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A menina que roubava livros: um amor forte como a morte (por Pablo González Blasco)

Cinema | 29/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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A menina que roubava livros (The Book Thief). Diretor: Brian Percival. Sophie Nélisse, Geoffrey Rush, Emily Watson, Nico Liersch, Ben Schnetzer. 131 min. (2013)

book_thief_capa     O título me entusiasmou. Não pelo ato de roubar –como se verá, a menina apenas empresta os livros-  mas pelo objeto do furto. Em tempos onde a corrupção trafega  solta, e criam-se nomes pomposos para disfarçar o que é roubo descarado, fazer dos livros objeto do desejo é, no mínimo, um ponto positivo. As pessoas vão atrás do dinheiro, do poder, da fama. A garota arrisca a pele por conta dos livros.

A protagonista é Liesel, filha de uma mulher perseguida pelo governo alemão durante a segunda guerra. O serviço social germânico, sempre eficiente, confia a garota a um casal sem filhos: Emily Watson e um soberbo Geoffrey Rush, que melhora sua performance a cada filme. Essa é a pista de decolagem para um filme que é um belíssimo ensaio sobre a finitude e o amor.

book_thief_2     A finitude corre por conta do narrador –que é a própria morte, que todos vamos encontrar algum dia, questão de tempo. E o cenário é desenhado num aldeia da Alemanha, durante a guerra. As atrocidades do nazismo, o holocausto, a perseguição implacável –elementos que poderiam ser lugar comum- resultam aqui decorados justos para um mergulho antropológico de maior profundidade.

O amor transborda das personagens principais: Liesel, o amiguinho Rudy, Max, Hans, Rosa (abrandando aos poucos uma dureza que não é real), e se espalha contagiando os outros. Assim vão sendo apresentadas pessoas normais, de bom coração, que amavam sua pátria, que discordavam da política fanática do nacional socialismo, que trabalhavam honestamente, e cuidavam uns dos outros. E até garotos que admiravam Jessie Owen, e pintavam de preto a sua cara na hora de competir em alguma corrida no colégio. Um desaforo total para a raça ariana! Não eram apenas os oficiais da Operação Valkíria –ótimo filme, que revi recentemente- os únicos dissidentes da política do III Reich. Finitude e  amor; um amor que é forte como a morte em palavras da Bíblia (neste caso a frase é apropriadíssima), e por isso consegue oferecer o contraponto adequado neste poema encantador impresso no celuloide.

book_thief_1     Liesel não sabe ler mas intui que há algo nos livros que lhe pode trazer respostas para a sua vida dolorida. Hans ensina a ela as primeiras letras –literalmente falando- e Liesel embala nos livros, nas palavras que anota nas paredes do porão. Max, o refugiado que a família esconde, é o outro catalisador intelectual da menina, que não mais consegue parar de ler. E entre palavras estampadas e livros, lidos e relidos, aflora a camaradagem, a amizade sincera, a ternura firme e comovente, que destila de quem vai conformando sua alma com a sintonia dos seres humanos que enchem as páginas dos livros. “Você lembrou eles que somos humanos, lembrou-lhes da humanidade que parecem haver perdido” –explica Max para a menina, surpresa das reações irracionais dos soldados.

“As palavras são vida; a memória é como o escriva da alma dizia Aristóteles”. É Max, em suas lições a meia luz no porão úmido e frio. Lembrei de Borges que continuava comprando livros, mesmo cego, porque precisava rodear-se da sua amável presença. Precisava tocá-los, cheirá-los, aconchegava-se com eles.

book_thief_4     Os livros nos permitem digerir as experiências vitais. São como a lente através da qual visualizamos o sentido do nosso acontecer vital. Interlocutores, professores talvez,  que traduzem, na linguagem da alma, as vivências que nos inundam. Essa é a grande diferença que a leitura proporciona: somente quem dialoga com a cultura que lhe precedeu, com aqueles que descrevem os perfis das gentes, é capaz de entender a sua própria vida. Os que não leem, vivem sem perceber, não acumulam experiência, carecem de sabedoria: não por falta de matéria prima, mas por não trabalhá-la no forno lento que a leitura proporciona.

book_thief_5     Vivemos numa sociedade rápida, on line. Estamos informados, sabemos o que acontece no mundo em intervalo de segundos; mas nos assemelhamos a um cego em tiroteio: falta talento para saber realmente o que está acontecendo, para interpretá-lo e formar critério próprio. Abdicamos de ter opinião e nos contentamos em repetir o que se diz nas redes sociais. Já dizia um amigo que a internet –de inegável ajuda e possibilidades magníficas- é como parede de banheiro: cada um escreve o que bem entende, e nem sempre com bom gosto. Nos é brindada a possibilidade de descarregar todo tipo de arquivos visuais, auditivos, até de texto. Mas não lemos. Damos uma vista d’olhos, sabemos de que vai a coisa, nos colocamos ao dia, e tocamos a vida, quer dizer, passamos para os seguintes arquivos –tem milhares na fila- ou simplesmente os estocamos.

Meu avó dizia que Hitler perdeu a guerra por não ter lido história, pois cometeu o mesmo erro de Napoleão, ao enfrentar o general inverno na Rússia. Eu acrescentaria que nem história, nem literatura, já que Tolstoi cantou a péssima jogada –a de Napoleão, se entende- de modo solene em Guerra e Paz. A retirada estratégica do Marechal Kutuzov depois da batalha de Borodino, deixando os franceses esgotar-se sem adversários visíveis, teve seu remake versão III Reich, em Stalingrado. Leio nestes dias um artigo de  quem foi presidente da Georgia, comentando as intenções imperialistas do camarada Putin na Crimeia: “nos anos 30, os alemães invadiram a Tchecoslováquia alegando que tinham de proteger a população germânica que lá morava”. Sem história, sem literatura, somos neófitos vitais, nos deslumbramos com as coisas que acontecem, sem reparar que a humanidade recicla as histórias, pois é próprio da condição humana.

book_thief_3     Tomei conhecimento há pouco, por motivos profissionais, de uma espinhosa questão familiar. Parece que a mãe de família desconfiava de uma conduta imprópria do marido, e ninguém queria tocar no tema, para evitar incômodos. “Ela já sabe –disse eu. Veja o último filme da Meryl Streep,Álbum de família. As mulheres sabem de tudo antes de que se comente com elas”. Dias depois fiquei sabendo que minha apreciação era correta. Lembrei de “A Idade da Inocência”, o romance de Edith Wharton onde a “inocente protagonista” está por dentro de tudo.

