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Hannah Arendt: o compromisso de pensar, por Pablo González Blasco

Cinema | 19/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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“Hannah Arendt” – Direção: Margarethe von Trotta. Barbara Sukowa, Axel Milberg, Janet McTeer, Julia Jentsch, Ulrich Noethen,. Alemanha, Luxemburgo, França. 2012. 113 min.

     Todos os comentários que me chegaram deste filme eram unânimes: cinema de primeira categoria. Direção perfeita de Margarethe Von Trotta, interpretação magistral de Bárbara Sukowa. Magistral e realista: fumando o tempo todo, como a personagem que encarna, embora o filme não chegue a mostrar os charutos que Hanna fumava em público. Os intelectuais, os filósofos e o tabaco: alguém já escreveu sobre isso, eu não me detenho nessa particularidade, até porque estou em atraso com estas linhas. Explico.

Deixei o filme em suspenso, e debrucei-me sobre um livro que repousava na minha prateleira. Quis lê-lo antes de assistir o filme, para ter uma ideia da vida e obra da pensadora alemã. Levou-me algumas semanas, mas valeu a pena.  É pouco provável que os leitores tenham a oportunidade de ler alguma das obras de Arendt antes de ver o filme. Mas seria muito útil que, ao menos, lessem o comentário que fiz a esse livro, antes de mergulhar na fita. Sem preocupação; não conto a trama do filme, até porque o aspecto em que se foca a produção é pontual: a cobertura jornalística que Hanna Arendt fez para o New Yorker do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém.

O filme serve a modo de aperitivo a vida da Hanna Arendt e do seu marido Heinrich Blucher, as reuniões na sua casa com a tribo de pensadores e artistas,  e até alguns flash back com Heidegger, o amante da juventude. Mas o prato forte é, sem dúvida, a vivência do julgamento do criminal nazista. Arendt foi a Jerusalém para cobrir o evento como jornalista –mais colunista do que repórter, diríamos hoje- mas o resultado foi uma verdadeira experiência filosófica, a contemplação de uma realidade que se lhe figurava com perfis diferentes aos que todos os outros conseguiam enxergar. Tudo culmina no discurso onde, diante uma plateia de universitários absolutamente seduzidos pela pensadora, dá razão da sua perspectiva, e dos seus escritos que cristalizaram na obra polêmica: “Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal”.

     A cena do discurso cativou-me. Imediatamente a inclui no meu repertório de clips cinematográficos, e a utilizei seguidamente em duas conferências que tive de dar em dois congressos médicos diferentes. O impacto no público foi notável. E as ideias que me sugeria foram se desdobrando, com rapidez, enquanto eu tentava alinhavá-las para anotá-las nestas linhas.

Independente do tempo histórico e de uma possível justificativa para os que a criticavam por entender, equivocadamente, que estaria negando o holocausto, Arendt estabelece um paradigma de capital necessidade para o momento presente. Eichmann funcionou apenas como uma desculpa – um caso extremo- de alguém que abdicou de uma das características integrantes do ser humano: o compromisso de pensar. “Não encontrei ali um ser diabólico, nem a encarnação da perversidade. Deparei-me com um funcionário, um burocrata que se adaptou ao sistema e abriu mão de pensar”. E a seguir o grande recado: “Os maiores males do mundo são causados por gente comum que deixa de refletir, que não pondera suas ações, porque interrompeu o diálogo intimo que devemos ter conosco mesmos. Desta atitude medíocre nasce o que eu denominei a banalidade do mal”.

O caso extremo do carrasco nazista que despacha pessoas para os campos de concentração como quem controle estoque de mercadorias com apurada competência, serve para ilustrar aspectos menos chocantes, mas de premente atualidade. Lá está o tema que me ocupa habitualmente –a Humanização da Medicina- motivo dos convites e das conferências apontadas. Não tanto a humanização, mas o por que nos desumanizamos.

     As palavras em inglês arrastado de Hanna Arendt funcionaram como veículo perfeito para dar o meu recado. A grande –e preocupante- questão, é que os médicos que destratam o paciente, aqueles aos que lhes falta humanismo, não são pessoas más, cruéis e insensíveis: são, simplesmente, profissionais que entraram no sistema, que fizeram o que todos fazem, que não se deram ao trabalho de pensar na sua missão, no compromisso vocacional. Veio à mente algo que me aconteceu há já muitos anos. Foi também durante uma conferência, nessa ocasião dirigida a estudantes. Quando acabei, aproximou-se de mim uma aluna –os alunos nem sempre falam diante da plateia, reservam as melhores questões para os momentos em que o professor começa a abandonar a sala- e me disse que estava em crise. Sorri, e olhei para ela convidando-a a desabafar. “Estou no quinto ano de medicina. Ontem dei plantão no pronto socorro da obstetrícia, e chegou uma mulher que tinha provocado um aborto. Estava sangrando, com dor, assustada. O residente encarou-se com ela e gritou que essas coisas há que pensá-las antes. Foi se preparar para fazer a curetagem e eu segurei a mão da paciente e disse a ela que o médico (residente) não era má pessoa, que estava cansado do plantão”. Devo ter colocado uma cara compreensiva, porque ela continuou: “Professor, eu conheço esse residente. Ele estava no quarto ano quando entrei na faculdade. Era uma pessoa ótima, alegre, animada. Hoje ele é assim….” Minha cara deve ter assumido um interrogante, porque ela disparou: “Minha angústia é …..Quando é que a gente vira bandido, professor?”.

