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A decadência da Filosofia Moral (por Gustavo França)

Filosofia | 13/10/2015 | | IFE RIO

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Quando se fala em pensamento moral em nossos dias, sem dúvida, a primeira referência que nos vem à mente é o famigerado debate entre liberais e comunitaristas. Tanto um lado quanto o outro comportam uma gama variadíssima de autores com ideias bem díspares, mas dotadas de uma linha comum. Com honrosas exceções (como Alasdair MacIntyre (1929-) e Charles Taylor (1931-)), quando esses filósofos se referem a Ética ou a justiça, na verdade, não fazem mais do que reduzi-las a temas políticos. Arranjos institucionais do Estado, políticas de distribuição de renda, legitimação da interferência do poder público nas esferas individuais, esses temas e outros do mesmo naipe são a associação imediata quando alguém anuncia um debate moral. Não faltam autores que batizem de Ética dissertações sobre a mais equânime estrutura tributária de um país.

É extremamente preocupante o fato de acharmos que esse tipo de rasas considerações políticas (de que “Uma teoria da justiça”, de John Rawls (1921-2002), se tornou obra arquetípica) é verdadeira Filosofia Moral. Para entender o que eu digo, basta comparar essas obras contemporâneas com a “Ética a Nicômaco”, de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C), com a segunda parte da “Suma Teológica”, de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) (o mais profundo e completo tratado de Ética já escrito), ou com a “Fundamentação da metafísica dos costumes” e a “Metafísica dos costumes”, de Immanuel Kant (1724-1804), livros clássicos e pilares fundantes das normas eternas da conduta humana.

A causa do monumental abismo entre uns e outros é que esses últimos, de fato, tratam do fenômeno moral: seus fundamentos metafísicos, a constituição da pessoa humana e o valor das ações individuais, assuntos esquecidos na pseudoética dos nossos tempos. A Ética não pode lidar com problemas concretos de Política sem uma compreensão abrangente da vida e da ação humanas e de suas leis universais. Os próprios pressupostos que envolvem a atuação de um poder político, a fundamentação do Estado e de seu corpo jurídico só podem advir de uma investigação profunda acerca da sociabilidade humana e dos princípios transcendentais da organização da vida em comunidade.

Uma moral que não sabe responder sobre o dever de uma pessoa de socorrer um irmão necessitado mediante a esmola e o mandamento da solidariedade não tem condições de discorrer a sério sobre estrutura tributária e distribuição de renda. Ter a moral abdicado de prescrever a conduta individual, fincando bases na Metafísica e na Antropologia, e saltado diretamente para discutir contingências políticas de ocasião (agora vistas como flutuando no ar, já que desprovidas de seus princípios universais) é o que gera a predominância de chavões que brincam inadvertidamente com termos filosóficos, arrancados do contexto de um pensamento completo e, por isso, sem verdadeiro significado, como, por exemplo, a “sobreposição do justo sobre o bem” (como se isso não fosse um absurdo metafísico).

Há pouco tempo, tive que estudar, por motivos ligados à elaboração de minha monografia, a polêmica de Max Scheler (1874-1928) contra Kant. Chega a dar pena comparar esse verdadeiro debate filosófico com a tão badalada disputa entre Rawls e Nozick, por exemplo. Enquanto os primeiros se debruçam sobre os fundamentos últimos da ética, sobre os conceitos de lei, de bens, de fins, de valores e seu lugar na concepção da moralidade, além das distinções gnosiológicas entre forma e matéria, a priori e a posteriori, os últimos não conseguem ultrapassar uma picuinha sobre a distribuição dos bens econômicos de uma sociedade. O decréscimo na profundidade do pensamento moral é gritante.

Creio que poderíamos encontrar a origem disso na influência rousseauniana para a lamentável confusão entre ética pública e ética do Estado. Rousseau concebeu uma sociedade em que desapareceriam todas as instâncias intermediárias entre cada indivíduo e o poder público central, restando a vida social reduzida às decisões fundamentais de política pública. Não é preciso grande esforço imaginativo para vislumbrar aí a dissolução da sociedade no Estado (e o grande sonho de Rousseau, na verdade, era a dissolução do indivíduo no Estado), com o consequentemente redimensionamento da moral (dos planos da consciência íntima da pessoa humana e das articulações comunitárias naturais) para abranger simplesmente projetos de administração central de um povo.

Essa tendência está muito bem refletida, por exemplo, em Jürgen Habermas (1929-) e em suas ideias de “patriotismo constitucional” ou de “cultura política geral”, que representam um patrimônio “moral” comum a todos os indivíduos de uma coletividade, com uma existência apartada dos laços culturais e das instituições comunitárias produzidas por sua interação espontânea ao longo dos tempos. Ainda que, algumas vezes, ele e seus discípulos insistam expressamente que sua ética pública se difere de uma ética do Estado, sua noção de sociedade, sem que eles mesmos o percebam, é de uma sociedade sem sociedade, uma mera instância decisória das ações do aparelho de poder.

Concluindo, é preciso deixar claro que não estou afirmando que a Ética não trate ou não deva tratar de questões políticas. A Filosofia Política nasce da Filosofia Moral e só assim pode ser compreendida. O problema é que teorias políticas devem ser consequência de uma cosmovisão ética, capaz de justificá-las em todas as suas bases últimas, e jamais ideias solitárias lançadas ao vento, indiferentes a ela.

