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Tire esse seu piercing do caminho que eu quero passar com a minha dor – por Iura Breyner

Artes | 15/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Foto: Användare:Zelina (Wikimedia Commons)

Foto: Användare:Zelina (Wikimedia Commons)

 

Hoje, não por acaso, escutei a canção “Piercing” de Zeca Baleiro, uma reflexão profunda sobre a vida contemporânea e seus contrastes. A letra começa assim:

“Quando o homem inventou a roda, logo Deus inventou o freio. Um dia, um feio inventou a moda… e toda a roda amou o feio.” – uma provável alusão à inteligência humana, a uma ampliação sempre crescente dos limites de sua liberdade e a conseqüente imprevisibilidade que, por assim dizer, obriga Deus a pôr freio, como forma indireta de controle, ou moderação.  Na continuação, faz referência a “um feio” – indivíduo ou grupo humano – fora do padrão, que, por sua vez despadroniza por contágio a outros indivíduos e ambientes que em algum momento e por razões diversas incorporam ou padronizam o que antes era considerado “contra-padrão”.

Lembrei-me por um instante de como alguns movimentos sócio-políticos de caráter contestatório como o “Hippie e o “Punk[1], surgidos nos EUA e Europa entre os anos 70 e 80, foram rapidamente absorvidos pelas mídias dos grandes centros urbanos dos cinco Continentes, transformando-se em modas febris e passageiras que desfiguraram total ou parcialmente a mensagem-mãe daqueles movimentos. Pensei mesmo nas mais importantes invenções e descobertas do homem, como por exemplo, a roda e o domínio do fogo com seu efeito-dominó, cuja última peça não seja outra que não aquela em que O Próprio Deus resolva pôr – quando queira – o Seu Divino Dedo.

Pergunto-me se a questão seria mesmo a da incontrolável inteligência humana e não a da sua inata liberdade, pela qual cada geração e cada indivíduo tem o poder e a responsabilidade de deliberar seu rumo histórico.  Neste caso, de modo algum teria sido Deus a inventar o freio, mas o próprio Homem, sujeito ativo e passivo de seu  livre arbítrio, como único ser na natureza com capacidade de domínio e controle sobre os demais seres e os de sua própria espécie.

Voltemos à letra da música; desta vez ao refrão que a intitula: “tire o seu piercing do caminho, que eu quero passar, quero passar com a minha dor!”. Demos um salto na história  e nos contextualizamos na chamada pós-modernidade; o período cultural urbano do “pós-guerra”, ou da guerra e da morte institucionalizadas nas culturas urbanas do nosso mundo.

A letra faz referência à velha canção de Nelson Cavaquinho – “Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor…” – a referência na letra é sublinhada pela melódica; uma espécie de “colagem musical” em que uma voz chorada e abafada canta ao fundo a segunda parte do trecho original como resposta à provocação recriada da primeira. Agora já não é mais o sorriso ferino da amada, alheio e até talvez sarcástico ante a dor do poeta desprezado, mas o “piercing” – signo da provocação “punk” à sociedade cuja característica mais marcante é o horror à dor manifestado na hipervalorização do conforto e do prazer e na hipócrita negação da própria realidade com suas imperfeições e cicatrizes indisfarçáveis. Signo desgastado e esvaziado de significação pelo uso excessivo, repetitivo e indiscriminado por esta mesma sociedade que o incorpora, como no evento inicialmente descrito, transformando-o em moda vazia.

O piercing, deslocado de seu contexto inicial e esvaziado de sentido numa sociedade “fast food” deixa de apontar-lhe ironicamente o dedo indicador para trazê-la cuidadosamente no anelar esquerdo. Sim; casou-se com ela e de agora em diante a representa em lugar de acusá-la. É precisamente a este piercing – traidor, representante de uma colorida e atraente bolha de plástico à vácuo – que o poeta Zeca Baleiro impetra que lhe seja tirado da frente para que siga adiante com a sua dor.

E o que é precisamente, esta “dor” do poeta? Voltemos à letra: 

“Pra elevar minhas idéias não preciso de incenso
Eu existo porque penso
tenso, por isso existo
São sete as chagas de cristo
São muitos os meus pecados
Satanás condecorado
na tv
tem um programa
Nunca mais a velha chama
Nunca mais o céu do lado
Disneylândia eldorado
Vamos nós dançar na lama

Bye bye adeus Gene Kelly
Como santo me revele
como sinto como passo
Carne viva atrás da pele

aqui vive-se à míngua
Não tenho papas na língua
Não trago padres na alma
Minha pátria é minha íngua
Me conheço como a palma
da platéia calorosa

Eu vi o calo na rosa
eu vi a ferida aberta

Eu tenho a palavra certa
pra doutor não reclamar
Mas a minha mente boquiaberta
Precisa mesmo deserta
Aprender aprender a soletrar

Tire o seu piercing do caminho,
Que eu quero passar, quero passar com a minha dor…”

Em que pode consistir a dor de um poeta? A sua dor é a dor da vida; a dor do mundo que grande parte do mundo não sente; a dor de um homem com o pé na terra e o desejo no infinito; um homem inteiramente sozinho no sentir e sorver o paradoxo e o mistério da própria existência. A muitos outros homens, a máquina do “panis et circencis” mundial consegue acalmar com suas belas promessas de fogos de artifício, mas não a uma alma de poeta. Ela passa por entre as mesas e os espetáculos que aos demais delicia – ela mesma tantas vezes pão e circo entre outros, para os outros – alimentando-se apenas das migalhas pobres do prazer alheio, qual peregrino no deserto em busca do Paraíso perdido.

A alma de um poeta passa, vê, aponta e vai-se embora mambembe. Pode até ficar no mesmo lugar anos a fio, mas não permanecem os mesmos, nem o poeta, nem os que por ele passam, nem o terreno à volta de seu passo. Adentrando as inóspitas terras de si mesmo, ele faz andar o mundo que o cerca. Neste passar por entre outros, a alma de um poeta deixa rastros de si mesma, de sua insatisfação com este mundo e também da direção para a qual seu caminhar – mesmo que incerto – aponta: a do Absoluto.

Por isso o passo de um poeta nunca passa despercebido e na maioria das vezes incomoda e muito. Os pesados homens do “não pense” atiram-se sobre ele; tentam comprá-lo, moldá-lo ou anulá-lo a todo custo: “a modernidade é uma matilha de cães raivosos e assustados…” diz a letra; e é assim mesmo. Uma alma de poeta conhece o vale por onde passa; sabe seus perigos e encantos, mas não se detém a considerar estes ou aqueles; leva em conta apenas a necessidade imperiosa do seguir em frente até a morte – cortina divisória entre o faz de conta e o real.

A alma do poeta não teme a morte – quase a deseja – mas teme sim o tornar-se zumbi – um morto-vivo – em seu próprio mundo. A alma de um poeta deseja atravessar as noites com os olhos, os ouvidos e a boca abertos; deseja olhar, ouvir e dizer. Despreza a palavra macia e falsificada – o falso “belo” dos homens políticos e da mídia comum – ; ama toda palavra, fonte de comunicação entre os homens de bem. Deixo Baleiro cantar:

Não me diga que me ama
Não me queira não me afague
Sentimento pegue e pague
emoção compre em tablete
Mastigue como chiclete
jogue fora na sarjeta
Compre um lote do futuro
cheque para trinta dias
Nosso plano de seguro
cobre a sua carência

Eu perdi o paraíso
mas ganhei inteligência
Demência, felicidade,
propriedade privada
Não se prive não se prove
Dont’t tell me peace and love
Tome logo um engov
pra curar sua ressaca
Da modernidade essa armadilha
Matilha de cães raivosos e assustados&
O presente não devolve o troco do passado
Sofrimento não é amargura
Tristeza não é pecado
Lugar de ser feliz não é supermercado
 

Tire o seu piercing do caminho…”

O que é a felicidade? – pergunta o autor – Em que consiste o ser feliz neste mundo? No conforto? Na ausência de dor? Na posse de uma série de bugigangas que dão status a quem as exibe? Quem sabe num certo grau de demência que faz o homem material e socialmente bem colocado no seu mundo ignorar quase por completo as sub-humanas condições em que vivem outros homens, tão dignos de felicidade quanto ele? Quem sabe, talvez então, não estaria a felicidade na supressão tecnológica e comportamental de toda privação ou provação, na construção artificial de uma espécie de sociedade perfeita na qual palavras como sofrimento, amargura e tristeza sejam definitivamente banidas como “ilegais, imorais ou engordativas”?

Entretanto, se não é possível extirpar da sociedade tais termos, por conta de uns tantos extra-terrestres humanóides que parecem vindos a este mundo só para incomodar com suas deficiências, pobreza e sofrimento, ao menos se pode empurrá-los para o mais longe possível da nossa convivência; seja jogando-os para as periferias de nossas cidades, seja pela construção de muralhas como meios de distinção e segurança para as nossas confortáveis e belas moradias. 

“O inferno é escuro
não tem água encanada
Não tem porta não tem muro
Não tem porteiro na entrada
E o céu será divino
confortável condomínio

Com anjos cantando hosanas
nas alturas nas alturas
Onde tudo é nobre
e tudo tem nome
Onde os cães só latem
Pra enxotar a fome
Todo mundo quer quer
Quer subir na vida
Se subir ladeira espere a descida
Se na hora “h” o elevador parar
No vigésimo quinto andar
e der aquele enguiço
Sempre vai haver uma escada de serviço
 

Tire o seu piercing do caminho
Que eu quero passar, Quero passar com a minha dor”
 

Haverá uma ponte possível entre estes dois universos paralelos da pobreza e da riqueza? O que se entende hoje por “caridade”? Dar presentes, roupas, ou comida ao pobre? Onde poríamos a linha que distingue estes dois termos – caridade e justiça?

Bento XVI afirmava magistralmente em sua Encíclica Spe Salvi, que a “Caridade chega onde a Justiça não alcança”. Não que a Justiça não possa ser perfeitamente cumprida neste mundo, o que em sentido estrito é bem verdade, mas não por isso. Ainda que uma sociedade possa alcançar um avançado grau de justiça legal e moral neste nosso mundo contemporâneo, haveria sempre nele a carência desta outra virtude, a da Caridade, que não consiste propriamente em dar o que nos sobra – quando não o que nos estorva mesmo – mas sim em dar-nos a nós mesmos até a última gota do coração com toda a sua capacidade de amar, de querer, de desculpar, perdoar e compreender. A Caridade – o Amor Fraterno – situa-se num nível ligeiramente superior ao da Justiça; anda lado a lado com ela e não a prescinde, mas situa-se em outro patamar moral, o da liberalidade.

Em tal patamar, não busca o homem tal virtude por si mesmo, mas para chegar ao outro. A Justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido. A Caridade consiste num abrir-se total e ilimitadamente ao outro, porque descobre nele a diversidade de dons e valores, ao mesmo tempo que a similaridade da espécie, que nos faz todos iguais em termos de valor e dignidade. A Justiça, como a Caridade e todas as demais virtudes, como tais, consistem em hábitos; predisposições da pessoa para o bem através da repetição de atos morais bons. A virtude, enquanto hábito adquirido e/ou por se adquirir, custa trabalho e persistência.

Todo mundo sabe tudo todo mundo fala”, diz a letra – fácil é falar… “Mas a língua do mudo ninguém quer estudá-la!” : uma claríssima referência à pouca ou nenhuma disposição natural das pessoas a moverem-se no sentido de verdadeiramente escutar; interessar-se sincera e retamente pelos outros. Pergunto-me a respeito deste verso, o quão disposta estaria eu – estaríamos nós – a dar espaço ao outro no meu pensamento e na minha vontade, de forma que o “eu” se ponha voluntariamente em segundo plano em favor do “outro”. Sim, é preciso estar disposta e treinar diariamente:Quem não quer suar camisa não carrega mala; revólver que ninguém usa não dispara bala.”

Tenho que aprender a me enxergar e enxergar o outro, pensando que a fraqueza dele é também a minha. Tenho que entender que todos somos passíveis de engano e erro. Tenho que sair da minha zona de conforto e aprender a me comunicar com aqueles que não são da minha rua ou que não pensam como eu. Tenho que aceitar ser uma estranha para o outro e sentar-me formalmente em sua “sala de visitas” para chegar à intimidade de seu quarto, onde só ele, além de Deus, sabe das dores e alegrias de se ser o que mais íntima e verdadeiramente se é.

“Pra chegar na minha cama tem que passar pela sala
Quem não sabe dá bandeira quem sabe; sabiá cala
Liga aí; porta-bandeira não é mestre-sala
E não se fala mais nisso!
– Mas nisso não se fala!
E não se fala mais nisso

Mas nisso não se fala

Tire este seu piercing do caminho que eu quero passar,
Quero passar com a minha dor!”

NOTAS:

[1] O Movimento hippie surgiu nos EUA nos anos 70, questionando a utilização de homens jovens como “bucha de canhão” pelo Estado em seus jogos de guerra, bem como a hipervalorização das regras morais da sociedade, não na sua essência, mas apenas no seu aspecto formal, e o segundo a exaltação da frivolidade e do luxo da sociedade de consumo ocidental capitalista dos anos 80, especialmente pelas mídias televisivas e cinema americano desta época.

Por Iura Breyner Botelho, especialista em História da Arte e Crítica de Arte.

O humor nos tempos da cólera – por Marcelo Consentino

Filosofia | 25/11/2014 | | IFE CAMPINAS

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Mona Lisa, de Leonardo da Vinci (óleo sobre madeira), 1503-1506, Museu do Louvre - Paris.

Mona Lisa, de Leonardo da Vinci (óleo sobre madeira), 1503-1506, Museu do Louvre – Paris.

 

A metafísica do riso ou o riso da metafísica

por Marcelo Consentino

Tudo está bem quando acaba bem.
(Shakespeare)

…e se não está bem é porque ainda não acabou.
(Emenda popular)

Há uma vida eterna? Há um outro mundo além deste, perfeito, eterno e bom? Ou seremos só moléculas soltas num tempo e espaço indiferentes – frágeis e belas bolhas que luzem por instantes até estourar no vazio? A realidade natural, transitória e mortal será a única ou o haverá uma realidade sobrenatural, eterna, ideal, metafísica? E que teremos nós a ver com ela? Filósofos, místicos e sábios de todos os tempos tentaram responder a esta pergunta. Ouso meter minha colher nesse meio e afirmar que sim: o homem é um ser metafísico, espiritual; sim, somos todos chamados a viver eternamente. Posso provar? Não creio, nem quero. Mas há sinais e penso ser possível indicá-los a quem quiser recolhê-los e tentar responder a essa pergunta por si só – se é que o problema lhe interessa.

Um destes indícios é a arte, a poesia. A arte não só imita a natureza, mas a supera. Obras de arte não são simples cópias das realidades exteriores e individuais. Um poeta que canta o amor ou a alegria não descreve meros estados de ânimo privados, mas o que neles há de essencial, ideal e universal, comum a todos nós. Não o faz, todavia, por abstrações – nada mais contrário à arte! –, e sim condensando imagens concretas, e por isso faz vibrar o coração. É por essa união do ideal com o real que a arte nos desperta uma impressão mais forte e potente do que qualquer fenômeno particular. O que eu tenho a dizer sobre minhas experiências amorosas só interessa a mim e quiçá a mais meia dúzia. O que Shakespeare diz interessa a todos, porque não fala simplesmente do seu amor, mas do amor. E fala não por meio de conceitos abstratos, como os filósofos, mas sim por meio de Romeu e Julieta. E não só fala, mas canta – encanta –: é o amor materializado e em movimento; vivo! Assim, a poesia não é só essa ou aquela emoção particular e real, nem só uma definição abstrata e ideal, mas sim a fusão de ambas em uma imagem dinâmica, viva. “A poesia”, diz Pessoa, “é emoção expressa em ritmo através do pensamento”. E se um homem pode produzir estas imagens e se nós outros podemos compreendê-las, isto significa que participamos desta realidade ideal, metafísica, e que portanto o homem é um ser metafísico.

