Arquivo da tag: Alberto da Veiga Guignard

image_pdfimage_print

São João: Traços do barroco em Guignard – por Iura Breyner Botelho

Artes | 19/09/2014 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print
SãoJoão-Guignard

São João, de Guignard : óleo sobre tela – 1961

 

por Iura Breyner Botelho

São João é uma obra do pintor carioca Alberto da Veiga Guignard, nascido em Niterói/RJ em 1896 e falecido em Belo Horizonte/MG em 1962.  Sua temática gira em torno de uma paisagem imaginária inspirada na geografia montanhosa da Minas Gerais Histórica, com suas igrejas barrocas, morros, cachoeiras, neblinas, caminhos de terra, carros de boi, dias e noites de festejos populares e rezas, elementos estes que foram fonte de inspiração e encantamento para o artista e sua obra nos seus últimos dezessete anos de vida. Trata-se de uma tela de 49,5 por 39,9 cm, pintada a óleo em 1961, um pouco menos de um ano antes de seu falecimento em Belo Horizonte.

São João é uma obra vertical carregada de movimento em cada centímetro. Sua harmonia se dá pelo equilíbrio das direções espaciais para as quais as figuras apontam; ora para cima e para direita; ora para baixo e para esquerda, com algumas variantes contrárias de direções alternadas de forma que se tem a impressão de uma cascata ou escada em ziguezague, conforme o olhar é puxado predominantemente para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo.

Esta impressão de “deslocamento” do centro ótico da obra e a conseqüente assimetria observada nas disposições e relações de proporção entre as figuras pode nos remeter às influências do valores estéticos e espaciais do período barroco, em que esta perspectiva descentrada é predominante. Assim, pretende-se nesta análise sobre a obra, investigar a figura da elipse barroca e seus desdobramentos sob dois aspectos: o figurativo e o espacial. O primeiro refere-se às relações entre as figuras; o segundo ao espaço e a forma como é construído na obra.

***

INTRODUÇÃO

São muitas e variadas as temáticas da obra de Guignard; retratos, paisagens reais, paisagens imaginárias, figurativas, botânicas, religiosas e histórico-imaginárias. Dentre elas a paisagístico-imaginária “São João” de 1961 foi escolhida como alvo desta análise, por conta de alguns fatores que talvez nos possam levar mais diretamente a pensar em termos de uma estética barroca como prelúdio das diversas estéticas posteriores, chamadas modernas, inclusive e especialmente no Brasil (DE SANT’ANNA, 2000).  Em primeiro lugar, pelo deslocamento do centro ótico do quadro, pela descentralização de algumas figuras, como a lua pálida no quadrante superior esquerdo, montanhas e nuvens em ziguezague de ambos os lados e na parte superior, assim como a assimetria das figuras como balões, ajuntamentos de povo, caminhos, morros, igrejas, túneis, ponte e rio. Depois, o aparente contraste nas proporções relativas entre as figuras:  igrejas quase no mesmo tamanho das montanhas; ajuntamentos de povo em festejo próximo a  palmeiras de copas muitas vezes menores que os balões em sobe e desce… Por fim, o contraste na intensidade das cores que se alternam entre o colorido vivíssimo dos balões queimando ou de alguns dos pontinhos populares, das palmeiras e do mato em volta das igrejas, do riacho, do céu noturno em torno da lua e os tons pastéis esbranquiçados mediando uma figura e outra.

Guignard era carioca de nascimento, viveu a sua primeira juventude estudando em Escolas de Belas Artes na Suíça e na Itália, tendo voltado ao Brasil após os falecimentos consecutivos de sua mãe e a única irmã, fixando residência na então Capital do país, a cidade do Rio de Janeiro.  Partiu em direção a Minas a pedido do então Governador do Estado, Juscelino Kubitschek, no intento de fundar a primeira instituição educacional voltada para as artes plásticas de Minas, a Escola Municipal de Belas Artes de Belo Horizonte, implantando ao mesmo tempo a primeira Exposição de Arte Moderna na capital mineira naquele ano.