Não lembro o que respondi àquela aluna. Talvez não respondi nada. Mas contei este fato inúmeras vezes nos meus encontros com estudantes. Hoje, se tivesse ocasião –quem sabe agora com as redes sociais onde todos ficam sabendo de tudo ela leia estas linhas- lhe diria: convide-o, em nome dessa velha amizade, para assistir o filme de Hanna Arendt. Lá veria a pensadora apaixonada explicar por que abdicamos de ser pessoas –nos desumanizamos- quando abrimos mão da característica que define o homem como tal: a capacidade de pensar. Entenderia que a incapacidade de pensar é o que permite que gente normal, medíocre, cometa as maiores atrocidades.

     Naturalmente as conclusões no nosso cenário não são tão evidentes como no caso de Eichmann. É preciso conduzir a reflexão da plateia para que se atreva a pensar que o recado é para eles, para todos nós.  Até porque abdicar da reflexão, atitude frequentíssima, costuma estar disfarçada de condutas equívocas. Falávamos das redes sociais e da aluna de quem nunca mais tive notícia. O que poderia ser um bom recurso para oferecer agora uma ajuda concreta, é também uma arma de dois gumes. É difícil que alguém que passa a vida se comunicando com metade do planeta, imagine que não dedica um minuto da sua vida a….pensar. Troca informações, “curte” notícias, compartilha fotos, tem a vida –e a intimidade- como livro aberto, em vitrine comunitária. O barulho virtual é tanto, que não há espaço para o silêncio que a reflexão requer. E quando alguém põe as manguinhas de fora e se atreve a socializar uma carga de profundidade reflexiva, é muito provável que receba um comentário irônico, ou que seja sumariamente eliminado de grupo de “amigos”, que rapidamente podem substitui-lo por outras duas dúzias de elementos que transitam no universo de mediocridade não pensante.

Eu costumava ilustrar o descaminho do médico na figura do Cavalheiro Jedi que se passa para o lado negro da força. Alguém muito bem treinado, com poderes formidáveis que por medo cai para a escuridão.  Os olhos vermelhos de Anakin Skywalker transpirando medo de perder a mulher que ama são o prenúncio da metamorfose em Darth Vader. Agora, Hanna Arendt me mostra que a questão não é tão simples, e que os bandidos nem sempre estão integrados num Império que conspira. O perigo que nos ameaça, está dentro de cada um de nós, em tênue divisão, onde a reflexão é a verdadeira fronteira. Muito bem o adverte um conhecido educador quando escreve: “O  meu problema imediato sou eu mesmo, e o pacto silencioso que estabeleço com o sistema e que permite que “o de sempre” governe a minha vida e as minha decisões” (Parker Palmer: The Courage to Teach). Cruzam-se os limites sem maldade intrínseca, num deixar-se levar, maria-vai-com-as-outras; tudo sem grandes traumas, amparados pelo sistema, enfeitado com o cintilar de bijuterias que piscam alegremente no smartphone fazendo sentir o aconchego de um mundo virtual –milhares de amigos- que compartilham e “curtem” um gregarismo medíocre que promove a banalidade do mal.

O imenso conhecimento que temos ao alcance da mão não dispensa o compromisso de pensar. Essa advertência seria a principal função dos professores universitários, ao invés de vomitar repetidamente informações que os alunos adquirem por si sós, mais rapidamente, de pijama nos respectivos domicílios. Advertir e provocar, fazer pensar: um verdadeiro desafio para os que se envolvem na educação, que não é simples treino, mas fomentar uma atitude de reflexão de por vida. Não dar peixes, ensinar a pescar, entender por que se pesca, e abrir espaço à criatividade e a novas modalidades de pesca.  As frases finais do contundente discurso de Hanna Arendt servem para fechar estas considerações: “A manifestação do ato de pensar não é simples conhecimento. Mas é a habilidade de distinguir o bem do mal, o feio do bonito. Sem pensar nos tornamos incapazes de fazer juízos morais. Espero que essa capacidade de pensar dê às pessoas a força para evitar as catástrofes nos momentos decisivos”.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fontehttp://www.pablogonzalezblasco.com.br/2013/10/25/hanna-arendt-o-compromisso-de-pensar/

Sobre o filme "Sniper Americano"

Cinema | 12/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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Adaptado do livamerican-sniper-poster-internationalro “American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S. Militar History”, o filme “Sniper americano”, do diretor Clint Eastwood, conta a história real do fuzileiro naval norte-americano Chris Kyle (Bradley Cooper), considerado o melhor atirador de elite da história dos Estados Unidos.

O filme, um fenômeno de bilheteria (atingiu 90,2 milhões de dólares na estreia em janeiro deste ano),  tem despertado uma intensa discussão pública nos EUA, dividindo liberais e conservadores no debate sobre temas como o papel da guerra, o heroísmo dos soldados, patriotismo, a invasão americana ao Iraque, entre outros. O protagonista, conhecido como “a lenda”, entre os militares americanos e com o apelido de “o demônio de Ramadi”, entre os inimigos iraquianos, seria, para alguns, um moderno herói de guerra, mas, para outros, não passaria de um patriota psicopata.

Para contribuir para o debate, sugerimos a seguir a leitura do artigo escrito por Thiago Cortês, publicado originalmente no site Mídia sem Máscara (http://www.midiasemmascara.org/).

Antes, porém, apresentamos o trailer com uma cena que, por si só, já é um convite a este belo filme:

 

 

American Sniper: lobos e ovelhas

POR THIAGO CORTÊS 

O novo filme de Clint Eastwood começa com o sermão de um pastor sobre o apóstolo Paulo. O que Paulo ensinava e fazia, explica o ministro, era motivo de escândalo para a maioria dos seus contemporâneos. Mas Paulo tinha dentro de si a convicção de estar fazendo a coisa certa.