Se o que caracteriza definitivamente a Filosofia é a sua busca por aquilo que é universal e eterno, o que Rawls, Dworkin, Nozick, Habermas, Adela Cortina, Amartya Sen, Walzer, Kymlicka (que só fazem oferecer reflexões desprovidas de universalidade, incompreensíveis fora de pressupostos contextuais contemporâneos, pressupostos cristalizados dogmaticamente e escondidos em raciocínios que se afirmam independentes deles) nos trazem dificilmente pode ser considerado Filosofia Moral. Perto de Aristóteles, de Tomás, de Kant ou de Scheler, são, quando muito, comentaristas de bancada de telejornal. Se quisermos reconstruir uma sociedade sã, capaz de refletir sobre as misérias humanas e sobre os ideais morais, precisamos enxergar além de dificuldades pragmáticas de ocasião e lançar o nosso olhar sobre o horizonte do bem eterno, em cuja contemplação andaram metidos os pais da civilização.

Gustavo França é graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e editor da revista “Dicta& Contradicta”, do Instituto de Formação e Educação.

Publicado originalmente no site da revista Dicta& Contradicta, em 10 de Outubro de 2015. Disponível [online] em <http://www.dicta.com.br/a-decadencia-da-filosofia-moral/>. Último acesso em 13/10/2015.

 

Meu trabalho, minha vida?

Sem Categoria | 16/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Conversava, depois de uma correição-geral ordinária em nossa vara, com nosso ilustre corregedor quando, depois de elogiado por ele sobre o desempenho do cartório, pôs-se a dizer se eu não poderia ”fazer mais um pouco”, já que as metas do CNJ haviam sido batidas a contento. Respondi que, por mais louvável que fosse a sugestão, iria refletir zelosamente, porque tinha sérios problemas “epistemológicos” em aceitá-la: as tais metas viraram uma espécie de fetiche e, sobretudo, meu trabalho nunca foi minha vida.

Graças a Hegel e a Marx, o mundo do trabalho sofreu um grande impacto. A mudança inicial teve lugar no fato de que o homem, ao invés de sentir-se num mundo estável, começou a pensar que suas bases estavam sempre mudando: por evolução da técnica, os bens que construiu, configuradores de seu mundo, começaram a ser substituídos por outros melhores. E, de lá para cá, numa velocidade cada vez maior, ainda que tal fenômeno já existisse, mas sem que fosse sensível no espaço de uma vida inteira.

Essa capacidade de melhoramento técnico dos bens perdura até hoje. A durabilidade de um produto já não é uma qualidade desejada, já que seria um obstáculo à renovação. O mundo continua sendo moldado por processos tecnológicos que nos proporcionam outros objetos, que praticamente ficam obsoletos enquanto os novos estão sendo elaborados: basta lembrar do meu primeiro celular e compará-lo com o atual.

Não questiono as múltiplas vantagens que a técnica tem proporcionado à vida. Todavia, tornamo-nos adoradores do trabalho produtivo, mesmo que, às vezes, ele seja o portador de novos medos que invadem o homem ante as potenciais capacidades destrutivas ou manipuladoras da técnica nele embutida.

Quando o trabalho produtivo eleva-se à condição de configurador de uma sociedade, a pergunta é elementar: uma realidade forjada exclusivamente por esse tipo de trabalho é uma realidade verdadeiramente humana? O louvor desenfreado ao trabalho não pode levar-nos a uma nova realidade que se volte contra o próprio homem, preso nessa laboriosidade sem descanso e sem contemplação junto a alguma transcendência?

Há muitos que creem ser sua vida seu trabalho, porque é ele tão intenso e decisivo que preenche todas suas aspirações. Uma espécie de droga altamente eficiente para a autoestima. Nessa toada, seremos contaminados por uma mentalidade laborativa que acabará por nos conduzir à extenuação por iniciativa própria.

Uma sociedade que vive de produtividade laboral – e, por consequência, de resultados – é uma comunidade de exploração sem dominação, porque envolve uma voluntária submissão a hábitos laborais que asfixiam a vida. E, por se tratar de uma servidão colocada sob signo da liberdade, é de uma eficácia tremenda em termos de resultados. Até encararmos o fracasso e nos responsabilizarmos por isso.

Por outro lado, um trabalho que se transforma em meio de busca de sentido existencial leva, mais cedo ou mais tarde, à instrumentalização de uns sobre os outros. Arendt criticava esse utilitarismo quando assinalava que, no moderno processo de trabalho, os resultados de alguém são julgados por outro alguém em termos de conveniência para o fim proposto e para nada mais. Qual é a utilidade da utilidade, então? Perguntava nossa filósofa, concluindo, numa tacada genial, que a utilidade, estabelecida como significado, gera significação.

A primazia do trabalho produtivo na consideração da ideia de sociedade acaba por reduzir a sociedade humana a uma mera organização laboral, onde a convivência é articulada, artificialmente, de maneira que as pessoas possam convergir suas faculdades apenas no labor e para sempre produzir mais e melhor.

Seria uma espécie de visão antropológica mecanicista que faz, da política, uma técnica e, da sociedade, um edifício, no qual cada um de seus elementos é alheio ao conjunto, estando integrados em razão de fatores extrínsecos somente. Um edifício assentado sobre o erro de considerar o homem somente um ser destinado à produtividade laborativa e, logo, a constantemente ser convencido a “fazer mais pouco”.

