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Dom Quixote e a superação da melancolia (por Renato José de Moraes)

Literatura | 26/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha é um clássico autêntico. Segundo as sempre discutíveis normas de “leituras obrigatórias para se chamar culto”, a obra de Cervantes costuma estar entre as primeiras leituras exigidas. No entanto, referir-se a uma “obrigação de ler” quando falamos do Quixote soa estranho, pois fruir do livro de Cervantes é antes um enorme prazer, uma autêntica dádiva! O mesmo não acontece com a maioria dos livros chamados “canônicos”, muitos dos quais têm o dom de enfadar e afastar da leitura as vítimas que se julgam obrigadas a enfrentá-los (não vamos citar exemplos, para evitar ferir suscetibilidades…).

Cabe então perguntar: por que Dom Quixote é um livro tão bom? Qual a razão de ser sempre contemporâneo a nós, muito mais do que a quase totalidade dos livros recém-lançados? Como Cervantes tornou a sua criação um dos livros mais importantes e deliciosos de todos os tempos?

Responder a essa pergunta não é fácil. A apreciação da grande arte dificilmente pode ser traduzida em palavras ou raciocínios. Antes, experimentamos que algo é grandioso e excepcional, mas não sabemos explicar exatamente o porquê. Há um mistério da arte, que tocamos de maneira especial ao examinar um livro como Dom Quixote. Apesar dessa dificuldade, vamos tentar traçar algumas considerações que nos ajudem a desfrutar dessa leitura, ao mesmo tempo em que buscamos desvendar parte desse mistério próprio da arte.

Comecemos com a vida de Cervantes. Sua personalidade formou-se em um ambiente peculiar – a Espanha do final do século XVI e início do século XVII -, durante uma vida cheia de percalços e aventuras, elementos todos que se refletirão em sua obra. Assim, é importante conhecer algo da vida do criador, de modo especial os eventos marcantes, que nos esclarecerão aspectos do seu livro.

Miguel de Cervantes y Saavedra nasceu, provavelmente, em 29 de setembro de 1547, em Alcalá de Henares, uma cidade de Castela. Sua família não tinha lá muitos meios econômicos, e seu pai, um modesto cirurgião, chegou a ser preso por dívidas. Em 1569, publicou a sua primeira poesia, e nesse mesmo ano foi para a Itália, fugindo por haver ferido em duelo um fidalgo (embora não seja certa essa atribuição, pois há quem argumente que se trataria de um homônimo).

Pouco depois, em 7 de outubro de 1571, participou da batalha naval de Lepanto, destacando-se pelo heroísmo. Nesse evento singular, por ele mesmo descrito como “a mais alta ocasião que viram os séculos passados, os presentes, e que não esperam ver os vindouros”, teve a mão ferida em combate.

Em 1575, quando voltava para a Espanha, seu barco foi capturado por corsários turcos, que o levaram cativo para Argel, onde passaria cinco anos. Neste período, tentou fugir quatro vezes, sempre levando seus companheiros; capturado todas as vezes, sempre assumiu diante das autoridades turcas a responsabilidade pelas tentativas de fuga. Decidiu-se deportá-lo para Constantinopla, de onde a fuga seria impossível. No dia 19 de setembro de 1580, quando já estava no navio “com duas correntes e um grilhão”, dois padres trinitários trouxeram a quantia exigida pelo seu resgate e o libertaram.

Ao voltar à Espanha, Cervantes relacionou-se com uma mulher casada, com a qual teve uma filha, Isabel. Em 1584, casa-se com Catalina de Salazar y Palacios, jovem de 22 anos. No ano seguinte, publicou La Galatea, uma novela pastoril. Durante esses anos, trabalhou como provedor de mantimentos para as galeras reais, e foi acusado – tudo indica que injustamente – de haver vendido trigo sem autorização, o que acarretou em sua primeira prisão, em 1592. Seria preso novamente em 1597, por não pagamento de dívidas, em conseqüência da quebra do banqueiro junto ao qual depositara quantias relacionadas com o seu trabalho. Foi nesses três meses de cárcere que começou a escrever o Don Quijote de la Mancha

A primeira parte deste livro foi publicada em 1604, e seu sucesso foi grande e imediato; no entanto, não acabaram aí as dificuldades na vida do nosso herói. Em 1605, uma pessoa foi morta em frente à sua casa em Valladolid, e esse fato levou-o novamente à prisão por uns poucos dias, sendo depois comprovada a sua inocência. E não faltaram falatórios suspicazes sobre a moralidade do seu lar, no qual também moravam as suas irmãs.

