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A decadência da Filosofia Moral (por Gustavo França)

Filosofia | 13/10/2015 | | IFE RIO

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Quando se fala em pensamento moral em nossos dias, sem dúvida, a primeira referência que nos vem à mente é o famigerado debate entre liberais e comunitaristas. Tanto um lado quanto o outro comportam uma gama variadíssima de autores com ideias bem díspares, mas dotadas de uma linha comum. Com honrosas exceções (como Alasdair MacIntyre (1929-) e Charles Taylor (1931-)), quando esses filósofos se referem a Ética ou a justiça, na verdade, não fazem mais do que reduzi-las a temas políticos. Arranjos institucionais do Estado, políticas de distribuição de renda, legitimação da interferência do poder público nas esferas individuais, esses temas e outros do mesmo naipe são a associação imediata quando alguém anuncia um debate moral. Não faltam autores que batizem de Ética dissertações sobre a mais equânime estrutura tributária de um país.

É extremamente preocupante o fato de acharmos que esse tipo de rasas considerações políticas (de que “Uma teoria da justiça”, de John Rawls (1921-2002), se tornou obra arquetípica) é verdadeira Filosofia Moral. Para entender o que eu digo, basta comparar essas obras contemporâneas com a “Ética a Nicômaco”, de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C), com a segunda parte da “Suma Teológica”, de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) (o mais profundo e completo tratado de Ética já escrito), ou com a “Fundamentação da metafísica dos costumes” e a “Metafísica dos costumes”, de Immanuel Kant (1724-1804), livros clássicos e pilares fundantes das normas eternas da conduta humana.

A causa do monumental abismo entre uns e outros é que esses últimos, de fato, tratam do fenômeno moral: seus fundamentos metafísicos, a constituição da pessoa humana e o valor das ações individuais, assuntos esquecidos na pseudoética dos nossos tempos. A Ética não pode lidar com problemas concretos de Política sem uma compreensão abrangente da vida e da ação humanas e de suas leis universais. Os próprios pressupostos que envolvem a atuação de um poder político, a fundamentação do Estado e de seu corpo jurídico só podem advir de uma investigação profunda acerca da sociabilidade humana e dos princípios transcendentais da organização da vida em comunidade.

Uma moral que não sabe responder sobre o dever de uma pessoa de socorrer um irmão necessitado mediante a esmola e o mandamento da solidariedade não tem condições de discorrer a sério sobre estrutura tributária e distribuição de renda. Ter a moral abdicado de prescrever a conduta individual, fincando bases na Metafísica e na Antropologia, e saltado diretamente para discutir contingências políticas de ocasião (agora vistas como flutuando no ar, já que desprovidas de seus princípios universais) é o que gera a predominância de chavões que brincam inadvertidamente com termos filosóficos, arrancados do contexto de um pensamento completo e, por isso, sem verdadeiro significado, como, por exemplo, a “sobreposição do justo sobre o bem” (como se isso não fosse um absurdo metafísico).

Há pouco tempo, tive que estudar, por motivos ligados à elaboração de minha monografia, a polêmica de Max Scheler (1874-1928) contra Kant. Chega a dar pena comparar esse verdadeiro debate filosófico com a tão badalada disputa entre Rawls e Nozick, por exemplo. Enquanto os primeiros se debruçam sobre os fundamentos últimos da ética, sobre os conceitos de lei, de bens, de fins, de valores e seu lugar na concepção da moralidade, além das distinções gnosiológicas entre forma e matéria, a priori e a posteriori, os últimos não conseguem ultrapassar uma picuinha sobre a distribuição dos bens econômicos de uma sociedade. O decréscimo na profundidade do pensamento moral é gritante.

Creio que poderíamos encontrar a origem disso na influência rousseauniana para a lamentável confusão entre ética pública e ética do Estado. Rousseau concebeu uma sociedade em que desapareceriam todas as instâncias intermediárias entre cada indivíduo e o poder público central, restando a vida social reduzida às decisões fundamentais de política pública. Não é preciso grande esforço imaginativo para vislumbrar aí a dissolução da sociedade no Estado (e o grande sonho de Rousseau, na verdade, era a dissolução do indivíduo no Estado), com o consequentemente redimensionamento da moral (dos planos da consciência íntima da pessoa humana e das articulações comunitárias naturais) para abranger simplesmente projetos de administração central de um povo.