Um edifício sem qualquer ponto de apoio sólido o suficiente para ser reformado em suas bases: um problema que nem Arquimedes resolveria. Quanto a mim, sigo a trabalhar para viver. E não o contrário. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 16/9/2015, Página A-2-Opinião

Sobre a felicidade e a prática das virtudes em Aristóteles: um breve comentário – por Natália Gama

Filosofia | 15/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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“Criança na cozinha” (1904), de Carl von Bergen (1853-1933)

 

Vivemos em um tempo em que, paradoxalmente, por um lado, o acesso a bens culturais, científicos e tecnológicos é ampliado; por outro, o número de quadros de ansiedades, web depressões e afazeres da ordem do dia aumenta vertiginosamente. Para reinterpretar essas contradições e iluminar a moldura existencial dos dias de hoje, recordamos algumas reflexões de Aristóteles sobre a felicidade e a prática das virtudes.

Aristóteles, em Ética a Nicômaco, diz que “toda arte, toda investigação e igualmente todo empreendimento e projeto previamente deliberado colimam algum bem, pelo que se tem dito, com razão, ser o bem a finalidade de todas as coisas.”[1]

Segundo Aristóteles, é natural, faz parte da nossa essência, direcionarmos as ações para um fim, já que há sempre uma intenção última. Mas a questão é: qual seria este objetivo final? Na compreensão do Estagirita, há um bem maior que é a finalidade de todos os demais bens, um bem absoluto que prevalece sobre todas as coisas: a felicidade. Todavia a felicidade é uma matéria polêmica, difícil de classificar.

 As pessoas ordinárias a identificam como algum bem óbvio e visível, tais como o prazer, ou a riqueza ou a honra, umas dizendo uma coisa e outras algo diferente; na verdade, com muita frequência, o mesmo indivíduo diz coisas diferentes em ocasiões diferentes: quando fica doente, pensa ser a saúde a felicidade; quando é pobre, julga a riqueza a felicidade. Em outras oportunidades, sentindo-se consciente de sua própria ignorância, os indivíduos (comuns) admiram aqueles que propõem algo grandioso que ultrapassa a compreensão deles e tem sido sustentado por alguns pensadores, que além de muitas coisas boas que mencionamos há um outro bem, que é bom em si mesmo, e se coloca em relação a todos aqueles bens como causa de serem bons.[2]

Para um melhor entendimento do que vem a ser a felicidade, esse “bom em si mesmo”, Aristóteles não exclui a presença de bens relativos, como a saúde, riqueza, honra, etc. Pelo contrário, os enxerga, em boa medida, como bens úteis para a obtenção de uma vida feliz. Ainda sobre este ponto,

parece haver diversas finalidades visadas por nossas ações; entretanto, ao elegermos algumas delas, por exemplo a riqueza, ou flautas e instrumentos em geral – como um meio para algo -, fica claro que nem todas elas são finalidades completas, ao passo que o bem mais excelente (o bem supremo) parece ser algo completo. Consequentemente, se houver alguma coisa que, por si só, seja a finalidade completa, essa coisa – ou se houver várias finalidades completas, aquela entre elas que for a mais completa – será o bem que é objeto de nossa investigação.”[3]

Aristóteles, durante toda a discussão apresentada na Ética a Nicômaco, especialmente no Livro I, sublinha a completude presente em algo que seja uma finalidade em si mesmo em contraste com algo que se busque como meio para um determinado fim. Em consonância com tal distinção, o filósofo define a felicidade como absolutamente completa, “uma vez que sempre optamos por ela por ela mesma e jamais como um meio para algo mais, enquanto a honra, o prazer, a inteligência e a virtude sob suas várias formas, embora optemos por elas mesmas (…), também optamos por elas pela felicidade na crença de que constituirão um meio de assegurarmos a felicidade.”[4]

Contudo, para suprir a carência de uma avaliação mais explícita do que seja a felicidade, Aristóteles propõe determinar a função do ser humano. Se um artesão reside na função que ocupa, semelhantemente, seria possível sustentar que o bem humano reside na função humana, no caso do ser humano ter uma função. Dentro desse raciocínio, o filósofo destaca a racionalidade, diferencial do homem em relação aos demais seres vivos. A partir dela, a função do ser humano seria o exercício ativo das faculdades da alma, e conclui que “o bem humano é o exercício ativo das faculdades da alma em conformidade com a virtude, ou se houver diversas virtudes, em conformidade com a melhor e mais perfeita delas. (…) de forma a ocupar uma existência completa, pois (…) um dia ou um efêmero período de felicidade não torna alguém excelsamente feliz.”[5]

Se a felicidade é uma atividade da alma em conformidade com a virtude perfeita, torna-se necessário compreender a natureza da virtude. Segundo Aristóteles, a felicidade humana significa excelência da alma, não do corpo; logo, para estabelecer uma coerência com o pensamento aristotélico, a felicidade examinada é uma atividade da alma. Ao analisar a alma, o filósofo a apresenta como sendo bipartida, uma parte irracional (faculdade vital presente em todas as coisas vivas que permite a nutrição e o crescimento) e uma parte racional. De acordo com esse princípio de divisão, as virtudes também são agrupadas em duas modalidades: as intelectuais e as morais. As primeiras devem, em grande parte, seu desenvolvimento ao ensino, e por isso requerem experiência e tempo; enquanto que as virtudes morais são adquiridas em resultado do hábito, não nos são naturais, tendo em vista que nada que existe por natureza pode ser alterado por um costume. Podemos notar essa relação da repetição rotineira com aquisição da virtude quando descrevermos o caráter (disposições morais) de alguém. Não dizemos que se trata de alguém capaz de entendimento ou de grande sabedoria, mas o caracterizamos como alguém sóbrio ou moderado, destacando a continuidade das ações.