Enquanto escrevo estas linhas, acodem a minha mente multidão de exemplos que estavam dormidos na memória. Nem lembrava deles, mas estavam lá. Basta uma faísca para eles acordarem; e vir em auxilio do raciocínio, esclarecendo a situação que se contempla e que alguém, séculos atrás, descreveu com pasmosa semelhança num romance, ou abordou com genialidade num ensaio. Dizem que a cultura é o que sobra quando se esqueceu tudo. Na verdade, não se esquece; permanece adormecida, mas à espreita do momento vital.

book_thief_6     Filmes e livros que nos ajudam a entender a vida. A nossa própria vida primeiro, para aventurar-se depois na vida alheia. É a comunidade dos homens contando suas histórias, aprendendo com elas. Assim faziam aquelas personagens –vai mais um dos exemplos que não consigo segurar- no país dos homens-livros, o surpreendente filme de François Truffaut, Fahrenheit 451. Essa é a temperatura na qual arde o papel. E os bombeiros, ao invés de apagar incêndios, colocam fogo….nas bibliotecas. É proibido ler, ter livros é crime. Um bombeiro –parente da nosso Liesel talvez- cai na tentação, guarda um livro, começa a ler…..No país dos homens livro, os habitantes sabem de cor as obras clássicas, e os velhos contam-nas para os jovens, para assim perpetuar a cultura. Pessoas que trocaram seus nomes pelos livros que contam: O Príncipe, Orgulho e Preconceito, o Pickwick de Dickens, Esperando Godot, Alice no Pais das Maravilhas, a República de Platão.

Fosse apenas para despertar o gosto para a leitura –essa sim é uma necessidade a ser criada, uma adição altamente recomendável- já valeria ver a fita. Contudo, o filme é muito mais do que isso. É o amor que, embalado nos livros e nas palavras, contorna a finitude, faz viver uma vida plena, para saber termina-la com o espírito repleto de paz.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2014/03/21/a-menina-que-roubava-livros-um-amor-forte-como-a-morte/

O Ano mais violento: Liderança fecunda na serenidade (por Pablo González Blasco)

Cinema | 15/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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(A Most Violent Year). USA, 2014. Diretor: J. C. Chandor. Oscar Isaac, Jessica Chastain, David Oyelowo, Alessandro Nivola. 125 min.

Filme - O ano mais violento - 1Dispunha-me a assistir este filme relaxadamente, sem o compromisso de buscar mensagens, ou entrever desdobramentos. Algum comentário tinha-me chegado às mãos: um bom roteiro, com elementos colocados a modo de quebra-cabeças, orquestrados por J.C. Chandor, o mesmo diretor de Margin Call- O dia antes do fim. Aquele foi um filme que me agradou. Uma trama onde, moralmente falando, ninguém se salva. Corrupção, estelionatos, aproveitadores, jovens executivos aprendendo o caminho das pedras do sucesso. O mal caminho, entenda-se. Como tirar partido dos outros para sair triunfadores. E um cinismo blindado a qualquer possibilidade de compaixão pelas necessidades alheias. O preço de cada homem. E no final, a decepção, o vazio, a solidão.

Sob a batuta do mesmo diretor, e tratando-se de um empresário de sucesso acossado pela concorrência desleal, imaginei que seria uma variante sobre o mesmo tema. De fato, a trama de fundo é exatamente essa. O amplo repertório de ações espúrias que os concorrentes –e o poder constituído- empregam na tentativa de tirar do meio um imigrante empreendedor, que triunfa no seu negócio. Mas com tudo o que isso pode ter de interessante –e atualíssimo!!!- não seria motivo para sentar e escrever estas linhas. Divulgar e comentar o que não funciona, colocar a lama da corrupção no ventilador, não me atrai. É mais do mesmo, semelhante ao que todos os dias inunda nossas redes sociais. Nada disso me impulsionaria a compartilhar com os possíveis leitores, as reflexões que se acumulavam na mente e no coração enquanto assistia o filme.

Filme - O ano mais violento - 6O encanto do filme não está em denunciar a podridão que nos rodeia, mas na reação exemplar do protagonista, magnificamente interpretado por Oscar Isaac. O que lá encontrei, e me seduziu, foi a serenidade no comando, uma liderança que sabe tratar com as pessoas, com o tempo, que não se abala nas dificuldades. Liderança calma, atenta, delicada. Um homem que sob pressão não perde nunca a compostura. Trata com carinho os funcionários, interessa-se realmente por eles; sabe o valor das coisas, espera como se nada tivesse a fazer. E quando é obrigado a buscar recursos para enfrentar as canalhadas de que é objeto, rebaixa-se sem perder o estilo. Solicita dinheiro para o usureiro, aceita as condições, com quietude e aprumo. E jamais pactua com o mal, com os negócios turvos.

Algumas semanas depois tive ocasião de assistir um workshop com empresários. De entre as muitas ideias que lá surgiram –a gente frequenta estas reuniões para aprender a manejar as inúmeras ideias que pipocam desordenadamente na mente- uma evocou de imediato o protagonista do filme: um líder, mesmo sendo consumido pelo sofrimento, jamais transmite insegurança ou preocupação à sua equipe. Lembrei de Abel Morales, o nosso empresário íntegro e sereno. Lembrei do livro de Kennedy que li faz anos: “Profiles in Courage”, onde se recolhe o famoso pensamento de Hemingway, nunca tão oportuno como agora: A coragem é a graça sob pressão. Pressão variadíssima –o quebra-cabeças do roteiro- coragem inabalável, e toneladas de serenidade que é a graça que nos conquista.