Essa tendência está muito bem refletida, por exemplo, em Jürgen Habermas (1929-) e em suas ideias de “patriotismo constitucional” ou de “cultura política geral”, que representam um patrimônio “moral” comum a todos os indivíduos de uma coletividade, com uma existência apartada dos laços culturais e das instituições comunitárias produzidas por sua interação espontânea ao longo dos tempos. Ainda que, algumas vezes, ele e seus discípulos insistam expressamente que sua ética pública se difere de uma ética do Estado, sua noção de sociedade, sem que eles mesmos o percebam, é de uma sociedade sem sociedade, uma mera instância decisória das ações do aparelho de poder.

Concluindo, é preciso deixar claro que não estou afirmando que a Ética não trate ou não deva tratar de questões políticas. A Filosofia Política nasce da Filosofia Moral e só assim pode ser compreendida. O problema é que teorias políticas devem ser consequência de uma cosmovisão ética, capaz de justificá-las em todas as suas bases últimas, e jamais ideias solitárias lançadas ao vento, indiferentes a ela.

Se o que caracteriza definitivamente a Filosofia é a sua busca por aquilo que é universal e eterno, o que Rawls, Dworkin, Nozick, Habermas, Adela Cortina, Amartya Sen, Walzer, Kymlicka (que só fazem oferecer reflexões desprovidas de universalidade, incompreensíveis fora de pressupostos contextuais contemporâneos, pressupostos cristalizados dogmaticamente e escondidos em raciocínios que se afirmam independentes deles) nos trazem dificilmente pode ser considerado Filosofia Moral. Perto de Aristóteles, de Tomás, de Kant ou de Scheler, são, quando muito, comentaristas de bancada de telejornal. Se quisermos reconstruir uma sociedade sã, capaz de refletir sobre as misérias humanas e sobre os ideais morais, precisamos enxergar além de dificuldades pragmáticas de ocasião e lançar o nosso olhar sobre o horizonte do bem eterno, em cuja contemplação andaram metidos os pais da civilização.

Gustavo França é graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e editor da revista “Dicta& Contradicta”, do Instituto de Formação e Educação.

Publicado originalmente no site da revista Dicta& Contradicta, em 10 de Outubro de 2015. Disponível [online] em <http://www.dicta.com.br/a-decadencia-da-filosofia-moral/>. Último acesso em 13/10/2015.

 

RESENHA: “A solidão dos realistas” [René Girard e Lucien Febvre] – por Martim Vasques da Cunha

Filosofia | 07/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Dados técnicos: René Girard. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. Tradução de Martha Gambini. Paz & Terra, 511 pp.; Lucien Febvre. O problema da incredulidade no século XIV – A religião de Rabelais. Tradução de Maria Lúcia Machado. Companhia das Letras, 513 pp.

Ah, a França. O que dizer deste país? O que ele nos deu? Como contribuiu para o tesouro da humanidade? Sabemos nos últimos meses que, pelo mundo da cultura nacional, se comemora o tal do “Ano da França”, uma forma de recordar o evento da Revolução Francesa, que pregava liberdade, fraternidade, igualdade e madame Guillotine. Mas a França também nos deu croissants, bistrôs, Godard, Truffaut, Rohmer, Bresson (o Henri-Cartier e o Robert), Emmanuelle Béart, Sophie Marceau – além de, claro, René Girard e Lucien Febvre.

Quel? Os dois últimos tiveram livros importantes publicados no Brasil – livros que, de certa maneira, mostraram uma nova forma de pensar em seus respectivos campos de conhecimento: a antropologia e a história.