De forma prática, as virtudes, para Aristóteles, estão intimamente relacionadas com as ações e as paixões, e cada uma delas é acompanhada por prazer ou sofrimento. Essa associação é importante porque as virtudes e os vícios do homem se relacionam com as mesmas coisas, o nobre e o vil, o agradável e o doloroso, entre outros pares. Para equilibrar essas relações, a virtude passa a ser compreendida como o hábito de escolher o justo meio, aquilo que está entre o excesso e a falta. Assim, o meio termo seria algo único para todos os homens, uma virtude de mediania, isto é, capaz de aplicar uma sabedoria prática.

Também a virtude consiste na justiça que é praticada em relação ao próximo. Com efeito, a justiça completa, no mais próprio e pleno sentido do termo, aquilo que é próprio da virtude. A justiça é uma espécie de meio-termo que confere ao justo, por escolha própria, o discernimento de não dar mais do que convém a si mesmo e menos do que convém a seu próximo.

Aristóteles, ao longo de toda investigação sobre a natureza da felicidade e de como podemos alcançá-la, defende que a vida feliz não é um bem realizável totalmente, mas uma busca constante, acompanhada pela aquisição e desenvolvimento das virtudes. Um percurso que é direcionado à polis, ao bem comum, visto ser o homem um animal político. E a felicidade, de acordo com essa moldura do pensamento aristotélico, é uma busca em que se justifica a boa ação humana, um bem almejado por si mesmo não em vista de outra coisa, um bem para o qual todas as ações estão voltadas.

Recuperamos essas reflexões sobre a felicidade e a prática das virtudes na tentativa de propor uma releitura das estruturas da ação humana, especialmente para os dias de hoje. Recordar essas noções nos permite reconfigurar, em certa medida, os paradoxos atuais, a finalidade das ações realizadas, as crescentes incongruências entre vida exterior e vida interior, nossos hábitos e objetivos. Confere-nos instrumentos para agir no mundo. Uma sabedoria prática que reside entre o fazer e a esperança de bem-viver.

*Natália da Silva Gama é Doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2013.

NOTAS:

[1] ARISTÓTELES, 2013, p. 37.

[2] Ibdem, p.40, 41.

[3] Ibdem, p. 47, 48.

[4] Ibdem, p.48.

[5] Ibdem, p.50.

 

Artigo publicado no site Dicta&Contradicta em 14/09/2015. Disponível [online] no link <http://www.dicta.com.br/sobre-a-felicidade-e-a-pratica-das-virtudes-em-aristoteles-um-breve-comentario/>

A antiga e a nova ética da virtude – por Maria Cecília Leonel Gomes dos Reis

Filosofia | 08/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Atribui-se a Hannah Arendt – filósofa alemã nascida em 1906 – um comentário perfeito para apresentar a ética antiga e realçar em quê esta perspectiva distingue-se da moralidade de senso comum. Coloque-se a pergunta celebrizada no romance Crime e Castigo de Dostoiévski “Por que eu não deveria matar uma velha agiota a quem devo dinheiro?”, e compare as seguintes respostas. Um indivíduo religioso poderia alegar que “Não o faria para não ser condenado ao inferno” (seja objetivo, seja subjetivo). De um ponto de vista laico e distanciado, um outro talvez admitisse que “Ninguém gostaria de ser morto futilmente por outra pessoa, e por esta razão tal conduta deve ser interdita e severamente punida para a vida em sociedade”. Ora, a resposta da ética antiga teria um enfoque completamente diferente: “Já que tenho de viver comigo mesmo pelo resto de meus dias, não gostaria de estar para sempre na companhia de um assassino”. Esta maneira de ver o problema, embora incorra em algum anacronismo, coloca na perspectiva correta a moralidade antiga e sugere que seu foco esteja no caráter do próprio agente.

À luz desta breve introdução, na primeira parte deste artigo será apresentado um panorama geral da ética antiga que tentará subsidiar, em seguida, tanto um esboço das principais diferenças que ela guarda com a filosofia moral moderna, como uma pequena defesa de sua relevância para a atualidade.

I.

É a pergunta socrática – “Como viver?” – que, de fato, inaugura na Grécia do século V a.C. a investigação de questões humanas. E o faz na chave da moralidade pessoal e em tom auto-reflexivo – Que tipo de pessoa tenho sido? Que tipo de pessoa aspiro ser? –, ao mesmo tempo em que, de alguma forma, coloca na meta da estimativa de si próprio a noção antiga de virtude ou areté, i.e., toda a forma de mérito individual ou de excelência, em qualquer atividade.

Na concepção tradicional de Homero, há evidências da areté dos heróis, em particular numa forma comum de epitáfio – “um homem tornado nobre morreu” – e na locução kalós kai agathós, que se refere às qualidades de valentia e habilidade guerreira, ou seja, à eficácia naquela nobre função.

A perspectiva socrática, por outro lado, além da coragem, elege como valores morais a justiça, a temperança, a piedade e a sabedoria. Tais são, efetivamente, as noções que animam a busca (frustrada) por definições dos primeiros diálogos de Platão, nos quais Sócrates figura como personagem central. A teoria moral, em Sócrates, inclui algumas teses bem difundidas. A virtude é conhecimento, ou seja, o indivíduo só alcança a excelência humana quando tem uma visão singular e permanente do que é o bem para o homem. Afinal, as virtudes formam uma certa unidade. E é este lampejo sobre o bem em geral que guia a pessoa nas circunstâncias particulares de sua vida, para que aja como alguém de valor – mostrando-lhe, por exemplo, quando o direito dos outros deve ser respeitado, quando a moderação é necessária, quando atos de coragem lhe são requeridos. E por esta razão, não basta procurar regras externas que pautem a conduta dos homens. É preciso olhar para dentro de si e perceber por si mesmo o justo, o bom e o belo em cada circunstância. Os homens precisam, enfim, cuidar da alma, pois é a qualidade boa ou má de sua própria alma que fará de cada um uma pessoa boa e feliz ou, pelo contrário, má e infeliz. Donde a observação socrática da máxima apolínea “Conhece-te a ti mesmo”.