Chris Kyle está no culto com sua família. Ele ainda é uma criança, mas ouve atento o pastor explicar que somos incapazes de decifrar o padrão de Deus nos eventos que ocorrem na nossa vida. Só podemos considerar real e verdadeiro o que podemos enxergar?

Não se engane pelo cenário da história ou seu contexto histórico. American Sniper não é sobre a Guerra do Iraque – nem contra e nem a favor – ou sobre qualquer aspecto da vida militar.

O drama de Clint Eastwood é sobre os dilemas morais enfrentados por homens de convicção em um mundo no qual a defesa de qualquer princípio – por mais óbvio que seja – é vista como uma atitude fundamentalista. A convicção é uma anomalia. O mundo jaz do relativismo.

Se você quiser defender uma visão moral, prepare-se para enfrentar dilemas terríveis. Se você quiser se sacrificar por algo maior, prepare-se para a solidão. Sim, solidão: ao dizer que está disposto a morrer pelo seu país, Kyle ouve da futura esposa: “você é um egocêntrico!”.

Chris Kyle é filho de um diácono e de uma professora de escola bíblica dominical. Desde cedo ele aprendeu que a defesa dos princípios básicos de certo e errado o colocaria em conflito com a maioria que há muito abandonou o “preto-no-branco” por mil tons de cinza.

Ainda menino, Kyle intervém em uma briga para defender seu irmão mais novo de um típico valentão. Ao ver seu irmão apanhando, ele não tem dúvidas: soca o garoto maior até lhe tirar sangue. Ao invés de lhe repreender, o seu pai lhe explica que as pessoas são divididas em três grupos: ovelhas, predadores e cães pastores que protegem as ovelhas “do Mal”.

“Algumas pessoas preferem acreditar que o Mal não existe. Mas se algum dia ele aparecer na sua porta, não saberão como se proteger. Essas são as ovelhas. E então existem os predadores. Eu e sua mãe não estamos criando ovelhas ou predadores”, adverte o diácono.

Kyle cresce como um típico jovem dos nossos dias. É um beberrão e mulherengo. Mas ele enxerga o que os outros não enxergam. Em certo dia, o noticiário que para seu irmão é entediante, para Chris Kyle é perturbador. E, como Saulo, ele caí do cavalo.

Como a luz do dia

As escolhas daquele que se tornaria o atirador de elite mais letal da história militar dos Estados Unidos são pautadas por um antiquado senso de moralidade. Não há espaço para o cinismo ou a meia-verdade no horizonte de Chris Kyle. Ele enxerga o Mal tão claro como a luz do dia. É essa característica singular que irá definir o seu destino para sempre.

Quando poderia se arriscar menos, Kyle desce às profundezas do labirinto infernal de Ramadi para ensinar soldados novatos sobreviverem um dia a mais. Quando sua esposa grávida pede que ele fique em casa, Chris Kyle volta ao Iraque para proteger seus amigos.

Em pouco tempo a insurgência iraquiana apelida Kyle de “o Diabo de Ramadi”- em referência a uma das cidades em que combateu – e coloca a sua cabeça a prêmio. Ele é temido por sua eficiência em matar. 160 mortes “oficiais”: tudo indica que o número seja maior (255).

O maior mérito de Chris Kyle, contudo, não reside no número de inimigos que ele abateu. Mas na quantidade de garotos que ele salvou com sua mira certeira. O filme faz um sutil e brilhante paralelo entre a visão moral distinta e a pontaria acima da média de Kyle.

Além do inimigo que espreita em cada janela e porta, o jovem texano é obrigado a enfrentar as dúvidas crescentes e o medo paralisante dos seus colegas de farda.

O agnóstico Eastwood fala no filme por meio de um jovem soldado que quase foi padre e é assaltado pela dúvida: Será que eles fazem a coisa certa? E será que vale a pena?

“O Mal existe. Nós já o vimos por aqui”, responde, serenamente, Chris Kyle. Eastwood mostra que o sniper mais admirado e temido da história dos EUA permaneceu até o fim com as convicções simples de um menino dedicado a proteger os inocentes dos bandidos.

A virtude em ação

Há muitos sub-dramas terríveis contidos nas decisões de Kyle, mas não vou abordá-los para que o leitor assista ao filme e possa se surpreender com cada dilema que surge na história.

Ao contrário do que se poderia imaginar, Eastwood não manifesta aprovação diante da moralidade “preto-no-branco” de Chris Kyle. Diante disso ele é novamente agnóstico.

Mas o velho mestre americano não deixa de mostrar que são de homens como Kyle que a sociedade precisa nos momentos mais tenebrosos, quando os lobos aparecem e recuamos como ovelhas confusas e apavoradas. Sem visão moral, sem senso de direção.

Hoje em dia os homens estão mais preocupados em ser queridos por todos e não conseguem defender qualquer princípio por mais de 5 minutos. Eles não acreditam mais em certo e errado. São cínicos. Para os quais “honra” e “sacrifico” são como peças de museu.

São bem poucos os que ainda enxergam o mundo como o apóstolo Paulo e Chris Kyle enxergavam. Mas todos admiram, mesmo que secretamente, pessoas que recusam o cinismo predominante e brindam os seus próximos com uma amostra do que é a virtude em ação. Clint Eastwood faz um elogio desses homens ilustres. Assista American Sniper.

