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A decadência da Filosofia Moral (por Gustavo França)

Filosofia | 13/10/2015 | | IFE RIO

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Quando se fala em pensamento moral em nossos dias, sem dúvida, a primeira referência que nos vem à mente é o famigerado debate entre liberais e comunitaristas. Tanto um lado quanto o outro comportam uma gama variadíssima de autores com ideias bem díspares, mas dotadas de uma linha comum. Com honrosas exceções (como Alasdair MacIntyre (1929-) e Charles Taylor (1931-)), quando esses filósofos se referem a Ética ou a justiça, na verdade, não fazem mais do que reduzi-las a temas políticos. Arranjos institucionais do Estado, políticas de distribuição de renda, legitimação da interferência do poder público nas esferas individuais, esses temas e outros do mesmo naipe são a associação imediata quando alguém anuncia um debate moral. Não faltam autores que batizem de Ética dissertações sobre a mais equânime estrutura tributária de um país.

É extremamente preocupante o fato de acharmos que esse tipo de rasas considerações políticas (de que “Uma teoria da justiça”, de John Rawls (1921-2002), se tornou obra arquetípica) é verdadeira Filosofia Moral. Para entender o que eu digo, basta comparar essas obras contemporâneas com a “Ética a Nicômaco”, de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C), com a segunda parte da “Suma Teológica”, de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) (o mais profundo e completo tratado de Ética já escrito), ou com a “Fundamentação da metafísica dos costumes” e a “Metafísica dos costumes”, de Immanuel Kant (1724-1804), livros clássicos e pilares fundantes das normas eternas da conduta humana.

A causa do monumental abismo entre uns e outros é que esses últimos, de fato, tratam do fenômeno moral: seus fundamentos metafísicos, a constituição da pessoa humana e o valor das ações individuais, assuntos esquecidos na pseudoética dos nossos tempos. A Ética não pode lidar com problemas concretos de Política sem uma compreensão abrangente da vida e da ação humanas e de suas leis universais. Os próprios pressupostos que envolvem a atuação de um poder político, a fundamentação do Estado e de seu corpo jurídico só podem advir de uma investigação profunda acerca da sociabilidade humana e dos princípios transcendentais da organização da vida em comunidade.

Uma moral que não sabe responder sobre o dever de uma pessoa de socorrer um irmão necessitado mediante a esmola e o mandamento da solidariedade não tem condições de discorrer a sério sobre estrutura tributária e distribuição de renda. Ter a moral abdicado de prescrever a conduta individual, fincando bases na Metafísica e na Antropologia, e saltado diretamente para discutir contingências políticas de ocasião (agora vistas como flutuando no ar, já que desprovidas de seus princípios universais) é o que gera a predominância de chavões que brincam inadvertidamente com termos filosóficos, arrancados do contexto de um pensamento completo e, por isso, sem verdadeiro significado, como, por exemplo, a “sobreposição do justo sobre o bem” (como se isso não fosse um absurdo metafísico).

Há pouco tempo, tive que estudar, por motivos ligados à elaboração de minha monografia, a polêmica de Max Scheler (1874-1928) contra Kant. Chega a dar pena comparar esse verdadeiro debate filosófico com a tão badalada disputa entre Rawls e Nozick, por exemplo. Enquanto os primeiros se debruçam sobre os fundamentos últimos da ética, sobre os conceitos de lei, de bens, de fins, de valores e seu lugar na concepção da moralidade, além das distinções gnosiológicas entre forma e matéria, a priori e a posteriori, os últimos não conseguem ultrapassar uma picuinha sobre a distribuição dos bens econômicos de uma sociedade. O decréscimo na profundidade do pensamento moral é gritante.

Creio que poderíamos encontrar a origem disso na influência rousseauniana para a lamentável confusão entre ética pública e ética do Estado. Rousseau concebeu uma sociedade em que desapareceriam todas as instâncias intermediárias entre cada indivíduo e o poder público central, restando a vida social reduzida às decisões fundamentais de política pública. Não é preciso grande esforço imaginativo para vislumbrar aí a dissolução da sociedade no Estado (e o grande sonho de Rousseau, na verdade, era a dissolução do indivíduo no Estado), com o consequentemente redimensionamento da moral (dos planos da consciência íntima da pessoa humana e das articulações comunitárias naturais) para abranger simplesmente projetos de administração central de um povo.

Essa tendência está muito bem refletida, por exemplo, em Jürgen Habermas (1929-) e em suas ideias de “patriotismo constitucional” ou de “cultura política geral”, que representam um patrimônio “moral” comum a todos os indivíduos de uma coletividade, com uma existência apartada dos laços culturais e das instituições comunitárias produzidas por sua interação espontânea ao longo dos tempos. Ainda que, algumas vezes, ele e seus discípulos insistam expressamente que sua ética pública se difere de uma ética do Estado, sua noção de sociedade, sem que eles mesmos o percebam, é de uma sociedade sem sociedade, uma mera instância decisória das ações do aparelho de poder.

Concluindo, é preciso deixar claro que não estou afirmando que a Ética não trate ou não deva tratar de questões políticas. A Filosofia Política nasce da Filosofia Moral e só assim pode ser compreendida. O problema é que teorias políticas devem ser consequência de uma cosmovisão ética, capaz de justificá-las em todas as suas bases últimas, e jamais ideias solitárias lançadas ao vento, indiferentes a ela.

Se o que caracteriza definitivamente a Filosofia é a sua busca por aquilo que é universal e eterno, o que Rawls, Dworkin, Nozick, Habermas, Adela Cortina, Amartya Sen, Walzer, Kymlicka (que só fazem oferecer reflexões desprovidas de universalidade, incompreensíveis fora de pressupostos contextuais contemporâneos, pressupostos cristalizados dogmaticamente e escondidos em raciocínios que se afirmam independentes deles) nos trazem dificilmente pode ser considerado Filosofia Moral. Perto de Aristóteles, de Tomás, de Kant ou de Scheler, são, quando muito, comentaristas de bancada de telejornal. Se quisermos reconstruir uma sociedade sã, capaz de refletir sobre as misérias humanas e sobre os ideais morais, precisamos enxergar além de dificuldades pragmáticas de ocasião e lançar o nosso olhar sobre o horizonte do bem eterno, em cuja contemplação andaram metidos os pais da civilização.

Gustavo França é graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e editor da revista “Dicta& Contradicta”, do Instituto de Formação e Educação.

Publicado originalmente no site da revista Dicta& Contradicta, em 10 de Outubro de 2015. Disponível [online] em <http://www.dicta.com.br/a-decadencia-da-filosofia-moral/>. Último acesso em 13/10/2015.

 

O humor nos tempos da cólera – por Marcelo Consentino

Filosofia | 25/11/2014 | | IFE CAMPINAS

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Mona Lisa, de Leonardo da Vinci (óleo sobre madeira), 1503-1506, Museu do Louvre - Paris.

Mona Lisa, de Leonardo da Vinci (óleo sobre madeira), 1503-1506, Museu do Louvre – Paris.

 

A metafísica do riso ou o riso da metafísica

por Marcelo Consentino

Tudo está bem quando acaba bem.
(Shakespeare)

…e se não está bem é porque ainda não acabou.
(Emenda popular)

Há uma vida eterna? Há um outro mundo além deste, perfeito, eterno e bom? Ou seremos só moléculas soltas num tempo e espaço indiferentes – frágeis e belas bolhas que luzem por instantes até estourar no vazio? A realidade natural, transitória e mortal será a única ou o haverá uma realidade sobrenatural, eterna, ideal, metafísica? E que teremos nós a ver com ela? Filósofos, místicos e sábios de todos os tempos tentaram responder a esta pergunta. Ouso meter minha colher nesse meio e afirmar que sim: o homem é um ser metafísico, espiritual; sim, somos todos chamados a viver eternamente. Posso provar? Não creio, nem quero. Mas há sinais e penso ser possível indicá-los a quem quiser recolhê-los e tentar responder a essa pergunta por si só – se é que o problema lhe interessa.

Um destes indícios é a arte, a poesia. A arte não só imita a natureza, mas a supera. Obras de arte não são simples cópias das realidades exteriores e individuais. Um poeta que canta o amor ou a alegria não descreve meros estados de ânimo privados, mas o que neles há de essencial, ideal e universal, comum a todos nós. Não o faz, todavia, por abstrações – nada mais contrário à arte! –, e sim condensando imagens concretas, e por isso faz vibrar o coração. É por essa união do ideal com o real que a arte nos desperta uma impressão mais forte e potente do que qualquer fenômeno particular. O que eu tenho a dizer sobre minhas experiências amorosas só interessa a mim e quiçá a mais meia dúzia. O que Shakespeare diz interessa a todos, porque não fala simplesmente do seu amor, mas do amor. E fala não por meio de conceitos abstratos, como os filósofos, mas sim por meio de Romeu e Julieta. E não só fala, mas canta – encanta –: é o amor materializado e em movimento; vivo! Assim, a poesia não é só essa ou aquela emoção particular e real, nem só uma definição abstrata e ideal, mas sim a fusão de ambas em uma imagem dinâmica, viva. “A poesia”, diz Pessoa, “é emoção expressa em ritmo através do pensamento”. E se um homem pode produzir estas imagens e se nós outros podemos compreendê-las, isto significa que participamos desta realidade ideal, metafísica, e que portanto o homem é um ser metafísico.

Não tenho a certeza de ter sido compreendido pela maior parte de meus leitores. Numa época em que a vanguarda subjetivista contemporânea acha incrivelmente mais interessante reproduzir qualquer dor de dente ou cotovelo sua do que as colinas e cavalos do antigo realismo ingênuo, é difícil decidir qual dos dois é mais monótono e distante dos autênticos fins espirituais da arte. De todo modo, outro indício – para desgosto de positivistas et caterva, hostis a toda metafísica –, é a própria ciência positiva. As ciências se fundam, em primeiro lugar, na crença de que há certas leis e princípios universais e atemporais, comuns a toda uma classe de fenômenos concretos. E, em segundo, na crença de que o homem é capaz de apreender estas mesmas leis e princípios. Leis e princípios lógicos e metafísicos, portanto. Sinal, mais uma vez, de que o homem é um ser metafísico.

Um terceiro indício é o humor. Ah, leitor, vejo que tens vontade de rir. “Agora basta!”, dirá o cético já não se contendo. O humor?! Então esse humor que usamos todos os dias para passar o tempo – quando não para matá-lo – acaso nos desvelará a eternidade? As brincadeiras que aliviam as asperezas do dia-a-dia em esquinas, bares e escritórios; as piadas que desembrulhamos em risos que caem pelo chão como papéis de bala – como poderá ser isso sinal de uma realidade superior e eternamente bela? Que haverá de metafísico em prazer tão prosaico e trivial? Ma… non è una cosa seria! Sim, é – seriíssima! Repito: o homem é um ser metafísico porque ri.

Vamos lá, leitor amigo, dá-me alguns minutos de teu tempo e tentarei demonstrá-lo, melhor, mostrá-lo somente. Vamos – na melhor das hipóteses sairemos com alguma esperança de que esta nossa vida, minúscula e maravilhosa vida, não é o fim; na pior, poderás rir alguns bocados à custa dos ridículos esforços deste humilde servo. Vamos, porque a coisa é divertida!

O animal que ri

Assim é o homem. Não o digo eu, mas Aristóteles, que sabia mais coisas entre o céu e a terra do que sonhava o taciturno príncipe Hamlet. É certo que os animais sempre foram fonte profícua de observação para psicólogos e de inspiração para poetas. Neles encontramos nossas emoções em sua ancestralidade mais pura – ora cruéis ora doces, mas sempre livres de qualquer cálculo, raciocínio ou dissimulação. Olha de um lado a outro, de cima a baixo o reino animal e verás em carne viva a agonia, o gozo, o pavor, a angústia, a cólera. Mas também emoções mais sutis, mais “humanas”, por assim dizer. Vestígios de compaixão e de amor? Sim, por que não? Afinal, quão sugestivo não foi em todos os tempos um simples casal de pássaros para o coração humano, do mais vulgar ao mais poético? Verás ainda sentimentos mais sombrios: a melancolia, o tédio. E assim, Manuel Bandeira divertia-se observando os cães da roça, “estes cães que parecem homens de negócios: andam sempre preocupados”.