Viveu Guignard naquela região nos dezessete anos subsequentes, tirando dali inspiração para uma variada série de obras de cunho paisagístico, entre rascunhos, desenhos, pinturas a óleo sobre tela ou sobre madeira, bem como desenhos e pinturas retratando pessoas com quem conviveu ou encontrou esporadicamente.

Da obra paisagística de Guignard, no quesito referente às questões estéticas e mais específicas, fala o artista plástico, pesquisador e crítico Carlos Zílio, herdeiro da linha estética do pintor por parte de Iberê Camargo. Zílio afirma que o mais importante da obra de Guignard está na diluição da figura e do fundo provocando uma dissolução do espaço formal e das pessoas retratadas em seus quadros (Zílio, 1982).  Este aspecto, se analisado pelo ponto de vista estilístico, não deixa de lembrar a questão do deslocamento da perspectiva tão característico na arte barroca que influenciou toda a concepção da arte moderna e contemporânea.

Guignard, sem deixar de ser um artista de seu tempo e dono de uma técnica inconteste, não ficou indiferente ao estilo barroco que impregnava (ontem como hoje e sempre) a cultura e as construções mineiras, as quais se adequam à paisagem como roupa feita sob medida. De formação clássica, mas com uma vivência profunda e pessoal dos movimentos modernos da arte europeia dos anos em que lá estudou, adquiriu e aprimorou um estilo próprio e inconfundível em seus desenhos, traçados e pinturas, que desde o início de seu restabelecimento no Brasil no ano de 1929 o tornaram conhecido e invejado no meio artístico e acadêmico.

SÃO JOÃO – 1961

“Movimento é, por assim dizer, arquitetura viva – viva no sentido de troca de localizações e assim como de troca de coesão. Esta arquitetura é criada pelos movimentos humanos e é constituída por trajetórias que traçam formas no espaço. Uma construção só pode se manter se suas partes tiverem uma proporção, a qual é fornecida por um certo equilíbrio do material do qual ela é construída.

Arquiteturas de sonhos podem negligenciar as leis do equilíbrio. Do mesmo modo, acontece com os movimentos de sonhos, mesmo assim, um fundamental senso de equilíbrio sempre permanecerá conosco, mesmo nas mais fantásticas aberrações da realidade  (LABAN, 1966, p. 5).”

São João é uma obra de pintura em óleo sobre tela de 49,5 x 39,9 cm cuja temática gira em torno de uma paisagem imaginária inspirada na região montanhosa de Minas, com suas cidades históricas, igrejas barrocas e festejos populares.

O quadro é vertical e carregado de movimento em cada centímetro. Sua harmonia se dá pelo equilíbrio das direções espaciais para as quais as figuras apontam; ora para cima e para direita; ora para baixo e para esquerda, com algumas variantes contrárias de direções alternadas de forma que se tem a impressão de uma cascata ou escada em ziguezague, conforme o olhar é puxado predominantemente para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo.

Suas cores: azul marinho e celeste (céu e rio); cinza rosáceo, laranja – ocre; amarelo; branco, tons cromados entre o marrom e cinza, verde bandeira (copas das árvores e palmeiras, bandeirinhas) e branco (igrejinhas, ponte, fumaça do trem, nuvens e lua). As figuras são variadíssimas mas estão compostas de maneira a relacionarem-se umas com as outras harmoniosamente, tendo como ponto comum as direções de onde procedem ou para onde apontam.

O plano, à primeira vista, parece chapado, como se todas as figuras se dispusessem igualmente no espaço sem a predominância que uma perspectiva geométrica clássica proporciona a umas figuras sobre as outras, mas isso é apenas uma ilusão. Se se observa com um pouco mais de atenção a obra, percebe-se em primeiro lugar uma significativa diferença de tamanho e proporção entre os homenzinhos e as igrejas, entre os trenzinhos e o “carro de boi” (à direita do trem), entre estes e as vias sobre as quais se apóiam – no caso o viaduto e a estrada de terra –, bem como entre as árvores, os rios, as montanhas e as nuvens e o céu.