Thiago Cortês escreve no blog Descortês.

Fonte: http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/15683-american-sniper-lobos-e-ovelhas.html

Sobre o filme “Sniper Americano”

Cinema | 12/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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Adaptado do livamerican-sniper-poster-internationalro “American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S. Militar History”, o filme “Sniper americano”, do diretor Clint Eastwood, conta a história real do fuzileiro naval norte-americano Chris Kyle (Bradley Cooper), considerado o melhor atirador de elite da história dos Estados Unidos.

O filme, um fenômeno de bilheteria (atingiu 90,2 milhões de dólares na estreia em janeiro deste ano),  tem despertado uma intensa discussão pública nos EUA, dividindo liberais e conservadores no debate sobre temas como o papel da guerra, o heroísmo dos soldados, patriotismo, a invasão americana ao Iraque, entre outros. O protagonista, conhecido como “a lenda”, entre os militares americanos e com o apelido de “o demônio de Ramadi”, entre os inimigos iraquianos, seria, para alguns, um moderno herói de guerra, mas, para outros, não passaria de um patriota psicopata.

Para contribuir para o debate, sugerimos a seguir a leitura do artigo escrito por Thiago Cortês, publicado originalmente no site Mídia sem Máscara (http://www.midiasemmascara.org/).

Antes, porém, apresentamos o trailer com uma cena que, por si só, já é um convite a este belo filme:

 

 

American Sniper: lobos e ovelhas

POR THIAGO CORTÊS 

O novo filme de Clint Eastwood começa com o sermão de um pastor sobre o apóstolo Paulo. O que Paulo ensinava e fazia, explica o ministro, era motivo de escândalo para a maioria dos seus contemporâneos. Mas Paulo tinha dentro de si a convicção de estar fazendo a coisa certa.

Chris Kyle está no culto com sua família. Ele ainda é uma criança, mas ouve atento o pastor explicar que somos incapazes de decifrar o padrão de Deus nos eventos que ocorrem na nossa vida. Só podemos considerar real e verdadeiro o que podemos enxergar?

Não se engane pelo cenário da história ou seu contexto histórico. American Sniper não é sobre a Guerra do Iraque – nem contra e nem a favor – ou sobre qualquer aspecto da vida militar.

O drama de Clint Eastwood é sobre os dilemas morais enfrentados por homens de convicção em um mundo no qual a defesa de qualquer princípio – por mais óbvio que seja – é vista como uma atitude fundamentalista. A convicção é uma anomalia. O mundo jaz do relativismo.

Se você quiser defender uma visão moral, prepare-se para enfrentar dilemas terríveis. Se você quiser se sacrificar por algo maior, prepare-se para a solidão. Sim, solidão: ao dizer que está disposto a morrer pelo seu país, Kyle ouve da futura esposa: “você é um egocêntrico!”.

Chris Kyle é filho de um diácono e de uma professora de escola bíblica dominical. Desde cedo ele aprendeu que a defesa dos princípios básicos de certo e errado o colocaria em conflito com a maioria que há muito abandonou o “preto-no-branco” por mil tons de cinza.

Ainda menino, Kyle intervém em uma briga para defender seu irmão mais novo de um típico valentão. Ao ver seu irmão apanhando, ele não tem dúvidas: soca o garoto maior até lhe tirar sangue. Ao invés de lhe repreender, o seu pai lhe explica que as pessoas são divididas em três grupos: ovelhas, predadores e cães pastores que protegem as ovelhas “do Mal”.

“Algumas pessoas preferem acreditar que o Mal não existe. Mas se algum dia ele aparecer na sua porta, não saberão como se proteger. Essas são as ovelhas. E então existem os predadores. Eu e sua mãe não estamos criando ovelhas ou predadores”, adverte o diácono.

Kyle cresce como um típico jovem dos nossos dias. É um beberrão e mulherengo. Mas ele enxerga o que os outros não enxergam. Em certo dia, o noticiário que para seu irmão é entediante, para Chris Kyle é perturbador. E, como Saulo, ele caí do cavalo.

Como a luz do dia

As escolhas daquele que se tornaria o atirador de elite mais letal da história militar dos Estados Unidos são pautadas por um antiquado senso de moralidade. Não há espaço para o cinismo ou a meia-verdade no horizonte de Chris Kyle. Ele enxerga o Mal tão claro como a luz do dia. É essa característica singular que irá definir o seu destino para sempre.

Quando poderia se arriscar menos, Kyle desce às profundezas do labirinto infernal de Ramadi para ensinar soldados novatos sobreviverem um dia a mais. Quando sua esposa grávida pede que ele fique em casa, Chris Kyle volta ao Iraque para proteger seus amigos.

Em pouco tempo a insurgência iraquiana apelida Kyle de “o Diabo de Ramadi”- em referência a uma das cidades em que combateu – e coloca a sua cabeça a prêmio. Ele é temido por sua eficiência em matar. 160 mortes “oficiais”: tudo indica que o número seja maior (255).

O maior mérito de Chris Kyle, contudo, não reside no número de inimigos que ele abateu. Mas na quantidade de garotos que ele salvou com sua mira certeira. O filme faz um sutil e brilhante paralelo entre a visão moral distinta e a pontaria acima da média de Kyle.

Além do inimigo que espreita em cada janela e porta, o jovem texano é obrigado a enfrentar as dúvidas crescentes e o medo paralisante dos seus colegas de farda.

O agnóstico Eastwood fala no filme por meio de um jovem soldado que quase foi padre e é assaltado pela dúvida: Será que eles fazem a coisa certa? E será que vale a pena?