Filme - O ano mais violento - 5Conforme o filme avança sentimos revolta contra a injustiça. Segue-se uma natural inclinação a buscar soluções alternativas. Se aqui ninguém respeita nada, porque eu vou ter que manter-me firme? Tentação forte, fundamentada, até com lampejos de ortodoxia. Mesmo entre os que transitam na desonestidade, invoca-se como argumento. Sem ir mais longe, os jornais destes dias recolhem exemplos surpreendentes. A polícia prende com as mãos na massa ao corrupto que, escandalizado, exclama: Que pais é este? Ou então: Porque somente eu? Onde estão os outros? Tão triste como real.

A tentação pode vir sussurrada no próprio âmbito familiar. A esposa de Abel Morales vem de família acostumada a fazer valer seus direitos pelas próprias mãos. “Vou chamar meu pai, meus irmãos” –confidencia ela. Mas o empresário opõe-se: “Vamos resolver isto do modo certo”. Ela insiste: “Mas isto é uma guerra”. Ele é inflexível: “Eles estão em guerra, mas eu não”. Sem pactos, sem recursos ilegítimos, no caminho da lei. A violência –como a mentira- tem pernas curtas, sempre são agarradas, voltam-se contra quem as pratica. A verdade é garantia de segurança, de que não se esconde nada, porque nada há para ocultar. O ministério público, omisso em conter a violência e a concorrência criminosa, monta uma operação para encontrar fraude fiscal na contabilidade do empresário. Num momento dado, o promotor conversa com a mulher, cuja família conhece de outros carnavais: “Conheço teu pai, tua família, já me deram muito trabalho”. Ela olha e afirma contundentemente: “Meu marido não é o meu pai. Nem parecido com ele. É um homem honesto”.

Filme - O ano mais violento - 4Sempre me impactaram os filmes onde a liderança se apresenta rodeada de serenidade e aprumo, sem teatralidades, numa versão aparente de low profile. Aparente, mas profunda. Imagino que a minha admiração responde a algo que, com o tempo e a maturidade, todos almejamos. Comandar no silêncio, na atitude, sem esbanjar excentricidades, mas mantendo o ritmo, as rotinas, a própria ordem estabelecida. Nem sempre boa, às vezes torta, mas passível de ser corrigida e melhorada. Todo um projeto de vida que visualiza não apenas resolver o meu problema mas instalar uma ordem justa, que facilita a vida de todos.

Impossível não lembrar de Thomas More, um dos grandes expoentes dessa liderança profunda, densa, silenciosa. “Eu daria ao próprio demônio o privilégio da lei, para com ela conquistar os meus direitos” –afirmava quando na família e no círculo dos amigos nobres da Inglaterra lhe sugeriam driblar a lei de sucessão, de todo ponto injusta e arbitrária. “Do contrário –dizia More- como vou me defender quando o demônio venha atrás de mim?”. A liderança requer observação, entender o que está acontecendo, despojar-se de preconceitos e desconfiar de diagnósticos pretensamente geniais, para então conseguir penetrar no cerne dos problemas humanos. Requer aprender a ouvir as pessoas até o fim, sem pressa. Demanda reflexão, “trabalhar” os silêncios, que também são manifestação de sabedoria e liderança. Por isso Thomas More, Lorde Chanceler da Inglaterra, mostra-se reflexivo e silencioso quando interpelado sobre “a questão do Rei” (o divórcio com a Rainha para poder se casar com Ana Bolena): “O silêncio de More ecoa por toda Europa” – queixava-se o Rei, Henrique VIII.

Filme - O ano mais violento - 3É o mesmo silencio, a assombrosa e fecunda passividade do protagonista, naquele filme inesquecível de Kurosawa, “Kagemusha- A sombra de um Samurai”. Morre o jovem imperador, e os anciãos colocam um sósia –que era um mendigo- no seu lugar. O objetivo, claro, é impedir que o primo do imperador falecido assuma o trono, porque carece das faculdades de comando. O mendigo-imperador assume o posto, fala pouco, observa de cima da montanha as suas tropas se debatendo no combate. E quando os seus soldados fraquejam na batalha, olham para cima e vem ele lá, sereno, em atitude de apoio, como uma referência inabalável. E recuperam terreno, vencendo a luta. O líder jamais transmite aos seus homens espasmos da própria insegurança. Não se envolve no operacional, porque confia na equipe. E está sempre lá, de braços abertos, acolhedor, impulsionando cada um nas suas responsabilidades. Com o passar do tempo, o primo herdeiro descobre a tramoia, destitui o mendigo impostor, e assume o trono. Mas, como previsto pelos anciãos, ele é incapaz de observar e manter uma atitude serena, de quietude no comando. Inerva-se, grita, envolve-se nas batalhas –naturalmente pensa que faz as coisas melhor do que os outros- e acaba perdendo a guerra e o império.

O ano mais violento trouxe-me esta magnífica surpresa embrulhada numa trama repetidamente apresentada no cinema. Trouxe-me aprendizados preciosos da mão da atitude de Abel Morales. Provocou-me reflexões, despertou emulação, desejo de imitar essa liderança inabalável. Reações análogas às que , em seu dia, despertou em mim o filme de Kurosawa. Não sei se J.C.Chandor, na sua direção magistral, contemplaria estes efeitos “colaterais”, mas são os que me servem, os que me levam a escrever. E a pensar. E a querer melhorar. Afinal, o cinema, como toda arte, serve-nos opções variadas das quais cada um toma as que quer, ou as que pode, ou talvez, as que anda buscando.

Filme - O ano mais violento - 2Escrevo estas linhas no meio de uma atividade educacional onde me foram assinadas algumas atuações. Impossível desprender-se destes pensamentos, enquanto abordamos outros temas que, sendo formativos, são sempre correlatos. Talvez por isso, até me tremeu a voz, emocionado, quando inclui na minha exposição uma frase que tinha lido no dia anterior. Diz assim: “Para tirares importância ao trabalho de outro, murmuras-te: ‘Não fez mais do que cumprir o seu dever’. Eu comentei: ‘Parece-te pouco?’. De fato, se conseguíssemos contabilizar nos dedos de uma mão, todos os dias, pessoas que simplesmente cumprem o seu dever –e nos incluir entre elas- o mundo seria um lugar melhor. Bem melhor.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/06/02/o-ano-mais-violento-lideranca-fecunda-na-serenidade/

Antes de Partir: a alegria de fazer as opções certas na vida (por Pablo González Blasco)