A partir de 1613, impulsionados pelo sucesso de Dom Quixote, foram publicados outros livros de Cervantes, sendo o último o já póstumo Persiles y Segismunda (1617). O êxito literário que encontrou junto ao público não trouxe consigo o reconhecimento das suas excepcionais qualidades de escritor pelos seus “colegas de profissão” (afinal, dizem que “é a inveja que move o mundo”…). Numa época em que os livros eram caros e os direitos autorais oscilavam entre míseros e inexistentes, a remuneração de um autor dependia essencialmente de mecenas, a que tinha acesso por meio dos seus pares; e o resultado foi que Cervantes encontrou na miséria uma companheira constante dos seus anos.

Morreu em Madri, em 22 de abril de 1616, e foi enterrado em um convento de freiras trinitárias, entre as quais talvez estivesse a sua filha Isabel de Saavedra. As monjas mudaram-se pouco depois para outro convento, e com isso perdeu-se o rastro do seu túmulo. Por isso, não é possível hoje identificar os seus restos.

Esses poucos dados da vida de Cervantes servem para mostrar um aspecto um tanto surpreendente: a antítese entre uma existência cheia de desilusões e dificuldades, e uma obra com um fundo alegre e otimista.

Realmente, Cervantes nada tem de atormentado, mas mostra-se alguém que cresce diante das dificuldades sem se deixar abater por elas. Mais ainda, parece que o sofrimento torna o seu humor mais aguçado e verdadeiro, porque não esquecia a realidade da aflição e da desgraça. Em certo sentido, podemos aplicar a ele os versos de Manuel Bandeira, tão distantes do modo de pensar hedonista e burguês:

Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

Nesse mesmo sentido, impressiona a serenidade com que escreve sobre a morte que se avizinha, em uma dedicatória na qual cita uns versos então bem conhecidos:

Puesto ya el pie en el estribo,
con las ansias de la muerte,
gran señor, ésta te escribo.

“Ontem deram-me a extrema-unção, e hoje escrevo esta; o tempo é breve, as ânsias crescem, as esperanças mínguam, e com tudo isso levo a vida com o desejo que tenho de viver […]. Mas se está decretado que tenha de a perder, cumpra-se a vontade dos céus”.

Um livro como o Dom Quixote só podia ser produzido por alguém com essa têmpera. As dificuldades da vida não foram capazes de criar nele o desespero ou a amargura – tão característicos de uma época de vitalidade mais frágil, como a nossa -, mas serviram de fundamento para uma construção artística otimista e admirável. Penso que a maioria de nós, se tivéssemos passado pela metade do que sofreu Cervantes, se encerraria provavelmente em um quarto escuro, remoendo as próprias amarguras e refletindo sobre como o mundo é injusto e como todos são infelizes. Já o nosso autor relevou – melhor ainda, assimilou – tudo isso e o plasmou no Quixote.

Por mais interpretações negativas que se tenham formulado sobre esta obra (“sublimação do fracasso”, “sarcasmo amargo”), por mais que tenham tentado descobrir nela amargura e supostas “tragédias”, o Dom Quixote é inegavelmente um livro humorístico, e mais, de um humor leve e amável. Essa opinião, sustentada por Martín de Riquer no admirável estudo Cervantes y el “Quijote”, também encontra guarida no Prólogo do livro, em que Cervantes põe na boca de um amigo imaginário estas palavras:

“Procurai também que, ao ler vossa história, o melancólico seja movido ao riso, o risonho ria mais, o simples não se canse, o discreto se admire da imaginação, o grave não a despreze e o prudente não a deixe de louvar”.

 

Não há dúvida que Cervantes foi bem sucedido ao seguir esse conselho, pois “quem não ri ao ler o Dom Quixote, ou não entendeu o romance, ou não possui a capacidade de rir” (Martín de Riquer).

Esse humor surge já da finalidade primeira do livro, que é “derribar a máquina mal-fundada dos livros de cavalaria, detestados por tantos e louvados por muitos mais” (Prólogo). Os romances de cavalaria – os best-sellers da época – enchiam a cabeça dos leitores com narrativas inverossímeis e de baixa qualidade artística. Foi o que aconteceu com Dom Quixote, que

 

“enfrascou-se tanto na sua leitura que passava as noites lendo de claro em claro, e os dias de turvo em turvo; e assim, do pouco dormir e do muito ler, secou-se-lhe o cérebro, de maneira que veio a perder o juízo”.

 

Por outro lado, o romance “não é uma sátira da cavalaria ou dos ideais cavaleirescos, […] mas a paródia de um gênero literário muito em voga durante o século XVI. O Quixote não é, como creram alguns românticos, uma burla do heroísmo e do idealismo nobre, mas sim a burla de uma espécie de livros que, por seus exageros extremos e sua falta de medida, punham em ridículo o heróico e o ideal” (Martín de Riquer).