Não tenho a certeza de ter sido compreendido pela maior parte de meus leitores. Numa época em que a vanguarda subjetivista contemporânea acha incrivelmente mais interessante reproduzir qualquer dor de dente ou cotovelo sua do que as colinas e cavalos do antigo realismo ingênuo, é difícil decidir qual dos dois é mais monótono e distante dos autênticos fins espirituais da arte. De todo modo, outro indício – para desgosto de positivistas et caterva, hostis a toda metafísica –, é a própria ciência positiva. As ciências se fundam, em primeiro lugar, na crença de que há certas leis e princípios universais e atemporais, comuns a toda uma classe de fenômenos concretos. E, em segundo, na crença de que o homem é capaz de apreender estas mesmas leis e princípios. Leis e princípios lógicos e metafísicos, portanto. Sinal, mais uma vez, de que o homem é um ser metafísico.

Um terceiro indício é o humor. Ah, leitor, vejo que tens vontade de rir. “Agora basta!”, dirá o cético já não se contendo. O humor?! Então esse humor que usamos todos os dias para passar o tempo – quando não para matá-lo – acaso nos desvelará a eternidade? As brincadeiras que aliviam as asperezas do dia-a-dia em esquinas, bares e escritórios; as piadas que desembrulhamos em risos que caem pelo chão como papéis de bala – como poderá ser isso sinal de uma realidade superior e eternamente bela? Que haverá de metafísico em prazer tão prosaico e trivial? Ma… non è una cosa seria! Sim, é – seriíssima! Repito: o homem é um ser metafísico porque ri.

Vamos lá, leitor amigo, dá-me alguns minutos de teu tempo e tentarei demonstrá-lo, melhor, mostrá-lo somente. Vamos – na melhor das hipóteses sairemos com alguma esperança de que esta nossa vida, minúscula e maravilhosa vida, não é o fim; na pior, poderás rir alguns bocados à custa dos ridículos esforços deste humilde servo. Vamos, porque a coisa é divertida!

O animal que ri

Assim é o homem. Não o digo eu, mas Aristóteles, que sabia mais coisas entre o céu e a terra do que sonhava o taciturno príncipe Hamlet. É certo que os animais sempre foram fonte profícua de observação para psicólogos e de inspiração para poetas. Neles encontramos nossas emoções em sua ancestralidade mais pura – ora cruéis ora doces, mas sempre livres de qualquer cálculo, raciocínio ou dissimulação. Olha de um lado a outro, de cima a baixo o reino animal e verás em carne viva a agonia, o gozo, o pavor, a angústia, a cólera. Mas também emoções mais sutis, mais “humanas”, por assim dizer. Vestígios de compaixão e de amor? Sim, por que não? Afinal, quão sugestivo não foi em todos os tempos um simples casal de pássaros para o coração humano, do mais vulgar ao mais poético? Verás ainda sentimentos mais sombrios: a melancolia, o tédio. E assim, Manuel Bandeira divertia-se observando os cães da roça, “estes cães que parecem homens de negócios: andam sempre preocupados”.

Algo, porém, que os animais não fazem jamais é rir. Podem mesmo chorar, mas o mais leve sorriso foi negado pela natureza aos seus lábios rígidos. Entendamo-nos, pois a questão é séria. Não falo da alegria. Filhotes jogam, brincam, se divertem. Mesmo animais adultos parecem saber temperar a monotonia cotidiana com alguma forma de entretenimento. E quem poderá sondar as delícias saboreadas pelas aves marinhas em seus seus sublimes vôos contemplativos ao longo do imenso azul? Mas onde se achará a descarga do riso, onde a explosão da gargalhada? Não; nossos animais poderão nos acompanhar na saúde e na doença, na alegria e na tristeza; poderão se enfurecer e se afligir conosco, mas algo que jamais faremos juntos é rir. O humor pertence ao humano e ao humano somente – nenhum animal jamais viu algo engraçado no mundo. E assim, mesmo aquele grego tão rigoroso não hesitou em arrolar lado a lado com suas definições do ser humano – o animal racional e o animal político – esta outra, de aparência tão irreverente: o animal que ri.

Deixemos portanto o sorriso sereno da alegria por aqui – quiçá o reencontraremos novamente no fim do caminho – e concentremo-nos doravante naquilo que é só nosso: o riso do cômico. A comédia, a gozação, a sátira, a troça, a chalaça, o escárnio, a galhofa, a burla, a ironia, o sarcasmo: eis as veredas pelas quais haveremos de nos enfiar. Passo a passo, sigamos com atenção – e com uma pitada de irreverência, que cai bem com o tema –
guiados pela regra de ouro de toda investigação: partir do que é próximo em direção ao distante; do conhecido rumo ao desconhecido.

Fenomenologia do riso

O animal que ri! Bergson – em seu delicioso O riso, o melhor livro, em minha opinião, sobre o tema – nota que uma definição igualmente justa seria a de animal que faz rir. Pois se qualquer animal ou objeto inanimado é engraçado, o é só por sua semelhança com o homem, pela marca que o homem lhe imprime ou pelo uso que o homem lhe dá.  Uma paisagem será feia, agradável, sublime, mas nunca cômica – a arquitetura de um prédio ou a forma de um chapéu, por sua vez, podem ser. E mesmo a pachorra de um sapo, a marcha de um pato, a preguiça de um porco; tudo isso só é divertido pelo que lhe atribuímos de humano – como o gato, que parecia a Machado de Assis um animal metafísico sem nunca ter lido Kant. Vemos a nós mesmos neles, e rimos. Não à toa os macacos, primos em primeiro grau, nos parecem os mais cômicos dos animais: são nossa caricatura. Uma vez mais: o humor é coisa humana. Só o homem ri, só o homem faz rir e, em última instância, o homem só ri do próprio homem.

Qual é a primeira coisa que experimentamos ao rir? Alívio e descontração. (Se os gatos lessem Kant, dariam com esta definição: “o riso é uma tensão que se dissolve subitamente em nada”). Que não nos escape o detalhe: não só descontração, como no suspiro e nas lágrimas, mas também alívio, isto é, elevação. Faze agora mesmo a prova se quiseres. Experimenta soltar um longo suspiro de desabafo ou enfado. Agora ri, sim, ri sem motivo. Qual o movimento do corpo? Descompressão do ar e descarga de peso em ambos os casos, certo? Mas acaso não é verdade que no suspiro o corpo parece querer derramar-se pelo chão, ao passo que no riso tende a erguer-se dele?Quem ri se eleva.

Em segundo lugar, o riso exige, por assim dizer, um destaque ou desligamento temporário de nossas emoções. Quanto mais compaixão, medo ou ódio sentirmos por uma pessoa, menos conseguiremos rir dela. É preciso um certo desprendimento. Qualquer impulso de atração, repulsa ou agressividade intenso demais sufoca o riso. Um homem escorrega numa casca de banana: isto é engraçado – mas não será se rachar a cabeça no meio-fio. Após um instante de pânico só começaremos a rir se constatarmos que está tudo bem. Uma insensibilidade momentânea do observador em relação ao seu objeto, e vice-versa, parece ser assim indispensável para o riso. “Destaquemo-nos por um instante e assistamos à vida como espectadores indiferentes: muitos dos dramas se inverterão em comédia. Basta que tapemos as orelhas ao som da música em um salão onde se dança para que os dançarinos nos pareçam instantaneamente ridículos… Assim o cômico – constata Bergson – exige, para produzir todo o seu efeito, algo como uma anestesia momentânea do coração. Ele se dirige à inteligência pura”. De fato, “sentimos” dor, aflição ou prazer, mas ninguém “sente” graça de nada; só se “acha” graça das coisas. Quem ri contempla.

Além disso, o ambiente natural do riso é o grupo. “Não se gozará do cômico se alguém se sente isolado”. O que a princípio soa estranho, pois quem nunca riu sozinho? Ainda assim, o riso parece tender ao contágio, à propagação, “como se tivesse necessidade de um eco”. Entramos numa sala repleta de homens que riem descontroladamente e imediatamente somos contaminados. É espontâneo. O riso parece supor assim uma espécie de cumplicidade natural com outros ridentes, reais ou imaginários; é tendencialmente um gesto social. “Para se compreender o riso, é preciso colocá-lo em seu meio ambiente, que é a sociedade; é preciso determinar sua função útil, que é uma função social… O riso – segunda constatação – deve ter uma significação social”.Quem ri quer se unir.

Juntemos tudo isto e obteremos as condições subjetivas do humor. “O cômico nasce, ao que parece, quando homens reunidos em grupo dirigem toda a sua atenção sobre um deles, calando a sua sensibilidade e exercendo somente a sua inteligência”. Coisa curiosa; pois vejo que se reencontram aqui entrelaçadas as três definições de ser humano: animal racional (que possui inteligência), animal político (que vive em comunidade) e animal que ri (ou que faz rir). O homem ri, portanto, porque faz um juízo crítico de outro ou outros homens dirigido a outro ou outros homens.

Até aqui as condições subjetivas, isto é, as disposições de quem ri. Mas quais serão as condições objetivas? Digo, do que exatamente se ri? O que é engraçado? É certo que o riso nasce de uma crítica, em outras palavras, da constatação de um certo estado de coisas pela nossa inteligência, mas não menos certo é que nem todo estado de coisas é cômico. Muitas tentativas já foram feitas de se definir o objeto do humor. A surpresa– a imprevisibilidade, o improviso – é certamente uma condição sine qua non. Uma piada é realmente engraçada pela primeira vez. Na segunda, terceira e quarta rimos por reverberação, se tanto. O humor deve ser surpreendente.

Também o desconcerto – o desequilíbrio, a contradição, o contraste, a incoerência – parece ser outra característica das mais evidentes. “Para que uma coisa seja cômica é preciso que entre o efeito e a causa haja desarmonia” (Y. Delage). Riríamos assim toda vez que constatássemos alguma inadequação, um tipo qualquer de desacerto ou desencaixe em uma dada situação – qualcosa che non va, como dizem os italianos, gente tão cômica. A arte de pregar peças baseia-se fundamentalmente nestes princípios. Certa vez fui convidado para uma festa. Lapso curioso, mas de resto inocente, é que só se lembraram de me avisar a mim – e a mais ninguém! – que era à fantasia. Um homem que repentinamente invade um salão de saia, peruca e batom é certamente ridículo, incongruente – situação, em suma, “desconcertante”.

Mas tudo isso não basta. Desconcertante é também toda injustiça e crueldade; e desarmônico é tudo aquilo que é feio, grotesco, repulsivo; assim como são imprevisíveis o câncer e a morte – coisas das quais seria preciso antes chorar do que rir. Desta forma, a imprevisibilidade e o “desconcerto do mundo” serão – para se dizer com os filósofos – causas necessárias, mas não suficientes do humor. Em tudo aquilo do qual se ri há certamente desconcerto, mas nem todo desconcerto é cômico – antes, com freqüência será trágico. É, portanto, um tipo específico de desconcerto que estamos buscando. Qual?

Bergson me parece bastante convincente em sua resposta. Sua tese nuclear é que o riso nasce como uma espécie de reprimenda que um determinado grupo dirige ao comportamento inadequado de algum de seus membros. Comportamento este que pode ser resumido nas idéias de distração e rigidez. “O que a vida e a sociedade exigem de cada um de nós é uma atenção constantemente alerta, em condições de discernir os contornos da situação presente, além de uma certa elasticidade do corpo e do espírito que permita nossa adaptação a ela. Tensão e elasticidade, eis duas forças complementares uma à outra que a vida põe em jogo”. Se faltam ao corpo, temos os defeitos, as deformidades, as doenças; se ao espírito, muitos tipos de pobreza psicológica, diversas formas de loucura, todo tipo de inadequação profunda à vida social. “Toda rigidez de caráter, do espírito e mesmo do corpo, será portanto suspeita à sociedade, porque ela é o sinal possível de uma atividade que se entorpece e também de uma atividade que se isola, que tende a se destacar do centro comum em torno do qual a sociedade gravita, de uma excentricidade, enfim”.

Concentremo-nos sobre esse ponto, pois daqui se difundirá uma multiplicidade de sugestões valiosas. O riso é, ao mesmo tempo, uma reação e uma correção a algo que desconcerta ou desequilibra a vida individual ou social. Trata-se, porém, de um desconcerto todo especial: o endurecimento e a distração da vida em sua relação com o entorno, ou ainda, na fórmula sintética de Bergson: a “mecanização da vida”. A vida se apresenta a nós como uma certa evolução no tempo e uma certa difusão no espaço. Capacidade de transformação, adaptação e expansão, eis aí as características que exprimem a vitalidade de um indivíduo. (Penso que tinha qualquer coisa assim em mente o editor desta revista quando escreveu, na terceira edição, seu Elogio do jeitinho). Uma contração desta vitalidade pede uma correção, um retoque ou redefinição, enfim, uma descontração. Esta é a função do riso. Compreende-se a imagem de Bergson para o objeto cômico: o mecânico incrustado sobre o vivente. “O cômico é este lado da pessoa pela qual ela se assemelha a uma coisa, este aspecto dos acontecimentos humanos que imita, por uma rigidez de um certo tipo, o mecanismo puro e simples, o automatismo, enfim, o movimento sem vida”. Daqui se desdobram duas séries paralelas de conceitos opostos com as quais o filósofo explora dialeticamente sua idéia. De um lado tudo o que é rígido – “mecânico”, “contraído”, “automático”, “inflexível”, “imóvel”, “duro”, “obstinado” –; de outro, tudo aquilo que évivo – “móvel”, “versátil”, “maleável”, “plástico”, “gracioso”, “flexível”, “elástico”.

Será fácil agora extrair o fenômeno cômico da variedade de manifestações da vida humana; da vida do corpo à da inteligência. O que é engraçado em uma fisionomia, caricatura ou careta? “Automatismo, rigidez, dobras contraídas e retidas”. O que nos faz rir dos cacoetes de um orador tímido ou pedante? A repetição automática, não natural, porque “uma vida bem vivida não deve se repetir”. Do que zombamos e caçoamos em um amigo? Daquilo nele que é inautêntico, artificial, “a parte de automatismo que ele permitiu que se introduzisse em sua pessoa”. Por que tantas vezes etiquetas, cerimônias, e formalidades são risíveis? Por se tratarem de uma espécie de máscara rija que se veste sobre o corpo social, um disfarce temporário ou “um mecanismo sobreposto sobre a vida, [como sugere] a forma compassada de todo cerimonial”.

E que dizer de nosso caráter, atitudes, comportamentos, enfim, tudo aquilo que determina nossas relações com as outras pessoas? Que pode haver de cômico neles? “O cômico exprime antes de tudo uma certa inadaptação particular da pessoa à sociedade”. Isso faz com que o riso seja sempre um pouco vexatório, humilhante para a pessoa a quem é dirigido, pois ele revela sua exclusão, sua inadequação em relação ao grupo. “O cômico em um caráter individual tende sempre… a uma certa distração fundamental da pessoa”. E ainda, “é a rigidez que é suspeita à sociedade… Quem se isola se expõe ao ridículo, pois o cômico é feito, em grande parte, deste isolamento mesmo”. Daí que o tipo do distraído, o alheado, que vaga perdido no mundo da lua, seja tão cômico. Pelo mesmo motivo, também os apaixonados serão sempre um tanto cômicos. “Desatenção a si e por conseqüência ao outro… E se examinarmos a coisa mais de perto, veremos que a desatenção se confunde precisamente com a insociabilidade. A causa da rigidez por excelência é que o sujeito se recusa a olhar em torno de si e sobretudo para si”. Eis porque alguns dos melhores personagens cômicos são tipos, isto é, esquemas rígidos de comportamento que pré-determinam todas as atitudes do indivíduo tal qual uma marionete – o Avarento, o Jogador, etc. O que explica também a habilidade tão brasileira de etiquetar os amigos com apelidos divertidos segundo certos traços de caráter dominantes. Esse e outros tipos de brincadeiras amigáveis têm a função de advertir ligeiramente o outro para uma sua real ou possível inflexibilidade. “O riso tem justamente por objetivo reprimir as tendências separatistas. Sua função é converter a rigidez em flexibilidade, readaptar cada um a todos, enfim, arredondar os ângulos”.