Girard já é um velho conhecido da casa. Teórico do desejo mimético, em que descobrimos que não desejamos por nós mesmos e sim porque imitamos os desejos dos outros, i.e., de quem admiramos, invejamos, nos apaixonamos etc., ele começou como crítico literário de primeira categoria (com Mensonge romantique et verité romanesque, de 1962), partiu para os estudos antropológicos com o assustador A violência e o sagrado (1972) e, ao sintetizar as duas linhas de trabalho, adentrou a densa selva da hermenêutica bíblica. Em especial a do Novo Testamento, com descobertas surpreendentes sobre como a vinda de Cristo seria a revelação não só de Deus encarnado na Terra como também de toda a matriz de violência da cultura humana – as tais Coisas ocultas desde a fundação do mundo, título do livro de entrevistas que é publicado agora pela Paz & Terra e que, quando lançado na França em 1977, deu notoriedade ao pensamento girardiano.

Lucien Febvre é, junto com o historiador Marc Bloch, um dos pais dos Annales, a escola que mudou o paradigma da pesquisa historiográfica no Ocidente. Seus sucessores provam que a fórmula deu certo. Desde Fernand Braudel, que passou pelas plagas da Rive Gauche du Tietê (a conhecida USP), passando por Jacques LeGoff, até o nosso Sérgio Buarque de Holanda (especialmente em Visão do Paraíso), os Annales – o nome do grupo vem da criação, em 1929, de uma revista chamada Annales d’histoire économique et sociale – formaram uma nova perspectiva que vê a história não mais como uma sucessão de fatos dentro de um molde teórico pré-estabelecido, e sim como uma “história-problema”, que não admite soluções fáceis e que, sobretudo, abre outras possibilidades para compreender o presente do próprio historiador. O livro que resume todas essas tendências e as leva à perfeição – mas também ao seu impasse, como veremos a seguir – é O problema da incredulidade no século XVI – A religião de Rabelais (1948), e foi publicado com cinqüenta anos de atraso, em uma ação inusitada da Companhia das Letras, editora acostumada a lançar somente obras de quem está no hype internacional.

O que os dois livros têm em comum é o fato de que ambos os autores tentam, cada um a seu modo, lançar as novas bases para uma pesquisa que analise o fenômeno religioso fora de qualquer padrão dogmático ou institucional. Sem o saberem, fazem parte daquele seleto grupo que Eric Voegelin, em seu History of Political Ideas, chama de realistas espirituais. Trata-se de uma “tradição” subterrânea, que começa aproximadamente com Dante Alighieri e se estende até sujeitos díspares e heterodoxos como Thomas Hobbes, Jean Bodin, Blaise Pascal, Mestre Eckhart, chegando até Nietzsche, Kierkegaard, Dostoiévski e, nos últimos tempos, Alexander Soljenítsin. Descontentes com as instituições políticas e culturais que os circundam, estes realistas se distanciam intelectualmente delas e começam a observar o real além do pequeno “mundo simbólico” (cosmion) criado pelas circunstâncias, descobrindo outras formas de expressão que, muitas vezes, desagradam às mesmas pessoas que não estão preparadas, seja por ignorância, medo ou interesse, para ouvi-los de alguma forma.

Numa comparação entre Girard e Febvre, sem dúvida o primeiro ganha em termos de ousadia. Não por qualquer desrespeito religioso – pelo contrário, Girard mostra um verdadeiro temor e tremor quando toca nos assuntos do sagrado –, mas sim porque ele não tem medo de abordar a revelação do Evangelho até as últimas conseqüências – em especial, as conseqüências em relação ao comportamento humano. Antes disso, porém, Girard faz questão de mostrar suas descobertas dentro de uma moldura aparentemente racional e científica – uma forma de despistar os incautos e tirar sarro de seus companheiros de trabalho. Assim, Coisas ocultas desde a fundação do mundo é dividido em três partes distintas que se comunicam ironicamente entre si por terem um respectivo rival mimético. Na primeira parte, Antropologia Fundamental, temos Girard a brigar com Lévi-Strauss e seus epígonos, querendo provar a qualquer custo que os antropólogos não conseguem perceber o assassinato fundador que origina toda a cultura humana. Consegue o feito? Mais ou menos: Girard parece esconder o jogo para seus interlocutores (os psicanalistas Jean-Michel Oughourlian e Guy Lefort) e, entre uma crítica e outra, o livro simplesmente pára no ritmo de leitura, deixando o leitor sem saber se deve continuar ou não. Deve sim, pois a bomba será jogada na segunda parte, A Escritura Judaico-Cristã, onde Girard lança as bases de sua interpretação mimética do Novo Testamento – ou melhor, segundo ele, são os próprios Evangelhos que revelam isto. Para o francês, a vinda de Cristo denuncia o mecanismo mimético do mundo da violência, i.e., o nosso próprio mundo, e o resolve através da renúncia a qualquer espécie de ação que interfira na vontade de Deus: a de se mostrar como um poder que recusa a manutenção do desejo e que não é responsável por qualquer ato que o homem possa cometer contra si mesmo. Deus não tem culpa de nada; o ser humano mata porque quer esquecer que mata.

