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Tire esse seu piercing do caminho que eu quero passar com a minha dor – por Iura Breyner

Artes | 15/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Foto: Användare:Zelina (Wikimedia Commons)

Foto: Användare:Zelina (Wikimedia Commons)

 

Hoje, não por acaso, escutei a canção “Piercing” de Zeca Baleiro, uma reflexão profunda sobre a vida contemporânea e seus contrastes. A letra começa assim:

“Quando o homem inventou a roda, logo Deus inventou o freio. Um dia, um feio inventou a moda… e toda a roda amou o feio.” – uma provável alusão à inteligência humana, a uma ampliação sempre crescente dos limites de sua liberdade e a conseqüente imprevisibilidade que, por assim dizer, obriga Deus a pôr freio, como forma indireta de controle, ou moderação.  Na continuação, faz referência a “um feio” – indivíduo ou grupo humano – fora do padrão, que, por sua vez despadroniza por contágio a outros indivíduos e ambientes que em algum momento e por razões diversas incorporam ou padronizam o que antes era considerado “contra-padrão”.

Lembrei-me por um instante de como alguns movimentos sócio-políticos de caráter contestatório como o “Hippie e o “Punk[1], surgidos nos EUA e Europa entre os anos 70 e 80, foram rapidamente absorvidos pelas mídias dos grandes centros urbanos dos cinco Continentes, transformando-se em modas febris e passageiras que desfiguraram total ou parcialmente a mensagem-mãe daqueles movimentos. Pensei mesmo nas mais importantes invenções e descobertas do homem, como por exemplo, a roda e o domínio do fogo com seu efeito-dominó, cuja última peça não seja outra que não aquela em que O Próprio Deus resolva pôr – quando queira – o Seu Divino Dedo.

Pergunto-me se a questão seria mesmo a da incontrolável inteligência humana e não a da sua inata liberdade, pela qual cada geração e cada indivíduo tem o poder e a responsabilidade de deliberar seu rumo histórico.  Neste caso, de modo algum teria sido Deus a inventar o freio, mas o próprio Homem, sujeito ativo e passivo de seu  livre arbítrio, como único ser na natureza com capacidade de domínio e controle sobre os demais seres e os de sua própria espécie.

Voltemos à letra da música; desta vez ao refrão que a intitula: “tire o seu piercing do caminho, que eu quero passar, quero passar com a minha dor!”. Demos um salto na história  e nos contextualizamos na chamada pós-modernidade; o período cultural urbano do “pós-guerra”, ou da guerra e da morte institucionalizadas nas culturas urbanas do nosso mundo.

A letra faz referência à velha canção de Nelson Cavaquinho – “Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor…” – a referência na letra é sublinhada pela melódica; uma espécie de “colagem musical” em que uma voz chorada e abafada canta ao fundo a segunda parte do trecho original como resposta à provocação recriada da primeira. Agora já não é mais o sorriso ferino da amada, alheio e até talvez sarcástico ante a dor do poeta desprezado, mas o “piercing” – signo da provocação “punk” à sociedade cuja característica mais marcante é o horror à dor manifestado na hipervalorização do conforto e do prazer e na hipócrita negação da própria realidade com suas imperfeições e cicatrizes indisfarçáveis. Signo desgastado e esvaziado de significação pelo uso excessivo, repetitivo e indiscriminado por esta mesma sociedade que o incorpora, como no evento inicialmente descrito, transformando-o em moda vazia.

O piercing, deslocado de seu contexto inicial e esvaziado de sentido numa sociedade “fast food” deixa de apontar-lhe ironicamente o dedo indicador para trazê-la cuidadosamente no anelar esquerdo. Sim; casou-se com ela e de agora em diante a representa em lugar de acusá-la. É precisamente a este piercing – traidor, representante de uma colorida e atraente bolha de plástico à vácuo – que o poeta Zeca Baleiro impetra que lhe seja tirado da frente para que siga adiante com a sua dor.