A doutrina socrática implica, contudo, uma nova concepção de alma: a psykhé agora é vista como a sede das faculdades intelectuais e morais, e não mais como o mero sopro da vitalidade que abandona o indivíduo no instante da morte. Aos olhos modernos, essa filosofia moral parece sofrer de um intelectualismo exagerado. Se virtude é conhecimento, então a ação correta segue o conhecimento correto, e a incorreta é fruto da mera ignorância e não daquilo que chamamos de fraqueza da vontade. É preciso lembrar, no entanto, que a perspectiva socrática parece entender que os homens, quando agem mal, estão sempre persuadidos por algo que imaginam como bom e vantajoso – e é nisto que está a falha cognitiva. Além do mais, o conhecimento do bem não consiste na posse de proposições abstratas, mas numa visão direta pelos “olhos internos da alma” que compele à ação.

A ética e a psicologia de Aristóteles são tributárias da teoria moral de Sócrates. A questão “Como viver?” indaga como me tornei a pessoa que sou e como vejo agora minhas atitutes diante do pano de fundo de meus planos futuros, o que implica pensar na vida como um todo. E, de fato, todas as escolhas e ações humanas têm por finalidade algo considerado bom para o próprio agente. Mas, segundo Aristóteles, os fins subordinam-se uns aos outros, formando uma hierarquia. Há fins imediatos – como o preparar-se para a vida profissional –, mas estes não dão uma explicação completa da razão pela qual o agente os pratica. Pois nossas motivações organizam-se de modo a haver um objeto último de desejo – o fim ao qual todas as nossas escolhas aspiram. E aquilo que buscamos como um valor absoluto deve ser também alcançável por nossas ações. Este sumo bem é, evidentemente, ser feliz. Pois a felicidade (eudaimonia) é procurada em si mesma e torna a vida desejável e carente de nada. Com isso Aristóteles sugere que, se você advoga que a felicidade consiste no prazer, por exemplo, mas admite que uma vida capaz de combinar prazer e sabedoria é ainda superior, então reconhece que faltava algo em sua primeira noção de felicidade. Ora, a felicidade é algo auto-suficiente. Mas, já que existem várias concepções de felicidade, como fazer de minha vida uma existência feliz?

Há basicamente três modos de vida – a vida devotada ao prazer e entretenimento, aquela dedicada ao serviço público e, ainda, a vida voltada ao conhecimento e à filosofia – ligados, por sua vez, a três razões para preferir a vida à morte – desfrutar dos mais altos prazeres; ganhar um nome respeitado aos próprios olhos e aos dos demais; apreciar uma compreensão do mundo em que nos encontramos.

Aristóteles sustenta que a felicidade será alcançada no exercício das virtudes morais e intelectuais – o que parece favorecer a vida pública e a contemplativa. Pois, assim como o bem de um flautista, por exemplo, é o desempenho competente de sua habilidade específica – tocar flauta bem –, já que aquilo que faz dele um flautista é justamente tocar o instrumento; do mesmo modo, o bem para o ser humano é o desempenho excelente das disposições que fazem dele o que é, a saber, um ser racional. Ser feliz, em suma, é viver e agir bem, é realizar-se como ser humano. Ora, o homem tem uma natureza particular: é um ser vivo dotado de capacidade intelectual, e a função própria da inteligência é contribuir para a sua felicidade. Segundo Aristóteles, nossa felicidade estará, então, na atividade inteiramente excelente de nossa capacidade de pensar – seja em seu aspecto prático, seja no teórico –, acompanhada de moderada boa sorte e ao longo de uma vida completa. Pois é difícil ser feliz e ter uma vida bem sucedida se você, por exemplo, é horrível, chucro das idéias, nascido para ser escravo ou pai de filhos que o desonram, embora a boa sorte seja apenas uma condição para a felicidade. E, numa vida bem vivida, o prazer será uma espécie de coroamento: algo bom quando advém da atividade não impedida e própria ao homem em condição moral adequada.

As virtudes éticas ligam-se ao aspecto emocional do indivíduo – a elementos irracionais como a raiva, o medo, a lascívia, a inveja, o ressentimento –, bem como aos estados mentais de prazer e dor, que acompanham hábitos adquiridos a fim de que a pessoa expresse uma resposta emocional adequada diante de dada circunstância. A moralidade não é algo que possuímos por natureza, segundo Aristóteles. De qualquer modo, a partir desses fatores configuram-se quatro modos de caráter – quem faz o certo com prazer; quem age corretamente, mas a duras penas; quem faz o errado e sofre por isso; quem age mal e sente-se inclusive satisfeito com isso.

As virtudes intelectuais, por sua vez, ligam-se ao aspecto racional da conduta – à sabedoria prática (phronesis) que põe para o indivíduo tanto uma apreciação geral do que é o bem para o homem enquanto tal, como uma estimativa daquilo que está próximo e é exeqüível, na cadeia do raciocínio prático.