Por último, quanto à vida da inteligência, o que poderá ser ridículo em nossas idéias, pensamentos, convicções? Retorna aqui a noção de contradição. É risível uma contradição tornada imagem, um “absurdo visível”, segundo Théophile Gautier. Ora, a vida da inteligência é o amor à verdade – adaequatio intellectus et rei, a adequação da mente à realidade, conforme a definição clássica. Assim, prossegue Bergson, “o bom senso é o esforço do espírito que se adapta e se readapta sem cessar, mudando de idéia quando muda de objeto. É uma mobilidade da inteligência que se regula exatamente sobre a mobilidade das coisas. É a continuidade de nossa atenção à vida”. De onde, então, poderão vir as idéias absurdas senão de uma inadequação da mente às coisas? “É uma inversão toda especial do senso comum. Consiste em pretender modelar as coisas sobre uma idéia que se tem, e não as idéias a partir das coisas. Consiste em ver diante de si aquilo que se pensa, em vez de pensar aquilo que se vê”. Estranha inversão: a realidade sendo reformulada pela mente – que provavelmente não anda lá muito satisfeita com ela. Coisa de doido, literalmente. “Um espírito que se obstina [em uma idéia fixa] acabará por dobrar as coisas à sua idéia, em lugar de regular seu pensamento pelas coisas”. Eis ali um senhor que vê gigantes onde todos vêem moinhos de vento. Isso é engraçado!

Antes de concluir essa sessão e passar à próxima, sintetizemos o que foi visto até aqui. A suprema seriedade da vida está na nossa capacidade de fazer escolhas, ou seja, em nossa liberdade. Toda vez que o homem não age livremente, mas automaticamente, inercialmente, ele se tornará de algum modo risível. Ao agir constrangida por alguma inclinação impessoal – seja externa ou interna –, a pessoa será cômica, enfim, “constrangedora”. A função do riso é precisamente descontraí-la, destravando suas energias vitais. “A alma”, diz o poeta Bruno Tolentino, exímio humorista, “a alma, por pior / que se esforce, só peca / quando se petrifica”. Acrescentemos que nesse caso, além de pecadora, será também cômica. É essa coisificação da pessoa que deve ser advertida pelo riso, deixando uma impressão levemente penosa, vexatória para aquele de quem se ri. É inevitável. Digamos sem hesitação: o riso liberta, mas liberta pela humilhação. “Epa!; isso já é um pouco duro e não tem lá muita graça”. Compreendo. Mas só pensamos assim porque tendemos a associar irrefletidamente a humilhação à ofensa e à opressão. A verdadeira humilhação, porém, deve visar a humildade. E a humildade, na definição de Tomás de Aquino, não é senão o “conhecimento das próprias fraquezas e limites”. É só reconhecendo nossas fraquezas que podemos nos tornar fortes; só poderemos ultrapassar nossos limites quando os virmos com clareza. (Não será escusado notar que “humor” e “humildade” têm possivelmente a mesma raiz etimológica. Certo; as raízes do antepositivo latino “hum” perdem-se na ancestralidade da tradição oral. Mas é seguramente a mesma partícula que forma “humus” – “terra” – e “humilis” – “humilde” –, ou seja, “o que permanece na terra, que não se eleva da terra”. E assim o “homo” – o “homem” – é a “criatura da terra”, em oposição aos deuses, criaturas do céu. Terá o “humor” um pé nesse meio? Hipótese incerta, porém plausível – e se non è vera, è ben trovata). Enfim, o riso liberta por revelação – “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Coisa de que passaremos a tratar na próxima sessão. Mas não sem antes retribuirmos a generosidade de mestre Bergson com seu divertido chapéu coco, deixando-lhe um amável sorriso de gratidão. Au revoir, monsieur!

Convido agora o leitor a aprumar-se a fim de requintarmos um pouco nossa jornada. De fato nos elevamos rumo aos domínios da mais fina e cativante donzela do reino do humor. Vejo que já nos olham seus olhos indecifráveis. A Ironia.

A idéia de ironia

Ah, a Ironia! Mulher tão sutil e cheia de mistérios que hesito em me aproximar de seus recintos sem ser levado pelas mãos de um mestre. Dante deu as suas a Virgílio, que o arrancou dos braços do Demônio e o entregou às de Beatriz. Sem muita esperança de dar com uma bela florentina no fim do caminho, passo as minhas logo a dois, Sócrates e Machado de Assis, e “deixo-me estar entre o poeta e o sábio”, como diz Brás Cubas. Mestres da ironia, eles nos ajudarão a desvelar seus enigmas. Com o interesse adicional de que um vem de longe, o outro está logo ali; um das ruas de Atenas, o outro da Tijuca; um da aurora deste nosso Ocidente, tão estúpido e genial, o outro de seu declínio. Ademais, não só dominam como ninguém as astúcias da ironia, mas também a encarnam em sua própria existência. Sócrates, que, convicto de uma missão divina, despertou tantos rapazes gregos para a verdadeira vida espiritual, foi condenado à morte por “irreligiosidade” e “corrupção da juventude”. Que ironia! Não menor que o sucesso pessoal de Machado – preto, pobre, gago, feio e epilético – na corte carioca com seus bacharéis de fraque e cartola. É também irônico que Sócrates, modelo maior de sábio e filósofo para Platão, declarasse que a única coisa que sabia era não saber de nada. Tão irônico quanto o fato de que, mesmo com todo o pessimismo que se lhe atribui, mesmo na época em que a boemia parisiense fazia da excentricidade e da transgressão as vacas sagradas da arte, Machado tenha sido um marido fiel, funcionário público exemplar e fundador da Academia Brasileira de Letras.

Que é, com efeito, a ironia?, “esse movimento ao canto da boca… feição própria dos céticos e desabusados,” segundo Machado. Bem diferente da histérica chalaça – a “gorda chalaça” –, do vulgar deboche e do antipático sarcasmo, a ironia é sutil. Ambígua, sim, mas sempre elegante, discreta – isso porque, diz o mesmo Machado, “o maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado”. Num instante imponderável atinge nossos olhos com os seus, rouba-nos sem sabermos bem o que nem por que, e parte sem dizer para onde. A ironia é fogo que arde sem se ver; é ferida que dói e não se sente; é um contentamento descontente; é dor que desatina sem doer… (Nada mal! De onde me terá surgido tamanha inspiração?). Brincadeiras à parte, os versos de Renato Rus… perdão, os versos de Camões, como ia dizendo, sugerem algo importante sobre a substância da ironia: o contraste e o jogo de aparências. A ironia, em poucas palavras, consiste em dizer – sempre com discrição – o contrário daquilo que se pretende. Contraste, portanto, e mesmo oposição entre o interior e o exterior; o fundo e a superfície; a intenção e a expressão; o espírito e a letra; enfim, entre arealidade e a aparência. Isto quanto à sua forma. Que dizer de sua função?

O humor, já o vimos, tem sempre uma certa finalidade corretiva. A paródia e a sátira, por exemplo, são as ferramentas usuais de uma geração, classe social ou sexo para corrigir os desvios e excentricidades do outro. Pais e filhos; ricos e pobres; homens e mulheres ridicularizando-se entre si. (Embora, vale notar, haja também uma paródia, por assim dizer, metafísica, que ri não desta classe ou daquela geração, mas de todas). Ora bem, de quais excentricidades nos corrigirá a ironia e de que modo? Sim; pois a Ironia tem suas rivais – vêm lá a Vaidade e a Hipocrisia. Atentos, senhores, pois caímos em meio a um enfrentamento de mulheres, e mulheres de estirpe. Que nos escape uma só troca desses olhares felinos e ficaremos, como de hábito, às portas da compreensão. Cautela!, porque o que essas três senhoras têm em comum é precisamente o fato de que nunca são o que parecem ser. Quanta mágoa nos causa a Ironia! E, no entanto, é esse o seu jeito de revelar velando. Não digo o mesmo dessa moça, a Vaidade, menina frívola cujos caprichos e tolas veleidades traem sua ignorância. Já a Hipocrisia, ah mulher diabólica!, fêmea dissimulada! Envolve-nos com seus quereres, infla-nos com sua estima, só para melhor velar nossa miséria, da qual saberá escarnecer no devido tempo. Mas sejamos sérios, componha-se leitor: basta com maiúsculas e prosopopéias. Retornemos aos nossos problemas. De que modo a ironia desfaz o ridículo espetáculo de ilusões criadas em torno de nós pela vaidade e pela hipocrisia?

Retomemos o fio da primeira parte deste ensaio e vejamos se é possível amarrar alguma coisa aqui. O cômico, lá dizíamos, surge quando a vida, que deveria ser flexível, elástica, efusiva, se contrai, endurece e se isola. Inflexibilidade que pode enrijecer desde a vida do corpo até a da inteligência. A ação continuada da vaidade e da hipocrisia sobre nossa vida é das mais venais, pois contrai e isola o seu próprio centro: o coração. O coração é o órgão através do qual amamos os outros, afirmamos seu valor e autonomia, desejamos seu bem, sua felicidade. Também através dele os outros nos revelam o que têm de único e genuíno, sua intimidade mais profunda e pessoal. A vaidade intoxica nosso espírito levando-o a uma espécie de distração crônica em relação ao coração alheio e ao próprio. O veneno da hipocrisia, por sua vez, produz um endurecimento, uma ossificação de nosso coração e uma inflexibilidade em relação aos demais.

Ora, tanto o vaidoso quanto o hipócrita parecem viver em função das outras pessoas. A vaidade é, com efeito, uma admiração que gozamos por nós mesmos, fundada na admiração que cremos despertar nos outros.  Daí que o vaidoso esteja todo o tempo na superfície de si mesmo, oferecendo-se ao olhar alheio. Também o hipócrita vive em função dos outros, diante dos quais deve se apresentar sempre impecável, indefectível e imperativo, e por isso finge, dissimula, esconde tenazmente seu interior, sua própria natureza. Assim, se o vaidoso busca a confirmação de si pelo outro, o hipócrita quer aafirmação de si sobre ele. De fato, mais correto seria dizer que nenhum deles vive em função de ninguém, mas pretendem que todos vivam em função de si. O vaidoso e o hipócrita não amam nada, pois só amam a si mesmos, e qualquer outra pessoa é só um instrumento temporariamente útil para confirmar esse amor… que digo?!, esse egoísmo. Tudo o que o vaidoso, tolo Narciso, vê nos outros é um momentâneo espelho onde possa namorar a si próprio; o hipócrita, por sua vez, só vê neles um eventual objeto de dominação ou desprezo através do qual possa se afirmar. O vaidoso é vão, vago, vazio, volúvel, porque troca de cor e figura a cada nova moda, tendência oufrisson que os ventos soprem. Troca também as relações e amizades. Daí o seu aspecto frívolo, banal, superficial. O hipócrita, ao contrário, endurece sua personalidade escamoteando toda precariedade, insegurança e fraqueza no interior de uma blindagem implacável. Só assim pode manter no exterior seu aspecto de superioridade. Ambos vivem iludidos com as fantasias de grandeza que vestem sobre si mesmos. Mas por dentro, se o coração do vaidoso é indefinido, inconstante e superficial, o do hipócrita é impenetrável e inflexível. De todo modo, contradição entre aparência e realidade; entre uma riqueza aparente e uma miséria real.

Como a ironia pode despertar nosso espírito vaidoso e hipócrita para as farsas que cria sobre si mesmo? Trocando em um passe de mãos aparência e realidade, verdade e mentira como num truque de mágica, a ironia reflete essa contradição, provocando um repentino disparo elétrico em nossas mentes. Num estalo, o que era obscuro se torna claro. Aos avanços da vaidade e da hipocrisia, o irônico reage com a agilidade de um espadachim: em face do vaidoso, faz-se, como ele, superficial; diante do hipócrita, severo. Mas atenção: em aparência, só em aparência. Refletindo as expressões do interlocutor, coloca-se diante dele como um espelho, ou melhor, como sua própria caricatura, onde subitamente o vaidoso vê sua banalidade; o hipócrita, sua intransigência. De te fabula narratur! Técnica idêntica à do sarcasmo, com uma diferença. Para o sarcástico a ridicularização do outro é um fim, para o irônico é só ummeio. O sarcástico delicia seu cinismo esmigalhando as ilusões do próximo, arrancando suas fantasias e abandonando-o nu à própria humilhação. O irônico, se as arranca, não deixa de lhe indicar roupas mais dignas. Revela a mentira para insinuar a verdade. Encenando em si mesmo uma contradição farsesca entre o interior e o exterior, apresenta repentinamente ao outro a sua própria. Se ri com a mesma leviandade do vaidoso, por dentro é sério. Face a face com o hipócrita, ao contrário, mascara-se com seu ar grave, enquanto ri em seu interior. E assim, sugere ao primeiro a profundidade que falta à sua vida; e ao segundo, a irreverência que não tem com a sua.

Mas que sei eu? Há quem tenha dito que tudo é vaidade, e também quem tenha acusado toda a raça humana de hipócrita. Eu, só sei que nada sei, e que Sócrates e Machado sabem alguma coisa. Penso que toda essa filosofia nos subiu à cabeça e estivemos demasiado abstratos – quiçá no mundo da lua ou nalgum outro. Pergunto-me se nossos dois mestres, que além de sábios eram bons poetas, não terão melhor imagem a nos oferecer das vaidades, hipocrisias e ironias deste mundo.

A ironia filosófica de Machado de Assis

É próprio do mesmo homem saber compor comédia e tragédia. O bom poeta trágico deve ser também poeta cômico.

(Sócrates)

Se há algo com que os manuais de literatura concordam sobre Machado de Assis é, em primeiro lugar, que as Memórias póstumas de Brás Cubas marcam a transição de um romantismo juvenil ingênuo para o realismo cético do homem maduro; e, em segundo, sobre o pessimismo de fundo que alimenta toda sua obra. Dizem que teria lido Schopenhauer e incorporado sua visão rabugenta de mundo. Os mais criativos não se contêm e anotam o célebre mote: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Já veremos seu legado. Mas antes, a pergunta: qual estranha alquimia o Bruxo do Cosme Velho realiza em Brás Cubas? Que ingrediente misterioso terá lançado em suas letras para torná-las assim imortais? Sigamos seus passos.

Quem vasculhar as Relíquias da Casa Velha encontrará um dos primeiros contos do jovem Machado, escrito pelo menos sete anos antes das Memórias Póstumas. Valério, folhetim tipicamente romântico, é obra pouco notável em si, mas intrigante, por ser, segundo creio, em boa dose autobiográfica. O protagonista, como Machado, fora nascido na década de 30 “entre lágrimas” e “criado entre penas” – pobre, órfão de pai e auto-ditada. Espremido entre os dois empregos de cartorário e tipógrafo – os mesmos de Machado em seus inícios –, gastava suas migalhas de tempo livre sonhando com a carreira literária. “Tal era a vida de Valério aos trinta anos; abundância de apetite e escassez de jantares… muito trabalho e pouquíssimos recursos. Nulo passado, escasso presente, tristíssimo porvir. Quando Valério meditava sobre as condições da sua existência, a sua mocidade sem risos, o seu futuro sem esperanças, lançava um olhar melancólico para o suicídio, como solução razoável para o problema da vida… Imediatamente, porém, volvia a sentimentos melhores; encarava severamente a responsabilidade que lhe corria de carregar a vida dignamente, sem violência nem rebeldia; adiava o suicídio para o próximo desânimo”. Mas inadvertidamente a Roda da Fortuna gira e Valério é alavancado de sua penúria às alturas. Contratado a bom preço para compor discursos a um coronel, é introduzido pelo mesmo à fina flor da sociedade fluminense e, mais importante, à flor ainda mais fina que é sua filha – moça lindíssima que, claro, corresponde aos olhares do moço. Sonho vão, infelizmente, pois a Roda gira de novo: seu patrono nada mais era do que um canalha avarento e a menina, aproveitadora e fútil – da sociedade fluminense nem se fale. Uma a uma vão se despedaçando todas as expectativas do jovem escritor. Ao fim e ao cabo, “Valério, que cometera outras tolices na sua vida, coroou sua obra indo atirar-se ao mar”.