Algo, porém, que os animais não fazem jamais é rir. Podem mesmo chorar, mas o mais leve sorriso foi negado pela natureza aos seus lábios rígidos. Entendamo-nos, pois a questão é séria. Não falo da alegria. Filhotes jogam, brincam, se divertem. Mesmo animais adultos parecem saber temperar a monotonia cotidiana com alguma forma de entretenimento. E quem poderá sondar as delícias saboreadas pelas aves marinhas em seus seus sublimes vôos contemplativos ao longo do imenso azul? Mas onde se achará a descarga do riso, onde a explosão da gargalhada? Não; nossos animais poderão nos acompanhar na saúde e na doença, na alegria e na tristeza; poderão se enfurecer e se afligir conosco, mas algo que jamais faremos juntos é rir. O humor pertence ao humano e ao humano somente – nenhum animal jamais viu algo engraçado no mundo. E assim, mesmo aquele grego tão rigoroso não hesitou em arrolar lado a lado com suas definições do ser humano – o animal racional e o animal político – esta outra, de aparência tão irreverente: o animal que ri.

Deixemos portanto o sorriso sereno da alegria por aqui – quiçá o reencontraremos novamente no fim do caminho – e concentremo-nos doravante naquilo que é só nosso: o riso do cômico. A comédia, a gozação, a sátira, a troça, a chalaça, o escárnio, a galhofa, a burla, a ironia, o sarcasmo: eis as veredas pelas quais haveremos de nos enfiar. Passo a passo, sigamos com atenção – e com uma pitada de irreverência, que cai bem com o tema –
guiados pela regra de ouro de toda investigação: partir do que é próximo em direção ao distante; do conhecido rumo ao desconhecido.

Fenomenologia do riso

O animal que ri! Bergson – em seu delicioso O riso, o melhor livro, em minha opinião, sobre o tema – nota que uma definição igualmente justa seria a de animal que faz rir. Pois se qualquer animal ou objeto inanimado é engraçado, o é só por sua semelhança com o homem, pela marca que o homem lhe imprime ou pelo uso que o homem lhe dá.  Uma paisagem será feia, agradável, sublime, mas nunca cômica – a arquitetura de um prédio ou a forma de um chapéu, por sua vez, podem ser. E mesmo a pachorra de um sapo, a marcha de um pato, a preguiça de um porco; tudo isso só é divertido pelo que lhe atribuímos de humano – como o gato, que parecia a Machado de Assis um animal metafísico sem nunca ter lido Kant. Vemos a nós mesmos neles, e rimos. Não à toa os macacos, primos em primeiro grau, nos parecem os mais cômicos dos animais: são nossa caricatura. Uma vez mais: o humor é coisa humana. Só o homem ri, só o homem faz rir e, em última instância, o homem só ri do próprio homem.

Qual é a primeira coisa que experimentamos ao rir? Alívio e descontração. (Se os gatos lessem Kant, dariam com esta definição: “o riso é uma tensão que se dissolve subitamente em nada”). Que não nos escape o detalhe: não só descontração, como no suspiro e nas lágrimas, mas também alívio, isto é, elevação. Faze agora mesmo a prova se quiseres. Experimenta soltar um longo suspiro de desabafo ou enfado. Agora ri, sim, ri sem motivo. Qual o movimento do corpo? Descompressão do ar e descarga de peso em ambos os casos, certo? Mas acaso não é verdade que no suspiro o corpo parece querer derramar-se pelo chão, ao passo que no riso tende a erguer-se dele?Quem ri se eleva.

Em segundo lugar, o riso exige, por assim dizer, um destaque ou desligamento temporário de nossas emoções. Quanto mais compaixão, medo ou ódio sentirmos por uma pessoa, menos conseguiremos rir dela. É preciso um certo desprendimento. Qualquer impulso de atração, repulsa ou agressividade intenso demais sufoca o riso. Um homem escorrega numa casca de banana: isto é engraçado – mas não será se rachar a cabeça no meio-fio. Após um instante de pânico só começaremos a rir se constatarmos que está tudo bem. Uma insensibilidade momentânea do observador em relação ao seu objeto, e vice-versa, parece ser assim indispensável para o riso. “Destaquemo-nos por um instante e assistamos à vida como espectadores indiferentes: muitos dos dramas se inverterão em comédia. Basta que tapemos as orelhas ao som da música em um salão onde se dança para que os dançarinos nos pareçam instantaneamente ridículos… Assim o cômico – constata Bergson – exige, para produzir todo o seu efeito, algo como uma anestesia momentânea do coração. Ele se dirige à inteligência pura”. De fato, “sentimos” dor, aflição ou prazer, mas ninguém “sente” graça de nada; só se “acha” graça das coisas. Quem ri contempla.

Além disso, o ambiente natural do riso é o grupo. “Não se gozará do cômico se alguém se sente isolado”. O que a princípio soa estranho, pois quem nunca riu sozinho? Ainda assim, o riso parece tender ao contágio, à propagação, “como se tivesse necessidade de um eco”. Entramos numa sala repleta de homens que riem descontroladamente e imediatamente somos contaminados. É espontâneo. O riso parece supor assim uma espécie de cumplicidade natural com outros ridentes, reais ou imaginários; é tendencialmente um gesto social. “Para se compreender o riso, é preciso colocá-lo em seu meio ambiente, que é a sociedade; é preciso determinar sua função útil, que é uma função social… O riso – segunda constatação – deve ter uma significação social”.Quem ri quer se unir.

Juntemos tudo isto e obteremos as condições subjetivas do humor. “O cômico nasce, ao que parece, quando homens reunidos em grupo dirigem toda a sua atenção sobre um deles, calando a sua sensibilidade e exercendo somente a sua inteligência”. Coisa curiosa; pois vejo que se reencontram aqui entrelaçadas as três definições de ser humano: animal racional (que possui inteligência), animal político (que vive em comunidade) e animal que ri (ou que faz rir). O homem ri, portanto, porque faz um juízo crítico de outro ou outros homens dirigido a outro ou outros homens.

Até aqui as condições subjetivas, isto é, as disposições de quem ri. Mas quais serão as condições objetivas? Digo, do que exatamente se ri? O que é engraçado? É certo que o riso nasce de uma crítica, em outras palavras, da constatação de um certo estado de coisas pela nossa inteligência, mas não menos certo é que nem todo estado de coisas é cômico. Muitas tentativas já foram feitas de se definir o objeto do humor. A surpresa– a imprevisibilidade, o improviso – é certamente uma condição sine qua non. Uma piada é realmente engraçada pela primeira vez. Na segunda, terceira e quarta rimos por reverberação, se tanto. O humor deve ser surpreendente.

Também o desconcerto – o desequilíbrio, a contradição, o contraste, a incoerência – parece ser outra característica das mais evidentes. “Para que uma coisa seja cômica é preciso que entre o efeito e a causa haja desarmonia” (Y. Delage). Riríamos assim toda vez que constatássemos alguma inadequação, um tipo qualquer de desacerto ou desencaixe em uma dada situação – qualcosa che non va, como dizem os italianos, gente tão cômica. A arte de pregar peças baseia-se fundamentalmente nestes princípios. Certa vez fui convidado para uma festa. Lapso curioso, mas de resto inocente, é que só se lembraram de me avisar a mim – e a mais ninguém! – que era à fantasia. Um homem que repentinamente invade um salão de saia, peruca e batom é certamente ridículo, incongruente – situação, em suma, “desconcertante”.

Mas tudo isso não basta. Desconcertante é também toda injustiça e crueldade; e desarmônico é tudo aquilo que é feio, grotesco, repulsivo; assim como são imprevisíveis o câncer e a morte – coisas das quais seria preciso antes chorar do que rir. Desta forma, a imprevisibilidade e o “desconcerto do mundo” serão – para se dizer com os filósofos – causas necessárias, mas não suficientes do humor. Em tudo aquilo do qual se ri há certamente desconcerto, mas nem todo desconcerto é cômico – antes, com freqüência será trágico. É, portanto, um tipo específico de desconcerto que estamos buscando. Qual?

Bergson me parece bastante convincente em sua resposta. Sua tese nuclear é que o riso nasce como uma espécie de reprimenda que um determinado grupo dirige ao comportamento inadequado de algum de seus membros. Comportamento este que pode ser resumido nas idéias de distração e rigidez. “O que a vida e a sociedade exigem de cada um de nós é uma atenção constantemente alerta, em condições de discernir os contornos da situação presente, além de uma certa elasticidade do corpo e do espírito que permita nossa adaptação a ela. Tensão e elasticidade, eis duas forças complementares uma à outra que a vida põe em jogo”. Se faltam ao corpo, temos os defeitos, as deformidades, as doenças; se ao espírito, muitos tipos de pobreza psicológica, diversas formas de loucura, todo tipo de inadequação profunda à vida social. “Toda rigidez de caráter, do espírito e mesmo do corpo, será portanto suspeita à sociedade, porque ela é o sinal possível de uma atividade que se entorpece e também de uma atividade que se isola, que tende a se destacar do centro comum em torno do qual a sociedade gravita, de uma excentricidade, enfim”.

Concentremo-nos sobre esse ponto, pois daqui se difundirá uma multiplicidade de sugestões valiosas. O riso é, ao mesmo tempo, uma reação e uma correção a algo que desconcerta ou desequilibra a vida individual ou social. Trata-se, porém, de um desconcerto todo especial: o endurecimento e a distração da vida em sua relação com o entorno, ou ainda, na fórmula sintética de Bergson: a “mecanização da vida”. A vida se apresenta a nós como uma certa evolução no tempo e uma certa difusão no espaço. Capacidade de transformação, adaptação e expansão, eis aí as características que exprimem a vitalidade de um indivíduo. (Penso que tinha qualquer coisa assim em mente o editor desta revista quando escreveu, na terceira edição, seu Elogio do jeitinho). Uma contração desta vitalidade pede uma correção, um retoque ou redefinição, enfim, uma descontração. Esta é a função do riso. Compreende-se a imagem de Bergson para o objeto cômico: o mecânico incrustado sobre o vivente. “O cômico é este lado da pessoa pela qual ela se assemelha a uma coisa, este aspecto dos acontecimentos humanos que imita, por uma rigidez de um certo tipo, o mecanismo puro e simples, o automatismo, enfim, o movimento sem vida”. Daqui se desdobram duas séries paralelas de conceitos opostos com as quais o filósofo explora dialeticamente sua idéia. De um lado tudo o que é rígido – “mecânico”, “contraído”, “automático”, “inflexível”, “imóvel”, “duro”, “obstinado” –; de outro, tudo aquilo que évivo – “móvel”, “versátil”, “maleável”, “plástico”, “gracioso”, “flexível”, “elástico”.

Será fácil agora extrair o fenômeno cômico da variedade de manifestações da vida humana; da vida do corpo à da inteligência. O que é engraçado em uma fisionomia, caricatura ou careta? “Automatismo, rigidez, dobras contraídas e retidas”. O que nos faz rir dos cacoetes de um orador tímido ou pedante? A repetição automática, não natural, porque “uma vida bem vivida não deve se repetir”. Do que zombamos e caçoamos em um amigo? Daquilo nele que é inautêntico, artificial, “a parte de automatismo que ele permitiu que se introduzisse em sua pessoa”. Por que tantas vezes etiquetas, cerimônias, e formalidades são risíveis? Por se tratarem de uma espécie de máscara rija que se veste sobre o corpo social, um disfarce temporário ou “um mecanismo sobreposto sobre a vida, [como sugere] a forma compassada de todo cerimonial”.