Depois se nota também uma sutil gradação de proporções entre os picos dos morros e montanhas onde se fincam as igrejas, figuras estas que conduzem mais facilmente o nosso olhar para este movimento de ziguezague do canto inferior esquerdo para o superior direito, de modo que vão nos parecendo mais e mais distanciados à medida que “sobem” no espaço da tela.

Depois disso tudo os olhos já têm condições de perceber o jogo de perspectiva do quadro, que não se compõe com um único ponto de fuga em seu centro material, mas sim com vários, que se dispõem e se relacionam entre si como  elementos que sobem ou descem gradativamente em planos inclinados e alternados.

A Elipse e os valores estéticos barrocos

Sabe-se pela literatura crítica da obra de Guignard*[i] que esta ilusão de perspectiva dos planos inclinados em espiral foi inspirada primeiramente na perspectiva dos planos de fundo de alguns quadros renascentistas como o da Mona Lisa de Da Vinci e a Virgem das Rochas de Rafael. No entanto, a impressão de “deslocamento” do centro ótico da obra e a conseqüente assimetria observada na disposição e relações de proporção entre as figuras nos remete com mais força para as influências do valores estéticos e espaciais do período barroco.

Mas… que valores estéticos são estes? Para onde tais valores levaram os artistas de seu tempo e posteriores? Para onde levam o olhar do observador e do público?

Vejamos alguns artistas e suas obras, como Bernini, Borromini, delia Porta, Caravaggio e Dürer.  Estará o elemento “elipse” presente em todas e em cada uma das respectivas obras? Em Bernini a elipse é explícita, especialmente quando se pensa, por exemplo, nas colunas do Baldaquino da Catedral de São Pedro, mas também está, de maneira mais detalhada e menos escancarada no “êxtase de Santa Thereza”. Também encontramos a elipse “escancarada” na escada de Borromini e na Igreja “Il Gesú”, de Giacomo delia Porta, com suas volutas. Obras como “O Narciso” e “A deposição no túmulo” de Caravaggio sugerem uma perspectiva elíptica, para que se possa contemplar as figuras de um ponto de vista de quem olha de frente para elas. “O Rinoceronte”, obra de Dürer, está crivado de imagens elípticas, dando lhe uma aparência tridimensional e muito mais realista do que as figuras até então conhecidas sobre estas e outras espécies de animais selvagens ou exóticos.

As obras barrocas, tanto as européias quanto as brasileiras, estão carregadas do cientificismo racionalista da época. Esta questão levada ao campo dos estudos da perspectiva abriu uma gama de novos horizontes nas técnicas de desenho e pintura de então, que seriam por sua vez as ferramentas mais importantes para a construção de uma maneira realista de se fazer e de se ver o mundo representado nas obras de arte. Se num primeiro momento – na Itália e em outros países europeus – se formou um sentimento de repulsa por este tipo de ótica, por não corresponderem seus elementos com os ideais clássicos de proporção, equilíbrio e harmonia na representação, num momento seguinte elas constituem já o centro e a referência do fazer artístico em toda a Europa, ainda que de modos e estilos que variavam muito de país para país, de região para região.

Portanto, faziam parte da estética barroca e de todos os seus paradigmas, o realismo na representação, conquistado através de um deslocamento da perspectiva do centro físico do quadro para o centro “virtual”, isto é, “dramático-fictício” da obra. Além disso esta estética nova busca nas suas obras não só a aparência de equilíbrio pelo movimento, mas o movimento mesmo, que se equilibra pela oposição de seus vetores básicos.