A tal “bomba” é a visão que Girard tem sobre o Cristianismo histórico, considerado por ele como uma versão deturpada de algo que, na falta de nome melhor, é chamado de “Cristianismo sacrifical”. De acordo com a sua leitura dos Evangelhos, a paixão de Cristo não teria sido um sacrifício. Jesus teria de morrer de qualquer maneira porque se continuasse a viver neste mundo (o da violência onde vivemos), seria obrigado a praticar algum ato terrível para permanecer nele. Contudo, antes que o leitor se apresse em julgar o raciocínio e chamá-lo logo de “herético”, devemos lembrá-lo que o termo “sacrifício” tem um sentido peculiar na obra de Girard; para ele, “sacrifício” é o resultado chocante do mecanismo mimético, o momento em que as disputas que destroem a sociedade chegam a um ápice que só será resolvido através da morte de um inocente – o “bode expiatório”. Dessa forma, como Cristo não é um “bode”, pois Ele é a única vítima na história humana que tinha plena consciência de seus atos, a Paixão não pode ser considerada um “sacrifício” lato sensu, simplesmente porque era a sua função, conforme a vontade do Pai, denunciar a violência da qual se funda a cultura do homem. (Para o alívio de muitos, Girard consideraria uma outra forma de ver a morte de Jesus como um “sacrifício diferenciado”, em um livro publicado anos depois, Um longo argumento do princípio ao fim. Uma maneira elegante de não deixar Jesus ser apenas uma peça de sua grande teoria sobre a antropologia mimética).

Estas breves pinceladas dão mostra de como Girard não tem medo do risco e da polêmica – características que são extrapoladas na terceira parte, Psicologia Interdividual, uma divertida discussão sobre o desejo moderno, obviamente usando Freud como contraponto. Aqui, o desejo tem uma estratégia própria, uma autonomia de estar sempre dois passos à frente do sujeito, e assim toma as mais diferentes formas, como hipnose, possessão, homossexualismo, sado-masoquismo, inveja – enfim, atitudes que são incentivadas pelos intelectuais pós-modernos e que marcam o cotidiano do nosso mundo contaminado de mimetismo.

Lucien Febvre não conhecia o desejo mimético de René Girard, mas ele começa o seu tratado sobre a religião de Rabelais com uma descrição deliciosa de como era o ambiente intelectual dos humanistas franceses do século XVI, repleto de rivalidades e de acusações mútuas. É claro que, antes de tudo, Febvre tem uma missão: a de provar que os grandes estudiosos da obra de François Rabelais, o autor de Gargântua e Pantagruel (1532-1554), em especial Abel Lefranc e Louis Thuasne, estavam errados ao anunciarem que o grande escritor da França era, afinal, um “ateu”. Consegue?

Chegou quase lá. A primeira parte de O problema da incredulidade é uma prova da força do método dos Annales: através de cartas, documentos, poemas, tratados médicos, sátiras, Febvre cruza os dados e chega à seguinte conclusão – a de que Rabelais nunca poderia ser ateu. E por dois motivos: o primeiro é que o grande escritor estava muito além do seu tempo e o segundo é que Rabelais, paradoxalmente, era uma amostra perfeita da devoção humanista que marcou aquela época de transição entre o fim da Idade Média e o início do Renascimento.