“O Mal existe. Nós já o vimos por aqui”, responde, serenamente, Chris Kyle. Eastwood mostra que o sniper mais admirado e temido da história dos EUA permaneceu até o fim com as convicções simples de um menino dedicado a proteger os inocentes dos bandidos.

A virtude em ação

Há muitos sub-dramas terríveis contidos nas decisões de Kyle, mas não vou abordá-los para que o leitor assista ao filme e possa se surpreender com cada dilema que surge na história.

Ao contrário do que se poderia imaginar, Eastwood não manifesta aprovação diante da moralidade “preto-no-branco” de Chris Kyle. Diante disso ele é novamente agnóstico.

Mas o velho mestre americano não deixa de mostrar que são de homens como Kyle que a sociedade precisa nos momentos mais tenebrosos, quando os lobos aparecem e recuamos como ovelhas confusas e apavoradas. Sem visão moral, sem senso de direção.

Hoje em dia os homens estão mais preocupados em ser queridos por todos e não conseguem defender qualquer princípio por mais de 5 minutos. Eles não acreditam mais em certo e errado. São cínicos. Para os quais “honra” e “sacrifico” são como peças de museu.

São bem poucos os que ainda enxergam o mundo como o apóstolo Paulo e Chris Kyle enxergavam. Mas todos admiram, mesmo que secretamente, pessoas que recusam o cinismo predominante e brindam os seus próximos com uma amostra do que é a virtude em ação. Clint Eastwood faz um elogio desses homens ilustres. Assista American Sniper.

Thiago Cortês escreve no blog Descortês.

Fonte: http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/15683-american-sniper-lobos-e-ovelhas.html

Uma vida comum: o encanto de uma rotina iluminada, por Pablo González Blasco

Cinema | 05/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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Still Life. (2013). 92 min. Diretor: Uberto Pasolini . Eddie Marsan, Joanne Froggatt.

Still life     Uma vida comum. Esse é o título que nos oferece a tradução brasileira. Correto, resume o contexto, mas não chega a ser tão desafiante como o original: Still Life, natureza morta. Esse sim é preciso, audaz, impactante. Igual a temática, a interpretação – quase um solo extraordinário do protagonista- e os detalhes nas tomadas da câmara. Nada sobra, nada falta. Um quadro perfeitamente encaixado, silencioso e gritante, instigador. Uma verdadeira natureza morta pintada, para maior requinte, por um diretor italiano transplantado na Inglaterra. Uma bela mistura que cristaliza num filme singular e intrigante.

A estética merece comentários, muitos, e sem dúvida de mais categoria do que estes. Mas não é o propósito destas linhas. Mais do que descrever o quadro, o nosso é relatar o que o quadro nos provoca. E, isso sim, origina uma enxurrada de reflexões. Tive muitas quando o vi, vieram muitas mais depois –aquele efeito retardado próprio dos filmes de categoria-, e ampliaram-se quando coloquei a fita como base de um cine-debate com universitários. Ninguém tinha assistido o filme ainda –nos dias de hoje um verdadeiro recorde- e eu sentia a necessidade de observar as reações, os comentários, de espectadores variados para ampliar um universo de percepções que, desde o início, suspeitei ser de grande riqueza.

Still life - movie 2     Eddie Marsan é o ator monumental que dá vida ao protagonista, John May. Um funcionário público de um distrito londrinense que gasta seus dias –somam já muitos anos- buscando possíveis parentes daqueles que morrem sozinhos. E, naturalmente, ocupa-se de executar o que a lei prescreve sobre o sepultamento desses cidadãos. A tarefa em si é rotineira, cinzenta, uma estrita disposição municipal ao alcance de qualquer burocrata. A diferença –enorme- é o modo como Mr. May realiza sua função, quer dizer, o modo como vive o seu trabalho. Com delicadeza e ternura. Busca com afinco, esforça-se para que os defuntos tenham alguma companhia na hora de serem enterrados. Adapta o funeral aos prováveis gostos e crenças do falecido, arrisca homenagens póstumas e presta tributo pessoal com sua presença sempre discreta. Quase me atreveria a dizer que ‘humaniza’ a morte.

Não é pouco nestes tempos que vivemos onde a tal humanização parece ser a bola da vez: algo de que todos falam, dizem precisar dela, mas na prática pouco se percebe nas ações concretas que conduzam ao tal sonhado estado de humanização. Lembrei daquele outro filme japonês (A Partida) do qual saímos com uma pergunta crítica na cabeça: Como é possível fazer de um tema tão triste um filme tão delicado e positivo? A resposta trouxe outra lembrança –o filme é um gatilho de evocações- nos versos de Morte e Vida Severina: “Podeis aprender que o homem, é sempre a melhor medida; mais, que a medida do homem, não é a morte mas a vida!” A resposta, a almejada humanização, é preciso praticá-la em vida, no dia a dia, e não apenas in artículo mortis. Somente quem humaniza os detalhes simples, corriqueiros, que salpicam a rotina diária, é capaz de ter uma performance invejável no momento final, como John May.

Still life - movie 1     As muitas recordações que lutavam por abrir-se passo a passo ampliaram-se no cine debate. Tomei algumas notas, o que rendeu ainda mais reflexões, e outras lembranças estocadas na memória vieram a tona. Também as aparentemente cômicas, como a do sujeito que está sendo enterrado na presença de apenas duas pessoas que comentam: onde estão os milhares de amigos que ele dizia ter no Facebook? E outras, muito pessoais, como aquele comentário que escutei do meu irmão, um ano antes dele falecer, e que utilizei no seu funeral para agradecer a presença de muitos amigos que lá estavam: “Meu irmão disse-me certa vez, falando de um velho conhecido que estava no final da vida, que ele dizia aos amigos que não se preocupassem de ir ao seu funeral, que havia muita coisa que fazer. Sei que meu irmão teria dito o mesmo, mas felizmente ninguém obedeceu, e eu agradeço a presença de todos vocês nestes momentos tão especiais”.