Transportando este ideal para suas paisagens, também o Mestre Guignard conseguiu uma dupla e ao mesmo tempo dual impressão de realismo e fantasia em suas paisagens, à medida que, mantendo as proporções entre povoado e igrejas, estas e as montanhas, estas últimas e as nuvens, deixou a impressão de alguém que via tudo isso como que de uma janela de avião num horizonte distante e paralelo. Mais uma vez se manifesta uma característica barroca na obra de Guignard: a unidade dual; a ambigüidade revelada nas proporções entre os elementos de composição que dialogam entre si através destas pontes elípticas invisíveis que são as direções no espaço para as quais cada elemento aponta.

O Jogo Elíptico na forma e na composição espacial entre as figuras

As figuras, por si só, já sugerem movimento: o trenzinho Maria-fumaça na ponte, a cachoeira e o riacho, os balõezinhos subindo e descendo, as nuvens no céu e entre as montanhas, as bandeirinhas nos mastros, o carro de boi na estrada de terra (em baixo, à esquerda) e os ajuntamentos populares. As igrejinhas, os picos, montanhas e neblinas ao longe sugerem, por sua vez, um movimento mais sutil: o do observador, que parece contemplar a paisagem num momento durante um vôo distante. Além disso, se observarmos as disposições das figuras e as direções por elas apontadas ou das quais indicam a procedência, encontraremos um sem número de formas elípticas que as relaciona e interliga por todo o quadro.

A cachoeira e o riacho não correm, como se pode ver, em linhas retas (não seria natural, é claro); os balõezinhos não caem perpendicularmente, mas de forma oblíqua. Os rastros de fogo e fumaça por eles deixados desenham pequenas elipses rasgando a paisagem. Assim também, os ajuntamentos populares perfazem desenhos sinuosos e espiralados, dando a impressão de um contínuo movimento de ir e vir pelos caminhos e largos que cortam os morros em direção às igrejas. Também os morros e montanhas perfazem um movimento de subida em espiral e as nuvens e neblinas ora os recobrem, ora os revelam,  num incessante subir e descer em volta dos picos. Também os arcos da pequena ponte sob o trenzinho sugerem movimentos elípticos interrompidos nas suas bases sob a terra ou o rio.

Também no jogo de luzes e sombras – claros e escuros, bem como suas gradações – se revela a presença do elemento elíptico. Assim, a fumaça, a ponte iluminada, as bases escuras de terra que sustentam as igrejas bem como as nuvens que recobrem os montes, tudo vai também  se alternando na composição de claro-escuro, de forma perfeitamente harmônica, porém irregular.

A obra não é somente construída a partir de movimentos, mas também gera um movimento, porquanto praticamente obriga o observador a um “passeio sinuoso e pouco ordenado” pela paisagem.

Todos estes elementos dispostos como estão e inter-relacionados nesta obra conferem-lhe um poderoso sentido de unidade e harmonia, ao mesmo tempo em que revelam o seu caráter tri-dimensional.  A ponte, o riacho, os caminhos espiralados, os carros de boi em contraposição ao trenzinho passando sobre a ponte; assim como as igrejas, os festejos, os balões subindo e descendo, as nuvens e os picos semi-recobertos de neblina e por fim a própria lua que por hora aparece entre as nuvens – todas estas figuras – destacam-se e parecem “saltar” da tela, sem no entanto, saírem do lugar por um momento sequer. O que significa tudo isto?

Considerações finais

Isto significa que a realidade pode se apresentar ante os olhos do observador de formas diversíssimas: muitas vezes sob a aparência de uma combinação simétrica entre as figuras e os espaços que as circundam; muitas outras, escondida discretamente sob o véu de uma paisagem distorcida e assimétrica, onde os elementos fictícios, os representativos e realísticos se combinam e alternam de maneira absolutamente harmônica e equilibrada. Esta é uma idéia mestra dentro de todos os movimentos intelectuais e artísticos ou científicos da chamada Modernidade, desde a invenção da Imprensa até o final da Segunda Grande Guerra, mas também depois e até hoje.

As figuras e as linhas espiraladas conferem esta unidade à obra ao mesmo tempo em que fazem com que através de figuras ou paisagens fictícias ou mesmo abstratas, nos deparemos como num espelho diante da realidade que nos cerca. Não seria o ponto em comum entre as obras de ­­­­Caravaggio, Velasquez, Seurat, Van Gogh, Courbet, Mondrian, Picasso, Pollock, Much, Klimt, Dali e mesmo Duchamp?

