, a probabilidade de um voto pro-EUR para ortodoxos é de 43%, e sobe apenas 2 pontos com relação a um voto de um não ortodoxo. Como se tratam de dummies e não há outras variáveis, o resultado para votos Pro-RUS é o inverso: aproximadamente 58% para não ortodoxos e 56% para ortodoxos.  De todo modo, como não há indicador de significância para a variável ortodoxo, isso quer dizer que a análise não atingiu o mínimo de 95% requerido, o que implica que a pesquisa não encontrou um padrão significativo no voto ortodoxo, impossibilitando uma apreciação acurada da margem de erro.

De todo modo, como religião é uma categoria que se sobrepõe a outros elementos a influenciar no resultado, pode-se adicionar variáveis de controle[xiv], visando um cálculo mais preciso do impacto da religião para o voto por meio da exclusão de outras variáveis. Uma delas é a região, pois se sabe que os ucranianos na parte ocidental do país tendem a votar em partidos ligados à UE, enquanto no Oriente os laços com o vizinho oriental são mais fortes, dada a concentração de cidadãos de fala russa naquelas regiões. Outra variável a ser controlada, é a visão política (esquerda ou direita), pois ao isolarmos seu efeito, pode-se verificar se a preferência partidária teve um papel fundamental no resultado ou se a religião é mesmo o principal fator a influenciar o voto. Por último, a renda pode ter um papel decisivo, pois sabe-se que o sistema oligárquico produzido pelas estruturas políticas ucranianas favorece as elites ligadas ao governo Russo. Como para todas as outras categorias, eu converti esse elemento em uma variável dummy, na qual cidadãos ganhando mais de 3200 UAH figuram como 1, e os outros como 0.

Para votos Pro-EUR, eu controlei para regiões de fala ucraniana (ocidente) e visão política de direita, enquanto para votos Pro-Russia eu controlei para regiões de fala Russa (oriente) e posicionamento de esquerda, visto que a maioria dos partidos da coalizão azul endossam uma identidade comunista e soviética. Com esse procedimento, obtemos o seguinte quadro:

 

Regressão: Católico (X=1) – Voto EUR (Y=1) + controles

=============================================

Católico              1.556***

(0.511)

Ocidente             2.376***

(0.182)

Direita                15.065

(538.018)

Renda 1              -0.507

(0.754)

Constante          -1.477***

(0.126)

———————————————

Observações               756

Log Prob                    -377.739

Akaike Inf. Crit.           765.477

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.4107

P[y=1|x=1] = 0.7675[xv]

 

Como vemos, mesmo depois de controlar para região, visão política e renda, a probabilidade de um voto católico para a aliança laranja é de aproximadamente 77%, mais de 35% de diferença para não católicos (41,07%), e o resultado ainda é significativo a 99%.

Para ortodoxos e voto pro-Rússia, temos:

 

Regressão: Ortodoxo (X=1) – Voto pro-RUS (Y=1)  + controles

=============================================

Ortodoxo            0.269

(0.197)

Oriente               2.383***

(0.189)

Esquerda           17.171

(443.815)

Renda 1             0.415

(0.759)

Constante         -18.181

(443.816)

———————————————

Observações               756

Log Prob                    -358.342

Akaike Inf. Crit.          726.684

=============================================

Note:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.1521

P[y=1|x=1] = 0.190149[xvi]

 

A probabilidade de um voto ortodoxo para um partido pro-Rússia sobe de aproximadamente 15% para 19% em relação a não ortodoxos, quando executamos o teste com as variáveis de controle. Há um decréscimo de aproximadamente 25% com relação à probabilidade de um voto Pro-RUS para ortodoxos quando não se controla para as outras variáveis (de 56,59% para 19%). Para católicos, o decréscimo é de aproximadamente 14% (de 90,62% para 76,75%), o que indica que a religião tem maior impacto no voto para católicos que para ortodoxos. Isso se percebe também pelo fato de que a região e outras variáveis têm maior peso na escolha de um partido pro-RUS, o que pode ser verificado pelo nível de significância de Oriente (99%) nessa regressão, sendo os outros elementos estatisticamente insignificantes.