Mas suponha – só suponha – que no momento em que o rapaz estivesse na praia, contemplando o mundo pela última vez e a morte pela primeira, um vulto colossal de mulher caísse do céu ou se erguesse da terra – não se sabe –, e, estendendo o braço, o segurasse pelos cabelos, levantando-o ao ar como se fosse uma pluma. Bizarro, eu sei. Mas bizarros são os delírios, e o leitor se lembrará que é assim que Brás Cubas narra o seu às margens de sua própria morte. A mulher é Pandora ou Natureza, “mãe e inimiga”, que o leva “à origem dos séculos” e, fitando-o “com os olhos rutilantes como o sol” e “uma expressão glacial”, lhe revela a quintessência do Universo: o Egoísmo. “Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha”. Subamos também nós, vale a pena:

“Contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos Impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, – flagelos e delícias, – desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, – nada menos que a quimera da felicidade, – ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão. Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir”.

Pausa!… Um grito de angústia! Atingimos o momento extremo do delírio; a voragem da agonia; a vertigem do absurdo – tudo é nada e nada faz sentido. E então, que acontece?… “Não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, de um riso descompassado e idiota”. O riso! “Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, – talvez monótona – mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo”. Lá de cima, o espetáculo do mundo, trágico devorar-se das paixões humanas, tornou-se repentinamente… cômico!

Guarda bem esta página, leitor, pois ela vale por muitos tomos de filosofia – “condensação viva” de todos eles. Temo, diante dela, que tanto o realismo quanto o pessimismo de Machado não sejam senão aparência. Coisas de irônico! Em primeiro lugar, custa-me compreender como um romance realista possa ter sido escrito por um… bem, por um morto – um autor defunto, ou melhor, segundo adverte o mesmo, um “defunto autor”. E talvez minha cabeça seja muito dura, mas não acho menos difícil enfiar nela a idéia de que um pessimista amargo tenha se divertido tanto com essa vida. Mas assim é ela vista do alto. De lá via o Padre Melchior, cheio de compaixão viril, o drama de Helena – “eu sou a verdade que afirma, a caridade que consola”, diz ao devastado Estácio. Do alto também a via, com complacência paternal, o Conselheiro Ayres, ora apartando as intermináveis disputas dos gêmeos Pedro e Paulo em Esaú e Jacó, ora unindo as mãos hesitantes dos apaixonados Tristão e Fidélia, ora aliviando o coração em declínio do casal de velhos Aguiar em Memorial de Ayres. De lá, enfim, a vê Deus – ninguém menos – na Igreja do Diabo, divertindo-se com os encontros e desencontros entre os homens e Satanás.

A verdade, leitor, é que assim como Machado se ergue acima do romantismo e do realismo, também se eleva sobre qualquer otimismo ou pessimismo fáceis. Não crês em mim?, crê então no próprio. Ele mesmo tratou de confrontar as duas tendências em Viver!, nas alegorias do titã grego Prometeu e do judeu amaldiçoado Ahasverus. Numa terra desolada surge caminhando este último. Por ter escarnecido as aflições de Cristo no Calvário, foi condenado a perambular pelo mundo até o fim dos tempos. E eles chegaram! (Estivemos na origem dos séculos –
ei-nos agora em seu fim). Derradeiro homem sobre a face da terra, Ahasverus pode finalmente morrer. “Morrer! deliciosa idéia! Séculos de séculos vivi, cansado, mortificado, andando sempre, mas ei-los que acabam e vou morrer com eles. Velha natureza, adeus! Céu azul, terra inimiga, que me não comeste os ossos, adeus! O errante não errará mais. Deus me perdoará, se quiser, mas a morte consola-me”. Triste consolação – pessimismo atroz! Mas uma voz irrompe – não de um homem, mas de um deus. É Prometeu, que, acorrentado ao rochedo onde paga seu próprio suplício pelo furto do imortal fogo olímpico para a raça humana, anuncia o despertar de uma era luminosa: “Os tempos serão retificados. O mal acabará; os ventos não espalharão mais, nem os germes da morte, nem o clamor dos oprimidos, mas tão somente a cantiga do amor perene e a bênção da universal justiça”. Ahasverus, de início cético e resistente, é pouco a pouco contagiado pelo entusiasmo radiante do outro. Finalmente, é-lhe revelado que será ele, ele mesmo!, a semente da nova humanidade: “Uma raça povoará a terra… Nobre família, lúcida e poderosa, será a perfeita comunhão do divino com o humano. Outros serão os tempos, mas entre eles e estes um elo é preciso, e esse elo és tu”. A excitação aumenta à medida que o diálogo se aproxima de uma apoteose: “Rei eleito de uma raça eleita!”, proclama Prometeu, ao que ecoa Ahasverus: “Anda, fala mais… fala mais…” – e assim, segue sonhando… Sonhando?! Sim; era tudo um sonho… Que não nos escape a ironia – como é seu hábito. Um homem que percorreu toda a superfície do globo atravessando incontáveis eras da humanidade, e que a detesta; um deus, isolado pelos séculos em seu rochedo, que a adora. Em qual dos dois encontraremos o espírito de Machado? Nas queixas pessimistas do judeu? Na utopia otimista do grego? Em ambas? Não; olhaste para o lugar errado, leitor. Olha para o alto!, e lá verás duas águias que contemplam a cena. “Ai, ai, ai deste último homem, está morrendo e ainda sonha com a vida”. E a outra:“Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito”.

Lembra, pois, que se acaso encontrares ódio em Machado, é mera aparência velando um excesso de amor. Seu pessimismo é somente a advertência de quem traz os olhos cansados com as ilusões da vaidade humana. “Creiam-me… Ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim”. De minha parte, creio; mas de qual felicidade deveremos nos fiar? Ai, mestre, não nos venha com os feitiços de tua fantasia, não agora; fala com a franqueza do coração ou cala-te para sempre. E de fato ele, viúvo, falou ao amigo Nabuco em derradeira correspondência. “Tudo me lembra minha meiga Carolina. Como estou à beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la, ela me esperará.” Tê-la-á visto? Creio que sim. E tu, leitor, que crês?

A filosofia irônica de Sócrates

O homem é uma errata pensante.

(Machado de Assis)

“Só sei que nada sei”. Não eu, bem entendido, que sei muita coisa, mas Sócrates, que não sabia nada. Pelo menos assim dizia ele quando a profetisa de Delfos lhe revelou ser o homem mais sábio do mundo. Não sabendo como isso fosse possível, não se fez de rogado, enfiando-se pelas ruas da acrópole para tirar a prova de que os deuses não sabiam bem do que estavam falando. Aos homens, que levavam felizes suas vidas, indagava “que é a vida?”, “que é o homem?”, “que é a felicidade?”, e, desconcertado, descobria que ninguém sabia responder. (Alguém aí sabe?). Até tropeçar nos sofistas, que diziam saber tudo. Um sofista é um homem que lhe ensinará a comprovar e convencer os outros do que você bem entender – pelo justo preço, naturalmente. Círculos quadrados e vacas que voam?; sem problemas!, afinal, é tudo uma questão de ponto de vista – pagando bem que mal tem? “Mercadores de idéias”, ralha Platão – sabedoria a varejo. Mas aí entra Sócrates. “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade astuta e aguda que descobre o encoberto” (palavras do autor defunto Machado, mas que cairiam bem ao defunto filósofo). E com sua filosofia “leve e ridente”, “desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos que apostolado” (Machado de novo), desmascara a cada um daqueles senhores a própria ignorância – num repente dissolve, kantianamente, toda sua pretensa sabedoria em nada. O que não é pouco! “Aquele que sabe de sua própria ignorância”, diz o sábio russo Soloviev, “já tem alguma sabedoria e pode vir a ter mais. Não sabes nada? – então aprende. Não tens a verdade? – procura-a. Quando a procuras, já está ao teu lado, mas com uma face velada, e do esforço de tua mente depende a retirada do véu”.

Mas então, Sócrates – formidável sátiro! –, sabias afinal de alguma coisa!? Sabia, sim, que a missão conferida pelo Oráculo não passava de uma ironia divina, uma extraordinária brincadeira de Deus, como declara ao júri que o condenaria à morte: “O que eu penso, senhores, é que na verdade só Deus seja sábio, e que [com a revelação de Delfos] ele queira significar que a sabedoria humana vale muito pouco e nada, parecendo que… se serviu do meu nome apenas como exemplo, como se dissesse:Homens, o mais sábio dentre vós é como Sócrates, que reconhece não valer realmente nada no terreno da sabedoria”.

Sócrates sabe que nada sabe. Coisa que também sabe o cético. Só que esse não quer mesmo saber de nada; ao passo que ele, Sócrates, sabe que não sabe… mas deseja saber – o que, convenhamos, faz toda a diferença. Sua sabedoria é, a um só tempo, umconhecimento de seu desejo e um reconhecimento de sua imperfeição. Desse desejo, deEros, ele sabe bem –
a bem da verdade, é a única coisa de que sabe, como revelou na intimidade dos amigos em um certo baquete regado a vinho e risos. E sabe, porque foi iniciado por outra mulher –
e por quem mais seria? – nos mistérios do Amor: a mística Diotima.

Erguido pelo impulso deste Amor, Sócrates, como Machado, se elevou, segundo consta, pelo menos duas vezes além do mundo – palavra de Platão, no Banquete e noFédro. E o que é esse Amor? “O Amor é a tendência a possuir o bem eternamente” – eternidade, portanto, do amante e do amado. Mas isso não basta. Pedira a nossos mestres as imagens vivas da poesia e não definições abstratas. Machado nos deu a sua, Sócrates não lha há de negar. O Amor, explica, é filho da Pobreza e do deus da Perfeição. Como a mãe, é miserável, ignorante, feio e mortal. Mas traz em si a nostalgia da herança paterna: inquieto e enérgico, arde em desejos pela sabedoria, a beleza e a imortalidade, e as quer perfeitas. “O Amor, por falta das coisas boas e belas, deseja estas coisas que lhe faltam… É intermediário entre mortal e imortal… Há o poder de interpretar e de levar aos deuses as coisas dos homens e trazer aos homens as coisas dos deuses… E estando entre uns e outros preenche este intervalo, de modo a unir todo o Universo entre si… O que é divino normalmente não se mistura com o humano, mas pela ação do Amor eles mantêm entre si todo tipo de relações”. Beleza perfeita e eterna persegue o Amor; qualquer coisa menos do que isso não pode apaziguar seu apetite ilimitado – e por isso, nesse mundo, ela, a Beleza, acaba sempre por “escapar de suas mãos”. Mas deseja não só “contemplar a Beleza”, e sim “procriar na Beleza”, revela Diotima, que sabe mais. O Amor não é simplesmente uma inclinação contemplativa, mas uma energia criativa. Aquele que ama a Beleza imortal imortaliza-se a si mesmo e às suas criações; da à luz a eternidade no seio do tempo – pois“transforma-se o amador na cousa amada”, segundo Camões. Quem recusa esse Amor permanece um “homem mundano”, uma mera “besta entrecortada por desejos”. Quem, por outro lado, se despe das vãs certezas da “sabedoria humana” e se abre à “sabedoria divina”, “enlouquece de amor” e, inundado por um “fluxo amoroso”, transcende sua humanidade, tornando-se “participante de um destino eterno”: um “homem divino”.

Se Sócrates fosse romano, cristão e se chamasse Agostinho, teria dito: “Nos fizeste para Ti, meu Deus, e nosso coração está inquieto enquanto não repousar em Ti”. Não o sendo, fez outra oração, que repito aqui antes de avançar à conclusão: “Concedei-me tornar-me belo em meu interior, e que todas as coisas que tenho fora estejam em harmonia com aquilo que levo dentro”.

È finita la commedia!

Afinal, finalmente, chegamos definitivamente ao fim! Pedi ao leitor alguns minutos e já lhe tomei muitos. E, enviezados pelas nossas veredas, acabamos indo longe: partimos à cata do Humor e viemos dar no Amor – ironias do Destino, grande brincalhão. Mas assim é a vida neste mundo, ópera estranha e fascinante em que vez por outra “o verso vai para a direita e a música para a esquerda”. Se é trágica, cômica, tragicômica ou comitrágica não sei – talvez todas. Sei que é escrita por Deus, orquestrada e regida pelo Diabo e encenada por nós. Pelo menos é isso que asseverava a Bentinho, “depois de muito Chianti”, um velho tenor italiano em Dom Casmurro – e eu dele me fio. Caiam pois as cortinas e ascendam as luzes! Hora de recolher nossas tralhas.

Aristóteles nos ensinou que o homem é o animal que ri. E ri para que? Para libertar e unir, responde em francês Bergson, para descontrair aquilo que anda contraído em nossa vida – para que ela recupere a graça que perdeu. Só assim pode deixar seu isolamento e se reintegrar à vida de todos, à vida universal, tornando-se o que deve ser: força criativa e expansiva. Mas toda a força da vida humana, ao que parece, não é capaz de descontrair a contração definitiva, o isolamento final: a morte. Eis, no entanto, que vem a Ironia, e nos ensina a desconfiar das aparências. Se essa vida termina com a morte, quem sabe se com a morte não começará a verdadeira vida? Quem saberá dizer se a vida não é só um sonho e a morte o despertar? Machado, diante da morte, soube rir, e rindo seguiu pela vida, à espera de subir ao eterno aposento. E Sócrates, que foi morto por rir da sabedoria dos homens, buscou na sabedoria divina a verdadeira vida, a vida do eterno Amor.

E o humor? O humor é humano. Ri, portanto; ri à vontade da Comédia Humana! Diverte-te! Mas nota que nessa, na de Balzac, a farsa começa bem, mas sempre acaba mal. Lembra que as máscaras nalgum momento caem e que a toda terça-feira gorda se segue uma quarta de cinzas; que a alegria que o humor persegue escapa sempre de suas mãos; que o riso é mero espasmo, gota de felicidade que se dissolve subitamente em nada. Mas lembra também que há outras comédias. Há a Divina, de Dante, onde tudo começa mal e acaba bem, nos braços de Beatriz.

Depois de tantas voltas me gira a cabeça, que, como a de Machado, não encontra “nada assaz fixo neste mundo”, e já não sei mais se ainda sei alguma coisa. Mas sei que dizem por aí de um homem que não precisou se elevar além do mundo, porque já estava lá e de lá desceu. Desceu, dizem ainda, para abrir-nos o coração de Deus, a sua intimidade, e revelar que é Ele mesmo o infinito Amor, o eterno apaixonado. Esse homem, dizem também, se dirigia aos homens com uma pergunta – “que procurais?” -, e entregue às mãos deles enfrentou a morte, desceu aos infernos, e, quando subiu, prometeu que ia para preparar muitos aposentos e um grande banquete, para que lá a nossa alegria seja “perfeita”. Isso é o que dizem. Não sei se é verdade – parece que não. Afinal, era só o filho de um carpinteiro da Galiléia. Mas, ah leitor, olha lá que te olham os olhos da Ironia! Lembra que as aparências por vezes escondem realidades outras – leva em conta aquilo que diz Pascal, que Deus é um “Deus escondido”, e também que “tudo aquilo que é profundo ama o disfarce”, como dizia o louco Nietzsche, outro sátiro. Creio que cada um é livre para crer ou não nessas coisas. O que não me entra na cabeça, sempre dura, é a indiferença. É uma promessa grande demais para não ser levada a sério. É imensa! Um Deus que é puro e absoluto Amor!; uma alegria perfeita!… Talvez seja tudo uma ilusão, não sei. Eu, porém, como Pascal, “só posso ter compaixão por aqueles que gemem sinceramente nesta dúvida, que a olham como a pior das infelicidades, e que, não poupando nada para sair dela, fazem desta busca sua ocupação principal e mais séria”.

