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Alegria de viver

Opinião Pública | 23/12/2015 | | IFE CAMPINAS

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Todos desejamos ser alegres. Salvo casos patológicos ou quem faça da acédia seu modo de vida. Todos queremos que a alegria se incorpore em cada um de nós, a ponto de afirmar que almejamos amar de alegria, cantar de alegria, rir de alegria e até mesmo chorar de alegria. Como conseguir a alegria? Foi a pergunta que recebi de um de meus filhos e tentarei aqui respondê-la. Socraticamente. Em outras palavras, devolvendo a hesitação de maneira qualificada.

De onde provém a alegria? Como é possível que comece tão efusivamente e desfaça-se tão rapidamente? Qualquer efusividade futebolística ou etílica consiste numa alegria verdadeira? Ou é uma alegria estritamente “fisiológica”? Como fazer para nunca perder um estado de alegria?

Não é muito fácil responder tais perguntas, porque a alegria, a partir de nossa experiência e intuição, parece ter uma natureza muito peculiar. Se alguém pretende ganhar dinheiro, trabalhar será a solução ordinária. Se alguém pretende aprender história, estudar ainda é a melhor via. Se alguém quer encontrar um bom emprego, qualificar-se profissionalmente ajuda bastante nesse desiderato. Mas se um indivíduo nos questiona como meu filho fez, ficamos perdidos na resposta: não adiante sugerir que se esforce, até porque nem sequer se sabe por onde começar a se esforçar.

Segundo nossa vivência, a alegria parece ser o resultado de uma maneira de viver do que propriamente seu motor principal. É um efeito de nossas disposições anteriores e não sua causa. O reflexo de um íntimo ajustamento pessoal. Como a dor é o sinal de um estado patológico, a alegria é indicativo de um estado de plenitude vital. Recordo-me de Bergson: a natureza avisa-nos por um sinal preciso que nosso destino está alcançado. Esse sinal é a alegria. Onde há alegria, há realização.

Mas que tipo de realização? A realização de nossa sede de felicidade. Analogicamente, diria que a alegria é como uma antena parabólica que se põe em movimento quando se percebe, por uma convicção muito particular, que estamos dirigindo-nos para o centro gravitacional de nossa existência, a busca pela felicidade. E não é necessário que se esteja na posse real dessa felicidade: basta ter a expectativa real de se estar no caminho certo.

A tragédia vital consiste precisamente em se desistir de procurar a alegria ou procurá-la onde ela não está. Como ouvi, outro dia desses, ceticamente, de um amigo acadêmico, já octogenário: todos tentamos tornar nossa vida feliz, mas terminamos simplesmente resignando-nos a suportá-la. Tal afirmação mais se assemelha com uma longa travessia a pé no deserto.

O caminhante, cansado e faminto, vê adiante uma fonte de águas cristalinas, cercada por frondosas árvores que fornecem uma sombra revigorante. Anima-se e as forças extras despertam. Avivam-se os passos, antes cambaleantes, mas, à medida em que se avança, ele vai compreendendo que tudo não passava de uma miragem. Então, não tem mais qualquer motivação para se continuar na travessia e o desânimo toma forma e o absorve por completo.

Assim, cada um de nós, caminhantes dos desertos da vida, podemos ser enganados pelos oásis do ceticismo, das euforias fisiológicas e de situações que mais parecem o mito do eterno retorno, só que um retorno ao negativo ponto de partida existencial.

O mundo ainda não acabou, porque sabe rir. Se meu filho ainda não se convencer, apesar do teor dessas linhas, termino conforme prometido: que tal, nessa virada de ano, rir um pouco? Quem sabe isso possa despertar o sentido mais profundo da alegria e motivá-lo à busca por uma vivência que sacie nossa sede numa fonte verdadeira.

Desejo aos leitores um novo ano repleto de boas realizações. A alegria, então, virá por acréscimo. No meu caso, seguramente, isso significa estar sempre em companhia dos livros, que são meu último reduto em busca de uma vida ainda não alegremente vivida: tal como os mendigos das cercanias da universidade de Oxford, sempre bêbados e agarrados aos opúsculos. Com respeito à divergência, é o que penso. Por fim, lembro ao leitor que o colunista merece umas férias e a coluna regressa apenas em fevereiro.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 23/12/2015, Página A-2, Opinião.