Ainda assim, é possível perceber que a renda 1 (acima de 3200 UAH) influi positivamente para o voto pro-RUS e negativamente para o voto pro-EUR. O posicionamento político, por sua vez, é praticamente insignificante, dado o alto valor do erro padrão nas duas amostras (538.018 e 443.815), o que impossibilita uma generalização precisa a partir das respostas à pesquisa.

Considerações finais

A partir dessa análise, pode-se concluir que os católicos tenderam a votar massivamente para os partidos da aliança laranja nas eleições de 2007. Para os ortodoxos, porém, o teste mostra resultados ambivalentes, o que pode estar relacionado à própria indefinição cultural na qual a Ucrânia se insere, estando na fronteira entre a Europa e o mundo Russo. As variações na escolha do voto para os cidadãos ucranianos converge com a política de neutralidade endossada pelo clero da Igreja de Kiev nos anos que antecederam a revolução Maidan. Apoiada pela classe política ucraniana na época em que ainda era próxima aos aliados do Oriente, ela permaneceu distante da Europa, ainda que separada da Rússia. Os greco-católicos, pelo contrário, tendo construído sua identidade sobre os laços culturais com a Polônia e a Lituânia, o que também lhe valeu a perseguição sofrida durante o período soviético, vem sendo bem mais assertivos em seu posicionamento político. Como reconheceu o Reverendo Cyril Hovorun: “os greco-católicos, ou Católicos de rito Oriental leais a Roma, foram os que primeira e mais ativamente apoiaram os protestos”[xvii].

Em termos gerais, isso significa que os católicos na Ucrânia, ainda que constituindo uma minoria, têm demostrado um claro comprometimento com uma concepção democrata e cristã de governo, assinalando o impacto dos valores articulados pelas visões religiosas na percepção identitária e na escolha individual –  que adquire claramente um caráter comunitário. Por outro lado, os ortodoxos mostraram mais moderação em suas visões políticas, refletindo as condições culturais da sociedade ucraniana como um ponto de equilíbrio entre o Oriente e o Ocidente.

Apesar disso, a recente tomada da Crimeia e a atual crise no leste da Ucrânia são fatores que tendem a mudar esse cenário, já que a escalada da violência tem levado cada vez mais o clero ortodoxo e membros de outras religiões a apoiarem o movimento de democratização em termos patrióticos. Ademais, a interferência do Patriarcado de Moscou, com suas declarações contra o novo governo ucraniano e seus aliados, incluindo os Greco-Católicos e os Ortodoxos de Kiev, mais do que nunca tem sido interpretado no país como uma tentativa de deslegitimar não somente a autonomia e especificidade da Igreja de Kiev, mas também a soberania política do país, com uma visão pan-eslávica fundada no universalismo russo. Como Andrew Sorokowski sublinha:

Para Moscou, a própria ideia de uma Ucrânia é uma traição da unidade eslava oriental, enquanto a união que resultou na Igreja Greco-Católica é uma traição da solidariedade ortodoxa. A premissa de fundo é que Moscou é o árbitro e garantidor de ambas – como a capital tanto de uma única Igreja Russa como de um único “Mundo Russo”.

A Ucrânia, e sua Igreja Greco-Católica, desafia essa concepção. A Ucrânia como nação pressupõe o pluralismo étnico, cultural e nacional, em um mundo onde a unidade é fortalecida, não ameaçada, pela diversidade[xviii].                

Em meio aos protestos do Patriarca de Kiev[xix] contra o apoio do clero russo aos rebeldes no leste, e dada a queda substancial no suporte à liderança do Kremlin após sua intervenção militar no país[xx], é possível prever que o particularismo eclesiástico da Ucrânia deverá se desenvolver de modo a fortalecer seu ideário nacional, unindo católicos e ortodoxos e fazendo jus aos tradicionais laços entre religião e sociedade nesse país. Para as nações ocidentais, a visão dessa aliança pode servir de inspiração para lembrar aos europeus que o vigor da crença pode dar um novo alento à democracia, a fim de que não se perca na frieza de um legalismo burocrático desvinculado de suas raízes.