Mas tenho de me ocupar pelo momento com minhas próprias promessas, não menos sérias. Prometia mostrar que o humor é sinal de que o homem é um ser metafísico. Os cães da roça, bem como todos os outros bichos – e não raro os homens de negócios – andam sempre muito preocupados porque vivem imersos entre as coisas deste mundo. Olham para elas e sentem cólera, desejo ou medo, mas nunca acham graça, porque não conseguem se destacar, não podem se despreocupar – quando o fazem, dormem. O animal não vê, como Sócrates e Machado viram, que tudo na vida tem dois lados – o lado de cá e o lado de lá. Meu argumento final é simples e com simplicidade o entrego às mãos do leitor: se podemos rir deste mundo, vasto e desconcertado mundo, é só porque pertencemos também a um outro. E quem me garantirá que esta vida, com seus interesses mesquinhos, não é uma ridícula paródia da outra?

E a moral da história?, dessa hás de gostar: é que, por mais desgraçada que vez por outra pareça essa vida, podemos rir dela à vontade – espera-nos a outra, a verdadeira. Paz na Terra aos homens de boa vontade – e alegria aos homens de bom humor. O humor liberta, liberta como o amor. “Ama e faz o que quiseres!”, exclamava Agostinho. E mais: podes também, antes, deves amar a ti mesmo à vontade. Não há vaidade nem hipocrisia nisso. Mas desde que – e eis a condição que purifica de todo veneno! – desde que ames ao próximo como amas a ti mesmo – assim dizia aquele galileu, o judeu abençoado Jesus Cristo. (So, “all we need is love?” No, certainly not! We also need God… But that’s another story). E quanto ao humor? Aquele homem também dizia que temos de nos tornar como crianças; então olha para elas, e com elas aprende a olhar a vida:Olha e ri do que quiseres! Pro quinto dos infernos com os politicamente corretos!, gente incorrigivelmente sem graça. Ri dos outros – isso os libertará. Mas tenta, na medida do possível, rir com eles, e não deles, como se diz às crianças. Envolva-os com teu humor. E, mais importante, a condição fatal sem a qual tudo se infecta: aprende a rir de ti mesmo com a mesma facilidade com que ris do teu próximo. Ri com humildade, ó “criatura da terra”. Sim, porque és feito do mesmo barro que todos nós, e as tolices e ilusões da tua vaidade e hipocrisia são tão ridículas quanto as de qualquer outro.

Creio ter cumprido minha promessa: expor o riso ou expor-me a ele. Talvez não haja afinal nenhuma vida eterna e só nos caiba levar avante o curso desta vida que fluirá seus breves momentos até desaguar num imenso oceano escuro como a noite. Talvez a quintessência do Universo não passe mesmo de um egoísmo brutal que gira com indiferença cega esfacelando os seres do pó ao pó; uma Natureza homicida que devora incessantemente seus próprios filhos. Talvez, leitor, toda essa história de seres tu chamado a tornar-te eternamente belo num mundo perfeitamente bom não seja senão um transtorno cerebral meu; um delírio qualquer de morte ou de amor, como os de Sócrates e Machado. Talvez… Mas essas coisas eu falo a sério. É claro, porém, bom amigo, que se disso tudo só tiras absurdos, és livre para rir!

Marcelo Consentino é doutorando em filosofia da religião pela PUC de São Paulo, mestre em filosofia pela Università Santa Croce de Roma e Presidente do IFE. Ensina história da cultura ocidental no curso O Ocidente e suas trajetórias (http://www.ocidentalismo.blogspot.com).

Texto publicado originalmente na revista-livro Dicta&Contradicta, nº 4 Dez/2009, do Instituto de Formação e Educação (IFE).

Do enigma ao mistério – por Bruno Tolentino

Literatura | 27/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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Este texto é a edição das três últimas aulas de Bruno Tolentino, dadas nos dias 8, 15 e 22 de maio de 2007, feita por Guilherme Malzoni Rabello.

I.

Como sempre, a vida é muito surpreendente. Quando menos se espera, ela dá uma volta: às vezes nos assusta e às vezes nos maravilha, mas o fato é que sempre nos tira do lugar.

Confesso que eu não esperava absolutamente nada da recente visita do papa ao Brasil, ao menos nada mais que um sinal como os que ele nos vem dando abundantemente. Mas não foi isso o que tivemos. A verdade é que a presença deste pontífice subitamente solucionou a minha vida, completamente: eu desisti de morrer. Talvez agora tenham que consultar a esse respeito, no sentido de que a morte nunca teve maior importância nas contas que fiz com a vida: se a festa está acabando, muito bem, vamos acabá-la da melhor maneira possível. Em todo o caso, até agora isso não tinha grande realidade, como de resto tudo aquilo que fiz: o esforço de escrever, de entender, de ser menos indigno da condição humana. Mas a presença do papa subitamente trouxe uma coisa nova com a qual eu, aos quase setenta anos, ainda não me havia defrontado.

A primeira coisa que ele nos deixou foi um chamado à reflexão, ao silêncio. Nós, que vivemos num mundo tão conturbado, em situações tão conturbadas, temos todas as razões para buscar um cantinho, um momento de calma, mas praticamente não o fazemos nunca. Estamos sempre muito ocupados em ter idéias, respostas e tudo o mais. Eu passava os olhos pelos jornais, tentava fazer como todo mundo, mas não era isso que me acontecia. O que me acontecia era a clara impressão de que o Santo Espírito tinha vindo ao Brasil e aproveitado opapamobile para passear por aí.

Não houve nada de dramático nessa visita. Simplesmente tive a sensação de que o tempo todo alguma coisa – e eu mesmo – estava sendo renovada. Tanto assim que disse aos médicos: “Olha, vamos acabar com esse negócio de cura, de remédios e tudo o mais. Isso fica por conta de quem me fez”, e assim já há três dias que não me furam, não me levam daqui para lá… Mas a minha pergunta é, muito claramente, a seguinte: será que o santo pontífice não estava simplesmente nos dizendo “Foi-nos dada uma Revelação, alguma coisa nos foi revelada”? Cada um o vê até certo ponto, mas praticamente nenhum de nós vive à altura disso, não respondemos a este chamado constante. “O que é homem para que te interesses por ele?”

A grande escritora portuguesa Sophia de Mello Brayner Andersen diz numa passagem sensacional, mas também das menos notadas, que o amor nos vem de vez em quando; duas, três vezes somos chamados a amar alguém; falamos nesse primeiro amor, nesse amor individualizado, não sei se se pode dizer erótico; diria, este amar uma vez ou outra. Mas existe também, no final das contas, uma outra presença, uma outra visita que vem todo santo dia, que é a santidade, o chamado à santidade, essa velhinha, esta velhota chata que vem e bate à nossa porta.

Vem disposta a ser recebida, mas todo santo dia damos um jeito de inventar uma desculpa para não a receber. Por acaso não quero ser santo? É claro que quero, quero o melhor para mim, o melhor para a humanidade toda; mas começo amanhã, porque agora… Todo santo dia inventamos uma nova “maravilha” que é preciso fazer antes (às vezes, os grandes mestres realmente inventam coisas belíssimas: grandes quadros, o teto da Capela Sistina, os sonetos de Shakespeare, a Montanha mágica, o Don Quijote)… E o resultado é que todo mundo está sempre muito ocupado e a velha vai ter que voltar no dia seguinte.

Por fim, a gente já nem se chateia com a insistência dela, mas vai simplesmente adiando e adiando. Temos de resolver como organizar o país, como vamos fazer uma literatura fabulosa, se vamos fazer etanol de milho ou de beterraba… E, com tanta coisa séria para fazer, lá vem essa velha e não sabemos direito o que ela quer. Não nos pergunta nada: aliás, distingue-se justamente pela sua insignificância – e é esta insignificância, no final das contas, a única coisa pela qual teremos de responder. Teremos de responder, pura e simplesmente, por aquilo que fizemos dessa visita incômoda.

Como complemento, há também umas palavras de Giussani, que dizia simplesmente: “Os homens levam a sério o trabalho, o amor, a família, os filhos, vai ver até a santidade. Levam mil coisas a sério, mas não parecem ter tempo livre para levar a sério a vida”. Levar a sério a vida é uma coisa muito curiosa: significa que você não pode jogar fora um só segundo dela, pois é um tesouro que lhe foi dado, que lhe é dado e que volta a lhe ser dado todo santo dia.

Estas duas coisas completam-se: a visita da santidade e a pergunta “mas será que levo a vida a sério?” Foi em torno delas que se criou toda uma coisa extraordinária, que foi a cultura do Ocidente. Construímos toda a assim chamada civilização em torno deste problema do ser[1].

Seria necessário observar aqui que, a cada vez que damos nome a alguma coisa, é porque esta coisa já não tem tanta significação: a partir do momento em que começamos a ficar conscientes de uma percepção, temos a tendência de substituí-la por um conceito. No caso do conceito de “civilização”, esse processo é muito notório, porque se trata de algo muito nobre: Quem é contra a civilização? Somos todos a favor dela. E da santidade também, e da vida também. Só que todo mundo está muito ocupado…

O perigo é justamente nos interessarmos demasiado pelas construções conceituais que fazemos do significado profundo e misterioso das coisas. Se o homem não passa de uma travessia entre o enigma e o mistério, então precisamos tomar muito cuidado em como definimos isso, porque neste intervalo está tudo aquilo que somos, incluída essa maravilhosa civilização de que temos toda a razão de nos orgulhar.

Isto me leva a pensar que, no que diz respeito àquilo que tanto valorizamos como “civilização”, quem tem a última palavra talvez seja São Boaventura, quando nos recorda que somos apenas um primeiro rascunho do ser. Levanta-se sobretudo a grande interrogação que o Evangelho nos deixa: o que será esse rascunho quando for passado a limpo? O que será o corpo glorioso? Quando Cristo se aproxima dos discípulos de noite, andando sobre as águas, diz-lhes: “Não temais, sou eu”. Santa Teresa de Ávila sublinha esse “sou eu”, não tanto o “não temais”: aqui Cristo nos dá uma indicação do que vem a ser esse perceber sem ver, esse enigma do ser que, uma vez revelado, nos levará ao mistério. Realmente, não teremos ido muito longe se tivermos saído de um enigma para cair num mistério…, mas temos a promessa de que veremos, não em um espelho, e sim frente a frente. E nesse momento entenderemos alguma coisa.

Para qualquer religião, seria uma heresia sugerir que nos dias da visita do papa ao Brasil tivemos essa experiência de “ver frente a frente”, ou pelo menos umantipasto da coisa. Mas não consigo deixar de ter essa impressão. Ou despiorei muito, ou então realmente aconteceu alguma coisa de diferente. Inclino-me mais para esta última versão, porque tenho uma noção muito clara de não ter despiorado tanto assim; infelizmente, não posso dizer: “mas eu agora, finalmente…”. Agora, finalmente, me peguei do lado de cá e eles do lado de lá, mas continuo a ser o mesmo palhaço que vejo todo santo dia.

Isso tudo me aconteceu e tive a impressão de que estão todos enganados, que não vou morrer coisa nenhuma, que não precisam se preocupar com isso: “Pode tirar esses berloques todos porque já está tudo resolvido. E quem resolveu não fui eu nem o senhor. A não ser que seja o Senhor com ‘s’ grande”.

Por isso, proponho-me agora, sobretudo, recordar como foi que cheguei a várias conclusões durante a minha vida, como foi que elas me vieram, por que algumas coisas me tiraram do sério, e de que maneira tudo isso me fez concluir que era necessário fazer uma contribuição cultural – lá vem essa palavra outra vez -, civilizacional, aqui no Brasil. Tenho muito interesse em deixar bem sublinhada a necessidade de escolhermos entre a linguagem profunda que a poesia nos empresta, e essa outra que, no final das contas, quando não é uma doxologia, quando não é a história de um maravilhamento, é simplesmente a arte de abençoar supermercados…

Talvez possamos entender assim o que eu quero dizer por “mundo-como-Idéia”, e em que medida vale a pena cuidar desse ponto de vista, dessa maneira de encarar a realidade simplesmente como uma Idéia ou, alternativamente, reconhecer que a vida é metafísica. Porque, no final das contas, continua a ser um ponto de vista, e talvez um punhado de palha – como diz São Tomás – seja mais importante do que todo o resto [2]. Temos muito o que defender, aqui no Brasil, contra a atual tendência ao bestialógico e ao despudor dos neurônios, e isso é muito importante; mas, mais importante ainda é não descobrirmos, na véspera da morte, que passamos a vida inteira abençoando supermercados…

II.

Não tenho a pretensão de ensinar alguma coisa no tempo que me resta. O que me parece entendimento, o que me pareceu entendimento, deve-se simplesmente a uma educação que recebi como quem recebe o ar que respira, sem saber muito bem de onde vem e por que está respirando aquilo. Mas tenho muito a recordar e tenho certas coisas que preciso dizer antes de calar a boca de vez. Essas coisas são cada vez mais claras para mim e precisam ser ditas, porque ninguém vai dizê-las se eu não puder falar. Neste mundo de supermercado, ficarão atrás do etanol, da queda de sei lá qual bolsa de valores… Podem não ter importância nenhuma, mas têm uma razão de ser: lembro-me delas com muita clareza, sei o que são.

Os primeiros poemas que escrevi em 1956 não têm praticamente interesse nenhum, a não ser o da data, do momento. Sempre achei que havia um certo exagero quando as pessoas diziam: “Não, não jogue fora, é um bom poema”. Publiquei, deixei publicado, mas foi só depois que comecei a entender que estava fazendo poesia, e que não havia jeito senão fazer poesia. Dona Cecília Meireles sempre me perguntava: “Poeta, o que temos de novo?”, e eu não entendia nada: Primeiro, que poeta é este? Segundo, o que é essa tal novidade, essa coisa que tinha que continuar a levar para frente?

Há várias passagens em minha vida que não termino de entender. Em 1973, por exemplo, eu já havia criado essa personagem chamada Katharina, que era simplesmente uma freira mal comportada. Nessa época, o Cristo não era coisa que me importunasse de modo algum: eu estava em Oxford e tinha mais o que fazer. Até que, em agosto daquele ano, escrevi toda a série do livro que corresponde à leitura que a Katharina faz do Evangelho 3. Não queria escrever nada daquilo; o primeiro poema, sobretudo, O segredo, apareceu-me inteirinho, sem que eu tivesse que mexer em nada. É aquele que diz:

O Cristo não é
um belo episódio
da história ou da fé:

 nem o clavicórdio
nos dedos da luz,
nem o monocórdio

chamado da Cruz.
O crucificado
chamado Jesus

é o encontro marcado
entre a solidão
e o significado

 do teu coração:
de um lado teu medo,
teu ódio, teu não;

do outro o segredo
com seu cofre aberto,
onde teu degredo,

onde teu deserto,
vão morrer, mas vão
morrer muito perto
da ressurreição.

Chamar isso de experiência mística – essa palavra que sempre me pareceu besta: “Mística”, por quê? O que é isso exatamente? – é dar uma importância muito grande às coisas, mas permanece o mistério: por que fui escrever este poema, que certamente não está abaixo dos outros, assim de repente?