A sabedoria reside não apenas no deliberar bem sobre o que é útil e bom para si mesmo por levar ao viver bem em geral, mas em certas qualidades da própria conduta, examinadas por Aristóteles de forma detalhada. Entre elas estão as assim chamadas virtudes clássicas – a coragem, no que diz respeito às situações que suscitam medo; a moderação na busca dos prazeres físicos, e a justiça na distribuição daquilo que cabe a cada um –, bem como outras, inteiramente novas para o escopo da teoria moral socrática. A liberalidade e a magnificência, por exemplo, no uso do dinheiro (seja em pequena, seja em grande escala); a honradez no mérito pretendido para si mesmo e a dignidade na noção do próprio valor; a afabilidade nas relações sociais e a amizade nas pessoais; a espirituosidade na maneira de conversar; e por fim, a calma no que diz respeito à raiva. Cabe notar, inclusive, que a relação de qualidades éticas constituintes da sabedoria prática segundo Aristóteles talvez esteja na raiz de muitas virtudes morais exaltadas pela cristandade: no lugar da moderação encontramos agora o elogio da castidade, e das demais, sucessivamente, a igualdade, a generosidade, o recato, a modéstia, a solidariedade, a fraternidade, a pureza e a paz.

Fica claro, por fim, o motivo pelo qual o tratamento das questões éticas se fará, segundo Aristóteles, apenas em linhas gerais. A moralidade, por assim dizer, carece de fixidez. Pois os próprios agentes devem considerar, em cada caso, o que é mais apropriado à ocasião, ainda que se deva obervar um preceito constante – a boa conduta pode ser arruinada tanto pelo excesso como pela carência, isto é, a qualidade de uma ação sempre será preservada pela busca do meio termo.

II.

Na interpretação de alguns filósofos – Henry Sidgwick (1838-1900) e Bernard Williams (1929-2003), por exemplo –, o pensamento ético antigo e o pensamento ético moderno são nitidamente irreconciliáveis. Pois o ponto de partida dos antigos é a noção de bem, ou melhor, de bem humano ou felicidade (eudaimonia). Contudo, se o bem de um ser é determinado por sua função natural; e se para o homem esta é a atividade intelectual excelente – seja teórica, seja prática (phronesis ou ação correta); e se a ação correta, por sua vez, depende da percepção que um agente excelente terá daquilo que é exigido pelas circunstâncias; então não haverá um corpo de regras universais de conduta.

A filosofia moral moderna, por outro lado, tem como ponto de partida a noção de certo e errado e o código ético que nos foi legado pela cristandade medieval, ou seja, um sistema de normas gerais de conduta, fundamentado na lei divina. Ora, com as disputas religiosas da Reforma e o surgimento de uma sociedade secular, bem como da ciência moderna, o conteúdo específico daquele código não podia mais ser justificado por qualquer apelo à Revelação. E, mesmo que alguns admitissem como base da conduta certos sentimentos humanos, a grande tarefa do Iluminismo no campo da moralidade foi procurar fundamentos para o nosso sistema de deveres em princípios universais determinados pela razão natural.

A ética moderna – a deontologia e o utilitarismo, em particular – nutre, de fato, o desejo de alcançar um conhecimento certo com fundações inabaláveis, e assim oferecer princípios universais a partir dos quais a solução prática de problemas éticos possa ser racionalmente deduzida. Ora, tal exigência parece essencialmente irrealizável pelos traços característicos da ética antiga.

O mais claro empreendedor de uma moralidade com feições universais foi o alemão Immanuel Kant (1724-1804), para quem a ética deve e pode fundar-se completamente na razão humana. O homem distingue-se pela autonomia moral – capacidade de comprometer-se voluntariamente com fins racionalmente escolhidos – em oposição à sua heteronomia física – sua fisiologia é comandada por leis naturais que não dependem de sua própria vontade. Mas o valor moral dos atos humanos liga-se justamente ao fato de terem sido livremente escolhidos: o indivíduo que tem seu comportamento controlado por causas além de seu próprio controle – sejam as subjetivas, como desejos e emoções, sejam as objetivas, como qualquer tipo de coerção física –, não é alguém que age livre e voluntariamente. Por isso mesmo, sua conduta é completamente desprovida de qualquer valor moral, não importa as conseqüências boas ou más que traga. A vontade, para Kant, é razão em ação. E deve purificar-se, então, de toda e qualquer influência sensível, pois a vontade só é efetivamente livre quando quer e busca aquilo que a razão determina – deveres logicamente deduzidos e, por isso mesmo, obrigatórios. Em suma, ser uma pessoa boa é difícil, pois envolve um verdadeiro conflito interior entre nossas inclinações – aquilo que eventualmente gostaríamos de fazer – e os imperativos inflexíveis da razão. Para Kant, enfim, moralidade nada tem a ver com felicidade do agente, tampouco com as conseqüências de suas ações.

De fato, a filosofia moral deontológica (assim chamada por conta do termo grego déon, “deve”) distingue-se radicalmente do utilitarismo, ainda que cada uma busque princípios universais para fundamentar a conduta dos homens.

Na ética utilitarista, que tem como precursor Jeremy Bentham (1748-1832), a melhor vida para uma pessoa consistirá naquela que apresente o melhor balanço entre prazer e dor: pode valer a pena suportar certos sofrimentos – como uma cirurgia – em vista de produzir ao longo prazo uma maior quantidade de prazer – saúde por muitos anos. O valor de diversos prazeres e dores resultantes de um curso determinado de ação pode ser calculado e então multiplicado pela probabilidade de a ação realmente ocorrer. Um de seus principais expoentes, John Stuart Mill (1806-1873), embora tenha aceitado a premissa de que o ser humano busca o agradável e evita o desagradável, para evitar certas implicações inaceitáveis do hedonismo de Bentham procurou distinguir certas qualidades nos prazeres. De qualquer forma, definiu-se como princípio universal a maximição da utilidade líquida estimada para todas as partes envolvidas numa tomada de decisão – seja lá o que se entenda por “utilidade”: prazer, bem-estar, preferência. Para os utilitaristas, enfim, as motivações do agente não podem ser conhecidas, e nem mesmo são importantes. Apenas as conseqüências da conduta contam na avaliação moral de seus atos.