 

[i] Pawel Wolowski. Ukrainian politics after the Orange Revolution – how far from democratic consolidation? In: Sabine Fischer (ed.) Ukraine: quo vadis?. Chaillot Paper, n. 108. Feb, 2008. Disponível em: <http://www.iss.europa.eu/uploads/media/cp108.pdf>.

[ii] Anne Applebaum. Between East and West. Pan Macmillan Australia Pty,  1995.

[iii] Cf. http://www.scu.edu/ethics-center/world-affairs/politics/By_Countries_Regions/Ukraine.cfm

[iv] John L. Allen Jr. A Church with verve is at risk in Ukraine. Crux, 13 Sep, 2014. Disponível em: <http://www.cruxnow.com/church/2014/09/13/a-church-with-verve-is-at-risk-in-ukraine/>.

[v] Fr. Dr. J. Buciora. The Moscow Patriarchate’s Utopian Vision Of Russian Civilization. Risu, 2011. Disponível em:http://risu.org.ua/en/index/studios/studies_of_religions/41614/.

[vi] John L. Allen Jr. For the future of new evangelization, look to Ukraine. NCR online, 22 Oct. 2012. Disponível em:  <http://ncronline.org/blogs/ncr-today/future-new-evangelization-look-ukraine>.

[vii] Sophia Kishkovsky. Ukrainian crisis may split Russian Orthodox church. Religion News Service, 2014. Disponível em:  <http://www.religionnews.com/2014/03/14/ukrainian-crisis-may-split-russian-orthodox-church/>

[viii] International Social Survey Programme 2008: Religion III. Association of Religion Data Archives. Dados disponíveis em: <http://www.thearda.com/Archive/Files/Descriptions/ISSP08.asp>. Todos os dados quantitativos presentes neste artigo resultam da manipulação das variáveis e da tabulação feita pelo autor, a partir do banco de dados original, por meio do uso do Software “R”.

[ix] Eu classifiquei os votos em Pro-EUR (Europa) e Pro-RUS (Russia), a partir das respostas fornecidas pelos entrevistados acerca de seu voto nas eleições parlamentares de 2007, tendo em conta os partidos mencionados na pesquisa, a saber: Pro-EUR [Bloco de Yuliya Tymoshenko (ByuT)/União Toda Ucrânia Terra Pátria, Nossa Ucrânia/Defesa Popular/Movimento dos Povos da Ucrânia, Bloco Lytvyn/Partido Popular, União Toda Ucrânia pela Liberdade]; Pro-Rússia [Partido das Regiões, Partido Comunista da Ucrânia, Partido Socialista da Ucrânia, Partido Socialista Progressista da Ucrânia].

[x] Regressões são utilizadas em análises estatísticas quando se quer identificar uma função que possibilite ao pesquisador encontrar o resultado de uma variável dependente (Y), dado o valor/posição da variável independente (X) em um gráfico. Uma linha de regressão pode ser estabelecida no mesmo gráfico a partir da média dos resultados em Y dado os valores de X. Geralmente essa função é descrita como Y = β0 + β1X, em que β0 é o ponto onde Y intercepta X (constante) e β1 é a proporção na qual Y varia em função de X. Quando a variável dependente (Y) tem um valor binário (com os resultados variando somente entre 0 e 1), utilizamos a regressão logística (log), pois como não existem valores intermediários, a linha de regressão só pode representar a probabilidade de um resultado 0 e 1. A fórmula para este tipo de caso é P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*)), em que Y* é o valor de Y em uma regressão comum (Y = β0 + β1X).

[xi] Em análises estatísticas, o valor p determina o grau de significância para a amostra, a partir de um cálculo que indica se os padrões encontrados são realmente representativos da população em geral ou se os resultados são devido ao acaso. Em ciências sociais, 95% (p < 0.05) é o valor comumente aceito para se determinar a significância de uma análise. Em termos gerais, ele indica que caso a pesquisa fosse repetida infinitas vezes, em 95% dos casos o mesmo resultado seria encontrado.