E o que é precisamente, esta “dor” do poeta? Voltemos à letra: 

“Pra elevar minhas idéias não preciso de incenso
Eu existo porque penso
tenso, por isso existo
São sete as chagas de cristo
São muitos os meus pecados
Satanás condecorado
na tv
tem um programa
Nunca mais a velha chama
Nunca mais o céu do lado
Disneylândia eldorado
Vamos nós dançar na lama

Bye bye adeus Gene Kelly
Como santo me revele
como sinto como passo
Carne viva atrás da pele

aqui vive-se à míngua
Não tenho papas na língua
Não trago padres na alma
Minha pátria é minha íngua
Me conheço como a palma
da platéia calorosa

Eu vi o calo na rosa
eu vi a ferida aberta

Eu tenho a palavra certa
pra doutor não reclamar
Mas a minha mente boquiaberta
Precisa mesmo deserta
Aprender aprender a soletrar

Tire o seu piercing do caminho,
Que eu quero passar, quero passar com a minha dor…”

Em que pode consistir a dor de um poeta? A sua dor é a dor da vida; a dor do mundo que grande parte do mundo não sente; a dor de um homem com o pé na terra e o desejo no infinito; um homem inteiramente sozinho no sentir e sorver o paradoxo e o mistério da própria existência. A muitos outros homens, a máquina do “panis et circencis” mundial consegue acalmar com suas belas promessas de fogos de artifício, mas não a uma alma de poeta. Ela passa por entre as mesas e os espetáculos que aos demais delicia – ela mesma tantas vezes pão e circo entre outros, para os outros – alimentando-se apenas das migalhas pobres do prazer alheio, qual peregrino no deserto em busca do Paraíso perdido.

A alma de um poeta passa, vê, aponta e vai-se embora mambembe. Pode até ficar no mesmo lugar anos a fio, mas não permanecem os mesmos, nem o poeta, nem os que por ele passam, nem o terreno à volta de seu passo. Adentrando as inóspitas terras de si mesmo, ele faz andar o mundo que o cerca. Neste passar por entre outros, a alma de um poeta deixa rastros de si mesma, de sua insatisfação com este mundo e também da direção para a qual seu caminhar – mesmo que incerto – aponta: a do Absoluto.

Por isso o passo de um poeta nunca passa despercebido e na maioria das vezes incomoda e muito. Os pesados homens do “não pense” atiram-se sobre ele; tentam comprá-lo, moldá-lo ou anulá-lo a todo custo: “a modernidade é uma matilha de cães raivosos e assustados…” diz a letra; e é assim mesmo. Uma alma de poeta conhece o vale por onde passa; sabe seus perigos e encantos, mas não se detém a considerar estes ou aqueles; leva em conta apenas a necessidade imperiosa do seguir em frente até a morte – cortina divisória entre o faz de conta e o real.

A alma do poeta não teme a morte – quase a deseja – mas teme sim o tornar-se zumbi – um morto-vivo – em seu próprio mundo. A alma de um poeta deseja atravessar as noites com os olhos, os ouvidos e a boca abertos; deseja olhar, ouvir e dizer. Despreza a palavra macia e falsificada – o falso “belo” dos homens políticos e da mídia comum – ; ama toda palavra, fonte de comunicação entre os homens de bem. Deixo Baleiro cantar:

Não me diga que me ama
Não me queira não me afague
Sentimento pegue e pague
emoção compre em tablete
Mastigue como chiclete
jogue fora na sarjeta
Compre um lote do futuro
cheque para trinta dias
Nosso plano de seguro
cobre a sua carência

Eu perdi o paraíso
mas ganhei inteligência
Demência, felicidade,
propriedade privada
Não se prive não se prove
Dont’t tell me peace and love
Tome logo um engov
pra curar sua ressaca
Da modernidade essa armadilha
Matilha de cães raivosos e assustados&
O presente não devolve o troco do passado
Sofrimento não é amargura
Tristeza não é pecado
Lugar de ser feliz não é supermercado
 

Tire o seu piercing do caminho…”

O que é a felicidade? – pergunta o autor – Em que consiste o ser feliz neste mundo? No conforto? Na ausência de dor? Na posse de uma série de bugigangas que dão status a quem as exibe? Quem sabe num certo grau de demência que faz o homem material e socialmente bem colocado no seu mundo ignorar quase por completo as sub-humanas condições em que vivem outros homens, tão dignos de felicidade quanto ele? Quem sabe, talvez então, não estaria a felicidade na supressão tecnológica e comportamental de toda privação ou provação, na construção artificial de uma espécie de sociedade perfeita na qual palavras como sofrimento, amargura e tristeza sejam definitivamente banidas como “ilegais, imorais ou engordativas”?

Entretanto, se não é possível extirpar da sociedade tais termos, por conta de uns tantos extra-terrestres humanóides que parecem vindos a este mundo só para incomodar com suas deficiências, pobreza e sofrimento, ao menos se pode empurrá-los para o mais longe possível da nossa convivência; seja jogando-os para as periferias de nossas cidades, seja pela construção de muralhas como meios de distinção e segurança para as nossas confortáveis e belas moradias. 