III.

A influência da ética antiga na filosofia moral contemporânea não é gratuita. De fato, e a seu modo, a ética antiga convergiria para aquilo que, em poucas palavras, pode ser chamado de ‘crise de legitimação’: a atitude de dúvida e incredulidade que ganhou tantos adeptos nos últimos cem anos, ou mesmo antes, quanto à aspiração de universalidade da ciência e ética modernas, sobretudo por não acreditarem na possibilidade de identificar qualquer ponto externo aos sistemas para avaliá-los objetivamente, o que acarretaria uma inevitável multiplicação de perspectivas. No entanto, a visão ética antiga, ainda que não tenha regras de condutas absolutas – pois vê a conduta adequada como dependente sempre do singular – parece contornar os riscos do relativismo radical, tão premente em nossos dias. É, por fim, uma filosofia moral altamente analítica, bem como racional e lógica, voltada para o auto-aperfeiçoamento induzido pela criação de hábitos via punição e recompensa, com requisitos realistas quanto ao caráter do agente.

A título de conclusão, cabe ainda realçar algumas características da ética antiga muito afinadas com o mundo de hoje. Nascida para servir e educar a juventude com pretensões públicas, não desconhece a realidade da competitividade social. Pelo contrário, vê como postiva a rivalidade (a boa éris) entre iguais que disputam algo de valor (seja a coroa de louros nos jogos olímpicos, seja a opinião pública nas discussões políticas). É uma ética voltada para a moralidade individual – para aquilo que é um valor de ordem moral para o próprio agente. Baseia-se também na busca de excelência e de desempenho competente. E, mais do que isso, é uma ética da honra pessoal e da justiça segundo o mérito – e isto significa que o próprio mérito é visto como um aval para a recompensa individual.

Assim, não enfrenta as dificuldades práticas das éticas baseadas no altruísmo e na benevolência, sem ser uma teoria que advogue o egoísmo – já que o auto-interesse nada tem a ver com ambição crassa e oportunismo impulsivo – ou o hedonismo – pois o prazer, embora tenha um lugar na felicidade, não consiste na mera satisfação de carência, mas na experiência de bem-estar que emerge na atividade natural e excelente do homem.

Maria Cecília Leonel Gomes dos Reis é graduada em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado, Doutora em Filosofia pela USP e professora de Ética no Ibmec-São Paulo. Publicou uma tradução do Sobre a alma, de Aristóteles (De anima. São Paulo: Editora 34, 2006, 360 pp.) e, em 2008, o romance O mundo segundo Laura Ni (São Paulo: Editora 34, 2008, 192 pp.).

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Imagem: em Domínio Público no link <http://www.pdpics.com/photo/2247-ethics-pen/>. Acesso em 08/09/2015.

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Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº3, Junho/2009. Exemplares impressos das Dictas podem ser adquiridos nas grandes livrarias do País, como Cultura, FNAC, Saraiva etc.

Uma Boa Mentira: Virtudes humanas em estado puro. Sem vírgulas. (por Pablo González)

Cinema | 06/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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The Good Lie. USA. (2014). Diretor: Philippe Falardeau.  Reese Witherspoon, Corey Stoll, Sarah Baker, Sope Aluko, Sharon Conley, Mike Pniewski, Arnold Oceng, Clifton Guterman, Ger Duany, Emmanuel Jal. 110 min. 

Uma boa mentira - capaUma lufada de ar refrescante. Imprevista. Tinha este filme nos meus arquivos, vários meses esperando. Algo tinha lido em alguma crítica: ativista americana que ajuda refugiados sudaneses. Mais do mesmo, pensei. E deixei esperando. Um dia –sempre é desse jeito- , sem pensa-lo muito (aliás, parece-me que tinha previsto assistir outro filme), coloquei-o na tela do computador, talvez até por engano. E deixei correr. Vejo jovens africanos embarcando de um campo de refugiados para América. E a seguir, em flashback, a explicação conveniente.

Imediatamente, conforme as lembranças dos protagonistas desfilam na tela, a minha memória evoca outras paralelas, vindas de um livro que li há alguns meses. Correr para viver. A história de um refugiado sudanês, que acaba se transformando em atleta olímpico em USA. O livro é sua história, e o débito que com justiça e com elegância paga a todos os que lhe ajudaram. Uma boa mentira - 7Aqui os protagonistas são outros, não parece que tenham aptidões especiais como o corredor do livro, mas evidentemente o marco histórico é o mesmo. Os meninos perdidos do Sudão, órfãos durante a guerra civil de 1983 que assolou o pais e emigraram para os campos de refugiados do Quênia. No final dos anos 90 começa o êxodo facilitado pelos Estados Unidos, que através de organizações variadas, acolhe os órfãos sudaneses. Até o 11 de Setembro, onde o processo se interrompe, por motivos de segurança. O filme –como o livro- conta uma história real, e os atores são realmente emigrados sudaneses, ou filhos daqueles. Argumento simples, atitudes humanitárias, enfim, um capítulo da história humana que carrega lamentos pelas barbaridades perpetradas e louvores para os que tentaram minimizá-las.