É na segunda parte do livro, quando Febvre mostra o contexto histórico, que as coisas começam a derrapar. Descobrimos que a pesquisa foi feita não para reabilitar Rabelais por si mesmo, mas sim para recolocar Erasmo de Roterdã, o autor de Elogio da loucura (1515) e grande amigo de Thomas More, no seu devido lugar de glória. Febvre é um admirador de Erasmo e, mais, identifica-se com suas posições humanistas sobre a religião. Considera-a como um fato que deve ser defendido na liberdade individual; e que Cristo não é uma pessoa com quem se possa estabelecer uma relação e sim uma simples filosofia do viver. Ora, Rabelais, que gostava do exagero das descrições e do corpo, podia se identificar com algumas dessas idéias; mas será que a sua grandeza literária se iguala a de Erasmo, o primeiro dos intelectuais ocidentais, um epígono que, por odiar os escolásticos em decadência, achava que toda a filosofia anterior, composta por gigantes então já reconhecidos como São Tomás, Santo Alberto Magno e Duns Scott era farinha do mesmo saco?

É claro que não. Erasmo é o fundador daquilo que Paul Johnson chama de “Terceira Força”, aparentemente imparcial em relação aos radicalismos da Reforma Protestante e da Contra-Reforma, mas que, no fundo, transforma-se também em um outro radicalismo, até mais perigoso, porque camuflado nas vestes da “tolerância” e da “pluralidade”. Febvre cai nessa armadilha direitinho – e o que temos é um livro que, apesar de ter a palavra “problema” no seu título, não o apresenta de forma alguma. Afinal, se, como o historiador afirma, a questão do século XVI era “crer ou não crer”, e a resposta é simplesmente a primeira opção, onde estaria o problema? Além disso, como afirmar que não existia a “incredulidade”? Antes do século XVI, Santo Anselmo e São Tomás já discorriam sobre o stultus, o estulto, o néscio, o insensato que, segundo o salmo 52, dizia em seu coração que Deus não existia e, por isso, fechava-se a toda e qualquer realidade transcendente. Isso não seria a atitude de um “incrédulo”? Eis o nó górdio de qualquer historiador que siga o método dos Annales: ele só se preocupa com o “impacto social” de uma idéia, não com o fato de que a tal idéia – no caso, a incredulidade – já poderia existir no íntimo de uma pessoa. A reverberação em massa da “não-crença” (que, muito tempo depois, chamaríamos de “ateísmo”) no tecido da sociedade ocidental aconteceria somente nos séculos XVIII e XIX, com o impacto da Revolução Francesa e o surgimento das ideologias positivistas e coletivistas.

Enfim, esta é a solidão dos realistas que tentam olhar além das paróquias do espírito. De um lado, René Girard que, enfrentando um grande risco, faz observações corretas sobre o mundo moderno, mas também pode cair na arapuca de ver tudo conforme a teoria do desejo mimético – inclusive o próprio Jesus Cristo. Do outro, Lucien Febvre, que resolve enquadrar um dos maiores escritores franceses na gavetinha particular desta peça de museu que se tornou Erasmo de Roterdã. O que fazer? Dançar um tango argentino? Talvez, mas, no caso desta resenha, prefiro beber uma boa taça de vinho e gritar a plenos pulmões: Vive la France!

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, mestre em Filosofia da Religião pela PUC-SP, doutorando em Filosofia pela USP e autor, entre outros, do livro Crise e Utopia: O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, Campinas, 2012).

Resenha publicada originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 4, Dez/2009. Disponível [online] neste link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-4/livros/

Imagens: reprodução das capas do livros da resenha.

Crítica do desejo humano – por Pedro Sette Câmara

Literatura | 15/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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Mais um pensador francês contemporâneo e inclassificável? Antes de pensar “não, obrigado”, veja algumas credenciais de René Girard: apesar de ter sido apresentado ao Brasil pela teologia da libertação, seu nome é o primeiro de um abaixo-assinado de intelectuais que pediam ao Papa Bento XVI a volta da missa “tridentina”; ele fez sua carreira não na própria França, que considera um tanto senil, mas nos EUA, onde diz estar “cercado de vida”, e, se você pensa que por isso ele se transformou em conservador, é preciso dizer logo que sua principal crítica a Nietzsche e Freud é que… eles não foram longe o suficiente.