Cinema | 07/05/2015 | | IFE CAMPINAS

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(The Bucket List). Diretor: Rob Reiner. Morgan Freeman, Jack Nicholson. 97 min.

downloadDevo confessar que já faz algum tempo que assisti a este filme. Mas faltou-me ocasião para escrever; não encontrava o momento para alinhavar as idéias – muitas e de todo tipo – que se juntaram na minha cabeça. Aconteceu-me, no fim, o mesmo que às personagens: nem sempre se consegue fazer o que previmos. É preciso decidir, estipular hierarquias, pois a sabedoria não consiste em fazer cada vez mais coisas – a pesar de que a técnica nos faz acreditar o contrário – mas em fazer as coisas que de verdadeiramente importam. Não as coisas importantes – afinal a importância é muito relativa – mas as que devem ser feitas. Sabedoria é, por tanto, abrir mão de muitas outras coisas que nunca se poderão fazer, para centrar-se naquelas que devem ser feitas. O universo de possibilidades que nos cerca é muitas vezes uma desculpa confortável para fugir de algumas tarefas – ações, conversas, decisões, ou mesmo saber perder tempo com um sorriso que conforta o próximo – que são nossa missão na vida. Por isso, bati o martelo e decidi escrever sem deixar passar nem um dia mais, enquanto coloquei na espera… algumas coisas ditas importantes que insistem em tomar a dianteira, e querem monopolizar o meu tempo.

O filme é um “mano-a-mano” genial de quase 100 minutos entre dois autores consagrados. Não há perigo de contar o argumento, porque não existe como tal. Mais se assemelha a um diálogo de Platão, em versão Hollywood, com a sabedoria de Morgan Freeman no papel de Sócrates, e um prosaico, deselegante e encantador Jack Nicholson, que personifica o sofista de turno. Pura reflexão sobre o que de verdade importa na vida e, como me dizia um amigo animando-me a escrever, um filme “sem desperdício”. Impossível não se lembrar daquele Schmidt de Nicholson, que se confessa por carta com o menino que adotou na África, e não consegue ver a utilidade da sua vida que se acaba. O Schmidt precisa agora de um câncer e de um interlocutor, também com câncer, para nos brindar as reflexões que vão muito além do cômico ou do anedótico.

”Antes de partir” é o título em português da lista de pendências que os dois protagonistas querem completar numa corrida contra o “relógio” do câncer que vai tomando conta do seu organismo. Quais são as coisas importantes na vida, as que não posso deixar de fazer? Eis uma excelente colocação que serve para quase tudo: decidir e fazer o que não pode deixar de ser feito, sem distrair-se – e depois desesperar-se – com o que poderia ser feito. A vida é um leque de possibilidades, e a escolha de uma excluirá possivelmente as outras. A figura do leque de possibilidades associa-se na minha mente ao filósofo dinamarquês Kierkegaard, desde os tempos das aulas de filosofia no colegial. Bons tempos aqueles, em que se estudava filosofia com 15 anos. Não estou certo de que aprendêssemos grandes teorias, mas ao menos tomávamos conhecimento de que existiam pessoas cujo ofício era pensar, questionar-se. Mesmo que, como Kierkegaard, sofressem por isso. Hoje, temos muito que fazer e não podemos dar-nos o luxo de pensar, muito menos de nos questionar. Vai ver que de repente descobrimos que não sabemos porque fazemos as coisas, ou porque fazemos sempre o que não é importante, e ignoramos o essencial. No dia em que essa ficha vier a cair a angústia será tremenda, como a do Schmidt, e o sofrimento dos filósofos existencialistas – que ao menos tiveram a coragem de pensar no assunto – será “café pequeno” comparada à do insensato que passou a vida em piloto automático. Não temos tempo – dizemos – e quase nos convencemos. A pressa é tanta, que não paramos para colocar gasolina no carro… e fatalmente o carro ficará no acostamento, cedo ou tarde.

A perspectiva da morte – a única realidade certa na vida do homem – é a temática do filme. E por isso aborda o essencial. Já dizia V. Frankl – o estudioso do sentido da vida – que um dos melhores desafios que o homem tem é saber que não é eterno, que o seu tempo se acaba. E por isso deve empregar o tempo com sabedoria. Se tivéssemos todo o tempo do mundo provavelmente não faríamos nada de útil. Daí o mesmo Frankl aconselhar a, antes de realizar qualquer tarefa, fazê-la como se fosse a segunda vez que a fazemos, depois que, na primeira, a tivéssemos feito tão defeituosamente quanto estamos quase a ponto de fazer agora. Vale a pena pensar na frase, que é mais do que um jogo de palavras.

antes_de_partir_2Mas a morte parece estar longe demais do nosso dia-a-dia. Acontece a toda hora, lemos nos jornais, nos atinge de perto, mas parece que não é conosco. Não há outra explicação para que vivamos sem pensar, para que a tal ficha “do que realmente importa” demore tanto a cair. Os cursos de liderança tentam retomar o tema e propõem aos participantes que imaginem o dia do seu enterro, quem vai estar lá, o que falarão dele. Mas mesmo assim, tudo isso é visto mais como a passarela da fama do que um funeral. A realidade da morte – fenômeno de maior prevalência neste mundo – ignora-se, dissimula-se, esconde-se das crianças. Certa vez falaram-me de um menino americano a quem disseram que o seu avô tinha morrido. Ele perguntou muito triste: “Mas,… quem disparou nele?”

Há algum tempo li um magnífico livro: “A Morte Íntima” de Marie de Hennezel, – uma psicóloga francesa que dirige uma instituição hospitalar dedicada aos cuidados paliativos. Os pacientes que lá se internam não costumam sair. Mas se cuida deles, com carinho e dignidade, até o fim. A autora afirma que ao invés de enfrentar a realidade da proximidade da morte, empenhamos-nos em aparentar que nunca chegará. Mentimos aos outros, mentimos a nós mesmos, e ao invés de falar do essencial, envolvemos com o silêncio esse momento único da vida. Isso acontece antes e depois: basta ver a falta de originalidade – e o conseqüente martírio para a família – das conversas de velório. As monótonas perguntas de sempre: “Mas, como foi? Parecia estar tão bem…

As reflexões de Hennezel colocam o dedo na ferida, com maestria. “Os que têm o privilégio de acompanhar alguém nos últimos momentos sabem que se trata de algo especialmente íntimo, porque aquele que morre falará do essencial, daquilo que de verdade importa e nem sempre pôde ou soube dizer. A morte nos impulsiona a não ficar na superfície das coisas, nos faz aprofundar. E talvez por isso nos angustie tanto: porque nos situa diante das últimas perguntas, das autênticas, dessas que tantas vezes deixamos para responder em outra ocasião, quando sejamos velhos, ou mais sábios, quando tenhamos tempo de colocar-nos questões essenciais.

