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Meu trabalho, minha vida?

Sem Categoria | 16/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Conversava, depois de uma correição-geral ordinária em nossa vara, com nosso ilustre corregedor quando, depois de elogiado por ele sobre o desempenho do cartório, pôs-se a dizer se eu não poderia ”fazer mais um pouco”, já que as metas do CNJ haviam sido batidas a contento. Respondi que, por mais louvável que fosse a sugestão, iria refletir zelosamente, porque tinha sérios problemas “epistemológicos” em aceitá-la: as tais metas viraram uma espécie de fetiche e, sobretudo, meu trabalho nunca foi minha vida.

Graças a Hegel e a Marx, o mundo do trabalho sofreu um grande impacto. A mudança inicial teve lugar no fato de que o homem, ao invés de sentir-se num mundo estável, começou a pensar que suas bases estavam sempre mudando: por evolução da técnica, os bens que construiu, configuradores de seu mundo, começaram a ser substituídos por outros melhores. E, de lá para cá, numa velocidade cada vez maior, ainda que tal fenômeno já existisse, mas sem que fosse sensível no espaço de uma vida inteira.

Essa capacidade de melhoramento técnico dos bens perdura até hoje. A durabilidade de um produto já não é uma qualidade desejada, já que seria um obstáculo à renovação. O mundo continua sendo moldado por processos tecnológicos que nos proporcionam outros objetos, que praticamente ficam obsoletos enquanto os novos estão sendo elaborados: basta lembrar do meu primeiro celular e compará-lo com o atual.

Não questiono as múltiplas vantagens que a técnica tem proporcionado à vida. Todavia, tornamo-nos adoradores do trabalho produtivo, mesmo que, às vezes, ele seja o portador de novos medos que invadem o homem ante as potenciais capacidades destrutivas ou manipuladoras da técnica nele embutida.

Quando o trabalho produtivo eleva-se à condição de configurador de uma sociedade, a pergunta é elementar: uma realidade forjada exclusivamente por esse tipo de trabalho é uma realidade verdadeiramente humana? O louvor desenfreado ao trabalho não pode levar-nos a uma nova realidade que se volte contra o próprio homem, preso nessa laboriosidade sem descanso e sem contemplação junto a alguma transcendência?

Há muitos que creem ser sua vida seu trabalho, porque é ele tão intenso e decisivo que preenche todas suas aspirações. Uma espécie de droga altamente eficiente para a autoestima. Nessa toada, seremos contaminados por uma mentalidade laborativa que acabará por nos conduzir à extenuação por iniciativa própria.

Uma sociedade que vive de produtividade laboral – e, por consequência, de resultados – é uma comunidade de exploração sem dominação, porque envolve uma voluntária submissão a hábitos laborais que asfixiam a vida. E, por se tratar de uma servidão colocada sob signo da liberdade, é de uma eficácia tremenda em termos de resultados. Até encararmos o fracasso e nos responsabilizarmos por isso.

Por outro lado, um trabalho que se transforma em meio de busca de sentido existencial leva, mais cedo ou mais tarde, à instrumentalização de uns sobre os outros. Arendt criticava esse utilitarismo quando assinalava que, no moderno processo de trabalho, os resultados de alguém são julgados por outro alguém em termos de conveniência para o fim proposto e para nada mais. Qual é a utilidade da utilidade, então? Perguntava nossa filósofa, concluindo, numa tacada genial, que a utilidade, estabelecida como significado, gera significação.

A primazia do trabalho produtivo na consideração da ideia de sociedade acaba por reduzir a sociedade humana a uma mera organização laboral, onde a convivência é articulada, artificialmente, de maneira que as pessoas possam convergir suas faculdades apenas no labor e para sempre produzir mais e melhor.

Seria uma espécie de visão antropológica mecanicista que faz, da política, uma técnica e, da sociedade, um edifício, no qual cada um de seus elementos é alheio ao conjunto, estando integrados em razão de fatores extrínsecos somente. Um edifício assentado sobre o erro de considerar o homem somente um ser destinado à produtividade laborativa e, logo, a constantemente ser convencido a “fazer mais pouco”.

Um edifício sem qualquer ponto de apoio sólido o suficiente para ser reformado em suas bases: um problema que nem Arquimedes resolveria. Quanto a mim, sigo a trabalhar para viver. E não o contrário. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 16/9/2015, Página A-2-Opinião