E que dizer de nosso caráter, atitudes, comportamentos, enfim, tudo aquilo que determina nossas relações com as outras pessoas? Que pode haver de cômico neles? “O cômico exprime antes de tudo uma certa inadaptação particular da pessoa à sociedade”. Isso faz com que o riso seja sempre um pouco vexatório, humilhante para a pessoa a quem é dirigido, pois ele revela sua exclusão, sua inadequação em relação ao grupo. “O cômico em um caráter individual tende sempre… a uma certa distração fundamental da pessoa”. E ainda, “é a rigidez que é suspeita à sociedade… Quem se isola se expõe ao ridículo, pois o cômico é feito, em grande parte, deste isolamento mesmo”. Daí que o tipo do distraído, o alheado, que vaga perdido no mundo da lua, seja tão cômico. Pelo mesmo motivo, também os apaixonados serão sempre um tanto cômicos. “Desatenção a si e por conseqüência ao outro… E se examinarmos a coisa mais de perto, veremos que a desatenção se confunde precisamente com a insociabilidade. A causa da rigidez por excelência é que o sujeito se recusa a olhar em torno de si e sobretudo para si”. Eis porque alguns dos melhores personagens cômicos são tipos, isto é, esquemas rígidos de comportamento que pré-determinam todas as atitudes do indivíduo tal qual uma marionete – o Avarento, o Jogador, etc. O que explica também a habilidade tão brasileira de etiquetar os amigos com apelidos divertidos segundo certos traços de caráter dominantes. Esse e outros tipos de brincadeiras amigáveis têm a função de advertir ligeiramente o outro para uma sua real ou possível inflexibilidade. “O riso tem justamente por objetivo reprimir as tendências separatistas. Sua função é converter a rigidez em flexibilidade, readaptar cada um a todos, enfim, arredondar os ângulos”.

Por último, quanto à vida da inteligência, o que poderá ser ridículo em nossas idéias, pensamentos, convicções? Retorna aqui a noção de contradição. É risível uma contradição tornada imagem, um “absurdo visível”, segundo Théophile Gautier. Ora, a vida da inteligência é o amor à verdade – adaequatio intellectus et rei, a adequação da mente à realidade, conforme a definição clássica. Assim, prossegue Bergson, “o bom senso é o esforço do espírito que se adapta e se readapta sem cessar, mudando de idéia quando muda de objeto. É uma mobilidade da inteligência que se regula exatamente sobre a mobilidade das coisas. É a continuidade de nossa atenção à vida”. De onde, então, poderão vir as idéias absurdas senão de uma inadequação da mente às coisas? “É uma inversão toda especial do senso comum. Consiste em pretender modelar as coisas sobre uma idéia que se tem, e não as idéias a partir das coisas. Consiste em ver diante de si aquilo que se pensa, em vez de pensar aquilo que se vê”. Estranha inversão: a realidade sendo reformulada pela mente – que provavelmente não anda lá muito satisfeita com ela. Coisa de doido, literalmente. “Um espírito que se obstina [em uma idéia fixa] acabará por dobrar as coisas à sua idéia, em lugar de regular seu pensamento pelas coisas”. Eis ali um senhor que vê gigantes onde todos vêem moinhos de vento. Isso é engraçado!

Antes de concluir essa sessão e passar à próxima, sintetizemos o que foi visto até aqui. A suprema seriedade da vida está na nossa capacidade de fazer escolhas, ou seja, em nossa liberdade. Toda vez que o homem não age livremente, mas automaticamente, inercialmente, ele se tornará de algum modo risível. Ao agir constrangida por alguma inclinação impessoal – seja externa ou interna –, a pessoa será cômica, enfim, “constrangedora”. A função do riso é precisamente descontraí-la, destravando suas energias vitais. “A alma”, diz o poeta Bruno Tolentino, exímio humorista, “a alma, por pior / que se esforce, só peca / quando se petrifica”. Acrescentemos que nesse caso, além de pecadora, será também cômica. É essa coisificação da pessoa que deve ser advertida pelo riso, deixando uma impressão levemente penosa, vexatória para aquele de quem se ri. É inevitável. Digamos sem hesitação: o riso liberta, mas liberta pela humilhação. “Epa!; isso já é um pouco duro e não tem lá muita graça”. Compreendo. Mas só pensamos assim porque tendemos a associar irrefletidamente a humilhação à ofensa e à opressão. A verdadeira humilhação, porém, deve visar a humildade. E a humildade, na definição de Tomás de Aquino, não é senão o “conhecimento das próprias fraquezas e limites”. É só reconhecendo nossas fraquezas que podemos nos tornar fortes; só poderemos ultrapassar nossos limites quando os virmos com clareza. (Não será escusado notar que “humor” e “humildade” têm possivelmente a mesma raiz etimológica. Certo; as raízes do antepositivo latino “hum” perdem-se na ancestralidade da tradição oral. Mas é seguramente a mesma partícula que forma “humus” – “terra” – e “humilis” – “humilde” –, ou seja, “o que permanece na terra, que não se eleva da terra”. E assim o “homo” – o “homem” – é a “criatura da terra”, em oposição aos deuses, criaturas do céu. Terá o “humor” um pé nesse meio? Hipótese incerta, porém plausível – e se non è vera, è ben trovata). Enfim, o riso liberta por revelação – “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Coisa de que passaremos a tratar na próxima sessão. Mas não sem antes retribuirmos a generosidade de mestre Bergson com seu divertido chapéu coco, deixando-lhe um amável sorriso de gratidão. Au revoir, monsieur!

Convido agora o leitor a aprumar-se a fim de requintarmos um pouco nossa jornada. De fato nos elevamos rumo aos domínios da mais fina e cativante donzela do reino do humor. Vejo que já nos olham seus olhos indecifráveis. A Ironia.

A idéia de ironia

Ah, a Ironia! Mulher tão sutil e cheia de mistérios que hesito em me aproximar de seus recintos sem ser levado pelas mãos de um mestre. Dante deu as suas a Virgílio, que o arrancou dos braços do Demônio e o entregou às de Beatriz. Sem muita esperança de dar com uma bela florentina no fim do caminho, passo as minhas logo a dois, Sócrates e Machado de Assis, e “deixo-me estar entre o poeta e o sábio”, como diz Brás Cubas. Mestres da ironia, eles nos ajudarão a desvelar seus enigmas. Com o interesse adicional de que um vem de longe, o outro está logo ali; um das ruas de Atenas, o outro da Tijuca; um da aurora deste nosso Ocidente, tão estúpido e genial, o outro de seu declínio. Ademais, não só dominam como ninguém as astúcias da ironia, mas também a encarnam em sua própria existência. Sócrates, que, convicto de uma missão divina, despertou tantos rapazes gregos para a verdadeira vida espiritual, foi condenado à morte por “irreligiosidade” e “corrupção da juventude”. Que ironia! Não menor que o sucesso pessoal de Machado – preto, pobre, gago, feio e epilético – na corte carioca com seus bacharéis de fraque e cartola. É também irônico que Sócrates, modelo maior de sábio e filósofo para Platão, declarasse que a única coisa que sabia era não saber de nada. Tão irônico quanto o fato de que, mesmo com todo o pessimismo que se lhe atribui, mesmo na época em que a boemia parisiense fazia da excentricidade e da transgressão as vacas sagradas da arte, Machado tenha sido um marido fiel, funcionário público exemplar e fundador da Academia Brasileira de Letras.

Que é, com efeito, a ironia?, “esse movimento ao canto da boca… feição própria dos céticos e desabusados,” segundo Machado. Bem diferente da histérica chalaça – a “gorda chalaça” –, do vulgar deboche e do antipático sarcasmo, a ironia é sutil. Ambígua, sim, mas sempre elegante, discreta – isso porque, diz o mesmo Machado, “o maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado”. Num instante imponderável atinge nossos olhos com os seus, rouba-nos sem sabermos bem o que nem por que, e parte sem dizer para onde. A ironia é fogo que arde sem se ver; é ferida que dói e não se sente; é um contentamento descontente; é dor que desatina sem doer… (Nada mal! De onde me terá surgido tamanha inspiração?). Brincadeiras à parte, os versos de Renato Rus… perdão, os versos de Camões, como ia dizendo, sugerem algo importante sobre a substância da ironia: o contraste e o jogo de aparências. A ironia, em poucas palavras, consiste em dizer – sempre com discrição – o contrário daquilo que se pretende. Contraste, portanto, e mesmo oposição entre o interior e o exterior; o fundo e a superfície; a intenção e a expressão; o espírito e a letra; enfim, entre arealidade e a aparência. Isto quanto à sua forma. Que dizer de sua função?

O humor, já o vimos, tem sempre uma certa finalidade corretiva. A paródia e a sátira, por exemplo, são as ferramentas usuais de uma geração, classe social ou sexo para corrigir os desvios e excentricidades do outro. Pais e filhos; ricos e pobres; homens e mulheres ridicularizando-se entre si. (Embora, vale notar, haja também uma paródia, por assim dizer, metafísica, que ri não desta classe ou daquela geração, mas de todas). Ora bem, de quais excentricidades nos corrigirá a ironia e de que modo? Sim; pois a Ironia tem suas rivais – vêm lá a Vaidade e a Hipocrisia. Atentos, senhores, pois caímos em meio a um enfrentamento de mulheres, e mulheres de estirpe. Que nos escape uma só troca desses olhares felinos e ficaremos, como de hábito, às portas da compreensão. Cautela!, porque o que essas três senhoras têm em comum é precisamente o fato de que nunca são o que parecem ser. Quanta mágoa nos causa a Ironia! E, no entanto, é esse o seu jeito de revelar velando. Não digo o mesmo dessa moça, a Vaidade, menina frívola cujos caprichos e tolas veleidades traem sua ignorância. Já a Hipocrisia, ah mulher diabólica!, fêmea dissimulada! Envolve-nos com seus quereres, infla-nos com sua estima, só para melhor velar nossa miséria, da qual saberá escarnecer no devido tempo. Mas sejamos sérios, componha-se leitor: basta com maiúsculas e prosopopéias. Retornemos aos nossos problemas. De que modo a ironia desfaz o ridículo espetáculo de ilusões criadas em torno de nós pela vaidade e pela hipocrisia?

Retomemos o fio da primeira parte deste ensaio e vejamos se é possível amarrar alguma coisa aqui. O cômico, lá dizíamos, surge quando a vida, que deveria ser flexível, elástica, efusiva, se contrai, endurece e se isola. Inflexibilidade que pode enrijecer desde a vida do corpo até a da inteligência. A ação continuada da vaidade e da hipocrisia sobre nossa vida é das mais venais, pois contrai e isola o seu próprio centro: o coração. O coração é o órgão através do qual amamos os outros, afirmamos seu valor e autonomia, desejamos seu bem, sua felicidade. Também através dele os outros nos revelam o que têm de único e genuíno, sua intimidade mais profunda e pessoal. A vaidade intoxica nosso espírito levando-o a uma espécie de distração crônica em relação ao coração alheio e ao próprio. O veneno da hipocrisia, por sua vez, produz um endurecimento, uma ossificação de nosso coração e uma inflexibilidade em relação aos demais.

Ora, tanto o vaidoso quanto o hipócrita parecem viver em função das outras pessoas. A vaidade é, com efeito, uma admiração que gozamos por nós mesmos, fundada na admiração que cremos despertar nos outros.  Daí que o vaidoso esteja todo o tempo na superfície de si mesmo, oferecendo-se ao olhar alheio. Também o hipócrita vive em função dos outros, diante dos quais deve se apresentar sempre impecável, indefectível e imperativo, e por isso finge, dissimula, esconde tenazmente seu interior, sua própria natureza. Assim, se o vaidoso busca a confirmação de si pelo outro, o hipócrita quer aafirmação de si sobre ele. De fato, mais correto seria dizer que nenhum deles vive em função de ninguém, mas pretendem que todos vivam em função de si. O vaidoso e o hipócrita não amam nada, pois só amam a si mesmos, e qualquer outra pessoa é só um instrumento temporariamente útil para confirmar esse amor… que digo?!, esse egoísmo. Tudo o que o vaidoso, tolo Narciso, vê nos outros é um momentâneo espelho onde possa namorar a si próprio; o hipócrita, por sua vez, só vê neles um eventual objeto de dominação ou desprezo através do qual possa se afirmar. O vaidoso é vão, vago, vazio, volúvel, porque troca de cor e figura a cada nova moda, tendência oufrisson que os ventos soprem. Troca também as relações e amizades. Daí o seu aspecto frívolo, banal, superficial. O hipócrita, ao contrário, endurece sua personalidade escamoteando toda precariedade, insegurança e fraqueza no interior de uma blindagem implacável. Só assim pode manter no exterior seu aspecto de superioridade. Ambos vivem iludidos com as fantasias de grandeza que vestem sobre si mesmos. Mas por dentro, se o coração do vaidoso é indefinido, inconstante e superficial, o do hipócrita é impenetrável e inflexível. De todo modo, contradição entre aparência e realidade; entre uma riqueza aparente e uma miséria real.