Em Oxford, discutia-se muito tudo isso, e as melhores cabeças tinham preocupações de ordem religiosa, até porque precisavam definir-se de algum modo. O poeta que mais me impressionava, Wystan Auden, era um poeta religioso, e ninguém mencionava esse fato; também o melhor poeta inglês vivo, Geoffrey Hill, é um poeta eminentemente religioso – aliás, praticamente não é outra coisa.

Mas, graças a Deus, não posso calcular mais nada; tenho que me ater apenas ao essencial, à velhinha que vem bater à porta todo dia. E a tudo o que ela acha da cultura, ou seja, do que eu criei. Esses pensamentos me visitam o tempo todo, e não posso deixar de mencioná-los. Posso muito bem deixar de dar aulas, posso muito bem deixar de ensinar as pessoas a pensar ou de explicar o significado desta ou daquela poesia aqui ou na Inglaterra; sei um mundo de coisas das quais me pergunto para que servem, mas nada disso precisa ir senão para a lata de lixo. O que sobra é o significado que a poesia dá a certas cenas, alguma coisa que faz o mistério da poesia e da vida e as amarra numa coisa só. Daí nasce o poema, de uma forma única e que não se cansa de me deixar perplexo.

III.

Já me foi observado que, se O mundo como Idéia é uma versão, digamos, ensaística de uma intenção, A imitação do amanhecer seria a versão romanceada[4]; de qualquer maneira, são a culminação da minha obra, de um modo de pensar e de ver as coisas. Seria impossível escrever apenas um deles: quando eu estava entregue ao ato de ser perfeitamente insano escrevendo A imitação do amanhecer, O mundo como Idéia já se ia formando em minha cabeça. O primeiro era o livro que eu sempre quis escrever; o segundo, o livro que fui obrigado a escrever. O mundo como Idéia não era um projeto: eu precisava escrever o livro para entender o que estava fazendo.

Isto porque a poesia é a linguagem fundamental, a linguagem de todos os tempos. Não se pode imaginar, por exemplo, os Salmos escritos em prosa, como seria impossível no caso da Divina comédia, de Os Lusíadas etc. Goethe escreveu excelentes romances, mas jamais teria escrito o Fausto senão em verso. Se a linguagem fundamental vai ser tentada, seu máximo grau sempre foi e sempre será a linguagem da poesia. Nunca poderei repetir isto o suficiente: o nosso mundo se afastará cada vez mais da realidade quanto mais quiser precisar as coisas, quantificar a realidade, ao invés de ouvir essa voz profunda, que será sempre uma viagem do enigma ao mistério – uma travessia que parece não levar a lugar nenhum, mas na verdade está subindo, levando-nos cada vez mais à compreensão da realidade.

Como já disse, a compreensão das coisas só pode ser compreensão de Deus, porque, se não o for, será apenas uma inauguração de supermercado. Se este enigma não me interessa em si, então apenas me interessa quantificá-lo; e se a vida não é metafísica, é uma mera quantificação, um empilhamento que não faz nenhum sentido. Ou seja, a vida ou é metafísica, ou não é nada.

O problema todo começa quando percebemos que o mundo moderno cada vez mais se parece com um nada – e faz questão de se parecer com isso. Há um esforço enorme, no qual se servem as idéias, se servem as cosmogonias e cosmologias, para mostrar que na verdade o ser humano não passa de um mero empilhamento de dados. A conseqüência será colocar o homem abaixo do nível animal, quando muito no de um animal.

Gostamos de dizer que a empreitada da modernidade teve um grande sucesso, mas o que é exatamente esse sucesso? Quase nada, eu diria. Pode-se dizer que hoje foi um dia de grande sucesso para mim, porque não podia falar, ia morrer, mas o progresso da Medicina fez com que estivesse aqui podendo pronunciar-me. Ficamos muito agradecidos, é claro, mas, na verdade, se isso realmente é uma vantagem para o ser humano, é também um dom de Deus.

Às vezes temos percepções espantosas de que a realidade é dom de Deus. São momentos que chamo de epifanias – na verdade, simplesmente uso o termo para essa súbita aparição do ser em sua plenitude. É algo muito difícil de explicar, mas recentemente, por exemplo, eu estava andando numa das ruas mais prosaicas de São Paulo, a tal Cardoso de Almeida. Não sou paulista, fui conhecer a Cardoso de Almeida recentemente e quase a contragosto. Até que um dia estava andando nessa rua, entre um ônibus e duas árvores completamente empoeiradas, e subitamente aquilo tudo me causou um grande espanto. Foi um maravilhamento que não se explicava nem justificava de maneira alguma, mas é como se aquele enigma que você é o obrigasse a espantar-se e ficar profundamente emocionado.

É essa dimensão metafísica da vida que transfigura tudo. Temos a impressão que tudo existe apenas porque Deus está respirando e, se Ele parasse de respirar, tudo se desfaria em poeira. Na verdade, tudo é poeira mesmo, mas, nesses momentos, como que numa respiração de Deus, todo aquele pó se transforma em brilho – que às vezes é percebido, às vezes não. Isso é o momento de epifania. É o maravilhoso no que tem de mais awesome – a palavra awe em inglês significa ao mesmo tempo “espanto” e “terror” -, como se eu visse pela primeira vez aquela rua e aquele ônibus na Cardoso de Almeida. Em A imitação do amanhecer, com uma brincadeira – coisa que aliás nunca está longe do meu modo de escrever e de pensar -, exprimo esse maravilhamento nos seguintes termos:

Ora (direis), anjos de luz! Ah, mas leitor,
se nunca te encontraste, não com um ser abstrato,
mas com algum corpo aceso como os olhos do gato,
que sabes do fenômeno de que aqui falo? O amor
para ti alguma vez foi susto? Entre o terror
e o maravilhamento, algum dia o retrato
da perfeição te olhou? Vá lá, vamos supor
que é ainda o mesmo corpo, tátil ainda ao tato:
há nele um súbito perfume inesperado,
e é inútil, é impossível não perceber que alguém
á mal cabe num corpo; eu o conhecia bem
e nunca havia dantes sentido que ao meu lado
pairava aquele aroma de um mundo ignorado…
Não, leitor, certas coisas chegam de muito além
(I, 67)

Diante de uma epifania, que pode acontecer em qualquer canto e a qualquer momento, procuramos refugiar-nos de mil maneiras, porque, quando isso acontece, é um verdadeiro terror. Rilke dizia que “todo anjo é terrível”:

Pois o belo é apenas
o começo do terrível, que ainda a custo
[podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele,
[impassível, desdenha
destruir-nos. Todo Anjo é terrível . [5]

Confrontado com este dom, que é ao mesmo tempo um dom e um desafio, a criatura pode conceber mil maneiras de viver o mundo, e a vida, que normalmente é tediosa, cinzenta, sem graça, até que se ilumina. São esses grandes momentos da nossa vida – que podem durar apenas alguns segundos – que abrem as brechas e nos fazem ver, para além da superfície, a real reverberação que constitui o ser. Mas o terror de Deus, o terror da Beleza é de tal ordem que nós queremos recuar. O fato de a vida ser metafísica nos obriga a fazer alguma coisa, mas é sempre altamente insuficiente para conter aquele temor e tremor, como diz Kierkegaard. Nós continuamos nus diante dessa realidade; quer escolhamos ver ou fechar os olhos, perceberemos que as coisas nos chegam “de muito além”.

O que a poesia e Deus têm em comum é justamente isto. A grande arte e a divindade possuem essa capacidade de divinizar a vida, de mostrar que não há outro modo de compreensão da realidade. A conclusão é sempre incômoda, mas todas as outras são ainda piores: estamos aqui numa constante saudade de Deus, saudosos da plenitude. E a grande arte é exatamente isto: o esforço da criatura por guardar na memória aqueles momentos de epifania, nos quais ela se aproxima ao máximo do mistério da criação.

O mundo moderno quer criar uma espécie de antídoto para essa ameaça que é Deus e a Beleza, e o resultado não poderá ser outro que não a feiúra e a negação de absolutamente tudo. Vamos então conceber o nosso mundo como horroroso para podermos dar-nos ao luxo de acreditar que temos uma defesa, um escafandro contra aquela súbita surpresa, aquele temor e tremor de acordar diante daquilo que realmente somos. E então passaremos o tempo empilhando latas no supermercado e tentando fazer disto arte.

A necessidade de escrever O mundo como Idéia, que surgiu aos poucos entre 59 e 66 e gradualmente foi tomando forma, é simplesmente a urgência de me defender dessa condição de lata em supermercado, da linguagem reducionista, para buscar a grande abertura – e reclamar de tudo que não seja isto. A Montanha mágica, por exemplo, é a mesma coisa: no momento em que um continente inteiro parece caber num sanatório dos Alpes Suíços, Thomas Mann vai criar essa extraordinária metáfora do mal como doença.

O que me propus fazer em O mundo como Idéia foi também uma tarefa muito séria, que não era simplesmente tentar descrever alguma coisa, mas expressar a percepção de que aquilo que dá sentido à realidade vinha sendo roído pelas beiradas pelo sorrisinho dos Voltaire da vida. Quem me deu essa imagem foi Saint John-Perse, que morava nos Estados Unidos, quando lhe perguntei por que ele não voltava para a França. Ele me levou então à biblioteca do Congresso americano e, no meio daquelas estátuas todas, disse-me: “Vou explicar: Olhe só, qual é o grego que está ali? Platão. E o espanhol? Góngora; poderia ter sido Cervantes, mas é Góngora. O italiano é o Dante, claro. E ali, olhe quem representa a França, o que a França virou: o sorrisinho do Voltaire! Nós somos representados por isso!”

Na época, fiquei estarrecido, mas depois ficou claro que essa coisa toda só servia mesmo para arrumar sinecura para débil mental na USP. Porque foi nisso que deu: na Rive Gauche du Tietê. Nessa fábrica de opiniões ocupadíssima com a última teoria bocó para a falta de sentido do universo. Se eu não tivesse nada que ver com isso, iria pentear macacos, arrumar coisa melhor para fazer. Mas não: este é o meu povo, e eu sei que não era assim. Então, aproveitando a proximidade da Maria Antônia com a Rua Augusta, e a semelhança entre “correr atrás da Bolsa” e “ficar rodando bolsinha”, disse simplesmente assim:

Oh, Maria Antônia augusta,
quanto custou, quanto custa
teu fricoteio ao Brasil?
Mas quem te vê, quem te viu.
Tu, que já foste um canil
rábido em nome da luta,
hoje não passas do til
no bundão da velha puta,
a puta que não pariu!

O poema foi considerado um acinte. Diziam-me: “Isso não se faz, Tolentino”. Mas o que não se faz é prestar-se a dar inspiração para essas coisas!

IV.

Se a hipótese de que a vida é metafísica nos é familiar e aceitável, se tudo aquilo que fazemos é memória de Deus e a Ele se dirige, então resta a pergunta: Por que fazer seja o que for, por que não ficar em contemplação perpétua? A resposta mais lisonjeira seria pretender  justamente que todos os nossos atos fossem louvores a Deus, como quem não tivesse nada para fazer e ficasse a tarde toda louvando a Deus. Mas não é assim e não precisa ser assim, porque gradualmente essa realidade de estarmos saudosos da plenitude vai aparecendo, seja quando estamos ocupados com pequenos atos, seja quando enfrentamos atos totalmente megalômanos. Não há necessariamente que haver uma intenção deliberada, é sempre perfeitamente possível que se busque um ato de beleza instintivamente.

Quando eu me pus a escrever O mundo como Idéia, tinha diante de mim apenas algumas questões atormentando a minha cabeça. Com o passar do tempo, fui percebendo aos poucos que cada vez mais ia ficando claro para mim esse abandono da linguagem transcendente e a noção de que aquilo nos iria deixar num péssimo estado, que iríamos perder muito. Depois ficou claro que não perderíamos muito: perderíamos tudo. É como se eu estivesse dentro de um nevoeiro e, conforme ele se desfizesse, eu começasse a perceber certos contornos, certas formas – ou o que se chama de poesia.

Gradualmente, esse problema foi-se tornando uma visão de mundo, eu tendo que me defender desse mundo, desse pavor de constatar que havia um modo de deformar a realidade sob a desculpa de que aquilo seria mais real que o real. Todos os dias estava cercado de alguma explicação, de maneira que eu não sabia muito bem para que servia todo o meu esforço; mas tinha muito claro para quenão servia, e que aquilo que me cercava era uma grande bobagem. E assim começou a criar-se uma obra poética.

Qual não foi o meu susto quando, bem mais adiante, já nos anos 90, voltei ao Brasil e encontrei um país que havia dissolvido e praticamente proibido a linguagem poética. Nesse intervalo eu havia feito poesia em outras línguas, de acordo com o lugar onde vivia, o modo como vivia etc., mas nunca imaginei que pudesse encontrar um país do qual a cultura tivesse sido banida – aquela maluqueira de dizerem que o Caetano Veloso era o maior poeta do Brasil: espera lá, até segunda ordem ainda é o Carlos Drummond de Andrade! -.
É um susto muito grande para quem havia passado trinta anos na civilização e sabia muito bem que, embora houvesse um negócio chamado The Rolling Stones, isso não impedira a Inglaterra de ter a grande poesia que tinha, a grande música que tinha e tudo o mais.

Perguntavam-me o que estava fazendo aqui, por que não ia embora, mas não é nada disso: não posso aceitar que esse país agora tenha virado uma Escola de Samba. E quando penso que Noel Rosa era chamado de “o Poeta da Vila”, inclusive pelo Manuel Bandeira e pelo Villa-Lobos… Ele realmente era muito poético e fazia aqueles sambas de que muito nos orgulhávamos, mas daí a confundir isso com poesia – era uma maluqueira tão grande que não podia ocorrer a ninguém.

Pois bem, voltei e descobri que nesse intervalo o intelectual se havia transformado em in-telecoteco-ctual e que estávamos todos escravizados à estupidez, como numa espécie de Lei Áurea ao contrário. Os cariocas, especialmente, sempre valorizaram muito o nosso “Poeta da Vila”, mas era o poeta de uma segunda linguagem, que nunca foi confundida com cultura; era simplesmente a nossa realidade, em toda a sua complexidade, que nos tornava não só ricos, mas felizes de tê-la.

A partir do golpe de 64, porém, justamente quando me fui embora, começou a idéia de que precisávamos “fazer a revolução”, de que não havia necessidade de cultura. Era preciso revolucionar tudo. Quando comecei a organizar O mundo como Idéia, sobretudo a série de ensaios da parte inicial, defrontei-me com toda essa questão em termos de profundidade metafísica. Já na primeira parte propriamente dita, “Lição de modelagem”, era natural que começasse com a idéia do espectro. É justamente um mundo espectral o que encontramos sempre que nos afastamos da realidade, da profunda realidade metafísica.

Curiosamente, vou-me dando conta de que esse mundo de sombras corresponde perfeitamente à ciência dos números. Há todo um aspecto demoníaco na transformação do mundo-como-tal em mundo-como-Idéia, baseada toda ela numa concepção numérica. Tanto assim, que, em 1933, Kurt Gödel faz os seus dois teoremas da incompletude e demonstra que não há modo de quantificar a realidade de tal maneira que ela venha toda a caber toda em algum tipo de formulação.

Justamente no mesmo ano em que Gödel demonstra seus teoremas, Hitler torna-se o Führer e a barbárie toda começa. Ou seja, não estamos realmente em plena vertigem, mas, pelo contrário, estamos-nos iludindo a respeito da possibilidade de falsificar alguma coisa que não poderemos nunca atingir. Ao mesmo tempo em que aparece a tensão com a realidade, este questionar-se a si mesmo sobre como saber de maneira mais precisa as questões fundamentais, como faz Kurt Gödel, ocorre o momento máximo de barbárie. Começa aquele horror sinistro que vai levar um dos povos mais desenvolvidos do Ocidente, o povo de Goethe, de Schiller, a dedicar-se a colocar gente dentro do forno para acabar com um outro povo inteiro, e tudo em nome de uma boçalidade completa e total!