[xii]   y* = -0.4486 + 2.7173X

y* [y=1|x=0] =  -0.4486

y* [y=1|x=1] = 2.2687

 

P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (4486*))

P[y=1|x=0] = 0.3896937

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-2.2687*))

P[y=1|x=1] = 0.9062514

 

[xiii]   y* =  -0.35004 + 0.08487X

y* [y=1|x=0] =  -0.35004

y* [y=1|x=1] = -0.26517

 

P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (0.35004))

P[y=1|x=0] = 0.41337

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (0.26517))

P[y=1|x=1] = 0.43409

 

[xiv] Variáveis de controle são utilizadas em regressões quando outros elementos, que não a principal variável independente, podem impactar no resultado da variável dependente, dificultando uma análise precisa da influência de cada um desses elementos, pois aparecem muitas vezes sobrepostos à principal variável independente. Por exemplo, ao se analisar o impacto da aquisição de um grau universitário para o valor do salário, o pesquisador pode ter que controlar para outras variáveis como “pro-ativismo”, pois esse elemento pode influir tanto na aquisição do grau quanto no desempenho laboral, que por sua vez impacta no salário. A fórmula para regressões com variáveis de controle é: Y =  β0 + β1X + β2A + β3B + … … BnZ. Em regressão logística: Y =  β0 + β1X + β2(meanA) + β3(meanB) + … … Bn(meanZn), em que mean é o termo usado para “média”, ou seja, o valor médio de uma variável em uma dada amostra (no caso de dummies, algo entre 0 e 1).

[xv]   y* = -1.4767 + 1.5557X + 2.3757*0.4621 + 15.0655*0.02079002 – 0.5068*0,5825

y* = -0.360888 + 1.5557X

 

y* [y=1|x=0] =  -0.360888

y* [y=1|x=1] = 1.1948

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (0.360888*))

P[y=1|x=0] = 0.4107

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-1.1948*))

P[y=1|x=1] = 0.7675

 

[xvi]  y* = -18.1808 + 0.2690X + 2.3832*0.5378193 + 17.1705*0.8700624 + 0.4148*0,5825

y* = -1.718042 + 0.2690X

 

y* [y=1|x=0] =  -1.718042

y* [y=1|x=1] = -1.449042

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (1.718042*))

P[y=1|x=0] = 0.1521

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (1.449042*))

P[y=1|x=1] = 0.190149

 

[xvii] Sophia Kishkovsky. Ukrainian crisis may split Russian Orthodox church. Religion News Service, 2014. Disponível em:  <http://www.religionnews.com/2014/03/14/ukrainian-crisis-may-split-russian-orthodox-church/>.

[xviii] Sorokowski,  Andrew. Russia and the Uniates. Risu, 2014. Disponível em: <http://risu.org.ua/en/index/expert_thought/authors_columns/asorokowski_column/57958/>.

[xix] Em junho de 2014, o Patriarca Filaret enviou uma carta ao Patrirca Kirill em Moscou, em nome da Igreja Ortodoxa Ucraniana, na qual urgia o mesmo a conversar com Vladimir Putin pedindo a este para interromper a intervenção militar em terras ucranianas. Filaret criticou veementemente o Patriarca de Moscou por não reconhecer a soberania da Ucrânia e apoiar a política russa em nome da concepção de Mundo Russo (Russky Mir). Ver Filaret. Letter to Patriarch Kirill of Moscow. Risu, 2014. Disponível em: <http://risu.org.ua/en/index/all_news/community/religion_and_policy/56778/>.

[xx] Dados da organização Gallup mostram uma queda de cerca de 90% no apoio à uma concepção russa de governo para antes e depois da crise, com um maior impacto nas regiões do leste da Ucrânia. Ver Julie Ray and Neli Esipova,Ukrainian Approval of Russia’s Leadership Dives Almost 90%. Gallup 2014. Disponível em: <http://www.gallup.com/poll/180110/ukrainian-approval-russia-leadership-dives-almost.aspx>.