Mas a nossa natureza morta não é um filme sombrio, uma espécie de elegia em celuloide. Fala da vida, do trabalho, da rotina, do encanto. Da amizade, e do melhor investimento que é sempre pensar nos demais, sair do casulo do egoísmo. Dai provém os melhores dividendos, mesmo os que não conseguimos apreciar naquele momento. A vida virtual que muitas vezes vivemos –vivemos mesmo? ou sonhamos que vivemos?- situa-nos num universo de paradigmas falsos que na hora do balanço aponta inexoravelmente os lucros e os prejuízos. Os ativos a receber –inflacionados por supostas relações e networks globais- , esfarelam-se, transformam-se em perdas porque ninguém aparece para pagar esse crédito…..que nunca existiu.

Still life - movie 3     Certa vez conversava sobre estes temas com um profissional de informática, que era cego. Tinha conseguido desenvolver sistemas e recursos de computador para pessoas deficientes, apoiando-se na capacidade de escuta que nessa situação sempre é aguçada. Falava-me do muito que tinha pensado sobre o valor real das coisas na vida, e ilustrou o tema com um comentário definitivo: “Quando vou a um enterro, e escuto o golpe da terra caindo sobre a madeira do caixão, penso que é preciso gastar a vida sendo útil. Do contrário tudo se acaba nesse golpe seco e fatal”. Cada um percebe a hora do balanço como pode, e mesmo quem ganhava a vida ajudando os outros a se comunicar não se deixava enganar com quimeras virtuais.

A medida não é a morte, mas a vida. A vida que se gasta em rotinas iluminadas, porque a rotina gris não consiste em fazer as coisas de sempre, mas em fazê-las como sempre. E no suceder-se dos dias iguais, é possível um colorido repleto de detalhes, viver uma cortesia como Mr. May, quase litúrgica, com os semelhantes, com os mortos e com os vivos. Atitude que personaliza o trato, que se adapta a cada um, que humaniza –que permite dar transito ao humano que todos levamos dentro- , sem desculpar-se com ações globais, ou atentar aos impactos do último post no Youtube. De que serve que acessem milhões de vezes a tua página web, se na hora do vamos ver não há um ombro onde chorar, alguém com quem conversar de coração aberto? Dizia Gustavo Corção que os milhares de conquistas da técnica não consolam o namorado infeliz, ou o pai que perdeu o mais amável dos filhos. Os acessos também não possuem esse predicado. E quando alguém se atreve a batizar esses relacionamentos vulgarizando o termo amizade, converte-o numa palavra vazia. Um flatus vocis, como diziam os filósofos medievais. Um termo sem nenhuma substância; thin air, por usar uma genuína expressão britânica ao gosto de John May.

Still life - movie 5     Voltamos ao filme japonês, A Partida, que também se fez presente no cine debate. Há um momento onde alguém pergunta à esposa do protagonista, já convencida da importância do trabalho do marido, como é possível viver dessa atividade, arrumando cadáveres para o sepultamento. Ela responde sem hesitar: “O meu marido é um profissional!”. Foi mais uma evocação quando vi surgir na tela a protagonista feminina aproximando-se de Mr. May. Curiosidade no início, seguida de admiração, para converter-se em encanto. O entusiasmo pelo trabalho, a capacidade de sonhar e de aperfeiçoá-lo, independente do conteúdo, tem um poder sedutor para a alma feminina. Talvez porque as mulheres têm essa leitura transcendente que sabe apreciar os detalhes que realmente importam, na hora de fazer o balanço. Esse deve ser o motivo que explica porque, diariamente, encontro muitas mais mulheres do que homens do lado dos pacientes que sofrem, atentas aos pormenores que fazem a doença mais suportável.

Um homem apaixonado pelo seu trabalho, que não precisa de plateia para certificar-se do valor que encerram suas cuidadosas ações diárias. São qualidades que costumam passar desapercebidas aos que vivem na superfície dos acontecimentos. O chefe de John May é um belo exemplo de insensibilidade. Não é mau, até cumpre o seu dever, mas escapa-lhe o essencial. Vivemos rodeados desses espécimes, e com frequência sucumbimos ao seu fascínio. A tentação de entregar-se a aparência e desprezar a verdadeira substância, de prestar culto ao sucesso sem avaliar a competência é realidade que convive conosco e nos absorve ao menor descuido. A opinião dos espectadores pesa demais nas nossas decisões, é um tributo enorme contra o qual nos custa revelar-nos. Talvez é questão de mudar o foco, e escolher outra plateia.