Essa realidade também vai influenciar-me de maneira fundamental porque, vinte anos depois, quando eu for começar a escrever, é natural que haja um sentimento de ordem – afinal de contas, todos sabíamos quanto tinha custado para que a razão predominasse, para que a luz predominasse sobre a treva. Quando digo razão, isso não significa racionalismo: o racionalismo é a doença da razão, como muito bem o definiu o papa Pio X. É-se racionalista na medida em que não se é capaz de usar a razão para compreender que não se entendeu, para saber que a realidade é maior que aquilo que se pode definir.

Quando eu me proponho expressar essa realidade na esteira de uma verdadeira hecatombe, a simbologia da luz sobre a treva – que não é nenhuma novidade -, terá um papel decisivo. A luta entre o bem e o mal simbolizada – se se quiser usar esse termo – nesse confronto entre a escuridão e a luz vai se tornar, no meu pensamento, um elemento de novidade. Descubro a metáfora dessa luz deliqüescente – e daí o meu particular interesse pela pintura -: essa luz que desmaia, em que a percepção humana não tem total noção da clareza das coisas, não consegue anular a treva. Aparece, então, a noção de luz pensada e dessa luz que treme, que, do meu ponto de vista, é talvez a metáfora mais exata para a condição humana.

   Canto, filho da luz da zona ardente,
coisas que vi a luz, sempre estrangeira,
tecer no ar e inevitavelmente
ir baixando com modos de rendeira
   ao tear deste mundo. A vida inteira
vi me escapar a luz do sol cadente,
e é essa rosa de sangue na fogueira
que agora arranco às dúvidas da mente.
   mente o intelecto que se esquece dela.
Se a pura luz de leste se desdiz,
a cada ocaso há no final feliz
   dos números da mente a bagatela
de uma luz de mentira. Contra ela
fui tecendo este meu canto de aprendiz. [6]

É essa necessidade de aceitar que tudo aquilo que nós amamos está sempre a ponto de se pôr como o sol, está tingido por essa luz de ocaso que não é menos bela por sê-lo – ao contrário, talvez até seja mais bela, mais doce, mais dolorosa por isso. Não existe triunfo nenhum no formalismo que nos propõe a ciência do número, o mundo como Idéia. Nesse nosso mundo, a idéia pode tentar substituir, sem jamais conseguir fazê-lo, essa luz que treme e que é o único momento de verdade do ser. Teremos que renunciar aos sonhos alucinantes do intelecto se quisermos perceber alguma coisa desse mundo que se esvai, que perdemos e que é bonito justamente porque o perdemos.

V.

Atualmente, encontramo-nos em uma situação particular: somos chamados a pensar a condição cultural da humanidade de uma maneira como não o havíamos sido desde a Primeira Guerra Mundial. De forma cada vez mais surpreendente, inclusive para mim, eu vejo que toda essa questão do mundo moderno cabe cada vez mais na moldura traçada pelo papa Pio X na encíclica Pascendi Dominici gregis, “Apascentando o rebanho de Deus”, na qual este homem de uma inteligência brilhante conseguiu definir o inefável, que aliás tinha todo interesse em continuar a ser nebuloso. O modernismo não é nada além disso: o nebuloso tentando passar-se por inefável. Antes de poder criticar, o que papa Pio X fez foi um enorme esforço de entendimento daquele monstrengo que se estava formando. O quadro que traçou seria completado mais tarde com outro livro fundamental para compreender o século XX, que é La trahison des clercs, de Julien Benda [7]. Com estes dois trabalhos, temos os pilares a partir dos quais podemos entender o mundo moderno

É necessário, sobretudo, encaixar o Brasil nesse panorama: que visão de Ocidente nos tínhamos proposto a nós mesmos, e com que resultados a havíamos imaginado e participado dela como última província do Ocidente – última no sentido de a mais distante, mas nem por isso a menos significativa. Aquilo que nós produzimos de mais profundamente nacional, que não é a anta nem o saci, o aspecto folclórico das coisas, mas algo que faz com que todo mundo perceba uma realidade completamente nacional. Paradoxalmente, nós não fizemos como os europeus: ao invés de estarmos a nos perguntar o que valíamos, simplesmente fizemos algo. Por exemplo, houve um momento em que todos os brasileiros perceberam exatamente que “é doce morrer no mar”.

Essa sensibilidade, brasileira e só brasileira, esteve presente em tudo. Não é superior, não é inferior, mas é indispensável para o nosso modo de ser. Em nenhum momento será tão impressionante e tão tipicamente nacional quanto nas Bachianas de Villa-Lobos e nos poemas de Manuel Bandeira e Cecília Meireles, por exemplo. É como dizia Clarice Lispector: “Bem, se Machado foi possível, o Brasil é possível”.

Joaquim Maria Machado de Assis é a expressão suprema da inteligência e da sensibilidade brasileiras, ele que era um crioulinho que descia o Morro do Livramento para vender doces, descalço porque não tinha sapatos. Esse homem consegue ser indiscutivelmente o maior escritor, o maior pensador e certamente o maior romancista que América Latina já havia tido até então. Se isso foi possível, fica claro que a jabuticaba não é a única coisa boa que nasce no Brasil e não tem em nenhum outro lugar. Quando a América Latina produz o escritor que vai impressionar toda a Europa, Jorge Luis Borges, que nasceu em 1899, Machado de Assis, que nasceu em 1839, já o tinha precedido de muitas décadas.

Pois bem, se somos um aglomerado de macacos, somos uns macacos muito precoces, e só vamos começar a ter uma noção do que realmente somos nos anos de 1930, algo como 125 anos depois da chegada, aqui, da corte de Dona Maria. Mas como foi possível que os argentinos, que tinham por trás toda a extraordinária tradição de Cervantes, Fray Luis de León, Góngora, tenham demorado tanto tempo para ter um Borges, enquanto nós, que não tínhamos quase nada – descendíamos de uma espécie de Albânia Atlântica -, conseguimos precedê-los com a genialidade de Machado?

Nós não saímos in the pole position. Tínhamos Camões, realmente um poeta caolho que escrevia muito bem, que é um grande poeta para nós que sabemos ler português, mas que não teve eco nenhum na Europa e não é uma voz, estritamente falando, européia. Porque Portugal olha para o mar e, quando começa a olhar mais longe, logo lhe aparece o Brasil. Aparece essa confusão, essa coisa inexplicável espremida between the devil and the deep blue sea.Somos essa coisa imensa, toda desconjuntada, entre o mar profundo e a selva, mas nesse meio surge um pretinho que faz quatro dos grandes romances do século XIX. Há um grande mistério nisso tudo.

Se o homem é uma travessia do enigma ao mistério, então somos um exemplo perfeito disso, que começará a ser questionado na década de 30. Tia Lúcia Miguel Pereira publicou Machado de Assis em 1934; Dr. Gilberto Freyre havia publicadoCasa grande & senzala e concebido um entendimento magnífico e único do Brasil, e Dr. Sergio Buarque de Holanda fez Raízes do Brasil. São três livros importantíssimos naquele momento, que são como que pontos de interrogação. A essa altura, tínhamos apenas cinqüenta anos de projeto nacional, e cada um dos três nos trouxe uma resposta complementar para a pergunta: “O que somos? O que tivemos?”

Eu tive uma sorte enorme de crescer em meio a essas pessoas. Dr. Gilberto vivia no Recife, mas quando vinha ao Rio de Janeiro freqüentava a casa de minha tia Maria Clara, e um garotinho ali no canto ouvia tudo. Dr. Sérgio morava no Pacaembu, em São Paulo, de maneira que era mais fácil vê-lo; ele era uma das pessoas que mais entendiam de literatura anglo-americana, o que também o tornava muito interessante. Enfim, eram pessoas que eu via e cuja conversa ouvia, como também Dr. Afonso Arinos, Gustavo Capanema – e não me pareciam nada macacos, não eram nada primitivos. Cecília Meireles, fui conhecê-la em 1949, quando aquela estátua entrou lá em casa – uma versão positiva do visitante de pedra do final de Don Giovanni, mas que não vinha trazer a danação, muito pelo contrário! O Manuel [8] sempre viveu por lá, ele era um celibatário que comia sempre na casa dos amigos e teve, pasmem, seu primeiro rádio, que também tocava discos, aos setenta anos, em 1956.

Crescendo num ambiente assim, nunca me passou pela cabeça que eu procedesse, como dizem hoje, de um país subdesenvolvido, emergente. Nunca ouvi falar nada disso, e se me dissessem que o Brasil era um país emergente quando garoto, era capaz de confundir com detergente. Muito cedo queriam me mandar para Europa, e eu não entendia. Para que, se a Europa inteira vinha para cá? Tinha o Krajcberg, o Dr. Carpeaux, Vilém Flusser etc. Eu não conseguia entender esse sentimento de inferioridade, que já estava começando a entrar na moda. Para mim, europeu tinha muito a ver com barbárie.

Aliás, por sinal, qual não foi a minha surpresa quando decidi informar-me sobre a cultura russa, que estava muito na moda graças a toda aquela pompa de “a Rússia é o futuro do mundo”. Nunca acreditei muito nisso, mas resolvi ir ver o que era o tal comunismo, essa fórmula para a salvação da humanidade em que ninguém tinha pensado até então. E a minha surpresa foi chegar em São Petersburgo, que na época se chamava Leningrado, devido a um celerado que passou por aí, e descobrir qual era o terceiro poeta mais lido naquele país. O mais lido de todos era Pushkin, claro; o segundo era o poeta nacional da Escócia, Robert Burns. E o terceiro? Era… Tomás Antônio Gonzaga! Eles tinham uma sociedade inteira, a terceira sociedade lírica da Rússia, que se reunia, estudava e declamava todo o mês a Marília de Dirceu!

Vamos começar tudo outra vez: essa turma, ou estava ameaçando o resto do mundo com a bomba atômica, ou estava lendo a Marília de Dirceu! Levei anos para compreender a realidade cultural russa, que era tão esquisita que, embora eles dançassem maravilhosamente e fizessem todas aquelas maravilhas, de Pushkin a Tolstoi a Dostoievski, liam A Marília de Dirceu nas horas vagas… Já no Brasil só mineiro a lê, e um pouco por obrigação.

Assim, aos poucos, fui descobrindo vários vestígios dessa esquisitíssima qualidade brasileira – uma coisa difusa, particular, em nada metida a sebo. Brasileiro pede desculpas por estar ali, para não parecer muito mal-educado, mas depois “vai cuidar da sua vida” porque “nóis fumo e não encontremo ninguém”. Não era necessário, naqueles anos antes do gramscismo, querer que Fidel Castro e Che Guevara nos ensinassem como fazer o Brasil, criar essa condição de “é preciso fazer um novo país”.

VI.

Toda esta meditação sobre o Brasil e sobre o Ocidente cabe perfeitamente na moldura que esboçamos: de um lado, a Pascendi; do outro, o livro de Julien Benda.

Em 1905, o que papa Pio X faz com a sua encíclica é inaugurar uma análise do modernismo. Ele precisava saber o que era tudo aquilo que estava acontecendo, definir primeiro o que era o modernismo, para depois poder dizer o que aquilo significava e para onde provavelmente iria nos levar. Porque o modernismo se propunha como uma grande novidade, como uma grande beleza, mas não mostrava a cara e não podia mostrá-la porque, afinal, não se entendia a si mesmo. Tocou então à Santa Madre Igreja procurar saber o que era aquilo para poder ter uma opinião a respeito.

O modernismo não sabe o que quer, ou antes, define-se por aquilo que não quer. Não quer essa velharia toda que está por aí, precisa acabar com tudo para construir um mundo novo, um mundo moderno, e para isso vamos todos ser modernistas. Mas o que exatamente vem a ser este mundo tão maravilhoso e moderno, ninguém o explica. E o esforço da Pascendi vai exatamente nesta direção, a de entender o que é e o que quer o modernismo.

Logo em seguida, dez anos depois, irrompe a primeira guerra mundial e começa a mostrar o que a Encíclica estava dizendo. Trinta anos depois, Adolf Hitler já está construindo seus campos de concentração e o Gulag está sendo criado. O mundo moderno estava sendo construído ali, diante dos nossos olhos.

Hoje, infelizmente, sabemos muito bem que mundo moderno é este, para onde ele nos leva, e que o ideal dos ideais é o bebê de proveta. Hoje em dia, qualquer coisa é a famigerada liberdade, que ninguém definiu exatamente enquanto furava os olhos dos outros. Os pogroms, os massacres, os horrores todos, sempre em nome do mundo como Idéia, de uma certa idéia do mundo que passaria a ser o nosso objetivo. “Nós vamos construir um mundo tão maravilhoso que você poderá nascer com uma cara e morrer com outra, basta colocar um pouco de botox aqui, outro tanto ali, e você vai ficar uma maravilha… Ninguém terá doença nenhuma, mas até chegar lá vamos matar quem estiver no meio”…

Quando o papa percebeu que o que ele tinha escrito estava pura e simplesmente acontecendo, tomou um grande susto, pois talvez não quisesse ter tanta razão. Daí a trinta anos o mundo está em pânico, e a metade que não está em pânico está desfilando o mundo moderno. Nesse momento, os intelectuais entram num beco sem saída, e é justamente disto que o livro A traição dos intelectuais vai nos advertir. O intelectual deixa de ser responsável para ter razão haja o que houver: precisa construir um mundo formidável, embora a cada meia dúzia de cabeças se encontre uma fórmula diferente. Os nazistas, os comunistas, os fascistas estão todos prontos para brigar, para acabar no filme do Kubrick, Dr. Strangelove, no sujeito que adora bomba, ama a bomba atômica.

Naquele momento, todo mundo achava que estava fazendo uma coisa maravilhosa; podia-se estar de um lado ou de outro, mas todos, naquele momento, construíam a modernidade, o resto era velharia. Quando se chegou à catástrofe do anos 40, não havia mais tempo para pensar no que fora dito, pois tudo agora parecia irrelevante, e o máximo que os intelectuais concebiam era a possibilidade de não terem estado de todo certos. Então, de erro em erro, começaram a corrigir essa visão de mundo, esse mundo-como-Idéia, e propor a cada vez uma nova deformidade, convencidos de que era algo de primeira qualidade.

Esse é o modus operandi do modernismo: não estar nunca satisfeito com aquilo que se acabou de fazer, pois não era nunca aquilo que se tinha em mente, eraquase. “Vamos tentar mais uma vez, diz-se, e se for preciso matar algumas pessoas, enfim, não há outro jeito”… Resultado: acaba-se entrando numa esquizofrenia extraordinária e vai-se ficando cada vez mais moderno na medida em que se tem menos certeza das coisas, até chegar ao chamado niilismo. “Ficamos todos por aqui, não somos nada, tudo é nada, viva o nada”, e pronto!

Mas não pára por aí. Agora é preciso buscar uma maneira de que esse nada seja menos nada, ou um pouco mais nada que o nada. De nada em nada, começa a canonização dos jogos mentais. Quando cheguei à França, em 1964, havia lá um livro extraordinário que já prenunciava tudo isso: Le degré zéro de l’écriture, “O grau zero da escrita”, de Roland Barthes. Com o passar do tempo, apelidei aquilo de Le degré zéro de l’imposture, mas achei que ainda era muito enobrecedor, e, como as palavras écriture, imposture e épluchure têm mais ou menos o mesmo som, finalmente cheguei a Le degré zéro de épluchure, “O grau zero da casca de banana”, como se o macaco pegasse a banana e jogasse a fruta fora porque acabou de descobrir a casca. Um país inteiro, que já deu Baudelaire, Racine, Villon, até Voltaire com aquele beicinho, uma das grandes culturas do mundo, de repente descobre a casca de banana e lança-se inteiro naquele estado de adoração do nada.