Como a ironia pode despertar nosso espírito vaidoso e hipócrita para as farsas que cria sobre si mesmo? Trocando em um passe de mãos aparência e realidade, verdade e mentira como num truque de mágica, a ironia reflete essa contradição, provocando um repentino disparo elétrico em nossas mentes. Num estalo, o que era obscuro se torna claro. Aos avanços da vaidade e da hipocrisia, o irônico reage com a agilidade de um espadachim: em face do vaidoso, faz-se, como ele, superficial; diante do hipócrita, severo. Mas atenção: em aparência, só em aparência. Refletindo as expressões do interlocutor, coloca-se diante dele como um espelho, ou melhor, como sua própria caricatura, onde subitamente o vaidoso vê sua banalidade; o hipócrita, sua intransigência. De te fabula narratur! Técnica idêntica à do sarcasmo, com uma diferença. Para o sarcástico a ridicularização do outro é um fim, para o irônico é só ummeio. O sarcástico delicia seu cinismo esmigalhando as ilusões do próximo, arrancando suas fantasias e abandonando-o nu à própria humilhação. O irônico, se as arranca, não deixa de lhe indicar roupas mais dignas. Revela a mentira para insinuar a verdade. Encenando em si mesmo uma contradição farsesca entre o interior e o exterior, apresenta repentinamente ao outro a sua própria. Se ri com a mesma leviandade do vaidoso, por dentro é sério. Face a face com o hipócrita, ao contrário, mascara-se com seu ar grave, enquanto ri em seu interior. E assim, sugere ao primeiro a profundidade que falta à sua vida; e ao segundo, a irreverência que não tem com a sua.

Mas que sei eu? Há quem tenha dito que tudo é vaidade, e também quem tenha acusado toda a raça humana de hipócrita. Eu, só sei que nada sei, e que Sócrates e Machado sabem alguma coisa. Penso que toda essa filosofia nos subiu à cabeça e estivemos demasiado abstratos – quiçá no mundo da lua ou nalgum outro. Pergunto-me se nossos dois mestres, que além de sábios eram bons poetas, não terão melhor imagem a nos oferecer das vaidades, hipocrisias e ironias deste mundo.

A ironia filosófica de Machado de Assis

É próprio do mesmo homem saber compor comédia e tragédia. O bom poeta trágico deve ser também poeta cômico.

(Sócrates)

Se há algo com que os manuais de literatura concordam sobre Machado de Assis é, em primeiro lugar, que as Memórias póstumas de Brás Cubas marcam a transição de um romantismo juvenil ingênuo para o realismo cético do homem maduro; e, em segundo, sobre o pessimismo de fundo que alimenta toda sua obra. Dizem que teria lido Schopenhauer e incorporado sua visão rabugenta de mundo. Os mais criativos não se contêm e anotam o célebre mote: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Já veremos seu legado. Mas antes, a pergunta: qual estranha alquimia o Bruxo do Cosme Velho realiza em Brás Cubas? Que ingrediente misterioso terá lançado em suas letras para torná-las assim imortais? Sigamos seus passos.

Quem vasculhar as Relíquias da Casa Velha encontrará um dos primeiros contos do jovem Machado, escrito pelo menos sete anos antes das Memórias Póstumas. Valério, folhetim tipicamente romântico, é obra pouco notável em si, mas intrigante, por ser, segundo creio, em boa dose autobiográfica. O protagonista, como Machado, fora nascido na década de 30 “entre lágrimas” e “criado entre penas” – pobre, órfão de pai e auto-ditada. Espremido entre os dois empregos de cartorário e tipógrafo – os mesmos de Machado em seus inícios –, gastava suas migalhas de tempo livre sonhando com a carreira literária. “Tal era a vida de Valério aos trinta anos; abundância de apetite e escassez de jantares… muito trabalho e pouquíssimos recursos. Nulo passado, escasso presente, tristíssimo porvir. Quando Valério meditava sobre as condições da sua existência, a sua mocidade sem risos, o seu futuro sem esperanças, lançava um olhar melancólico para o suicídio, como solução razoável para o problema da vida… Imediatamente, porém, volvia a sentimentos melhores; encarava severamente a responsabilidade que lhe corria de carregar a vida dignamente, sem violência nem rebeldia; adiava o suicídio para o próximo desânimo”. Mas inadvertidamente a Roda da Fortuna gira e Valério é alavancado de sua penúria às alturas. Contratado a bom preço para compor discursos a um coronel, é introduzido pelo mesmo à fina flor da sociedade fluminense e, mais importante, à flor ainda mais fina que é sua filha – moça lindíssima que, claro, corresponde aos olhares do moço. Sonho vão, infelizmente, pois a Roda gira de novo: seu patrono nada mais era do que um canalha avarento e a menina, aproveitadora e fútil – da sociedade fluminense nem se fale. Uma a uma vão se despedaçando todas as expectativas do jovem escritor. Ao fim e ao cabo, “Valério, que cometera outras tolices na sua vida, coroou sua obra indo atirar-se ao mar”.

Mas suponha – só suponha – que no momento em que o rapaz estivesse na praia, contemplando o mundo pela última vez e a morte pela primeira, um vulto colossal de mulher caísse do céu ou se erguesse da terra – não se sabe –, e, estendendo o braço, o segurasse pelos cabelos, levantando-o ao ar como se fosse uma pluma. Bizarro, eu sei. Mas bizarros são os delírios, e o leitor se lembrará que é assim que Brás Cubas narra o seu às margens de sua própria morte. A mulher é Pandora ou Natureza, “mãe e inimiga”, que o leva “à origem dos séculos” e, fitando-o “com os olhos rutilantes como o sol” e “uma expressão glacial”, lhe revela a quintessência do Universo: o Egoísmo. “Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha”. Subamos também nós, vale a pena:

“Contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos Impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, – flagelos e delícias, – desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, – nada menos que a quimera da felicidade, – ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão. Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir”.

Pausa!… Um grito de angústia! Atingimos o momento extremo do delírio; a voragem da agonia; a vertigem do absurdo – tudo é nada e nada faz sentido. E então, que acontece?… “Não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, de um riso descompassado e idiota”. O riso! “Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, – talvez monótona – mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo”. Lá de cima, o espetáculo do mundo, trágico devorar-se das paixões humanas, tornou-se repentinamente… cômico!

Guarda bem esta página, leitor, pois ela vale por muitos tomos de filosofia – “condensação viva” de todos eles. Temo, diante dela, que tanto o realismo quanto o pessimismo de Machado não sejam senão aparência. Coisas de irônico! Em primeiro lugar, custa-me compreender como um romance realista possa ter sido escrito por um… bem, por um morto – um autor defunto, ou melhor, segundo adverte o mesmo, um “defunto autor”. E talvez minha cabeça seja muito dura, mas não acho menos difícil enfiar nela a idéia de que um pessimista amargo tenha se divertido tanto com essa vida. Mas assim é ela vista do alto. De lá via o Padre Melchior, cheio de compaixão viril, o drama de Helena – “eu sou a verdade que afirma, a caridade que consola”, diz ao devastado Estácio. Do alto também a via, com complacência paternal, o Conselheiro Ayres, ora apartando as intermináveis disputas dos gêmeos Pedro e Paulo em Esaú e Jacó, ora unindo as mãos hesitantes dos apaixonados Tristão e Fidélia, ora aliviando o coração em declínio do casal de velhos Aguiar em Memorial de Ayres. De lá, enfim, a vê Deus – ninguém menos – na Igreja do Diabo, divertindo-se com os encontros e desencontros entre os homens e Satanás.

A verdade, leitor, é que assim como Machado se ergue acima do romantismo e do realismo, também se eleva sobre qualquer otimismo ou pessimismo fáceis. Não crês em mim?, crê então no próprio. Ele mesmo tratou de confrontar as duas tendências em Viver!, nas alegorias do titã grego Prometeu e do judeu amaldiçoado Ahasverus. Numa terra desolada surge caminhando este último. Por ter escarnecido as aflições de Cristo no Calvário, foi condenado a perambular pelo mundo até o fim dos tempos. E eles chegaram! (Estivemos na origem dos séculos –
ei-nos agora em seu fim). Derradeiro homem sobre a face da terra, Ahasverus pode finalmente morrer. “Morrer! deliciosa idéia! Séculos de séculos vivi, cansado, mortificado, andando sempre, mas ei-los que acabam e vou morrer com eles. Velha natureza, adeus! Céu azul, terra inimiga, que me não comeste os ossos, adeus! O errante não errará mais. Deus me perdoará, se quiser, mas a morte consola-me”. Triste consolação – pessimismo atroz! Mas uma voz irrompe – não de um homem, mas de um deus. É Prometeu, que, acorrentado ao rochedo onde paga seu próprio suplício pelo furto do imortal fogo olímpico para a raça humana, anuncia o despertar de uma era luminosa: “Os tempos serão retificados. O mal acabará; os ventos não espalharão mais, nem os germes da morte, nem o clamor dos oprimidos, mas tão somente a cantiga do amor perene e a bênção da universal justiça”. Ahasverus, de início cético e resistente, é pouco a pouco contagiado pelo entusiasmo radiante do outro. Finalmente, é-lhe revelado que será ele, ele mesmo!, a semente da nova humanidade: “Uma raça povoará a terra… Nobre família, lúcida e poderosa, será a perfeita comunhão do divino com o humano. Outros serão os tempos, mas entre eles e estes um elo é preciso, e esse elo és tu”. A excitação aumenta à medida que o diálogo se aproxima de uma apoteose: “Rei eleito de uma raça eleita!”, proclama Prometeu, ao que ecoa Ahasverus: “Anda, fala mais… fala mais…” – e assim, segue sonhando… Sonhando?! Sim; era tudo um sonho… Que não nos escape a ironia – como é seu hábito. Um homem que percorreu toda a superfície do globo atravessando incontáveis eras da humanidade, e que a detesta; um deus, isolado pelos séculos em seu rochedo, que a adora. Em qual dos dois encontraremos o espírito de Machado? Nas queixas pessimistas do judeu? Na utopia otimista do grego? Em ambas? Não; olhaste para o lugar errado, leitor. Olha para o alto!, e lá verás duas águias que contemplam a cena. “Ai, ai, ai deste último homem, está morrendo e ainda sonha com a vida”. E a outra:“Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito”.

Lembra, pois, que se acaso encontrares ódio em Machado, é mera aparência velando um excesso de amor. Seu pessimismo é somente a advertência de quem traz os olhos cansados com as ilusões da vaidade humana. “Creiam-me… Ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim”. De minha parte, creio; mas de qual felicidade deveremos nos fiar? Ai, mestre, não nos venha com os feitiços de tua fantasia, não agora; fala com a franqueza do coração ou cala-te para sempre. E de fato ele, viúvo, falou ao amigo Nabuco em derradeira correspondência. “Tudo me lembra minha meiga Carolina. Como estou à beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la, ela me esperará.” Tê-la-á visto? Creio que sim. E tu, leitor, que crês?

A filosofia irônica de Sócrates

O homem é uma errata pensante.

(Machado de Assis)

“Só sei que nada sei”. Não eu, bem entendido, que sei muita coisa, mas Sócrates, que não sabia nada. Pelo menos assim dizia ele quando a profetisa de Delfos lhe revelou ser o homem mais sábio do mundo. Não sabendo como isso fosse possível, não se fez de rogado, enfiando-se pelas ruas da acrópole para tirar a prova de que os deuses não sabiam bem do que estavam falando. Aos homens, que levavam felizes suas vidas, indagava “que é a vida?”, “que é o homem?”, “que é a felicidade?”, e, desconcertado, descobria que ninguém sabia responder. (Alguém aí sabe?). Até tropeçar nos sofistas, que diziam saber tudo. Um sofista é um homem que lhe ensinará a comprovar e convencer os outros do que você bem entender – pelo justo preço, naturalmente. Círculos quadrados e vacas que voam?; sem problemas!, afinal, é tudo uma questão de ponto de vista – pagando bem que mal tem? “Mercadores de idéias”, ralha Platão – sabedoria a varejo. Mas aí entra Sócrates. “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade astuta e aguda que descobre o encoberto” (palavras do autor defunto Machado, mas que cairiam bem ao defunto filósofo). E com sua filosofia “leve e ridente”, “desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos que apostolado” (Machado de novo), desmascara a cada um daqueles senhores a própria ignorância – num repente dissolve, kantianamente, toda sua pretensa sabedoria em nada. O que não é pouco! “Aquele que sabe de sua própria ignorância”, diz o sábio russo Soloviev, “já tem alguma sabedoria e pode vir a ter mais. Não sabes nada? – então aprende. Não tens a verdade? – procura-a. Quando a procuras, já está ao teu lado, mas com uma face velada, e do esforço de tua mente depende a retirada do véu”.