Os nossos personagens têm a oportunidade ímpar de conversar sobre este tema que todos parecem evitar. É verdade que a condição que padecem une-os, e por tanto de nada serve disfarçar. Freeman é Carter Chambers, um mecânico culto, um humanista, que faz questão de elaborar a lista de pendências. Nicholson é o terrível milionário Edward Cole, que entra no jogo, e acaba gostando. O mecânico almeja realizar as pendências, ao mesmo tempo em que comprova que a vida que viveu tem substância e não a trocaria por nada. A proximidade da morte é uma confirmação de que o importante é o de sempre, o que se fez com amor e carinho, as pequenas coisas da vida onde reside o encanto. O milionário vem descobrir o contrário: que não é feliz porque lhe falta simplicidade, saber apreciar os detalhes, e lhe sobra dinheiro. E descobre que também com dinheiro se pode ser feliz, sabendo usá-lo. Os dois constroem um diálogo filosófico – um banquete de Platão -, para descobrir que a felicidade e o sentido da vida têm muito a ver com a doação, com o que se faz pelos demais. “A porta da felicidade abre-se para fora e se tentarmos abri-la para dentro, para nós mesmos, acabaremos por fechá-la inexoravelmente”. Atenção a estas palavras que são de Kierkegaard, nada menos!!

antes_de_partirO humor e bom gosto do filme não lhe impedem dar o recado. Nestes tempos globalizados, em que a informação nos chega em tempo real, é preciso recorrer ao Cinema para provocar a reflexão, num mundo governado pela pressa e pela impaciência. Um pensador que faz o elogio da lentidão – característica da qual carecemos quase a nível cromossômico – comenta que o tema da velocidade não é de dimensão técnica, mas sim transcendente, porque é difícil admitir que vamos morrer, é desagradável. E por isso procuramos maneiras de distrair a consciência da nossa mortalidade. A velocidade seria uma espécie de estratégia de distração. Chegamos de novo ao início das nossas reflexões: conseguimos esquecer o que realmente é importante, para ocupar-nos com o periférico.

Os nossos filósofos atores nos guiam nesta reflexão plasmada no celulóide. A morte é o pano de fundo, mas o filme é alegre, positivo, real. Certamente porque a “ficha do importante” cai ainda em tempo. Na verdade, é na vida, no dia-a-dia, quando estas questões devem ser colocadas, e temos de conquistar o espaço para refletir, roubando-o à pressa infecunda, à globalização que nos massifica. Não há como deixar de lado os versos do nosso poeta, que colocam ponto final a estas linhas: “Podeis aprender que o homem/ é sempre a melhor medida/ Mais, que a medida do homem/ Não é a morte, mas a vida”. Para saber morrer, é preciso saber viver, com intensidade, sem medo, de portas abertas aos outros.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fontehttp://www.pablogonzalezblasco.com.br/2008/04/29/antes-de-partir-a-alegria-de-fazer-as-opcoes-certas-na-vida/

Bella: O poder de fogo da família (por Pablo González Blasco)

Cinema | 16/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Bella (2006). Diretor: Alejando Gómez Monteverde.

Atores: Eduardo Verástegui. Tammy Blanchard, Manny Perez. 91 min

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Quando me pedem a opinião sobre um filme que ainda não assisti, já sei que mais cedo ou mais tarde acabarei assistindo. É questão de tempo e oportunidade. Não consigo resistir; aliás, para ser franco, nem tento fazê-lo. Afinal, quem ergue a bandeira de que o cinema educa deve manter-se atento às novidades.

Assim ocorreu com “Bella”. Houve perguntas e também comentários que incluíam o ator, Eduardo Verástegui, um cantor e ator mexicano que sofreu um processo de conversão espiritual e milita entre os “Pro Life”. Parece que há uma entrevista com ele, divulgada pela EWTN, a emissora da Madre Angélica, essa surpreendente freira de clausura do Alabama, que no dizer de alguns teria créditos para ser a santa padroeira dos CEOs . De fato, tive oportunidade de ler uma biografia de Mother Angélica, quando acabei me tornando seu fã incondicional – dessa mulher que alia capacidade de gestão e empreendedorismo incomuns, sob o amálgama de gigantesca personalidade espiritual. A santidade, o senso comum e a voz de comando lhe saem pelos poros.

Isso, e saber que “Bella”, surpreendentemente, conquistou o prêmio do Festival de Toronto, fizeram-me pensar que seria um filme ortodoxo, que ofereceria soluções moralmente corretas e opções “pró vida” para a polêmica questão do aborto. Foi com essa expectativa que me sentei para contemplar os 90 minutos de filme. Mas enganei-me rotundamente.

“Bella” é um filme sobre a família, sobre o poder de cura da família, e as feridas que não acabam de sarar quando se carece de um verdadeiro lar. Apalpa-se o realismo, a dificuldade, a miséria humana. Sente-se a dor, a dos personagens e a nossa, que entram em ressonância durante o filme. Junto com a dor, a dúvida, a ingratidão que torna tudo mais difícil, e o destino que parece querer nos afundar de vez. O sofrimento tem um nome: chama-se Nina. E a compreensão – que ouve com paciência e busca saídas – encarna-se em outro protagonista: José, homem igualmente curtido pela dor. Mas no meio de tudo isso, a família, o lugar onde somos compreendidos, onde se tenta entender o que não tem lógica, porque nos ouvem pelo coração, que acolhe as razões que a razão não consegue entender, como dizia Pascal.bella_2