Cervantes não tem um espírito cético ou irônico – como o encontramos em Machado de Assis ou em Montaigne -, mas um olhar compreensivo e terno para com o ser humano. Por isso, há diversos momentos de nobreza em seu livro, muitas vezes em personagens secundárias; aliás, não podemos esquecer que o próprio autor foi heróico inúmeras vezes, de modo especial em Lepanto e no seu cativeiro em Argel.

Sendo a sua intenção desmoralizar os livros de cavalaria, Cervantes fez muito mais do que isso: como acontece freqüentemente com os grandes escritores, sua obra acaba sendo muito melhor do que a encomenda. Dom Quixote e Sancho Pança formam uma dupla que passa por aventuras que nos emocionam, elevam e divertem. O diálogo entre os dois é fundamental para o bom desenvolvimento do romance, e o autor introduz nele inúmeras pérolas de sabedoria, sempre com graça e oportunidade. Assim, o Dom Quixote nos leva a refletir sobre a vida, a honra, a nobreza, a fidelidade, o idealismo, ao mesmo tempo que a estória do cavaleiro e do seu escudeiro se desenrola à medida que encontram personagens secundárias muito bem construídas: nobres, fazendeiros, hospedeiros, mulheres da vida, letrados, barbeiros, e assim por diante.

Temos diálogos e aventuras em justa medida, com os episódios ligando-se com naturalidade e enriquecendo-se mutuamente. Aqui vemos que Cervantes é escritor de qualidades excepcionais, que sabe contar maravilhosamente histórias simples. A sua prosa é de uma leveza, de uma fluidez, de uma plasticidade e expressividade praticamente insuperáveis. Embora encontremos muitas páginas admiráveis em outras obras suas, especialmente nas Novelas ejemplares, poucas atingiram a qualidade do seu escrito mais famoso.

Otto Maria Carpeaux, no sugestivo “Ensaio de análise em profundidade”, lembra-nos de que “a literatura universal chega ao cume na criação daquelas personagens típicas, representantes simbólicas da humanidade”. Aqui encontramos novamente uma pista da grandiosidade do Quixote, símbolo de toda a humanidade (juntamente com seu fiel escudeiro…). Na sua loucura, considerava-se um cavaleiro andante chamado a vencer gigantes, salvar princesas, desfazer todo gênero de agravos, “granjear fama e renome eternos”. No entanto, a verdade é que se debatia com moinhos de vento, chamava de elmo a bacia de um barbeiro, era espancado com uma freqüência muito maior que a desejável… Enfim, havia uma enorme distância entre o que pensava de si e a realidade dos seus “feitos”, e isso é parte fundamental da sua loucura.

Somos forçados a reconhecer humildemente que todos temos muito dessa loucura. Julgamo-nos heróis, sábios, nobres e importantes, mas acabamos deparando-nos com a realidade da nossa mediocridade, mesquinhez, covardia e comodismo. Muitas vezes custa-nos aceitá-lo, e reagimos como o nobre cavaleiro, que atribuía a maior parte das suas desgraças à inveja de “encantadores e magos”.

Ao mesmo tempo, a loucura ajuda-nos a buscar metas mais altas, que os “prudentes” consideram tolas, mas que dão sentido aos nossos esforços. Somos bem menos do que pensamos, mas… que seria de nós sem os sonhos? Sem ideais, a vida do homem não vale nada, e o Dom Quixote lembra-nos disto. A loucura de Alonso Quijano, o bom, fez dele o Dom Quixote de La Mancha; e graças a isso –
entre muitas surras, situações ridículas e decepções -, o cavaleiro realizou também grandes feitos, ajudando a consertar a vida de boa parte das pessoas que o rodeavam. Podemos colocar na boca do Cavaleiro da Triste Figura aquilo que Fernando Pessoa atribuía a Dom Sebastião de Portugal:

 

Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

 

Haveria muito mais que falar sobre esse livro. Mas terminemos agradecendo a Cervantes por nos ter dado o seu Dom Quixote. Este, florescendo em um terreno marcado por contratempos e tristezas, mostra-nos que o seu autor soube superá-las; que, se era um grande escritor, soube ser um ser humano ainda maior.

 

Renato José de Moraes é Mestre pela Faculdade de Direito da USP e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS).