Os fundamentos de seu pensamento foram apresentados em seus dois primeiros livros, Mensonge romantique et verité romanesque (“Mentira romântica e verdade romanesca”, publicado em inglês como Deceit, Desire and the Novel) e La violence et le sacré (publicado pela Paz e Terra no Brasil como “A violência e o sagrado”) e consistem, muito resumidamente, na teoria do desejo mimético e na explicação da origem dos mitos como falsas acusações levantadas contra bodes expiatórios. Girard observa que desde Platão o homem estuda diversos tipos de imitação, exceto um: a imitação dos desejos. Para crer que temos uma identidade própria, precisamos crer que nossos desejos tiveram sua origem em nós mesmos – na verdade, nada mais cafona ou inaceitável do que admitir que queremos algo porque nosso próximo quer. No entanto, pergunte a qualquer mulher se algo torna algum homem mais atraente do que ter ao seu lado outra mulher indubitavelmente maravilhosa. Não se trata exatamente de uma inveja (se aceitamos a definição de inveja como a tristeza pelo bem alheio), mas do desejo de ser o outro – desejo que existe porque os outros sempre parecem maravilhosos, sensacionais, intensos, e nós mesmos parecemos, a nossos próprios olhos, mesquinhos e banais. Também é fácil verificar que sempre atribuímos a objetos (concretos e abstratos) o poder mágico de transformar nossa existência: quando eu tiver aquela engenhoca, aquele carro, aquela casa, aquela pessoa, aquela educação, o resto maravilhoso da minha vida vai começar. Como nenhum objeto tem esse poder, vamos caminhando de frustração em frustração. Quando diversas pessoas desejam um mesmo objeto que não pode ser compartilhado, temos uma crise que só pode ser resolvida pelo sacrifício de um culpado – aquele que supostamente impede a posse do objeto. Se isso parece muito abstrato, basta pensar nas multidões que, durante a visita de George W. Bush ao Brasil, apedrejaram o consulado americano no Rio de Janeiro.

Isso não é tudo: só há crise porque desejamos algo que pertence ao próximo. Quando preferimos imitar um modelo distante – como os cristãos imitam Cristo, como os autores não tão antigos imitavam os mais antigos, os clássicos –, não temos problema em declarar nosso amor e em escancarar que estamos imitando, que esperamos ser julgados por aquele modelo e não por uma medida “nossa”. A existência de modelos distantes e comuns é fundamental para a coesão de uma sociedade – e provavelmente a nossa ainda será melhor entendida quando considerarmos que zombamos dos mesmos tipos, mas não respeitamos tipo nenhum. Agora, o próprio Girard admite que, apesar de logo ter reconhecido essa “boa” mímese, sua obra foi quase toda devotada ao estudo da mímese “má”. Para quem não a conhece, um excelente aperitivo é Mimesis & Theory: Essays on Literature & Criticism, 1953-2005, publicado em 2008 pela Stanford University Press, que reúne 20 artigos avulsos de Girard em publicações acadêmicas. Destes, 13 foram escritos originalmente em inglês. Quase todos tratam de um ou mais autores específicos: Saint-John Perse, Sartre, Tocqueville, Stendhal, Proust, Dostoiévski, Shakespeare; outros lidam diretamente com questões teóricas, remetendo-as – o que não pega bem em muitos departamentos universitários ditos de respeito – à própria vida. Assim, por exemplo, em Critical Reflections on Literary Studies, de 1966, Girard já considera que há um engessamento da crítica causado pela burocratização universitária e, na contramão da pseudo-prudência acadêmica, defende aquilo que uns consideram reducionismo: “Todo pensamento vigoroso mais cedo ou mais tarde acaba chegando aos próprios fundamentos; vai terminar, assim, numa redução. Podemos, é claro, continuar ignorando nossos primeiros princípios, achando que somos os únicos a não os ter, e até nos vangloriarmos desse vácuo: mas nada disso contribui para nosso pensamento. […] A fobia do reducionismo ameaça emascular todo o pensamento crítico” (p. 166).