É por isso que tantas vezes tem-se a impressão de se poder penetrar na obra, como um personagem a mais, ou de que a obra mesma interfere direta ou indiretamente na realidade que nos circunda, quando não em nós mesmos. Mesmo o belo na obra de arte tem sempre algo em si que incomoda e fere, talvez por ser maior que o próprio artista, que o observador, que o próprio homem: algo que o transcende e de certa forma o desnuda revelando-o na sua real proporção em relação ao Universo e aos outros homens. O nome deste processo de identificação que fere e cura ao mesmo tempo é CATARSE[ii].

SãoJoão_e_Guignard

 2 – Mídia de exposição do artista – http://cubobranco-br.blogspot.com.br/2005/12/o-brasil-na-viso-de-guignard.html

 BIBLIOGRAFIA­

ANDRADE; Rodrigo Vivas.  Os salões municipais de belas artes e emergência da arte contemporânea em Belo Horizonte: 1960-1969;  IFCH – UNICAMP; 2008;

Modernismo: Desdobramentos Marcos Históricos (Tese de doutorado): Universidade Estadual de Campinas, IFCH – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; Institucional; Instituto Cultural Itaú; São Paulo; 1993;

AULICINO; Marcos Rodrigues. O distante próximo, o próximo distante: a elaboração de um espaço imaginário nas paisagens de Guignard: (Tese de doutorado): UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas; Instituto de Artes; Campinas, SP: 2007;

De SANT’ANNA, Affonso Romano. Barroco: do quadrado à elipse: Editora Rocco, SP; 2000;

CAMARGO, Pierina e ESTEVES, Rosa (Institucional); Viajando com Guignard: Prefeitura Municipal de Campinas e MACC – Museu de Arte Contemporânea de Campinas: 2001.

VIEIRA, Ivone Luzia. A Escola Guignard na cultura modernista de Minas: 1944-1962:  Pedro Leopoldo: CESA, 1988;

ZÍLIO, Carlos; A Modernidade em Guignard: EPI Empresas Petróleo Ipiranga, s.d.,  PUC – RJ, Rio de Janeiro, 1982;

NOTAS

[i] (*) – VIEIRA, Ivone Luzia – 1988; AULICINO, Marcos Rodrigues – 2007.

[ii] (**) – http://www.dicio.com.br/catarse/ –  Catarse: designação comum de purgação ou purificação. Refere-se à libertação do que é estranho a natureza do sujeito.
Estética. Teatro. Num espetáculo trágico, refere-se ao desenvolvimento de uma espécie de purgação de alguns sentimentos do público (como pavor ou compaixão).

Alberto Da Veiga Guignard – O Poeta Das Tintas

Artes | 18/08/2014 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print
paisagem-de-sabara-alberto-da-veiga-guignard

Fonte: http://www.pinturasemtela.com.br/alberto-da-veiga-guignard-pintor-brasileiro/

 

Alberto da Veiga Guignard, carioca de nascimento, viveu os anos mais importantes e produtivos de sua vida em Belo Horizonte, MG, com contínuas viagens às cidades históricas deste Estado. Foi mestre de importantes nomes da arte moderna brasileira como Iberê Camargo, Lygia Clark, Amilcar de Castro, Farnese de Andrade e outros.

Relevantes foram os fatores e acontecimentos que envolveram a permanência do artista na Capital e cidades históricas mineiras, para uma melhor e mais profunda compreensão da grandeza e singularidade de sua obra como um todo, mas especialmente no que tange à sua temática paisagística e religiosa. Entretanto, para além da experiência com o barroco mineiro, a obra de Guignard sofre viva influência dos anos de estudo na Europa em que pôde ver de perto tanto grandes obras clássicas como as modernas: da perspectiva de Da Vinci às “distorções” do Expressionismo Alemão de Munch.