Still life - movie 4     Vai uma última lembrança, visto que são as recordações as que teceram esta colcha de retalhos, a modo de um quadro impressionista, manchas de luz. Foi um comentário em espanhol sobre esta produção, que chegou há algum tempo à minha caixa de e-mails. A tradução do titulo não reflete o miolo do filme (Nunca é tarde demais), mas não me pareceu totalmente infeliz, especialmente pelo subtítulo que lá colocam: Deus o vê! Se a proposta para atuar com eficácia, é livrar-se da plateia convencional e estabelecer o gabarito com outros paradigmas, a construção de virtudes em que tudo se passa entre Deus e o homem parece um bom começo. Sempre há tempo para isso. Este filme pode ser uma boa largada nessa empreitada.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005). 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/02/18/uma-vida-comum-o-encanto-de-uma-rotina-iluminada/#more-2289

“Cool evil”: O mal bacana (por Bruce Frohnen)*

Filosofia | 03/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Evidentemente que Bruce Frohnen escreve sobretudo para americanos. Contudo, seu ensaio revela elementos que estão além da cultura americana, podendo ser encontrados na cultura européia dos dias de hoje e na nossa, brasileira. É o que ele chama de “cool evil”, algo como “mal bacana” ou “mal legal”, no sentido de o mal não ser tomado como mal, mas como algo bacana, interessante. Contudo, para o autor, esse “cool evil” dos dias de hoje só leva a degradação pública e privada. Abaixo, segue seu artigo traduzido.

***

“Cool evil”: O mal bacana

por Bruce Frohnen

Ouvi dizer que no mundo do wrestling profissional [N.T.: arte marcial popular nos EUA], os vilões populares são conhecidos como “calcanhares bacanas”. O wrestling profissional dificilmente encontra-se na fronteira da teoria moral ou das tendências da cultura popular. Mas a inclusão de caras maus como “bacanas/legais” em seu código moral violento é uma indicação, acredito, de quão longe chegamos na estrada que leva ao niilismo cultural. Cada vez mais os filmes e programas de televisão, sem mencionar os rappers e esportistas, parecem dispostos a lucrar com o “mau bacana”. Cada vez mais os americanos estão comprando a idéia de um niilismo pré-embalado, aparentemente revelando o sentimento de superioridade que se pode ganhar da ilusão de estar acima do bem e do mal.

Não quero dizer com isso que o vilão atraente é uma novidade. A literatura clássica está repleta de vilões que amamos ver em ação nos livros. Os atores dizem que o melhor papel em qualquer produção é o do violão, não o papel do herói adocicado. Também não quero dar a entender que os vilões, até nas décadas recentes, tem sido pouco atrativos, ou até mesmo relegados a papéis coadjuvantes. Os filmes das décadas de 60 e 70 estão cheios de anti-heróis, e os baby boomers [N.T.: geração do que nasceram na década de 50 e 60] procuravam esses filmes como cães selvagens.

Mas parece que as últimas décadas produziram uma proporção de vilões “bacanas” acima do padrão, que um número cada vez maior de filmes – e especialmente séries da TV a cabo – apresenta o mal implacável como normal e sexy, e que a tendência ao código de rua entre as pessoas famosas serviu para borrar os limites morais da grande audiência.

Quando  pediram a Ian Richardson que voltasse a fazer o papel do anti-Herói Francis Urquhart no drama cínico-policial inglês “House of Cards”, conta-se que ele recusou a proposta até chegar ao acordo de que o personagem seria assassinado. Richardson demonstrou suficiente senso moral para reconhecer que seu personagem, ainda que para ele fosse delicioso estar no seu papel, simplesmente fazia o mau parecer excessivamente atraente.  Isso se deve em parte por causa do modo como os outros personagens são caracterizados, mas nada disso é então novidade, antes é o antigo dito popular “o demônio é um homem sedutor”. A atratividade do mal também vem da crescente medida para a qual ele parece ser útil [1] na ficção contemporânea. Cada vez mais, os vilões não recebem o troco no final pelas suas más ações. A justiça poética nos roteiros, palcos e telas é agora vista como irrealista e até infantil. Em outros tempos, logicamente, isso era visto como absolutamente necessário para a preservação do senso moral da audiência, e as pessoas tinham de fato suficiente senso moral para reivindicar isso.

Infelizmente, esse senso moral parece ter morrido. Já não se percebe claramente o senso moral nas atuações de Kevin Spacey, que faz o papel do anti-herói na adaptação americana de “House of Cards” com uma satisfação malévola, e que fez carreira fazendo papéis de vilões inspiradores de alguma forma de admiração, sendo que os poucos heróis de sua carreira (como no filme “Pay it Forward” [N.R.: no Brasil, “A Corrente do Bem”]) são figuras simplórias.

Depois há a série “fantasia” “Game of Thrones”. Nesse carnaval de implacável degradação, adaptada da série igualmente repreensível de George R.R. Martin, o espectador é “tratado” com cenas de tortura, violência sexual e depravação agressiva que forma o núcleo de uma série centrada na obsessão por poder em um universo de estilo medieval.[2]

É fácil levantar uma série de causas para essa recente explosão do “mal bacana”. O declínio dos padrões morais na grande mídia, seguida da difusão da TV a cabo, associada à sua total falta de auto-regulação[3], e a competição para fazer chocar mais os espectadores para aumentar a audiência, fez da tortura coisa normal das noites de TV em casa (em programas como “Lost” e “24” [N.R.: no Brasil, “24 Horas”]) alguns anos atrás. Antes disso, a tendência entre os rappers de reproduzir o código de rua, tão bem parodiado por Chris Rock no filme “CB4”, foi amplamente difundida e por sua vez alimentou uma cultura de violência já infelizmente muito difundida nas nossas áreas urbanas. A violência rural, evidentemente, há muito é apresentada pela grande mídia, mas geralmente com a intenção clara de provocar repulsa pelo racismo e violência doméstica. Mesmo assim esses retratos perderam sua força depois que filmes ambientados em pequenas cidades (“Sons of Anarchy”, [N.R.: no Brasil, “Filhos da Anarquia”]), nos subúrbios (“Breaking Bad”, [N.R.: no Brasil, “Ruptura Total” ou “Breaking Bad: A Química do Mal”]) e mesmo no velho oeste (“Deadwood”) buscaram uma abordagem realista baseada em sangue jorrando por tudo para mostrar quão sofisticados se tornaram tanto produtores como espectadores.