“O inferno é escuro
não tem água encanada
Não tem porta não tem muro
Não tem porteiro na entrada
E o céu será divino
confortável condomínio

Com anjos cantando hosanas
nas alturas nas alturas
Onde tudo é nobre
e tudo tem nome
Onde os cães só latem
Pra enxotar a fome
Todo mundo quer quer
Quer subir na vida
Se subir ladeira espere a descida
Se na hora “h” o elevador parar
No vigésimo quinto andar
e der aquele enguiço
Sempre vai haver uma escada de serviço
 

Tire o seu piercing do caminho
Que eu quero passar, Quero passar com a minha dor”
 

Haverá uma ponte possível entre estes dois universos paralelos da pobreza e da riqueza? O que se entende hoje por “caridade”? Dar presentes, roupas, ou comida ao pobre? Onde poríamos a linha que distingue estes dois termos – caridade e justiça?

Bento XVI afirmava magistralmente em sua Encíclica Spe Salvi, que a “Caridade chega onde a Justiça não alcança”. Não que a Justiça não possa ser perfeitamente cumprida neste mundo, o que em sentido estrito é bem verdade, mas não por isso. Ainda que uma sociedade possa alcançar um avançado grau de justiça legal e moral neste nosso mundo contemporâneo, haveria sempre nele a carência desta outra virtude, a da Caridade, que não consiste propriamente em dar o que nos sobra – quando não o que nos estorva mesmo – mas sim em dar-nos a nós mesmos até a última gota do coração com toda a sua capacidade de amar, de querer, de desculpar, perdoar e compreender. A Caridade – o Amor Fraterno – situa-se num nível ligeiramente superior ao da Justiça; anda lado a lado com ela e não a prescinde, mas situa-se em outro patamar moral, o da liberalidade.

Em tal patamar, não busca o homem tal virtude por si mesmo, mas para chegar ao outro. A Justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido. A Caridade consiste num abrir-se total e ilimitadamente ao outro, porque descobre nele a diversidade de dons e valores, ao mesmo tempo que a similaridade da espécie, que nos faz todos iguais em termos de valor e dignidade. A Justiça, como a Caridade e todas as demais virtudes, como tais, consistem em hábitos; predisposições da pessoa para o bem através da repetição de atos morais bons. A virtude, enquanto hábito adquirido e/ou por se adquirir, custa trabalho e persistência.

Todo mundo sabe tudo todo mundo fala”, diz a letra – fácil é falar… “Mas a língua do mudo ninguém quer estudá-la!” : uma claríssima referência à pouca ou nenhuma disposição natural das pessoas a moverem-se no sentido de verdadeiramente escutar; interessar-se sincera e retamente pelos outros. Pergunto-me a respeito deste verso, o quão disposta estaria eu – estaríamos nós – a dar espaço ao outro no meu pensamento e na minha vontade, de forma que o “eu” se ponha voluntariamente em segundo plano em favor do “outro”. Sim, é preciso estar disposta e treinar diariamente:Quem não quer suar camisa não carrega mala; revólver que ninguém usa não dispara bala.”

Tenho que aprender a me enxergar e enxergar o outro, pensando que a fraqueza dele é também a minha. Tenho que entender que todos somos passíveis de engano e erro. Tenho que sair da minha zona de conforto e aprender a me comunicar com aqueles que não são da minha rua ou que não pensam como eu. Tenho que aceitar ser uma estranha para o outro e sentar-me formalmente em sua “sala de visitas” para chegar à intimidade de seu quarto, onde só ele, além de Deus, sabe das dores e alegrias de se ser o que mais íntima e verdadeiramente se é.

“Pra chegar na minha cama tem que passar pela sala
Quem não sabe dá bandeira quem sabe; sabiá cala
Liga aí; porta-bandeira não é mestre-sala
E não se fala mais nisso!
– Mas nisso não se fala!
E não se fala mais nisso

Mas nisso não se fala

Tire este seu piercing do caminho que eu quero passar,
Quero passar com a minha dor!”

NOTAS:

[1] O Movimento hippie surgiu nos EUA nos anos 70, questionando a utilização de homens jovens como “bucha de canhão” pelo Estado em seus jogos de guerra, bem como a hipervalorização das regras morais da sociedade, não na sua essência, mas apenas no seu aspecto formal, e o segundo a exaltação da frivolidade e do luxo da sociedade de consumo ocidental capitalista dos anos 80, especialmente pelas mídias televisivas e cinema americano desta época.

Por Iura Breyner Botelho, especialista em História da Arte e Crítica de Arte.