Mas então, Sócrates – formidável sátiro! –, sabias afinal de alguma coisa!? Sabia, sim, que a missão conferida pelo Oráculo não passava de uma ironia divina, uma extraordinária brincadeira de Deus, como declara ao júri que o condenaria à morte: “O que eu penso, senhores, é que na verdade só Deus seja sábio, e que [com a revelação de Delfos] ele queira significar que a sabedoria humana vale muito pouco e nada, parecendo que… se serviu do meu nome apenas como exemplo, como se dissesse:Homens, o mais sábio dentre vós é como Sócrates, que reconhece não valer realmente nada no terreno da sabedoria”.

Sócrates sabe que nada sabe. Coisa que também sabe o cético. Só que esse não quer mesmo saber de nada; ao passo que ele, Sócrates, sabe que não sabe… mas deseja saber – o que, convenhamos, faz toda a diferença. Sua sabedoria é, a um só tempo, umconhecimento de seu desejo e um reconhecimento de sua imperfeição. Desse desejo, deEros, ele sabe bem –
a bem da verdade, é a única coisa de que sabe, como revelou na intimidade dos amigos em um certo baquete regado a vinho e risos. E sabe, porque foi iniciado por outra mulher –
e por quem mais seria? – nos mistérios do Amor: a mística Diotima.

Erguido pelo impulso deste Amor, Sócrates, como Machado, se elevou, segundo consta, pelo menos duas vezes além do mundo – palavra de Platão, no Banquete e noFédro. E o que é esse Amor? “O Amor é a tendência a possuir o bem eternamente” – eternidade, portanto, do amante e do amado. Mas isso não basta. Pedira a nossos mestres as imagens vivas da poesia e não definições abstratas. Machado nos deu a sua, Sócrates não lha há de negar. O Amor, explica, é filho da Pobreza e do deus da Perfeição. Como a mãe, é miserável, ignorante, feio e mortal. Mas traz em si a nostalgia da herança paterna: inquieto e enérgico, arde em desejos pela sabedoria, a beleza e a imortalidade, e as quer perfeitas. “O Amor, por falta das coisas boas e belas, deseja estas coisas que lhe faltam… É intermediário entre mortal e imortal… Há o poder de interpretar e de levar aos deuses as coisas dos homens e trazer aos homens as coisas dos deuses… E estando entre uns e outros preenche este intervalo, de modo a unir todo o Universo entre si… O que é divino normalmente não se mistura com o humano, mas pela ação do Amor eles mantêm entre si todo tipo de relações”. Beleza perfeita e eterna persegue o Amor; qualquer coisa menos do que isso não pode apaziguar seu apetite ilimitado – e por isso, nesse mundo, ela, a Beleza, acaba sempre por “escapar de suas mãos”. Mas deseja não só “contemplar a Beleza”, e sim “procriar na Beleza”, revela Diotima, que sabe mais. O Amor não é simplesmente uma inclinação contemplativa, mas uma energia criativa. Aquele que ama a Beleza imortal imortaliza-se a si mesmo e às suas criações; da à luz a eternidade no seio do tempo – pois“transforma-se o amador na cousa amada”, segundo Camões. Quem recusa esse Amor permanece um “homem mundano”, uma mera “besta entrecortada por desejos”. Quem, por outro lado, se despe das vãs certezas da “sabedoria humana” e se abre à “sabedoria divina”, “enlouquece de amor” e, inundado por um “fluxo amoroso”, transcende sua humanidade, tornando-se “participante de um destino eterno”: um “homem divino”.

Se Sócrates fosse romano, cristão e se chamasse Agostinho, teria dito: “Nos fizeste para Ti, meu Deus, e nosso coração está inquieto enquanto não repousar em Ti”. Não o sendo, fez outra oração, que repito aqui antes de avançar à conclusão: “Concedei-me tornar-me belo em meu interior, e que todas as coisas que tenho fora estejam em harmonia com aquilo que levo dentro”.

È finita la commedia!

Afinal, finalmente, chegamos definitivamente ao fim! Pedi ao leitor alguns minutos e já lhe tomei muitos. E, enviezados pelas nossas veredas, acabamos indo longe: partimos à cata do Humor e viemos dar no Amor – ironias do Destino, grande brincalhão. Mas assim é a vida neste mundo, ópera estranha e fascinante em que vez por outra “o verso vai para a direita e a música para a esquerda”. Se é trágica, cômica, tragicômica ou comitrágica não sei – talvez todas. Sei que é escrita por Deus, orquestrada e regida pelo Diabo e encenada por nós. Pelo menos é isso que asseverava a Bentinho, “depois de muito Chianti”, um velho tenor italiano em Dom Casmurro – e eu dele me fio. Caiam pois as cortinas e ascendam as luzes! Hora de recolher nossas tralhas.

Aristóteles nos ensinou que o homem é o animal que ri. E ri para que? Para libertar e unir, responde em francês Bergson, para descontrair aquilo que anda contraído em nossa vida – para que ela recupere a graça que perdeu. Só assim pode deixar seu isolamento e se reintegrar à vida de todos, à vida universal, tornando-se o que deve ser: força criativa e expansiva. Mas toda a força da vida humana, ao que parece, não é capaz de descontrair a contração definitiva, o isolamento final: a morte. Eis, no entanto, que vem a Ironia, e nos ensina a desconfiar das aparências. Se essa vida termina com a morte, quem sabe se com a morte não começará a verdadeira vida? Quem saberá dizer se a vida não é só um sonho e a morte o despertar? Machado, diante da morte, soube rir, e rindo seguiu pela vida, à espera de subir ao eterno aposento. E Sócrates, que foi morto por rir da sabedoria dos homens, buscou na sabedoria divina a verdadeira vida, a vida do eterno Amor.

E o humor? O humor é humano. Ri, portanto; ri à vontade da Comédia Humana! Diverte-te! Mas nota que nessa, na de Balzac, a farsa começa bem, mas sempre acaba mal. Lembra que as máscaras nalgum momento caem e que a toda terça-feira gorda se segue uma quarta de cinzas; que a alegria que o humor persegue escapa sempre de suas mãos; que o riso é mero espasmo, gota de felicidade que se dissolve subitamente em nada. Mas lembra também que há outras comédias. Há a Divina, de Dante, onde tudo começa mal e acaba bem, nos braços de Beatriz.

Depois de tantas voltas me gira a cabeça, que, como a de Machado, não encontra “nada assaz fixo neste mundo”, e já não sei mais se ainda sei alguma coisa. Mas sei que dizem por aí de um homem que não precisou se elevar além do mundo, porque já estava lá e de lá desceu. Desceu, dizem ainda, para abrir-nos o coração de Deus, a sua intimidade, e revelar que é Ele mesmo o infinito Amor, o eterno apaixonado. Esse homem, dizem também, se dirigia aos homens com uma pergunta – “que procurais?” -, e entregue às mãos deles enfrentou a morte, desceu aos infernos, e, quando subiu, prometeu que ia para preparar muitos aposentos e um grande banquete, para que lá a nossa alegria seja “perfeita”. Isso é o que dizem. Não sei se é verdade – parece que não. Afinal, era só o filho de um carpinteiro da Galiléia. Mas, ah leitor, olha lá que te olham os olhos da Ironia! Lembra que as aparências por vezes escondem realidades outras – leva em conta aquilo que diz Pascal, que Deus é um “Deus escondido”, e também que “tudo aquilo que é profundo ama o disfarce”, como dizia o louco Nietzsche, outro sátiro. Creio que cada um é livre para crer ou não nessas coisas. O que não me entra na cabeça, sempre dura, é a indiferença. É uma promessa grande demais para não ser levada a sério. É imensa! Um Deus que é puro e absoluto Amor!; uma alegria perfeita!… Talvez seja tudo uma ilusão, não sei. Eu, porém, como Pascal, “só posso ter compaixão por aqueles que gemem sinceramente nesta dúvida, que a olham como a pior das infelicidades, e que, não poupando nada para sair dela, fazem desta busca sua ocupação principal e mais séria”.

Mas tenho de me ocupar pelo momento com minhas próprias promessas, não menos sérias. Prometia mostrar que o humor é sinal de que o homem é um ser metafísico. Os cães da roça, bem como todos os outros bichos – e não raro os homens de negócios – andam sempre muito preocupados porque vivem imersos entre as coisas deste mundo. Olham para elas e sentem cólera, desejo ou medo, mas nunca acham graça, porque não conseguem se destacar, não podem se despreocupar – quando o fazem, dormem. O animal não vê, como Sócrates e Machado viram, que tudo na vida tem dois lados – o lado de cá e o lado de lá. Meu argumento final é simples e com simplicidade o entrego às mãos do leitor: se podemos rir deste mundo, vasto e desconcertado mundo, é só porque pertencemos também a um outro. E quem me garantirá que esta vida, com seus interesses mesquinhos, não é uma ridícula paródia da outra?

E a moral da história?, dessa hás de gostar: é que, por mais desgraçada que vez por outra pareça essa vida, podemos rir dela à vontade – espera-nos a outra, a verdadeira. Paz na Terra aos homens de boa vontade – e alegria aos homens de bom humor. O humor liberta, liberta como o amor. “Ama e faz o que quiseres!”, exclamava Agostinho. E mais: podes também, antes, deves amar a ti mesmo à vontade. Não há vaidade nem hipocrisia nisso. Mas desde que – e eis a condição que purifica de todo veneno! – desde que ames ao próximo como amas a ti mesmo – assim dizia aquele galileu, o judeu abençoado Jesus Cristo. (So, “all we need is love?” No, certainly not! We also need God… But that’s another story). E quanto ao humor? Aquele homem também dizia que temos de nos tornar como crianças; então olha para elas, e com elas aprende a olhar a vida:Olha e ri do que quiseres! Pro quinto dos infernos com os politicamente corretos!, gente incorrigivelmente sem graça. Ri dos outros – isso os libertará. Mas tenta, na medida do possível, rir com eles, e não deles, como se diz às crianças. Envolva-os com teu humor. E, mais importante, a condição fatal sem a qual tudo se infecta: aprende a rir de ti mesmo com a mesma facilidade com que ris do teu próximo. Ri com humildade, ó “criatura da terra”. Sim, porque és feito do mesmo barro que todos nós, e as tolices e ilusões da tua vaidade e hipocrisia são tão ridículas quanto as de qualquer outro.

Creio ter cumprido minha promessa: expor o riso ou expor-me a ele. Talvez não haja afinal nenhuma vida eterna e só nos caiba levar avante o curso desta vida que fluirá seus breves momentos até desaguar num imenso oceano escuro como a noite. Talvez a quintessência do Universo não passe mesmo de um egoísmo brutal que gira com indiferença cega esfacelando os seres do pó ao pó; uma Natureza homicida que devora incessantemente seus próprios filhos. Talvez, leitor, toda essa história de seres tu chamado a tornar-te eternamente belo num mundo perfeitamente bom não seja senão um transtorno cerebral meu; um delírio qualquer de morte ou de amor, como os de Sócrates e Machado. Talvez… Mas essas coisas eu falo a sério. É claro, porém, bom amigo, que se disso tudo só tiras absurdos, és livre para rir!

Marcelo Consentino é doutorando em filosofia da religião pela PUC de São Paulo, mestre em filosofia pela Università Santa Croce de Roma e Presidente do IFE. Ensina história da cultura ocidental no curso O Ocidente e suas trajetórias (http://www.ocidentalismo.blogspot.com).

Texto publicado originalmente na revista-livro Dicta&Contradicta, nº 4 Dez/2009, do Instituto de Formação e Educação (IFE).