Uma boa mentira - 1Mas a força do filme –pelo menos o que me impactou- não esta ai, mas nas entrelinhas. São as atitudes dos africanos as que esbanjam virtudes. O tempo todo. Durante a massacre étnica, nos tempos que passam no campo de refugiados e, com destaque, na sua chegada a USA. Até parece que são pessoas de outro planeta pelo modo, simples, franco, direto, como se comportam. Lealdade, afeto, generosidade distribuída sem medida. Elogios aos policiais que mantém a autoridade, porque no entender deles –na cultura africana- são pessoas que estão ao serviço da sociedade. Compartilhar com quem não tem, porque é assim que eles foram criados, não concebem outro modo de viver. Integridade a prova de bomba, simplicidade que lhes permite apreciar o que para outros passa desapercebido. E uma amizade temperada pelo sentimento de lealdade, de honra, que ultrapassa as categorias vigentes. A boa mentira, que dá titulo ao filme, é importada de um romance de Mark Twain, onde um dos protagonistas se faz passar por outro, para ajudá-lo, arcando com o débito que o beneficiado tinha em conta. Gente de outro planeta? Ou somos nós os que mudamos e arrastamos nessa mudança saturada de mentira, corrupção e deslealdade os cacos deste mundo nosso?

Uma boa mentira - 2Virtudes em estado puro. Esse foi o resumo que cristalizou na minha mente, enquanto desfilavam na tela os créditos finais. E ao tempo, lembrei de uma conversa singular, acontecida numa das muitas reuniões humanistas nas que ando envolvido. Recordo-a como a reunião das vírgulas. Em teoria, todos concordamos que se deve viver a honestidade –ou a sinceridade, a lealdade, e por ai afora- , mas há situações onde…..O “mas”, golpe adversativo, costuma ser precedido por uma vírgula. A vírgula, que fornece um ponto de inflexão à virtude, é o começo do descaminho. Sim, tudo isto é muito importante, mas….. Ai está a vírgula. Como esclarecendo: no meu caso, nesta situação, em tais circunstâncias, …..E, com a vírgula segue-se a desculpa para eximir-se da atitude virtuosa.

Uma boa mentira - 3Na vírgula damos entrada aos exemplos –maus exemplos, entende-se- que outros dão e que parecem desculpar-nos das nossas obrigações. Na vírgula se desbota a virtude, perde cor e atrativo. E como nunca foi mais atual aquele ditado de que quem não vive como pensa, acaba pensando como vive, construímos toda uma antropologia da vírgula, que se veste de questões culturais, modernas –ou pós-modernas- desculpas eruditas para fugir do cumprimento do dever. Integridade? Compromisso? Lealdade? Sim, de acordo, mas….E lá vem a vírgula, confortante e salvadora. Impossível não recordar aquele fato que contam ocorreu com Alexandre Dumas, o filho. Chegou a uma reunião social e uma das damas espetou-lhe: “Deve ser muito difícil para o senhor ter um pai com costumes tão licenciosos como o pai do senhor”. Parece que a fama de bon vivant do Dumas pai era pública. Mas o interpelado respondeu-lhe com imensa calma: “Nada disso, minha senhora. Se ele não me serve como exemplo, funciona bem como desculpa”.

Uma boa mentira - 4A reunião das virgulas ficou famosa. Lembro que alguns dias depois recebi um e-mail de um dos participantes, comentando um assunto profissional –por certo, de modo muito competente- e desculpando-se por não ter feito ainda melhor. “Sei que você não gosta de vírgulas, afirmava no final”. Não é uma questão de gosto, mas de coerência. Quando se permite que as virgulas tomem conta, as modulações e orações subordinadas acabam apagando a sentença principal.

Uma boa mentira - 5Os atores deste filme não são gente de outro planeta. São humanos, como nos, mas sem vírgulas. E ai minha imaginação voo para outro livro que também li recentemente e que comentei neste espaço, o Caçador de Pipas. Recomendo a leitura do comentário –eu mesmo acabo de reler o que escrevi- porque é um complemento ao tema das vírgulas. Atrai-nos o exótico, emociona-nos a amizade, a lealdade destes seres longínquos –do Sudão ou do Paquistão- e até nos arranca lágrimas. Mas os deixamos lá, em outro planeta, porque permitir a entrada no nosso provocaria uma enxurrada de reflexões, e vai ver que nos pega de calça curta.

Uma boa mentira - 6A maldita lealdade inabalável do protagonista do Caçador de Pipas, a amizade íntegra do sudanês da Boa Mentira, são uma bofetada para a nossa sociedade medíocre. É sabido o pouco espaço que as noticias dos países africanos ou asiáticos que estão no terceiro (ou quarto?) mundo, têm nos meios de comunicação. Dizem alguns que talvez porque não são relevantes para a economia e para os destinos do poderoso ocidente e de quem corta o bacalhau. Atrevo-me a pensar que há talvez outros motivos muito mais perigosos: vai ver que o confronto com essas vidas simples, diretas, repletas de virtudes em estado puro, sem vírgulas, nos incomodaria sobremaneira. Sim, uma bofetada; ou, pelo menos, uma luva que nos é jogada na cara, para enfrentar o duelo e resgatar uma vida digna, sem vírgulas, e tomar posse real do nosso planeta, em solidariedade de virtudes com quem tem tanto para nos ensinar.

Pablo González Blasco

Publicado originalmente em: <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/07/31/uma-boa-mentira-virtudes-humanas-em-estado-puro-sem-virgulas/#more-2417>