Infelizmente, como acontece em tantas e tantas vezes, a obra deste excepcional artista só tem sido devidamente reconhecida nos últimos 25 anos. Mesmo artistas e críticos de seu tempo demoraram em degluti-lo e aceitar o caráter verdadeiramente moderno de sua obra, simplesmente por se fecharem em seus esquemas ideológico-valorativos parciais, não admitindo que outros modos criativos, outras formas e idéias pudessem caber no que “eles” haviam determinado e proclamado como “moderno no Brasil” – refiro-me especificamente aos chamados artistas, críticos e literários modernistas – logo “eles” que insistiram tanto em “libertar” as artes brasileiras das amarras formais dos  “modos parnasianos”: armaram outra “armadura” para quebrar a antiga…!

Um comentário de Marcos Rodrigues Aulicino em sua tese de doutorado utilizando-se de uma citação de Amilcar de Castro exemplifica e fundamenta a minha “crítica” da crítica moderna assim arriscada:

“Muitas vezes esta elaboração espacial de Guignard foi identificada com a autonomia da linguagem plástica alcançada pelo pintor, questão esta que problematizamos ao discutir a crítica dos anos 80 e 90 e a construção de um lugar “à margem” do modernismo oficial, reservada a este pintor, legitimando-o como verdadeiramente moderno, pois distante das filiações literárias. Em tal leitura algo da pintura de Guignard se perde, algo que está num conluio com a imaginação poética. Discutiremos nas paisagens “imaginantes” outras categorias interpretativas. ‘Olhar e ver a dança das cores  ritmo do mundo. Cor é emoção e pensamento descoberta e procura  certeza e espanto  fundamento e caminho.  E caminhar com as cores é testemunhar com o silêncio da luz. Cor não existe uma.  E muitas  quanto uma sustenta a outra  todas solidárias tramam intrigam  comprometem o tempo e o espaço no lugar  onde a beleza acabou de nascer verdade. E assim esse pintor poeta fundou.Ouro Preto em cor.  Grande Mestre (CASTRO, 1992, p.22-23).”

 A história deste grande artista foi permeada do início ao fim por tristes intervenções humanas que, qual tintas sombrias numa paisagem luminosa de verão, vão dando relevo e profundidade ao grande quadro que foi sua própria vida. Assim, se por um lado a vida imita a arte, não deixa de ser também verdade que a arte, mais do que a “imitação” da vida, é o fenômeno da sua recriação ou releitura pelo artista.

Por este prisma entendo estas mesmas tristes circunstâncias que a liberdade mal administrada de outros homens provocou na história de Guignard, como fatores decisivos para o seu amadurecimento pessoal e artístico – assim como o de sua obra como um todo – cunhando em sua personalidade – como também em sua obra – um caráter teimosamente autêntico e livre que em última instância fizeram dele o gênio incomparável, inovador e singularíssimo que foi.  Por outro lado, ainda, graças a este mergulho estilístico independente possibilitado por seu modo sereno e forte de enfrentar as contínuas adversidades,  é que sua obra, de tão singular que é, passa a ser também universal.

Guignard começou seu namoro com Minas bem antes de sua mudança para Belo Horizonte, conforme comenta Marcos Rodrigues Aulicino em sua tese de doutorado:

“Viajou para Minas Gerais em 1941, perfazendo o circuito modernista pelas cidades históricas, além de Paraná, interior do Rio de Janeiro e São Paulo, atendendo aos objetivos do prêmio. Em 39 já havia ido para Sabará e Ouro Preto, registrando uma série de paisagens da arquitetura colonial e o seu entorno. (AULICINO; Marcos Rodrigues, “O próximo distante, o distante próximo”, CAMPINAS, UNICAMP – IFCH – 2007)”.