Étienne Gilson e a metafísica contemporânea

Filosofia | 28/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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Gilson-Ilustra-MoraesHá quem pense que o historiador da filosofia francês, Étienne Gilson, que escreveu obras como A Filosofia na Idade Média, O espírito da filosofia medieval, Heloísa e Abelardo e ainda Introdução ao estudo de Santo Agostinho, seja apenas o autor dessas obras que estão acessíveis em português a todos. Mas a obra de Gilson é vasta, compreendendo mais de 50 títulos, de modo que o que conhecemos dele em português é muito pouco. Embora haja outros livros dele publicados mais recentemente em português, como Introdução às artes do belo e O Filósofo e a Teologia, poucos conhecem um de seus textos como filósofo (e não como historiador da filosofia), que ainda não recebeu tradução, o The unity of philosophical experience, e que é comentado pelo texto a seguir.

O texto que segue é de Renato Moraes, publicado na seção da revista-livro Dicta&Contradicta  4, “O LANÇAMENTO QUE NÃO HOUVE”, dedicada a livros como esse: importantes mas que não receberam tradução no Brasil. No texto, Moraes trata não apenas do livro filosófico de Gilson, mas também do tomismo e da metafísica contemporânea. É um bom texto para se introduzir em um pouco daquilo que Gilson explorou como pesquisador e também realizou como filósofo. Ao final, coloco um anexo com uma lista atualizadas de obras de Gilson traduzidas para o português e outra lista com obras dele em francês e em inglês pouco conhecidas.

Boa leitura!

***

Quero minha metafísica de volta! – por Renato José de Moraes

Com o perigo de sermos da espécie de ensaísta que, para falar de qualquer coisa, tem que começar com Adão e Eva, antes de tratar de The unity of philosophical experience, de Étienne Gilson, parece-nos importante comentar sobre aceitação da filosofia de São Tomás de Aquino na Idade Média e na Idade Moderna, bem como sobre o surgimento da neoescolástica, no final do século XIX. Assim, será possível contextualizar melhor a importância do nosso autor e do livro cujolançamento não houve.

A filosofia tomista aos trancos e barrancos

A trajetória do pensamento de Tomás de Aquino (1225?-1274) na história da filosofia é acidentada. Estando vivo o simpático pensador, sua doutrina foi duramente criticada por várias frentes: os professores seculares da Universidade de Paris, que combatiam os professores oriundos das ordem mendicantes, isto é, os dominicanos e franciscanos; os averroístas latinos, que propunham uma interpretação de Aristóteles contrária às verdades da fé cristã; e, finalmente, os pensadores conservadores da linha agostiniana.

Ao contrário do que diz certa hagiografia, Tomás de Aquino não era um pensador com a cabeça nas nuvens, lento para agir e puramente racional ao argumentar. Ele combateu seus adversários no campo deles, e sobrepujou a todos. Escreveu libelos de defesa da espiritualidade mendicante; comentou os principais livros de Aristóteles, mostrando os equívocos da interpretação averroísta; e, com a filosofia do Estagirita, construiu uma síntese até hoje não superada.

No entanto, essa vitória teve o seu preço. Pouco depois de sua morte, seus inimigos fizeram uma série de intrigas e conseguiram que algumas teses, ao menos aparentemente dele, fossem incluídas em uma condenação promovida pelo Arcebispo de Paris, Esteban Tempier. Essa condenação jogou um véu de desconfiança sobre o pensamento do Aquinate.

Apesar do apoio decidido da maior parte dos dominicanos, a filosofia tomista passou a ser cultivada por grupos minoritários, contando com a decidida oposição dos teólogos franciscanos. Essa situação perdurou por séculos, apesar de pensadores tomistas terem conseguido fazer valer as teses do mestre em momentos importantes, como nos Concílios de Trento e de Florença.

Os séculos XVII e XVIII não foram nada favoráveis ao pensamento tomista e ao escolástico, ficando os teólogos inebriados com a filosofia moderna. No início do século XIX, de maneira um tanto clandestina, o tomismo começou a ser estudado em algumas cidades italianas, notadamente Piacenza e Nápoles. Apesar de trabalhado nesse âmbito restrito, chegou ao conhecimento de Joachim Pecci, que seria Arcebispo de Perugia e, em 1878, eleito Papa com o nome de Leão XIII.

A neoescolástica

Em 1879, Leão XIII lança sua segunda encíclica, Aeterni Patris, na qual propõe a filosofia de Tomás de Aquino como a resposta para os desafios lançados contra a doutrina católica pelas escolas de pensamento modernas. Esse acontecimento é considerado o começo do neotomismo, ou seja, a escola de pensamento que procurou estudar a obra de Tomás de Aquino, compreendê-la e aplicá-la às necessidades atuais.

O tomismo, até então marginalizado, torna-se, com a bênção papal, ao menos nominalmente, a filosofia predominante da Igreja Católica. Os escritos do filósofo passam a ser editados de maneira rigorosa e são estudados por vários teólogos e filósofos católicos.

Nesse primeiro momento, o neotomismo tem um caráter mais arqueológico, buscando compreender a doutrina de Tomás em continuidade com seus comentadores medievais, sem trazer muitas novidades. Destacam-se nessa fase os franceses Sertillanges e Garrigou-Lagrange, com sólidos trabalhos filosóficos e teológicos.

Contudo, mais importante ainda será a segunda geração neotomista, que procurará redescobrir o pensamento autêntico do mestre. Aparecem aqui as figuras de Étienne Gilson e de Cornelio Fabro, talvez os tomistas de maior relevo no século XX. Ambos sustentam que o núcleo da metafísica tomista é a noção de “ato de ser”, que seria uma novidade em relação à filosofia anterior a Tomás  de Aquino e que não teria sido bem compreendida pelos seus discípulos, que logo confundiram o “ato de ser” com o mero existir.

Esses temas metafísicos, ainda que apaixonantes, não são o objeto deste nosso estudo. Mas vale lembrar que a metafísica não é uma série de pensamentos obscuros sobre assuntos que não servem para nada. “Em que a metafísica vai me ajudar para fritar ovos, ou para ganhar dinheiro?” Talvez em nada. Mas ela explica a verdade que está por trás do ovo e do dinheiro, e também de nós mesmos. Se não há metafísica, não faz muito sentido fritar ovos, e muito menos ganhar dinheiro. Tudo seria uma grande ilusão, ou simplesmente matéria gerando matéria – afirmar isso já é fazer metafísica, mesmo que de baixa qualidade –, e a liberdade do homem seria um engodo.

A metafísica tomista, conforme estudada por Gilson e Fabro, representa um avanço em relação à aristotélica, e não uma mera continuidade. Essa percepção abriu caminho para outros tomistas importantes, como Josef Pieper – pese que não queria se definir como tomista, mas, enfim, na falta de uma palavra melhor… –, Ralph McInerny, Stephen Brock, John Wippel, Angel Luiz González, Leonardo Polo, Leo Elders, e um longo etc.

Infelizmente, ainda pouco se conhece desses filósofos na maior parte das nossas universidades, que tendem a valorizar exclusivamente o pensamento de tipo moderno e imanentista, em muitos casos ignorando a filosofia contemporânea inspirada na tradição antiga e medieval. Assim, perdem-se autênticos tesouros filosóficos, que trariam importantes contribuições ao debate atual de idéias.

Apesar disso, é visível o ressurgimento do interesse pelo pensamento clássico e medieval em várias partes do mundo. Nas primeiras décadas do século XX, os tomistas estavam praticamente restritos aos círculos católicos e, na maior parte das vezes, eclesiásticos. De maneira paulatina, filósofos leigos das universidades começaram a se dedicar a essa escola de pensamento e a produzir muito do que há de melhor nela. Isso se deve, em boa parte, ao labor de Gilson.

O pensamento de Tomás de Aquino vai adquirindo evidentes foros de respeitabilidade. Hoje, não é possível ignorar contribuições como as de John Finnis ou de Alasdair MacIntyre, autores profundamente influenciados pelo tomismo, o qual ganha força nos campos da ética, da política e da filosofia da ciência. Somando-se isso à sua presença na metafísica, na antropologia filosófica e na teologia, vemos que a obra de Tomás tem caráter universal e enciclopédico, abrangendo praticamente todos os domínios do saber humano, e com contribuições relevantes em cada um deles.

Renovar redescobrindo: a obra de Gilson

O papel de Étienne Gilson no fortalecimento e renovação do tomismo é excepcional. Aliás, não só do tomismo, mas de toda a filosofia medieval: as obras de Gilson sobre Santo Agostinho, Duns Escoto e São Boaventura permitiram que mais gente tomasse contato com esses importantes autores, que tanto têm a nos dizer. E não se pode esquecer a monumental A filosofia na idade média [1], uma referência fundamental no assunto.

Não se considerava primeiramente filósofo, mas um historiador da filosofia. Gilson não quis fazer uma obra original, mas sim verdadeira: enxergava no pensamento medieval tamanha riqueza, desconhecida da maior parte dos seus contemporâneos, que envidou seus melhores esforços em trazer à tona o que os antigos disseram, para que pudessem iluminar também a nossa época. Notamos aqui a humildade desse autor, que não buscou fundar uma espécie de gilsonismo, mas preferiu se ater à verdade.

Em uma página memorável, Gilson descreveu a atitude de Tomás, que também era a sua: “Tomás de Aquino disse coisas tão lhanamente verdadeiras que, da sua época até hoje, muito poucos foram capazes de esquecer-se de si mesmos o suficiente para aceitá-las. Há um problema ético na raiz das nossas dificuldades filosóficas; nós homens somos muito voltados a buscar a verdade, mas reticentes em aceitá-la. Não gostamos que a evidência racional nos encurrale, e inclusive quando a verdade está aí, na sua impessoal e imperiosa objetividade, continua de pé a nossa maior dificuldade: para mim, submeter-me a ela, apesar de não ser exclusivamente minha […]. Os maiores filósofos são aqueles que não titubeiam na presença da verdade, mas lhe dão as boas vindas com estas simples palavras: Sim, amém”.

Ah, a vaidade de ser “original” em filosofia… Quantos desastres intelectuais e vitais não surgiram dessa vã pretensão! Boa parte do pensamento moderno se explica pelo desejo de destruir o que fora feito antes e substituí-lo pelo que eu, o verdadeiro gênio, pensei. O meu sistema é melhor do que anterior, exatamente porque é meu. Essa praga é combatida por Gilson com seu saudável e – vamos usar a palavra, apesar de alguns a considerarem um palavrão – tradicional tomismo.

Tradicional, mais ou menos. Mais, porque Gilson propugnou o estudo direto dos textos de Tomás, evitando seus comentadores, que pulularam logo depois da morte do filósofo e, em parte, distorceram seu pensamento. O Cardeal Caetano, por exemplo, separou-se do mestre em pontos fundamentais, como a prova racional da imortalidade da alma e a distinção real entre ser e essência. Por sua vez, João de São Tomás, cujos trabalhos sobre lógica são atualmente bastante valorizados, tomou rumos não tomistas em importantes questões metafísicas.

Gilson percebeu o perigo de estudar a obra de Tomás pelos olhos desses comentadores; portanto, dirigiu-se diretamente aos textos do teólogo italiano, para perscrutar seu espírito e verdadeiro conteúdo. Nesse sentido, o tomismo do filósofo francês era tradicional, porque retornava às fontes mesmas da filosofia tomista.

Ao mesmo tempo, era menos tradicional, porque rompera com a tradição formada exatamente pelos comentadores de Tomás, que deram origem à escola do tomismo. Gilson deixará para trás o trabalho desses comentadores, ainda que reconhecendo o seu valor, e, como dissemos, proporá uma nova interpretação da filosofia do Doutor Angélico. Esta está na base de The unity of philosophical experience.

Uma história filosófica da filosofia

Esse livro é um apaixonante relato de experimentos que procuraram dirigir a filosofia de acordo com um método impróprio. O autor não apenas descreve esses processos, mas procura as causas da deterioração de cada um deles, propondo ao final um método filosófico que se veja livre das falhas que, repetidamente e em épocas bastante diversas, fizeram com que o pensamento descambasse no ceticismo.

A obra foi escrita originalmente em inglês e é o resultado de um ciclo de conferências que Gilson ministrou na Universidade de Harvard, na primeira metade do ano acadêmico de 1936-7. Sem ser um trabalho preso àquela época, é interessante lê-lo recordando que foi escrito pouco antes da Segunda Guerra Mundial, na qual ideologias fundadas no desenvolvimento do hegelianismo – o nazismo, o fascismo e o marxismo – levaram o mundo à atrocidade. Por então, esses monstros já mostravam suas garras, e um homem inteligente e atento como Gilson não podia deixar de ver neles o maldito fruto de graves erros filosóficos.