Felicidade à la carte

Opinião Pública | 14/10/2015 | | IFE CAMPINAS

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Num jantar, alguns comensais conversavam sobre a felicidade. Quando fui chamado a dar minha contribuição ao assunto, socraticamente, disse: “Felicidade: haverá tema mais infeliz?”. Nossa sociedade é curiosa. É um paradoxo darmos uma importância excepcional à felicidade individual, talvez como nunca antes na história, e, ao mesmo tempo, tropeçarmos diariamente em pessoas infelizes e insatisfeitas.

Durante muito tempo, nossa realidade foi um vale de lágrimas e contávamos com as graças de nossa advogada celeste para superar esse desterro existencial. Depois que irromperam a ciência e a técnica e sua visão otimista do progresso perene, o homem tornou-se senhor e possuidor da natureza. O Iluminismo veio e canalizou essa atitude ao considerar que o infinito progresso transformaria nossa vida terrestre numa espécie de paraíso.

Como efeito, deu ao homem a sensação de confiança para poder conseguir por si mesmo a felicidade. Essas ideias consolidaram-se nos séculos XIX e XX e, atualmente, seus influxos alimentam dois fenômenos bem presentes: o consumismo e o individualismo, os quais transformaram o presumido direito à felicidade no dever de ser feliz.

Recordo-me, antes, porém, dos livros de autoajuda. A quase maioria dos livros de autoajuda são livros de anti-ajuda. Seguem a toada iluminista ao transformarem a felicidade em direito e, depois, em dever. Conheço gente que começou infeliz lendo um dessas cartilhas e, no final da odisseia, estava mais infeliz ainda.

O consumismo, alimentado pelo capitalismo, concebeu-se de pronto como o meio de se assegurar a satisfação de todas as necessidades. Os mecanismos de crédito adquiriram um papel determinante, porque tornaram possível a realização dos desejos sem a preocupação de se pensar nas contraprestações.

Numa época ainda recente, o sujeito juntava e juntava dinheiro antes de comprar isso e aquilo. Nos dias atuais, com aqueles mecanismos, a ”frustração” de não se poder comprar aqui e agora tornou-se insuportável: importa viver o presente e pagar no futuro. Nem que isso gere uma crise financeira sistêmica, como já se deu num passado recente.

Já o individualismo canaliza nossos esforços para a busca da felicidade desde nós mesmos, de sorte que eventual insatisfação deve ser debitada na conta da responsabilidade exclusiva do indivíduo. Não é à toa que proliferam os negócios relacionados com a realização pessoal, desde as cirurgias estéticas até as pílulas dietéticas, todas a prometer a reconciliação conosco mesmos e a consumação de todo nosso potencial.

Se o homem está condenado à felicidade, então qualquer contratempo converte-se numa espécie de enfermidade e, como doente, o insatisfeito acaba por ver-se como um inadaptado. “É obrigatório ser feliz!”. Se assim é para os indivíduos, o cenário piora para as nações. Na opinião pública, começa-se a falar sobre os índices de felicidade dos países: “país feliz” é tão absurdo como um “hipopótamo voador”. Os países não são pessoas e a felicidade não pode ser medida por níveis de “felicidade interna bruta”.

Aviso aos navegantes: nada disso funciona, porque a “felicidade nacional” não existe. Existem felicidades particulares, individuais, muitas vezes intransmissíveis, que não podem ser reduzidas a um denominador comum. As pessoas não são números, são distintas e irrepetíveis. Muitas vezes insondáveis e insolúveis.

Não adianta se encher de bens e mais bens e fechar-se para os outros. E, depois, ser medido por um índice que não mede nada. Somos, provavelmente, a primeira sociedade na história que produz indivíduos infelizes pelo simples fato de não serem felizes. Tenho a impressão de que não somos donos das fontes da felicidade e que nossa própria finitude deveria nos levar a reconsiderar saídas para esse beco em que nos enfiamos.

Ainda que consigamos aliviar muitas misérias, não podemos seguir concebendo a felicidade como quem solicita esse ou aquele prato num cardápio à la carte. Nesse sentido, a felicidade continuará sendo um tema infeliz. Até para uma conversa de jantar entre amigos. Com respeito à divergência, é o que penso. 

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 14/10/2015, Página A-2,Opinião.

Meu trabalho, minha vida?