 

Tarcísio Amorim é Doutorando em Ciência Política pela University College Dublin e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Texto publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta em 01/04/2015.  Disponível no link: http://www.dicta.com.br/ventos-do-leste-a-participacao-de-catolicos-e-ortodoxos-na-politica-ucraniana/

Ateus, sob a proteção de Deus

Opinião Pública | 01/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Vejo nos periódicos que uma associação composta por ateus e agnósticos propôs uma ação civil pública para impedir que um caminhão do corpo de bombeiros fosse utilizado para conduzir uma imagem mariana durante uma procissão em prol da chuva, por ser um ato religioso discriminatório, fundando sua pretensão nos argumentos oitocentistas de Feuerbach. Leio o teor da inicial da ação, que mais lembra um panfleto jurídico anticlerical, e observo o mais do mesmo: confundir estado laico com estado ateu. Secularização com secularismo.

A dita associação manuseia um argumentário tipicamente jacobino: a religião não pode entrar na esfera pública e é preciso salvaguardar o ambiente secularizado da amada pátria brasileira. Nenhuma democracia sobrevive se ficar chocando o ovo da serpente jacobina, porque o atual liberalismo deixou de ser somente político e tornou-se moral, ao ponto de nossa democracia fomentar uma bela polifonia de valores, cujos pressupostos, por outro lado, a mesma democracia não é capaz de sustentar sozinha. Uma verdadeira e preocupante contradição.

Interpretar uma procissão religiosa como uma forma de ato discriminatório e não como uma genuína manifestação cultural do povo brasileiro não é somente uma desonestidade intelectual, mas também uma violência moral que envergonha uma democracia liberal como a nossa. Exatamente como seria uma vergonha se um credo religioso resolvesse impedir uma procissão da “deusa da razão”, entronizada no mesmo caminhão dos bombeiros, e promovida por ateus e agnósticos. Acreditar na tal procissão da chuva como um ato sacro de cunho discriminatório é não entender bem o que significa o fenômeno da secularização.

A secularização, quando propõe o banimento radical de qualquer manifestação religiosa em público acaba por descambar em sua versão reducionista, o secularismo. Vale a pena lembrar os autores clássicos sobre a matéria, como, por exemplo, Durkheim, para quem a expressão pública de uma religião é parte da liberdade religiosa que uma democracia liberal deve proteger e assegurar os mecanismos concretos para seu exercício pelo cidadão.

A separação entre politica e religião não significa o apagamento da religião. Significa, sobretudo, que o poder político rege-se por princípios próprios e autônomos e não estritamente religiosos. Em outras palavras, não há mais espaço para as figuras historicamente distorcidas do cesaropapismo, regalismo e teocracia.

Convém também lembrar que somos laicos graças ao cristianismo: o monismo político-religioso do mundo pagão, simbolizado pela unificação dos dois poderes – o político e o religioso – na pessoa do soberano de plantão, foi cindido – uma ironia pronta – pelo famoso enunciado evangélico que determina dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Nada mais intelectualmente incômodo para a réplica do argumentário racional de um ateu militante.

“Dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César” não é bem o que os ateus e agnósticos da dita associação – além de seus irmãos jacobinos espalhados pela maioria dos partidos do espectro político brasileiro –imaginam: colocar César em todas as legítimas ou tradicionais manifestações religiosas do povo brasileiro, reflexos de nossa cultura, e até mesmo na consciência de cada um.

Mal sabe a dita associação que, ao propor a citada ação civil pública, agiu “sob a proteção de Deus”, porque esse direito está assegurado pela Constituição Federal (artigo 129, inciso III, §1º), que foi promulgada, nos dizeres de seu preâmbulo, “sob a proteção de Deus”. Outra ironia pronta. E, mesmo “sob a proteção de Deus”, ao se apresentar publicamente como a única voz de uma suposta e moderna racionalidade esclarecida, a associação dos não-crentes, na verdade, pretende impor um ideário que mais lembra o clamor de um ultrapassado racionalismo iluminista.

Em sua defesa judicial da secularização e do estado laico, confundido com secularismo e estado ateu, o que a dita associação e seus parentes intelectuais da cartilha jacobina fazem, no fundo, é elevar um princípio ideológico a uma nova forma de religião e, assim, ao lado – mais outra ironia pronta – dos fundamentalistas religiosos, passam a compor o conjunto dos piores inimigos da secularização e do estado laico. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal “Correio Popular”, 01.04.2015, Página A-2, Opinião.