Um aspecto que chama a atenção é a pena fluente do autor. Gilson tem o dom da clareza; contudo, ao contrário de muitos pensadores gauleses, isso não é em detrimento da profundidade e rigor intelectual. Além disso, mantendo sempre o tom acadêmico, não é jamais frio ou desinteressante. Antes, prende o leitor no meio de discussões sobre a filosofia árabe medieval, o ocasionalismo de Malebranche, a formação do pensamento kantiano, as elucubrações espantosas de Comte, as explicações de Ockham sobre o conhecimento… Convenhamos, não é tarefa fácil, mas ele o conseguiu. Há um bom humor subjacente em tudo o que diz, e a leitura é sempre sugestiva.

Chama a atenção a erudição e domínio dos temas presentes no livro. Não há como negar que Gilson é um dos maiores – se não o maior! – historiador da filosofia medieval. Até aí, tudo bem. Contudo, seu discorrer sobre a obra de Descartes – que, curiosamente, foi a porta de entrada de Gilson no pensamento medieval, mas isso é outra história… –, de Malebranche, Locke e Hume; de Comte, de Kant, Hegel e Marx, são excelentes. O historiador francês captou o núcleo desses autores, com conhecimento das fontes primárias e dos principais comentadores.

Enfim, vemos na obra o trabalho de um especialista em filosofia medieval, adepto da visão filosófica e teológica de Tomás, que consegue examinar a fundo, porque estudou seriamente e de forma honesta, as principais correntes do pensamento moderno e contemporâneo. É o contrário de qualquer especialismo – como o daquele professor que só podia falar de O nascimento da tragédia, de Nietzche, porque era o tema do seu doutorado de vinte anos atrás –, bem como da superficialidade chutadora dos que conhecem a filosofia por manuais, compêndios e poucos livros mal lidos.

The Unity of Philosophical Experience foi dividido em quatro partes. As três primeiras tratam, respectivamente, do experimento medieval, do cartesiano e do moderno, e a quarta traz as conclusões do autor. Vejamos o que diz cada uma delas.

O experimento medieval, ou a confusão dos universais

Gilson começa sua explanação sobre a filosofia medieval citando a observação de que ela foi pouco mais do que uma tentativa obstinada de resolver um só problema: o dos universais, ou seja, dos conceitos e das idéias gerais. Como podemos explicar que pensemos por conceitos, que aplicamos a vários entes semelhantes – por exemplo, animal, que se pode predicar de um leão, de uma girafa, e do próprio homem –, mas que não existem por si mesmos em nosso mundo? Essa aplicação de um conceito geral a entes individuais tem algo de verdadeiro, ou é apenas uma economia de linguagem, ou mesmo uma ilusão? Em outras palavras: há alguma relação entre o nosso pensamento e a realidade?

A partir dessa questão – e que questão! –, Gilson explica a filosofia de Pedro Abelardo, célebre pelos seus amores por Heloísa, mas muito mais importante pelo seu pensamento. Segundo Gilson, Abelardo procurou resolver a questão dos universais, profundamente filosófica, com o método e os conceitos da ciência que conhecia, a lógica. Aliás, esta era a única ciência cultivada de verdade em sua época, e não estranha que a tenha empregado para o seu propósito de explicar o problema que atormentava os filósofos de então.

O caso de Abelardo é um excelente exemplo da presunção científica na filosofia, que vai se repetir nos outros experimentos descritos pelo filósofo francês. Porfírio, que escreveu uma famosa introdução às Categorias, de Aristóteles, reconhece que surge da lógica o problema dos universais, mas sabiamente afirma que não cabe a ela resolvê-lo, pois é um tema relativo aos filósofos, não aos lógicos. O grande Abelardo, por sua vez, não compartilhou a prudência do autor da Isagogee entrou de cabeça no problema filosófico dos gêneros e espécies.

A tragédia abelardiana está em que ele ignorava o que outros antes dele – especialmente Aristóteles – escreveram para explicar esse problema. Como escreve Gilson, em uma das centenas de frases lapidares e divertidas que se encontram no livro, “Abelardo achava-se nesse feliz estado de ignorância que com tanta facilidade faz com que um homem inteligente seja original. (…) Ao não ser nada mais do que um professor de Lógica, não havia nada nele de metafísico para o envergonhar de não ser mais do que lógico”. Essa falta de vergonha fez com que atravessasse tranquilamente a linha que divide a lógica da filosofia e da metafísica sem se dar conta disso, e o resultado foi um tropeço.

Abelardo sustentou que os conceitos com que pensamos não representam nenhuma realidade externa a nós mesmos. Contudo, se assim é, porque aplicamos a palavra “animal” corretamente a alguns entes, e não a empregamos com outros? Por que chamo “animal” ao elefante, ao macaco e ao papagaio, mas não ao quartzo, à hortênsia ou ao anjo? A resposta de Abelardo a essa pergunta nunca foi satisfatória, e ele mesmo foi honesto o suficiente para eliminar todas as pseudo-soluções que lhe podiam servir. Acabou afirmando que há algo de comum a todos entes dos quais predicamos um nome universal, mas esse algo comum não é uma essência, e sim um estado, uma condição. Era uma forma de ser, mas não uma coisa. O que isso significa exatamente, Abelardo não será capaz de explicar (aliás, parece impossível que o conseguisse…). Seu pensamento termina em um beco sem saída.

O logicismo será seguido por outro equívoco, o teologismo. Este consiste em aplicar à filosofia categorias puramente teológicas, o que termina por eliminar a natureza e a consistência das realidade criadas em favor da onipotência e grandeza de Deus. Como afirma Gilson, “por diversas que essas doutrinas (do teologismo) possam ser de acordo com as diferentes épocas, lugares e civilizações em que foram concebidas, parecem-se sempre, ao fim e ao cabo, em que todas se encontram intoxicadas por um determinado sentimento religioso a que chamarei, em favor da simplicidade, sentimento da Glória de Deus”.

São Boaventura, um dos maiores teólogos e místicos cristãos, foi um expoente dessa corrente. Demonstra-o o título de um dos seus escritos místicos: Sobre a redução das Artes à Teologia. A função da filosofia seria conhecer não as coisas, mas Deus através das coisas; seria assim reduzida a um departamento pouco importante da teologia. Contudo, para que a filosofia possa nos levar a Deus, precisa antes ser autêntica filosofia, o que não acontece na concepção do franciscano.

A teoria da iluminação divina no conhecimento, tão cara a Boaventura, se levada às últimas conseqüências, acaba negando o conhecimento natural: todo o conhecimento passaria a ser sobrenatural e uma dádiva de Deus. Também não existiria causalidade eficiente na ação das criaturas, porque Deus criou tudo desde o início do mundo, o que foi e o que ia ser, e a realidade simplesmente vai se desenvolvendo pela ação divina. O universo é inerte, sem força intrínseca, sendo manejado totalmente por Deus em cada momento.

O teologismo, entendido dessa forma, poderia levar, contra os desejos do sucessor de Francisco de Assis, a concluir que não há liberdade, porque tudo está determinado desde a criação. Essa era a postura de alguns teólogos árabes, que também foram, no âmbito da religião islâmica, partidários do teologismo. Os discípulos de Boaventura perceberam esse perigo e tentaram se afastar dele, sem muito êxito.

A terceira tentativa do experimento medieval foi a de Guilherme de Ockham, franciscano inglês que influenciou a teologia luterana. Considerava-se um aristotélico, mas suas conclusões destruíam tudo o que Aristóteles afirmou. Ao tratar do tema dos universais, Ockham procurou se afastar de qualquer resquício de realismo, que considerava ainda presente em Abelardo. Este seguia considerando haver um fundamento na realidade para dizer que todos os animais têm algo em comum. Já o filósofo inglês afirmará, de maneira radical, que tudo o que existe é individual; por isso, nada pode corresponder na realidade a nossas idéias universais.

Segundo explica Gilson, Ockham chegou a uma “posição pura”, e quando isso acontece, dá-se habitualmente uma revolução filosófica. Como nossas idéias não têm nenhuma relação com a realidade, podemos levá-las ao paroxismo. A partir da negação dos universais, o filósofo inglês reconstruirá toda a filosofia e a ciência sobre o individual. Para Ockham, qualquer explicação não contraditória é válida, já que Deus poderia fazer as coisas diferentes do que são em virtude da Sua onipotência. Por isso, os filósofos não devem perder tempo em especular sobre as causas hipotéticas das coisas atualmente existentes, pois no fundo são como são em função da vontade divina.

Antecipando Hume, Ockham destruirá também a causalidade. Porque empurrei uma bola, não posso por isso concluir que a causa do movimento dela foi a minha ação. Afinal, poderia ter havido outro resultado. O que existe é uma mera associação de idéias entre a minha ação e o movimento da bola, que não representa efetivamente que um foi a causa do outro. O conhecimento se torna algo vazio, sem relação com a realidade. Estão abertas as portas para o ceticismo.

De fato, Gilson termina de explicar o experimento medieval mostrando a sua queda no ceticismo, que é a recusa a filosofar, e não propriamente uma filosofia. As várias escolas medievais, que não se entendiam, propiciaram um clima de desconfiança da filosofia. Os pensadores do “outono da Idade Média” (a bela expressão de Huizinga…) querem salvar a religião cristã não na filosofia, mas propondo a simples leitura do Evangelho e dos Padres da Igreja, bem como a adesão a uma moralidade compartilhada com os autores pagãos – daí a fortuna do estoicismo nessa época. Não convinha mais filosofar para buscar entender os problemas profundos da existência humana e do universo.

Nicolau de Cusa e Petrarca seguiram essa linha e a tornaram popular. A douta ignorância tornou-se uma meta a ser atingida, e não um estado incompleto a ser vencido. Nas palavras de Gilson: “quando os escolásticos abandonaram toda esperança de dar resposta aos problemas filosóficos à luz da pura razão, cessou o brilhante e longo caminho da filosofia medieval”. Esse cansaço intelectual irá desembocar no mais famoso dos céticos, Montaigne.

Descartes e a matemática universal

O segundo experimento examinado por Gilson é o cartesiano. O homem não é um ser dubitativo, e por isso o ceticismo não dura muito tempo como atitude dominante. Surge habitualmente alguém que procura reconstruir tudo de cima a baixo. O remédio a Montaigne, cujos Ensaios foram publicados em 1580, foi oDiscurso do Método. Aliás, várias passagens desta obra são um eco ao escrito de Montaigne. Não se trata de uma mera briga entre franceses, mas do começo de uma nova era filosófica que se propõe enfrentar toda uma sucessão de erros, sendo ela mesma bastante equivocada. Ah, se os homens tivessem ouvido Tomás… Mas não o fizeram, e deu no que deu: da indigestão de Montaigne cairemos no porre de Descartes.

Afirma Gilson: “Montaigne foi e é ainda para muitos um mestre, mas a única coisa que se pode aprender dele é a arte de não aprender. Essa arte é muito importante e em nenhum lugar é aprendida melhor que nos Ensaios; o mau dosEnsaios é que não ensinam outra coisa”. No ponto! E Descartes procurará sair desse atoleiro através da matemática, que seria a única ciência que nos dá certezas evidentes e inatacáveis.

Não estranha que Descartes tenha partido da matemática, porque era um matemático genial. Em algumas horas, foi capaz de resolver uma série de problemas que há muito aguardavam resposta e fundou a geometria analítica. Nas palavras de Gilson: “Efetivamente, a filosofia de Descartes não é mais que um experimento temerariamente realizado para ver o que se torna o conhecimento humano quando se modela de acordo com a evidência matemática”.

A razão da postura cartesiana não é outra que o cansaço do ceticismo. Não há outro motivo para essa “matematização”, que não consegue justificar-se a si mesma. Mas Descartes estava convencido do que fazia, e julgou que, assim como fora capaz de unificar a álgebra e a geometria na geometria analítica, poderia unificar todas as ciências, que seriam no fundo a mesma ciência. Há algo de louco nisso tudo, mas não se pode negar a força dessa louca idéia. Uma grande ambição absurda, e por isso mesmo atraente, levada a cabo por um gênio: realmente, o cartesianismo tem poder de atração em uma época em que nenhuma outra filosofia se apresentava com solidez para enfrentá-lo.