Este resenhista crê que o filé do livro está na seqüência de três ensaios – “Innovation and Repetition”, “Feodor Dostoievsky: Mimetic Desire in the Underground” e “Conversion in Literature and Christianity” – que antecede o último, sobre Romeu e Julieta. No primeiro deles, Girard começa observando que mesmo na querelle des anciens et des modernes a disputa era em torno de quais os melhores modelos, os antigos ou os modernos, não da idéia mesma de imitação. Com o surgimento da obrigação de originalidade no romantismo – não diminuída nem mesmo pela impressão cada vez mais forte de que, em arte, “tudo já foi feito” –, hoje chegamos à paradoxal situação de a imitação aberta e admitida ter-se tornado, se não original, ao menos singular. Mas Girard não se restringe às belas artes e leva sua análise para o âmbito da competição capitalista, mostrando que o livre mercado é uma forma de conter pacificamente a mímese má, e que inovação e imitação fazem parte do jogo entre as empresas. No segundo, que discute Notas do subsolo, de Dostoiévski, Girard tenta reduzir a uma lei aquilo que o autor russo manteve como metáfora: “as pessoas do subsolo são irresistivelmente atraídas por aqueles que os desprezam, e sentem um desprezo irresistível por aqueles que se sentem atraídos por elas” (p. 253). Isso pode ser encontrado na primeira parte do romance, a parte “teórica”, em que Dostoiévski afirma que o desejo de independência é maior do que aquilo que os iluministas chamavam de “interesse próprio”. Na famosa passagem da “mão invisível” de A riqueza das nações, Adam Smith recorda que não é por caridade que o açougueiro trabalha, mas por interesse próprio; Dostoievski quer demonstrar pelas histórias de seu personagem que o desejo de mostrar-se superior, independente, autodeterminado – isto é, de mostrar a espontaneidade dos próprios desejos –, é maior do que o desejo de beneficiar-se. Desejo esse que não é outra coisa do que o ressentimento de não ser Deus. O terceiro ensaio leva a questão adiante, mostrando uma analogia entre a conversão cristã e a percepção que leva um autor de talento a se transformar em um autor verdadeiramente grande: a capacidade de perceber a própria finitude e acusar a si mesmo, em vez de acusar os outros ou alguma abstração (a sociedade, os deuses, o mercado, o neoliberalismo). O grande autor, em vez de buscar a realização pelo desejo, sabe que deve suspeitar dele, e, sempre segundo Girard, freqüentemente se transforma em parodista de suas primeiras obras. A “conversão” está em passar a sacrificar a si próprio (Lucas 9, 24; Mateus 8, 35-36) e assim escapar do círculo vicioso de frustrações que, levado ao paroxismo, é o “subsolo” de Dostoiévski.

Duas coisas acabam chamando a atenção na leitura de Girard: primeiro, que, ao contrário de boa parte da crítica, ele não se esquiva do mundo da vida. Em vez de circunscrever-se a um suposto mundo isolado das obras literárias, Girard o tempo inteiro considera que elas se referem a experiências humanas possíveis. Sua tese inicial, aliás, não é literária, mas psicológica ou antropológica; é uma tese sobre um aspecto do desejo, não das obras de arte. Segundo, pode-se dizer que ele inverte a tendência de certa crítica contemporânea de querer considerar-se também “arte” ou ao menos atividade criadora, pois Girard vê-se não como o crítico que interpreta obras artísticas, mas como o intérprete de obras artísticas que contêm – não apenas sob a forma de exemplos, mas de comentários diretos – teorias sobre o desejo. É a arte que, por fim, que se transforma em “crítica” do ser humano.

Pedro Sette Câmara é poeta, tradutor e colunista da Dicta&Contradicta.

Dados técnicos: René Girard, Mimesis & Theory. Stanford University Press, 2008. 334 pp.

Texto publicado na revista Dicta&Contradicta, edição nº3, Jun/2009, principal meio impresso do Instituto de Formação e Educação (IFE).