Não demoraria muito até que nascesse daí toda uma escola: a do Deleuze, da Kristeva, do Derrida-ou-desce. A partir de então, passa a ser proibido pensar, e os franceses vão ocupar-se da perfumaria intelectual que eles andam espalhando pelo mundo. Eles levam o relativismo a um ponto tal que só mesmo rindo, mas quando se percebem os resultados de tudo isso, vê-se que não é nem um pouco engraçado.

Ao longo destes cem anos, pois, o mundo foi concordando com o papa Pio X, foi ilustrando a Pascendi. Como não lhe agrada nada concordar com ela – só faltava agora concordar com um papa! -, propõe-se inventar outra moda, outra deformação. O mundo-como-Idéia faz das tripas coração para não concordar com a Igreja, que afinal é coisa de velha e que ninguém mais quer.

O grande esforço não é tanto definir o mundo-como-Idéia, porque pode ser mil coisas, mas saber qual é o processo que faz com que uma pessoa prefira aquilo que projeta em lugar daquilo que é chamado a observar. Qual foi esse caminho dentro da vida intelectual do século XX, como chegamos ao grau zero da casca de banana, como se deu esse Derrida-ou-desce.

Esse processo não dificulta apenas o presente, mas abole o passado. Se você define um futuro que vê como ideal e para o qual quer tender, isso vai tornar o seu presente muito complicado porque, para chegar até lá, precisará lidar com todas as confusões do dia de hoje que não se ajustam a essa idéia de futuro que criou. Por isso, o seu presente será muito conflituoso; no entanto, conseguimos viver em meio a conflitos, é próprio do ser humano enfrentar os paradoxos do dia-a-dia.

O pior não é que essa idéia o impede de viver as coisas como são, mas que o obriga a destruir o seu passado. Para poder manter essa visão de presente que você anuncia em nome do futuro, tudo o que foi precisa tornar-se suspeito. Passa a ser sua missão destruir as possibilidades de contar com esse passado como ajuda. Ora, todos nós temos um passado, uma memória, alguma coisa de que nos lembramos muito bem; um tesouro qualquer de que não queremos abrir mão com tanta facilidade. Mas será necessário jogar tudo isso fora para ter um presente “limpo” em nome do futuro, ou da idéia de um futuro que vem por aí.

Você joga fora o passado e passa a viver num presente que é um deserto, em nome dessa idéia de futuro que, quase com certeza, não chegará nunca. E essa promessa que você tem é uma coisa extremamente adaptável: pode chamá-la de niilismo ou do que quiser, mas o fato é que ela trará consigo um ódio a tudo o que existe. “Ah, mas isso são velharias”, “Ah, mas isso é de ontem”, “Ah, mas isso não se usa mais”, é o que mais se ouve hoje em dia. Esse drama é o que eu chamo o mundo-como-Idéia: você não pode mais ter um presente, um passado e um futuro, só pode ter aquilo que fizer agora: é uma idolatria, é uma apostasia e é uma pirraça com a vida.

O homem vai-se tornando assim um autômato, uma máquina, e a sua vida passa a não ter sentido nenhum. Como disse, essa postura vai aparecer na filosofia, na literatura, na legislação e em praticamente todos os aspectos. O que papa Pio X nos advertiu foi exatamente disso, dessa urgência de não ter um passado, dessa vontade humana de criar alguma coisa de tão novo que não viesse de canto nenhum. Não é muito diferente do que se vem conseguindo com a promessa de que os embriões nos vão curar de tudo, os embriões que não vão mais nascer estarão aí para garantir nosso futuro. Essa espécie de pesadelo não estaria aí sem a proposição do mundo-como-Idéia, de alguma coisa melhor que você pode conseguir jogando fora tudo o que tinha.

Com isso, convido-os a preparar as suas dúvidas. Ter dúvidas significa ter um passado. Não tenham tantas certezas assim, perguntem-se se aquilo que lhes é vendido hoje como a verdade realmente vem de alguma coisa, se aquilo tem raízes dentro do seu modo de imaginar. Se conseguirem fazer isso, valerá muito mais a pena que qualquer outra coisa.

Cada um deverá perguntar-se, ter um passado de que não se lembra mais muito bem, que não sabe muito bem como julgar, de que não sabe com clareza que valor tem para si; mas algum valor tem, e você não deve querer trocá-lo por coisa alguma. Se vocês não fizerem isto, ficarão apenas ouvindo este velhote cacarejar feito uma galinha choca e não vão perceber que essa liberdade está dentro de vocês, de cada um. E essa liberdade passa pela defesa encarniçada daquilo que vocês já têm, e que não pode ser trocado por nada que lhes seja prometido para amanhã. Troquemos as nossas certezas por diversas perplexidades, e aí nós vamos, quem sabe, nos entender.

Quem esteve presente nessas aulas do Bruno, lembra-se do esforço hercúleo que fez para pronunciar as palavras. Doze horas depois da última palestra, foi internado com uma grave crise hepática; ainda viria a recuperar completamente a consciência e a ter perto de si as pessoas que lhe eram próximas, mas já não saiu do hospital até a manhã do dia 27 de junho, quando faleceu.

Bruno Tolentino (1940-2007) publicou As Horas de Katharina (prêmio Jabuti 1995), A balada do cárcere (prêmio Cruz de Souza 1996 e Abgar Renault 1997),O mundo como Idéia (prêmio Jabuti 2003) e A imitação do amanhecer (prêmio Jabuti 2007).

Guilherme Malzoni Rabello é Engenheiro Naval pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Presidente do IFE.

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NOTAS:

[1]Classicamente, entende-se a santidade como a plenitude do ser, do ser-homem (n. do e.).

[2]No final da vida, em 1273, depois de uma experiência mística cujos detalhes nunca revelou, Tomás de Aquino quis queimar todos os seus escritos. Foi impedido de fazê-lo pelo secretário, frei Reginaldo, que lhe perguntou o porquê daquilo. A resposta de Tomás foi: “Não posso mais. Tudo o que escrevi me parece palha perto do que vi” (n. do e.).

[3] Poemas 128-142 de As horas de Katharina (São Paulo: Cia. das Letras, 1994);  o poema O segredo encerra a série (n. do e.).

[4] O Mundo como Idéia (São Paulo: Globo, 2002); A Imitação do Amanhecer(São Paulo: Globo, 2006).

[5]“Denn das Schöne ist nichts / als des Schrecklichen Anfang, den wir noch grade ertragen, / und wir bewundern es so, weil es gelassen verschmäht, / uns zu zerstören. Ein jeder Engel ist schrecklich” (Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno, “Primeira Elegia”; n. do e.).

[6] “A imitação da música”, em O mundo como Idéia, I.

[7]Publicado no Brasil como A traição dos intelectuais, trad. Paulo Neves (São Paulo: 2007, Ed. Peixoto Neto).

Texto originalmente publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, nº 1, Jun/2008.

Alberto Da Veiga Guignard – O Poeta Das Tintas

Artes | 18/08/2014 | | IFE CAMPINAS

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Fonte: http://www.pinturasemtela.com.br/alberto-da-veiga-guignard-pintor-brasileiro/

 

Alberto da Veiga Guignard, carioca de nascimento, viveu os anos mais importantes e produtivos de sua vida em Belo Horizonte, MG, com contínuas viagens às cidades históricas deste Estado. Foi mestre de importantes nomes da arte moderna brasileira como Iberê Camargo, Lygia Clark, Amilcar de Castro, Farnese de Andrade e outros.

Relevantes foram os fatores e acontecimentos que envolveram a permanência do artista na Capital e cidades históricas mineiras, para uma melhor e mais profunda compreensão da grandeza e singularidade de sua obra como um todo, mas especialmente no que tange à sua temática paisagística e religiosa. Entretanto, para além da experiência com o barroco mineiro, a obra de Guignard sofre viva influência dos anos de estudo na Europa em que pôde ver de perto tanto grandes obras clássicas como as modernas: da perspectiva de Da Vinci às “distorções” do Expressionismo Alemão de Munch.

Infelizmente, como acontece em tantas e tantas vezes, a obra deste excepcional artista só tem sido devidamente reconhecida nos últimos 25 anos. Mesmo artistas e críticos de seu tempo demoraram em degluti-lo e aceitar o caráter verdadeiramente moderno de sua obra, simplesmente por se fecharem em seus esquemas ideológico-valorativos parciais, não admitindo que outros modos criativos, outras formas e idéias pudessem caber no que “eles” haviam determinado e proclamado como “moderno no Brasil” – refiro-me especificamente aos chamados artistas, críticos e literários modernistas – logo “eles” que insistiram tanto em “libertar” as artes brasileiras das amarras formais dos  “modos parnasianos”: armaram outra “armadura” para quebrar a antiga…!

Um comentário de Marcos Rodrigues Aulicino em sua tese de doutorado utilizando-se de uma citação de Amilcar de Castro exemplifica e fundamenta a minha “crítica” da crítica moderna assim arriscada:

“Muitas vezes esta elaboração espacial de Guignard foi identificada com a autonomia da linguagem plástica alcançada pelo pintor, questão esta que problematizamos ao discutir a crítica dos anos 80 e 90 e a construção de um lugar “à margem” do modernismo oficial, reservada a este pintor, legitimando-o como verdadeiramente moderno, pois distante das filiações literárias. Em tal leitura algo da pintura de Guignard se perde, algo que está num conluio com a imaginação poética. Discutiremos nas paisagens “imaginantes” outras categorias interpretativas. ‘Olhar e ver a dança das cores  ritmo do mundo. Cor é emoção e pensamento descoberta e procura  certeza e espanto  fundamento e caminho.  E caminhar com as cores é testemunhar com o silêncio da luz. Cor não existe uma.  E muitas  quanto uma sustenta a outra  todas solidárias tramam intrigam  comprometem o tempo e o espaço no lugar  onde a beleza acabou de nascer verdade. E assim esse pintor poeta fundou.Ouro Preto em cor.  Grande Mestre (CASTRO, 1992, p.22-23).”

 A história deste grande artista foi permeada do início ao fim por tristes intervenções humanas que, qual tintas sombrias numa paisagem luminosa de verão, vão dando relevo e profundidade ao grande quadro que foi sua própria vida. Assim, se por um lado a vida imita a arte, não deixa de ser também verdade que a arte, mais do que a “imitação” da vida, é o fenômeno da sua recriação ou releitura pelo artista.

Por este prisma entendo estas mesmas tristes circunstâncias que a liberdade mal administrada de outros homens provocou na história de Guignard, como fatores decisivos para o seu amadurecimento pessoal e artístico – assim como o de sua obra como um todo – cunhando em sua personalidade – como também em sua obra – um caráter teimosamente autêntico e livre que em última instância fizeram dele o gênio incomparável, inovador e singularíssimo que foi.  Por outro lado, ainda, graças a este mergulho estilístico independente possibilitado por seu modo sereno e forte de enfrentar as contínuas adversidades,  é que sua obra, de tão singular que é, passa a ser também universal.

Guignard começou seu namoro com Minas bem antes de sua mudança para Belo Horizonte, conforme comenta Marcos Rodrigues Aulicino em sua tese de doutorado:

“Viajou para Minas Gerais em 1941, perfazendo o circuito modernista pelas cidades históricas, além de Paraná, interior do Rio de Janeiro e São Paulo, atendendo aos objetivos do prêmio. Em 39 já havia ido para Sabará e Ouro Preto, registrando uma série de paisagens da arquitetura colonial e o seu entorno. (AULICINO; Marcos Rodrigues, “O próximo distante, o distante próximo”, CAMPINAS, UNICAMP – IFCH – 2007)”.

Com a Exposição Moderna de 1944, talvez, pela primeira vez a produção de Belo Horizonte tenha conseguido alguma visibilidade fora das fronteiras de Minas Gerais. A partir deste momento  e principalmente nos governos municipais seguintes ao de Juscelino, Guignard passou a ser implacavelmente perseguido por seus opositores, liderados pelo arquiteto e desenhista Aníbal de Mattos, acadêmico, bem como pelos dois sucessores de Juscelino na prefeitura de Belo Horizonte, cujas visões e tendências em termos de apoio às artes eram também acadêmicas e tradicionalistas.  Quem relata com detalhes este período é o jornalista e escritor Frederico Morais, em seu livro Alberto da Veiga Guignard (Editora Monteiro Soares Editores e Livreiros,1979).

Carlos Zílio foi aluno do artista Iberê Camargo e hoje é artista plástico, pesquisador e crítico.  É pesquisador e estudioso da obra de Guignard, sob o foco de sua inserção no contexto da arte moderna como um todo, sem perder de vista as suas próprias especificidades técnicas e criativas, levando em conta as especificidades do ambiente intelectual e artístico da Capital Mineira, no qual estava profundamente imerso nos seus últmos 18 anos. Zílio afirma que o mais importante da obra de Guignard está na diluição da figura e do fundo provocando uma dissolução do espaço formal e das pessoas retratadas em seus quadros. Este autor está mais preocupado com as questões estéticas e territorializadas da arte em Guignard, do que, propriamente em questões de caráter biográfico.  Assim sendo nos oferece uma análise mais aprofundada de sua obra paisagística partindo do ponto de vista estético e sígnico no contexto da arte moderna brasileira.

Considerando-se que, do ponto de vista da sociologia, a arte é um sistema de comunicação inter-humana (ARAGÃO, Solange; Comunicante-comunicado-comunicando: método de estudo de obras de arte; II Encontro de História da Arte, IFCH-Unicamp, 27 a 29 de Março de 2006, Campinas, SP), artista, obra e público devem ser levados em conta e inter-relacionados entre si quando o objeto de estudo é qualquer um desses três elementos.

A história da Arte tem por premissa a importância de se transmitir e conservar a memória dos fenômenos artísticos com seus sujeitos e objetos, situando-os no contexto da civilização. Portanto, em seus estudos e investigações, interessa sobremodo o valor de um objeto artístico, não medido em cifras monetárias, mas enquanto objeto de significação e representação, que faz dele produto e mensagem ao mesmo tempo, remetendo-o diretamente à  sua origem e destino: o artista, espelho e síntese do homem de seu tempo. Interessa o valor do objeto artístico enquanto vestígio e reflexo do homem enquanto ser singular e universal que é; o homem histórico e antropológico.

Neste sentido a obra de Guignard, ainda tão pouco explorada por nossas instituições artísticas e educacionais, pode oferecer um novo prisma no que tange a uma identidade genuinamente brasileira (ainda que diversa e não excludente em relação a tantas outras manifestações artísticas nacionais) no painel artístico pictórico moderno nacional. Esta identidade, retratada nas imagens que reúnem o povo, as festas, a religiosidade e a paisagem montanhosa típica das regiões históricas de Minas, tem hoje o poder de lançar o “contemplador” num estado de aspiração ou desejo de um tempo-espaço que partindo daquele experimentado em tais lugares (Minas histórica/ Minas montanhosa) o transcende, à medida que se reconstrói idealmente na sua imaginação poética.

Mas… que importância teve Guignard  para o seu tempo? Que importância tem para o nosso, bem como às gerações futuras do nosso Brasil culturalmente despedaçado? Guignard tem para o homem de todos os tempos e especialmente para o homem brasileiro, a importância da direção para onde aponta o seu olhar contemplativo: o desejo do ser humano de plenitude, de harmonia com o meio, de felicidade; a importância da integração harmoniosa entre homem e paisagem, homem e contexto histórico social, homem e espiritualidade.

Por Iura Breyner Botelho – Pós graduação em História das Artes – Crítica e Teoria – FPA – Faculdade Paulista de Artes – 2012. Iura Breyner Botelho é colaboradora do IFE Campinas.