Com a Exposição Moderna de 1944, talvez, pela primeira vez a produção de Belo Horizonte tenha conseguido alguma visibilidade fora das fronteiras de Minas Gerais. A partir deste momento  e principalmente nos governos municipais seguintes ao de Juscelino, Guignard passou a ser implacavelmente perseguido por seus opositores, liderados pelo arquiteto e desenhista Aníbal de Mattos, acadêmico, bem como pelos dois sucessores de Juscelino na prefeitura de Belo Horizonte, cujas visões e tendências em termos de apoio às artes eram também acadêmicas e tradicionalistas.  Quem relata com detalhes este período é o jornalista e escritor Frederico Morais, em seu livro Alberto da Veiga Guignard (Editora Monteiro Soares Editores e Livreiros,1979).

Carlos Zílio foi aluno do artista Iberê Camargo e hoje é artista plástico, pesquisador e crítico.  É pesquisador e estudioso da obra de Guignard, sob o foco de sua inserção no contexto da arte moderna como um todo, sem perder de vista as suas próprias especificidades técnicas e criativas, levando em conta as especificidades do ambiente intelectual e artístico da Capital Mineira, no qual estava profundamente imerso nos seus últmos 18 anos. Zílio afirma que o mais importante da obra de Guignard está na diluição da figura e do fundo provocando uma dissolução do espaço formal e das pessoas retratadas em seus quadros. Este autor está mais preocupado com as questões estéticas e territorializadas da arte em Guignard, do que, propriamente em questões de caráter biográfico.  Assim sendo nos oferece uma análise mais aprofundada de sua obra paisagística partindo do ponto de vista estético e sígnico no contexto da arte moderna brasileira.

Considerando-se que, do ponto de vista da sociologia, a arte é um sistema de comunicação inter-humana (ARAGÃO, Solange; Comunicante-comunicado-comunicando: método de estudo de obras de arte; II Encontro de História da Arte, IFCH-Unicamp, 27 a 29 de Março de 2006, Campinas, SP), artista, obra e público devem ser levados em conta e inter-relacionados entre si quando o objeto de estudo é qualquer um desses três elementos.

A história da Arte tem por premissa a importância de se transmitir e conservar a memória dos fenômenos artísticos com seus sujeitos e objetos, situando-os no contexto da civilização. Portanto, em seus estudos e investigações, interessa sobremodo o valor de um objeto artístico, não medido em cifras monetárias, mas enquanto objeto de significação e representação, que faz dele produto e mensagem ao mesmo tempo, remetendo-o diretamente à  sua origem e destino: o artista, espelho e síntese do homem de seu tempo. Interessa o valor do objeto artístico enquanto vestígio e reflexo do homem enquanto ser singular e universal que é; o homem histórico e antropológico.

Neste sentido a obra de Guignard, ainda tão pouco explorada por nossas instituições artísticas e educacionais, pode oferecer um novo prisma no que tange a uma identidade genuinamente brasileira (ainda que diversa e não excludente em relação a tantas outras manifestações artísticas nacionais) no painel artístico pictórico moderno nacional. Esta identidade, retratada nas imagens que reúnem o povo, as festas, a religiosidade e a paisagem montanhosa típica das regiões históricas de Minas, tem hoje o poder de lançar o “contemplador” num estado de aspiração ou desejo de um tempo-espaço que partindo daquele experimentado em tais lugares (Minas histórica/ Minas montanhosa) o transcende, à medida que se reconstrói idealmente na sua imaginação poética.

Mas… que importância teve Guignard  para o seu tempo? Que importância tem para o nosso, bem como às gerações futuras do nosso Brasil culturalmente despedaçado? Guignard tem para o homem de todos os tempos e especialmente para o homem brasileiro, a importância da direção para onde aponta o seu olhar contemplativo: o desejo do ser humano de plenitude, de harmonia com o meio, de felicidade; a importância da integração harmoniosa entre homem e paisagem, homem e contexto histórico social, homem e espiritualidade.

Por Iura Breyner Botelho – Pós graduação em História das Artes – Crítica e Teoria – FPA – Faculdade Paulista de Artes – 2012. Iura Breyner Botelho é colaboradora do IFE Campinas.