Gilson disseca o pensamento de Descartes, que chegou a uma série de aporias. O célebre filósofo terminou separando a mente do corpo humano de tal forma que não foi possível para ele explicar como seriam verdadeiras as sensações que conhecemos a partir dos sentidos. O conhecimento humano fica então prejudicado, e Descartes solucionará esse problema dizendo que Deus, sendo bom, garante a veracidade daquilo que recebemos pelos sentidos.

Contudo, não demorou para que um discípulo de segunda geração, Berkeley, acabasse afirmando que não há coisas externas, mas apenas o nosso pensamento. Diz a lenda que essa afirmação matou Malebranche, discípulo de primeira geração de Descartes, que a discutiu com Berkeley no leito de morte; foi uma morte por metafísica – má metafísica, sem dúvida, e talvez por isso mesmo mais venenosa.

Locke foi outro autor que contradisse Descartes, sustentando que não há idéias inatas, as quais eram uma das bases do sistema cartesiano. Em pouco tempo, o pensamento do inglês se sobrepôs ao do francês na Inglaterra, e Voltaire – que nele percebeu um acesso ao materialismo, o que muito lhe interessava – levou-o à própria França, onde também acabou por triunfar. Em pouco tempo, Descartes passou de filósofo predominante e supremo a um derrotado; grandioso, sem dúvida, mas superado. Sorte dele que não viveu para ver sua derrocada, e morreu convencido que fizera todas as ciências progredirem extraordinariamente.

O fim do experimento cartesiano é Hume. De maneira espirituosa, Gilson reconhece nele um Montaigne melancólico, que confessou: “Estou… afligido e confundido pela desamparada solidão em que me deixa a minha filosofia”. Ao considerar os raciocínios sobre a causa e o efeito mera derivação do costume, Hume acaba destruindo a própria possibilidade de filosofar. Afinal, nada pode dizer sobre as coisas nem sobre o conhecimento. O fantasma de Ockham volta a aparecer com a sua navalha, assombrando a filosofia e deixando-a à mercê de novos pesadelos.

O experimento moderno: Kant, Hegel e Comte

Para Kant, Hume demonstrou que a metafísica estava morta. Com um começo desses, fica difícil fazer filosofia. Surpreendentemente, foi exatamente isso que Kant realizou, tomando como base o esquema da física de Newton, considerada então a verdade científica suprema.

A tentação de usar uma ciência como método para a filosofia volta a fazer sucumbir uma mente brilhante. Depois de Abelardo com a lógica, Boaventura com a teologia, Descartes com a matemática, surge Kant com os Principia na mão e uma filosofia na cabeça. Nas palavras do sábio de Koenisberg: “O verdadeiro método da Metafísica é fundamentalmente o mesmo que Newton introduziu na ciência natural e que tão excelentes resultados produziu nela”.

Aí está a grande limitação do fisicismo como método filosófico. A filosofia kantiana não poderia durar mais do que a física em que se baseava. Com essa base, formulou a sua Crítica da razão pura, que é um dos mais importantes livros sobre teoria do conhecimento, chegando à conclusão que efetivamente não conhecemos as coisas, mas apenas seus fenômenos. É uma ótima estrada que leva para o buraco do incognoscível.

Ao lado da razão pura, Kant construiu uma teoria da razão prática, que se fundava no dever. Através da moral, o homem poderia chegar a Deus, ainda que fosse impossível demonstrar a sua existência. A moralidade não podia ser justificada pela racionalidade, mas como é um fator inseparável da vida humana, justifica-se por si mesma. É a apoteose do dever, que obriga apenas pela sua força intrínseca.

Ao separar a racionalidade pura da prática, Kant jamais conseguiu unir de novo as duas. Criou estruturas inconciliáveis, mas ambas necessárias para solucionar problemas filosóficos. O homem estaria preso em um mundo de necessidade física no nível sensível e físico, mas, ao mesmo tempo, seria livre no âmbito inteligível e moral. Um homem são em uma camisa de força: panorama não muito animador. Além disso, o dever nada tem que ver com o prazer, e a virtude não pode ser agradável, mas simplesmente virtuosa. Um asceta de gelo é a meta kantiana.

O grande castigo de Kant foram os seus discípulos. Fichte e Schelling tentaram conciliar as duas Críticas; não foram aceitos pelo Mestre e acabaram brigando também entre si. O caos kantiano foi acertado por Hegel; com um acerto assim, parece melhor continuar no erro… Como disse o mesmo Hegel: “Só um homem poderia ter me entendido, e nem ele me entendeu”.

O filósofo alemão que culmina o idealismo considera que a verdade é a luta entre as verdades, as antinomias que combatem, dando origem a novas soluções, que por sua vez gerarão outras antinomias que serão resolvidas na luta. Diz Gilson: “Se a realização da Idéia é a marcha de Deus através do mundo, a rota do Deus de Hegel está semeada de ruínas”. A guerra entre filósofos e idéias é a lei. Não é à toa que essa filosofia descambou no fascismo e no marxismo, visões beligerantes e violentas da sociedade e da vida humana. Mais uma vez, o sonho da razão produziu monstros.

Outra faceta do experimento moderno é Comte, que contribuiu propondo uma filosofia fundada em outra ciência, a sociologia. O amor pela Humanidade deveria levar a que os cientistas e filósofos se concentrassem em estudar o que serviria para o progresso da mesma. Como era impossível fazer uma síntese objetiva de todos os conhecimentos, ficaríamos então com uma síntese subjetiva, do ponto de vista do homem e das suas necessidades sociais.

Sobre o projeto comteano, escreve Gilson: “A condenação inicial da Metafísica em nome da ciência, que estas filosofias consideram o único tipo de conhecimento racional, culmina invariavelmente na capitulação da própria ciência diante de algum elemento irracional”. No caso de Comte, esse elemento irracional seria a subordinação da ciência ao coração (?), isto é, ao amor pela Humanidade.

O pensador francês tem muito de abstruso, e algo de comovente. Percebeu que era preciso fundar uma religião para difundir suas idéias morais e o conhecimento positivo que advogava. Não se afastou do ridículo; antes, mergulhou nele até o fundo, para ser coerente e assim cumprir a sua missão. Isso não o justifica como filósofo, mas o torna o caso exemplar de onde leva a patologia filosófica assumida em toda a sua inteireza.

Gilson descreve a decadência do experimento moderno de modo tocante. Deu-se quando a sociedade afastou-se do “credo ocidental”, cujo traço mais fundamental é uma firme crença na eminente dignidade do homem. Seu segundo traço é a convicção definida de que a razão é a diferença específica do homem. Ambas características foram deixadas de lado, e o êxito de então do marxismo e do fascismo era a prova disso.

A terrível afirmação de Marx é o que sobra depois que as filosofias se digladiaram, matando com isso a verdade: “a história de todas as sociedades que até agora existiram é a história da luta de classes”. Estamos acostumados com essa afirmação, depois de a termos ouvido nos bancos escolares, muitas vezes como se fosse a suma sabedoria do pensamento ocidental. Mas ela é simplificadora, falsa e niilista. A história humana é muito mais do que isso, graças a Deus!

A constatação de Gilson de que o ceticismo moderno abriu as portas ao marxismo, que teve um enorme êxito entre os seus contemporâneos por ser o único dogmatismo que consideravam vivo, leva-o a sugerir uma saída para a filosofia, para que esta torne a ser relevante.

A metafísica como filosofia do ser: um remédio indispensável

Após ter nos levado pela mão da filosofia medieval até o pensamento moderno e contemporâneo, Étienne Gilson concluiu seu livro com algumas leis que podem ser inferidas a partir dos vários experimentos filosóficos que descreveu. São bastante interessantes, e serviriam de base para a renovação da metafísica.

A primeira é que a filosofia sempre enterra seus coveiros. Cada desaparição da filosofia é seguida regularmente pela sua ressurreição, com um novo dogmatismo a se apresentar para explicar a realidade. Isso acontece porque o homem tem uma autêntica necessidade de metafísica, que não é saciada nem pode ser elidida.

Chegamos assim à segunda lei: o homem é um animal metafísico por excelência. Sua própria estrutura de razão termina por exigir a metafísica, a explicação da realidade pelas primeiríssimas causas.

A terceira lei é que a Metafísica é o conhecimento ganho por uma razão naturalmente transcendente na busca dos princípios primeiros ou das causas primeiras do que é dado na experiência sensível. Esta última é importante, não pode ser desprezada, como propõem os vários idealismos; contudo, não explica toda a realidade, como consideraram os empirismos e materialismos de diversos matizes.

Por sua vez, a quarta conclusão é como a Metafísica aspira a transcender todo o conhecimento particular, nenhuma ciência particular é competente para solucionar os problemas metafísicos ou julgar as soluções metafísicas. De certo modo, esta é a lição especificamente demonstrada na obra, pois Gilson percebe nos vários experimentos filosóficos mal fadados exatamente o desrespeito a essa conclusão.

A última lei é que todos os fracassos da Metafísica devem atribuir-se ao fato de que se passou por alto ou se abusou do primeiro princípio do conhecimento humano, que para Gilson e o tomismo é o próprio ser ou, melhor ainda, o ente. Não é pelo pensamento que devemos começar a pensar; seria como se preocupar principalmente com a colher de pau na hora de mexer o doce no tacho. O ente é a meta do nosso conhecimento, e o pensamento e seus conceitos são antes de tudo instrumentos para o atingir.

As leis de Gilson levam não a um novo sistema de pensamento, mas sim a uma postura de abertura diante da realidade, semelhante à que tiveram os maiores metafísicos da história, isto é, Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino. Nosso pensamento jamais será capaz de esgotar a realidade, mas pode refleti-la de maneira sempre perfectível. Isso é uma lição de humildade e de verdadeira sabedoria.

Renato José de Moraes é advogado, mestre em direito e membro do IFE.


NOTAS:

[1] Trad. Eduardo Brandão (São Paulo, Martins Fontes, 1998).


 

Texto publicado originalmente na revista-livro Dicta&Contradicta, nº 4, Dez/2009.

 

ANEXO:

Obras de Étienne Gilson traduzidas em português do Brasil (lista atualizada em Outubro de 2014):

O espírito da filosofia medieval, Martins Fontes, 1ªed. em português por esta editora, 2006.

Heloísa e Abelardo, EdUSP, 1ªed. em português por esta editora, 2007.

Introdução ao estudo de Santo Agostinho, Paulus, 1ªed. em português por esta editora, 2007.

O Filósofo e a Teologia, Paulus, 1ªed. em português por esta editora, 2008.

Introdução às artes do belo, É Reazaliações, 1ªed. em português por esta editora, 2010.

Por que São Tomás criticou Santo Agostinho – Avicena e o ponto de partida de Duns Escoto, 1ªed. em português por esta editora, 2010.

A Filosofia na Idade Média, Martins Fontes, 3ªed. em português por esta editora, 2013.

 

Outras obras em francês e em inglês de Gilson pouco conhecidas, que não receberam tradução ainda (com tradução livre dos títulos para português):

Peinture et réalité (“Pintura e realidade”), Vrin, 1958,

La Paix de la sagesse (“A Paz e a sabedoria”), Aquinas, 1960.

Trois leçons sur le problème de l’existence de Dieu (“Três lições sobre o problema da existência de Deus”), Divinitas, 1961.

L’Être et Dieu (“O Ser e Deus”), Revue thomiste, 1962.

La société de masse et sa culture (“A sociedade de massa e sua cultura”), Vrin, 1967.

Linguistique et philosophie (“Linguística e Filosofia”), Vrin, 1969.

D’Aristote à Darwin et retour (“De Aristóteles a Darwin e retorno”), Vrin, 1971.

Le réalisme méthodique (“O realismo metódico”), Téqui, 1935.

Les Idées et les Lettres (“As Idéias e as Letras”), Vrin, 1932.

God and Philosophy (Deus e a Filosofia), Yale, University Press, 1941, 1969.

The Unity of Philosophical Experience (A Unidade da Experiência Filosófica), Scribner’s, 1937.

The Terrors of the Year Two Thousand (“Os Terrores do Ano de Dois Mil”), Toronto, St. Michael’s College, 1949.