Esse último desdobramento poderia ter sido previsto como uma extensão inevitável da desmoralização gradual do entretenimento. Nós passamos de “Leave it to Beaver” [da série “Veronica Mars: A Jovem Espiã”[4], com suas falsas imagens de felicidade suburbana, para comédias sexuais infantilóides como “Three’s Company” [N.R.: no Brasil, “Um é Pouco, Dois é Bom e Três é Demais”], com sua continuação previsível, “Three’s a Crowd”, uma sequência que teve pouca audiência sobre um casal em coabitação que compartilhava os aposentos com o pai da mulher. A moralidade sexual logo se tornou ultrapassada, mesmo com as críticas um tanto quanto moralistas que os grupos de pais e educadores dirigiram à violência veiculada tanto nas telas de cinema como na TV. É claro que agora o movimento do anti-herói no cinema tem sido um movimento de massas há décadas, embora talvez melhor resumido no herói de “Midnight Cowboy” [N.R.: no Brasil “Perdidos na noite”], um caipira mentecapto cujo objetivo de vida era se tornar um prostituto.

Libertinos sexuais sempre insistiram que sua forma de libertinagem traria paz e amor. Mas isso não ocorre; ao contrário, abre espaço para mais estrago em um mundo cada vez mais desordenado. A “liberação” sexual da onda [do momento] andava de mão dadas com a crescente marginalização, por parte dos meios de comunicação, de temas e figuras religiosos, assim como da moralidade. “M*A*S*H” pode ter retratado seu capelão militar como alguém ineficaz, mas o programa televisivo pelo menos reconhecia a sua existência – algo quase desconhecido dos dias de hoje.

Para onde tudo isso nos leva? Certamente não para além do bem e do mal. Antes, deixa muitas pessoas ao nosso redor enamoradas pelo mal. Isso não significa que qualquer um que veja “Breaking Bad” vá imediatamente considerar a vida de um traficante de drogas como uma forma legítima de pagar um bom tratamento médico.  Mas o “mal bacana” é uma parte ativa da degradação contínua do espaço público, que está longe de ser irrelevante para nossa vida privada e pessoal.

O moderno pensador político de Florença, Nicolau Maquiavel, foi reconhecido como o pregador do mal por ter defendido a necessidade de um príncipe que fizesse o trabalho sujo necessário para reunificar a Itália contra os bárbaros. É muito comum entre os entendidos em política de hoje dizerem que a má fama sobre Maquiavel é mera hipocrisia, já que todos na política agem como Maquiavel disse que agiriam, embora queiram parecer virtuosos. Não somente essa suposta “análise sofisticada” é factualmente incorreta – muitos homens de vida pública sacrificam seus gostos pessoais pelo bem comum e o fazem com a intenção de praticar e dar o exemplo da virtude –, mas é também perversa. O cinismo que diz “todos fazem isso” leva à auto-indulgência do vício. Nenhum filme, série de TV, ou qualquer outra forma de entretenimento pode criar uma cultura de vícios. Mas o flerte complacente e frequente com o mal pode, de fato, tornar o mal algo “bacana” na mente do grande público. O resultado será o agravamento da deterioração de uma moralidade pública já bastante debilitada.

Bruce Frohnen é contribuinte sênior no jornal on-line The Imaginative Conservative, é professor de Direito na Ohio Northern University College of Law e autor dos livros Virtue and the Promise of Conservatism: The Legacy of Burke and Tocqueville e The New Communitarians and The Crisis of Modern Liberalism e editor (junto com George Carey) do livro Community and Tradition: Conservative Perspectives on the American Experience.

Artigo publicado originalmente em 19 de setembro de 2014 no journal on-line The Imaginative Conservative, link:
http://www.theimaginativeconservative.org/2014/09/cool-evil.html.
Permissão da tradução e publicação em português neste site dada por Stephen M. Klugewicz, Ph.D., editor do journal. Para saber mais sobre este jornal, clique em The Imaginative Conservative.

Imagem extraída da publicação original, neste link.

Tradução: Marco Antonio.

Revisão e edição da tradução: João Toniolo.

 

NOTAS DA REVISÃO E EDIÇÃO DA TRADUÇÃO:

* As Notas do Tradutor estão indicadas com “N.T.” e as do revisor e editor da tradução como “N.R.” (ou numeradas).

[1] N.R.: A frase no original inglês aqui é “The attractiveness of evil also comes from the increasing extent to which it seems to ‘pay’ in contemporary fiction”. “Pay” tem o sentido de pagar, mas também de “ser útil”, entre outros. Parece que o autor joga com a multiplicidade de sentidos que esta palavra tem, pelo fato da cultura do “mal bacana” gerar dinheiro e ao mesmo tempo ser útil para o fim de ganhar dinheiro.

[2] N.R.: Como se na época medieval as coisas fossem somente assim como a série trata. A esse respeito, cf. os livros de Régine Pernoud, O Mito da Idade Média e Luzes Sobre a Idade Média.

[3] N.R.: Note que o autor fala em “auto-regulação”, que é diferente de regulação total da mídia pelo Estado.

[4] N.R.: “Leave it to Beaver” é 22º e último episódio da primeira temporada de “Veronica Mars: A Jovem Espiã”.