Mês passado regressei de uma viagem a uma universidade da Colômbia, onde conversei com um velho amigo, médico pediatra, pai de doze filhos, professor de um instituto que promove a educação familiar e aconselha tanto as famílias que têm problemas como as que não têm… ainda. “É como medicina preventiva” – disse-me o amigo, que tem longa experiência no trato com a dor, sobretudo de uma classe de dor para a qual dificilmente temos respostas a dar: a dor das crianças. Certa vez contou-me como viu adolescentes, quase-crianças, morrerem nas terríveis guerrilhas do narcotráfico de seu pais. Falamos sobre muitas coisas, inclusive o sofrimento. Em dado momento, com um sorriso próprio de quem está revelando um segredo, afirmou: “Nós, médicos, tratamos a dor com analgésicos, damos morfina. Mas o que funciona de verdade contra a dor é a família”. Olhei-o surpreso, mas continuou: “Na família, encontramos o sentido da dor, o que propicia, paradoxalmente, a sua cicatrização”. Sem família não há cura para a dor que nos oprime”. Ora, as cenas de “Bella” me evocavam o tempo todo esses comentários de meu amigo.

Parece-me que foi Tolstoi, em “Ana Karenina”, quem disse que as famílias felizes se parecem todas entre si, enquanto as infelizes o são cada uma a seu modo. Este pensamento, juntamente com outras recentes vivências pessoais, também me vieram à mente enquanto assistia “Bella”. Meus últimos meses foram marcados por perdas importantes. Amigos perderam parentes. Eu mesmo perdi um familiar querido. Onde estão essas “famílias felizes” a que se refere Tolstoi? Serão felizes as que não têm problemas nem sofrem perdas? Do que depende, afinal, a felicidade? Será que a felicidade – a que conseguimos tocar – é apenas a ponta de um imenso iceberg, de toda uma unidade de sentimentos, vida, missão e postura diante da vida, diante do sofrimento e até da morte?

Pude testemunhar nesses meses o que são famílias unidas e presididas pela dor, e ao mesmo tempo felizes, muito felizes. O tema é profundo e o filme consegue abordá-lo com acerto. A dor vem, queiramos ou não, e a reação – talvez “ação”, que é “proativa”, como se diz ultimamente – depende da estrutura familiar que se tem por base. Razão assiste a meu amigo colombiano: “diante da dor, o que funciona é a família”.

Serão famílias especiais, essas, que conseguem manter a esperança e até a alegria diante da dor? Serão, seus membros, pessoas fora do comum, tão centrados na transcendência que o sofrimento sequer lhes abala? Evidentemente não. São, simplesmente, seres que buscam na família os recursos para se recuperarem, para se apoiarem mutuamente e se refazerem. Sabem extrair da família a fortaleza de que necessitam para digerir a dor e crescer com ela. Alguém apontava em acertada metáfora que tais famílias são como cartas de baralho: sozinhas, não param em pé, mas apoiando-se umas às outras se consegue montar um castelo. “Teus familiares não esperam encontrar em ti alguém extraordinário. Querem apenas contar contigo para poderem se apoiar em e ti, e tu neles.” A frase não é minha, mas de Miriam Weinstein, autora do livro que acabo de ler: “O surpreendente poder das refeições em família – como elas nos fazem mais inteligentes, fortes, saudáveis e felizes”. Um encanto de livro, que mais do que as refeições em família, versa sobre a própria família. A autora realiza uma extensa pesquisa e demonstra o tremendo poder de fogo – de formação educacional – das refeições em família. Por exemplo: entre os adolescentes que jantam com a família cinco ou mais vezes por semana, a incidência de drogas e alcoolismo diminui sensivelmente, acima dos 40%, resultado mais expressivo qubellae o referente ao nível de notas escolares, ou até mesmo à freqüência a grupos religiosos. Recolhe também uma pesquisa realizada em Harvard segundo a qual, na fase de alfabetização, as crianças que alcançam melhor aproveitamento são as que almoçam mais vezes com a família, porque acabam adquirindo um vocabulário muito mais amplo que as demais. Não porque tenham lido mais que as outras, mas porque ouvem os adultos conversarem à mesa. E com não pequena surpresa, a pesquisadora vem a descobrir que há lares onde não há sala de jantar, outros sequer mesa para refeições em família. Não admira que justamente nesses lares verificou-se maior incidência de anorexias e transtornos alimentares.

Vivemos na era do fast-food, do self-service, do delivery, em que parece não haver tempo para detalhes como almoçar em família e conversar. A refeição virou apenas “alimentação”, “nutrição”, e não por acaso, em nossos centros comerciais, a área reservada aos restaurantes costuma se chamar “praça de alimentação”. Pode-se comer de tudo, bastante, rapidamente, mas dificilmente se pode conversar, “perder” tempo, praticar a liturgia das refeições que nos educa no esperar, no escutar, no conviver, nos verdadeiros ritmos da alma. No dizer de Weinstein, parafraseando Epicuro: “Antes de pensar no que comer, bom seria pensar com quem vamos comer. Comer sozinhos é próprio de leões e de lobos”.

A autora acerta em cheio, porque o valor que está em jogo não é apenas o estilo fast-food das refeições, mas a própria família. Hoje, há quem queira obter o título de “família” para justificar qualquer tipo de relacionamento. É como quem quer comprar uma comenda ou um título nobiliário. Alguns se assustam com essas perspectivas aberrantes. Eu, porém, confesso que não perco o sono, pois acho que o horizonte acabará se desanuviando. Será como a purificação do ouro. O fogo se encarregará de separar da escória o que tem valor. A dor chegará algum dia, inevitavelmente, e sob sua luz ficará evidente quem é de verdade família e quem comprou esse “título” para usá-lo como enfeite.

Weinstein – que se apóia na tradição judaica – encerra seu estudo com a história de um sábio Rabino do século XVII. Sempre que os judeus eram ameaçados, este bom homem ia até o bosque, acendia uma fogueira, fazia uma prece, e Deus lhe atendia. Morreu o mestre, e um de seus discípulos seguiu o seu exemplo nos momentos de crise. Ele não sabia como acender o fogo, mas lembrava-se da prece. O milagre acontecia igualmente. Morreu também este, e seu sucessor também se esqueceu da oração. Mas, mesmo assim, ia ao bosque e dizia: “Não sei como acender o fogo, nem mesmo lembro-me da prece, mas pelo menos sei para onde devo ir em momentos como esses”.