Sem Categoria | 16/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Conversava, depois de uma correição-geral ordinária em nossa vara, com nosso ilustre corregedor quando, depois de elogiado por ele sobre o desempenho do cartório, pôs-se a dizer se eu não poderia ”fazer mais um pouco”, já que as metas do CNJ haviam sido batidas a contento. Respondi que, por mais louvável que fosse a sugestão, iria refletir zelosamente, porque tinha sérios problemas “epistemológicos” em aceitá-la: as tais metas viraram uma espécie de fetiche e, sobretudo, meu trabalho nunca foi minha vida.

Graças a Hegel e a Marx, o mundo do trabalho sofreu um grande impacto. A mudança inicial teve lugar no fato de que o homem, ao invés de sentir-se num mundo estável, começou a pensar que suas bases estavam sempre mudando: por evolução da técnica, os bens que construiu, configuradores de seu mundo, começaram a ser substituídos por outros melhores. E, de lá para cá, numa velocidade cada vez maior, ainda que tal fenômeno já existisse, mas sem que fosse sensível no espaço de uma vida inteira.

Essa capacidade de melhoramento técnico dos bens perdura até hoje. A durabilidade de um produto já não é uma qualidade desejada, já que seria um obstáculo à renovação. O mundo continua sendo moldado por processos tecnológicos que nos proporcionam outros objetos, que praticamente ficam obsoletos enquanto os novos estão sendo elaborados: basta lembrar do meu primeiro celular e compará-lo com o atual.

Não questiono as múltiplas vantagens que a técnica tem proporcionado à vida. Todavia, tornamo-nos adoradores do trabalho produtivo, mesmo que, às vezes, ele seja o portador de novos medos que invadem o homem ante as potenciais capacidades destrutivas ou manipuladoras da técnica nele embutida.

Quando o trabalho produtivo eleva-se à condição de configurador de uma sociedade, a pergunta é elementar: uma realidade forjada exclusivamente por esse tipo de trabalho é uma realidade verdadeiramente humana? O louvor desenfreado ao trabalho não pode levar-nos a uma nova realidade que se volte contra o próprio homem, preso nessa laboriosidade sem descanso e sem contemplação junto a alguma transcendência?

Há muitos que creem ser sua vida seu trabalho, porque é ele tão intenso e decisivo que preenche todas suas aspirações. Uma espécie de droga altamente eficiente para a autoestima. Nessa toada, seremos contaminados por uma mentalidade laborativa que acabará por nos conduzir à extenuação por iniciativa própria.

Uma sociedade que vive de produtividade laboral – e, por consequência, de resultados – é uma comunidade de exploração sem dominação, porque envolve uma voluntária submissão a hábitos laborais que asfixiam a vida. E, por se tratar de uma servidão colocada sob signo da liberdade, é de uma eficácia tremenda em termos de resultados. Até encararmos o fracasso e nos responsabilizarmos por isso.

Por outro lado, um trabalho que se transforma em meio de busca de sentido existencial leva, mais cedo ou mais tarde, à instrumentalização de uns sobre os outros. Arendt criticava esse utilitarismo quando assinalava que, no moderno processo de trabalho, os resultados de alguém são julgados por outro alguém em termos de conveniência para o fim proposto e para nada mais. Qual é a utilidade da utilidade, então? Perguntava nossa filósofa, concluindo, numa tacada genial, que a utilidade, estabelecida como significado, gera significação.

A primazia do trabalho produtivo na consideração da ideia de sociedade acaba por reduzir a sociedade humana a uma mera organização laboral, onde a convivência é articulada, artificialmente, de maneira que as pessoas possam convergir suas faculdades apenas no labor e para sempre produzir mais e melhor.

Seria uma espécie de visão antropológica mecanicista que faz, da política, uma técnica e, da sociedade, um edifício, no qual cada um de seus elementos é alheio ao conjunto, estando integrados em razão de fatores extrínsecos somente. Um edifício assentado sobre o erro de considerar o homem somente um ser destinado à produtividade laborativa e, logo, a constantemente ser convencido a “fazer mais pouco”.

Um edifício sem qualquer ponto de apoio sólido o suficiente para ser reformado em suas bases: um problema que nem Arquimedes resolveria. Quanto a mim, sigo a trabalhar para viver. E não o contrário. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 16/9/2015, Página A-2-Opinião