Nestes tempos em que tantos desaprenderam a rezar e a acender fogueiras, nós, que pelo menos nos sentimos “família”, sabemos para onde ir nos momentos de dor: ao nosso lar! É na família onde tudo tem conserto, onde nos sobrepomos à dor, onde reconquistamos a esperança de viver.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2008/12/09/bella-o-poder-de-fogo-da-familia/

Walt nos Bastidores de Mary Poppins: Educar com experiências inesquecíveis (por Pablo González Blasco)

Cinema | 02/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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“Saving Mr. Banks” (2013). Diretor: John Lee Hancock. Emma Thompson, Tom Hanks, Colin Farrell, Paul Giamatti, Jason Schwartzman, Bradley Whitford, Annie Rose Buckley, Ruth Wilson 125 min.

saving_mr_banks     Assisti o filme, faz já alguns meses. Fascinou-me. Ainda sob o impacto das emoções, mandei uma mensagem para os meu irmãos, que moram na Europa. “Um filme encantador. Para os que éramos crianças nos anos 60. Um despertador de vivências”. Recebi reposta, quase imediata, de um deles: “A tua sobrinha foi assistir ontem com as amigas –todas na casa dos 20 anos- e adorou”.

Lembrei da teoria do meu pai –muitas vezes comprovada na prática – de que há filmes, ou melhor, trilhas sonoras, que encantam as crianças (com perdão da minha sobrinha) mesmo que nunca o tenham visto antes. De fato, quando os primeiros netos chegaram e ele tinha, vez por outra, que ficar de babá junto com a minha mãe, colocava-lhes o CD de “The Sound of Music” (A Noviça Rebelde)…. e as crianças sorriam placidamente, ficavam calmas, serenas. Aproveitando o ensinamento, eu mesmo ofereci de presente –nessas festas de aniversário de um ano, que nunca sei o que dar, sempre é um dilema- não a música, mas o filme em DVD. Não uma vez, várias, muitas até. E parece –pelo retorno que tenho- que a estratégia continua funcionando.

saving_mr_bansk_1     Mr. Banks não é a Noviça Rebelde, mas o outro musical que a Julie Andrews estreou na década de 60: “Mary Poppins”. Ou melhor, como o título anuncia, os bastidores do filme, a gestação desse grande sucesso infantil….que seduz aos adultos. Faltou-me tempo, depois de ver o filme, de buscar e assistir novamente Mary Poppins. Conhecer as entrelinhas, e a difícil negociação de Walt Disney para que a escritora australiana lhe vendesse os direitos da encantadora babá mágica –foram 20 longos anos- fez me pensar que, quando assisti por primeira vez com 9 anos, não tinha captado o recado principal. Na verdade, captei o que interessava naquele momento. A música que grudava na memória, os limpadores de chaminés dançando, os remédios que provocavam levitações desafiando a lei da gravidade, e o sorriso impactante de Mary Poppins que tinha soluções para tudo. Soluções que tirava de uma bolsa peculiar, elástica como o coração de uma mãe, onde se encontravam todos os recursos para as necessidades próprias e as alheias.

Seria possível alinhavar alguns comentários sobre o filme, e os motivos que levaram P. Travis a criar Mary Poppins, como expediente para reconciliar-se com os seus fantasmas da infância. Fantasmas que não são exclusivos, porque Walt Disney tinha também os dele. Em ambos os casos, a arte –a escrita, a criação- é o remédio, o modo de entender. E isto sim, já é um bom recado para os nossos desassossegos. Quando escrevemos e damos vazão ao mundo interior na criação artística –que pode ser própria, ou emprestada de outros que têm reconhecido talento- chegamos a compreender as vivências que nos rodeiam. Conversamos com nossas emoções –alegrias, frustrações, expectativas, desânimos- quando as tornamos explícitas. E desse modo nos conhecemos, nos construímos, curamos as chagas da alma. “Nós contamos histórias –diz a personagem de Walt Disney- é isso que fazemos”. O que poderia interpretar-se como: nos arrumamos a nós mesmos através das histórias que contamos.

saving_mr_banks_2     Nosso mundo é rápido, frenético, em tempo real. Não temos tempo para nada, e não parece que queiramos mudar o panorama. Carecemos de serenidade para escrever –aqueles saudosos diários das nossas avós!- , para saborear as próprias emoções, degustando-as da mão da arte, domesticando-as ao ritmo sereno da reflexão que decanta em palavras. “Para que poetas em tempo de indigência?” –exclamava Holderlin. Sempre que tropeço com esta frase, pergunto-me se a indigência não será justamente a causa da falta de poesia, e não o empecilho para que os poetas floresçam.

Mas a verdade é que a proposta do filme não é um convite a grandes mergulhos psicológicos. Melhor é relaxar e se dispor a assistir um agradabilíssimo espetáculo de duas horas, num mano-a-mano sublime: uma Emma Thompson extraordinária e Tom Hanks que incarna Walt Disney com perfeição. Tive ocasião de assistir novamente com um grupo de amigos, algumas semanas depois. Afinal, promovi-o tanto, que era necessário estar presente na sessão conjunta. Sem reflexões psicológicas mas, novamente, experimentando o despertar das vivências, agora alavancadas pelos comentários e pela satisfação que pude comprovar à minha volta.

saving_mr_banks_3     São vivências que surgem ao compasso das canções que cantarolávamos quando criança. No colégio, entre os amigos, ou na família, muitas vezes lideradas pela minha mãe que tinha uma linda voz de soprano. Naquela época, me dizia muito mais a melodia do Chim Chimney ou doSupercalifragilisticexpialidocious do que Madama Butterfly ou La Boheme. Mesmo assim, tomei nota pois imaginei que o tal de Puccini era uma personagem importante….como vim comprovar e apreciar, muitíssimo, anos depois.

Aquilo que se planta na infância, dura sempre. Floresce com o tempo, no decorrer da vida que encadeia os acontecimentos e nos faz evocar as raízes. E daqui brota a reflexão mais séria que o filme me acendeu: o que vão evocar os que não tiveram infância, ou passaram por ela sem cultivá-la? Entendemos que quem cultiva a infância nunca é o interessado mas aqueles que lhe nutrem e educam. Pais, professores, familiares, vizinhos. O tempo de indigência que não permite poetas, converte-se hoje na indigência de tempo: ninguém tem tempo para nada, muito menos para os outros, para cultivar pessoas, tarefa artesanal que requer paciência de ourives.

saving_mr_banks_5     A minha inevitável relação com o mundo da educação tem me levado a frequentar as leituras nessa área. Não lembro exatamente onde –provavelmente em mais de um autor- deparei-me com uma consideração relevante para o tema que nos ocupa. Somente o ser humano tem infância. Os outros animais, depois que são desmamados e ganham independência dos progenitores, estão já prontos para se reproduzirem. O ser humano dispõe de um longo período – a infância- antes de tornar-se apto para ser pai ou mãe. São anos de crescimento biológico, psicológico, afetivo. E também intelectual e moral. Mas, são, sobre tudo, anos de acumular vivências, de aprofundar raízes. Não há dúvida de que o desenvolvimento intelectual e de aptidões tem se fomentado muito. O déficit –pela aparente indigência de tempo que leva a um investimento equivocado de recursos- recai sobre o capítulo das vivências.

As crianças se beneficiam de modernos métodos de ensino, aprendem várias línguas, meia dúzia de esportes, um sem fim de atividades paralelas, ocupadíssimos como um executivo mirim que cursa vários MBA, preparando-se para uma vida….que não está vivendo…e que talvez venha a viver algum dia, mas sem raízes. Vale lembrar que o alemão Froebel, inventor do Kindergarten (jardim da infância), tinha em mente justamente o contrário: colocar, literalmente, cada criança num pedaço de jardim para que o cultive. O objetivo não é aprender a ler, a escrever, e ser um poliglota. Trata-se de entrar em contato com a natureza, o que implica cultivar a terra, caçar insetos, sujar-se de lama, ver as nuvens no céu. É preciso dar tempo ao tempo, sem a ansiedade de acelerar o curriculum, entulhando conhecimentos.

Uma vida cabal se consegue vivendo com plenitude e apropriadamente cada etapa da vida: sem atalhos que acabarão rendendo problemas posteriores. Não se estica a criança para que cresça: nem física, nem intelectualmente. Este último aspecto está um pouco abafado por uma má entendida educação precoce. Os homens tem um período de latência, grande, longo: a infância. Não se pode encurtar esse tempo –que é onde se descobre o mundo- sem pagar as consequências. Vivências, experiências compartilhadas com os formadores, desenvolver a capacidade de contemplar, de surpreender-se. Enfim, uma educação estética, artística, vital.

saving_mr_banks_4     O progresso tecnológico –que traz inegáveis benefícios- entranha também sérios riscos quando não se ensina a usá-lo convenientemente. Vem à minha cabeça a compulsão fotográfica. Todo o mundo faz fotos de tudo, a toda hora. Nos locais turísticos, nas filas que entopem os museus, nas paisagens de consagrada beleza, e até no quotidiano catalisado pelo festival visual que oferece o Facebook. O registro fotográfico sempre foi uma tentativa de congelar uma vivência, um momento que merece ser registrado porque carrega um sem fim de lembranças, de emoções, de carinho comum. Dai a foto, uma tentativa de eternizar o contingente. Hoje porém, é tanta a sofreguidão com que se dispara a câmara embutida no celular –e maior a rapidez em deletar a imagem que não ficou boa- que mal se encontra espaço para viver o momento. Quer dizer: registram-se momentos não vividos, ou vive-se para registrar o vazio. Guardam-se as fotos –que dificilmente se contemplam- mas ninguém armazena as vivências….simplesmente porque elas não aconteceram. As muitas fotos impedem as pessoas de viver o momento. São as árvores que não deixam ver o bosque. É aquela música que cantava o Julio Iglesias: “ de tanto correr pela vida, me esqueci de viver”.

Indigência de tempo, que impede a educação pausada, artesanal, o compartilhar as vivências. Indigência de vivências que se supre, erradamente, com toneladas de fotos, com ótima resolução em megapixels mas desbotadas de vitalismo. Indigência de poesia, de arte, que decanta na miséria que todo ser humano carrega.

Educar –diz outro dos autores que frequento nas minha leituras- é proporcionar experiências inesquecíveis. Eu, felizmente, tive muitas na infância e sou imensamente grato por isso. Tanto que deixei plasmada a minha gratidão por escrito várias vezes. Lembro, por exemplo, de um breve capitulo de um livro, que intitulei: filme-família, uma festa a ser reconquistada.

Neste momento tenho o livro diante e copio, porque é difícil dar o recado com menos palavras: “Começa o filme. Mamãe já falou tanto deste filme…É, porque o filme-família nunca é desconhecido para todos. Sempre alguém já o viu – faz muitos anos!!, diz- e o recomenda porque…bem, porque é bonito, é ótimo. Não sabe dizer por que é bonito; lembra da sensação que teve quando assistiu. Será parecida com a nossa que o vemos por primeira vez? Não, não é. São o entorno, os sentimentos, as expectativas, o filme enfim, que se gravam fotograficamente no álbum das lembranças entranháveis e que o tempo realça, sem amarelá-las, tornando-as gigantes. O tempo é um ampliador genial das emoções. O filme-família é isso, o evento que marca, que se registra nos sentimentos, que pede “replay”… quando os anos passam. Mas “replay” familiar; se não, perde o encanto. Não se revê um filme-família a modo de lembrança pessoal, para mim. Há que revê-lo para os outros, com os outros. As sensações dos outros -da família- despertam em nós as vibrações antigas do evento de outrora”

Os bastidores de Mary Poppins levaram-me até os meus próprios bastidores, as experiências inesquecíveis. Um privilégio que desejo a muitos. Um desafio para os que têm de educar as mulheres e os homens que conduzirão o nosso mundo nas próximas décadas. Se tiverem bastidores com experiências inesquecíveis, podemos ter a esperança de que o mundo será melhor do que este que nos toca viver.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2014/07/24/walt-nos-bastidores-de-mary-poppins-educar-com-experiencias-inesqueciveis/