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 2, Dez/2008. Disponível [online] no link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-2/dom-quixote-e-a-superacao-da-melancolia/

 

Os gênios das artes: Mozart

Artes | 26/01/2015 | | IFE CAMPINAS

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Mozart é um caso único na história da música, ou melhor, na história das artes. Aos cinco anos já compunha, ainda que com a ajuda do pai. Viveu apenas 35 anos (1756-1791) e escreveu 626 obras. Já em sua época, um dos grandes nomes da música e maior nome da música então, Joseph Haydn, disse a Leopold, pai de Mozart que “seu filho é o maior compositor que conheço (…). Ele tem gosto e, além disso, o maior conhecimento possível da ciência da composição.” (Op. Cit. pág. 138)

Quando adolescente, conta-se a história de que havia uma composição que era executada apenas na Capela Sistina, o Miserere de Allegri. A música era muito bonita, mas ninguém tinha autorização para fazer cópias da partitura. Entretanto, Mozart assistiu à uma apresentação da obra. Fixou-a na memória e foi correndo ao hotel em que estava hospedado. Em uma segunda audição corrigiu os erros que havia feito. Em pouco tempo a música caiu em domínio público. ¹ (Vida de Mozart, H. De Curzon, pág 48). Outro fato que se conta sobre o modo como Mozart demonstrava seu talento era o plano de programa de concerto que ele exibiu em 1770 (14 anos). O jovem Mozart apresentava as suas composições e, em seguida, um concerto para cravo era apresentado e executado à primeira vista, ou seja, um outro músico tocava uma composição inédita para o jovem que logo após a repetia integralmente.

Conhecido como menino prodígio nas cortes européias, pois o pai viajava com o garoto pela Inglaterra, França, Itália desde que ele tinha 6 anos, Mozart sofreu com o fato de que quando cresceu já não despertava a curiosidade das pessoas, apesar de ser Konzertmeister na Corte de Salsburg desde os 13 anos de idade, onde permaneceu até os 25 anos. Um paralelo para que se possa entender a mudança pela qual passou o compositor é o ator mirim que quando criança faz sucesso, mas ao crescer já não é mais “engraçadinho”.  O crítico Otto Maria Carpeaux analisou assim o fato: “Quando Mozart cresceu, o público esperava dele milagres, mas quando os realizou não estava preparado para assimilar a sua genialidade” (História da Música Ocidental). O crítico John Stone também vê assim o desenvolvimento de Mozart: “O magnífico progresso do menino Mozart pela Europa como prodígio de Salzburg teria sérias consequências quando, como rapaz, ele teve de enfrentar o mundo não mais como uma excentricidade encantadora e muito favorecida, mas como um artista supremo (Mozart, um compêndio, págs. 160-161)

Com esse pensamento, Mozart pediu demissão do cargo na corte de Salzburg no dia 8 de junho de 1781. A relação do compositor e do arcebispo Colloredo, responsável por sua nomeação, não era das melhores. Mozart mostrava insatisfação não só com o trabalho que lhe era solicitado: tinha de tocar na Igreja, na corte, na capela, ensinar os meninos do coro, compor música religiosa e secular, mas, principalmente com o tratamento que lhe era dado. A gota d’água foi o dia 8 de abril. Mozart foi obrigado a tocar para o arcebispo na mesma noite em que a condessa Thun o convidara para se apresentar em sua residência. Não seria nada de mais, caso não fosse a presença do imperador na casa da condessa. Além disso, Mozart receberia o equivalente a metade do seu salário anual para esse concerto. Parte para Viena.

Em Viena – 1781-1791

Ao contrário do que se pensa, Mozart não viveu na pobreza em Viena. Os primeiros anos passados na corte foram de muito sucesso. Apenas nos últimos anos de sua vida passou por dificuldades financeiras. Os críticos analisam esse fato tendo em vista o meio social em que vivia, entre os ricos, e em uma cidade cara e devido à sua condição de “freelancer”: somente em 1787 ele teve um emprego com salário regular. Deve-se levar em conta também a opinião do pai do compositor sobre a sua maneira de ser: “Se não precisa de nada, então fica imediatamente satisfeito, se torna despreocupado e preguiçoso. Se é forçado à atividade, então se agita e quer prosperar imediatamente.” (Carta à condessa Waldstätten, 23 de agosto de 1782). Em 1782 casa-se com Constanze Weber, que teve seis filhos. É também durante essa primeira etapa em Viena que Mozart tem duas doenças graves

Em relação à música, os primeiros anos são de grande atividade. Compõe serenatas, os seis quartetos dedicados a Haydn, as óperas “As Bodas de Fígaro” e “Don Giovanni”. Em 1782-3 compõe três concertos para piano e no ano seguinte mais seis.

A genialidade

O que mais surpreende os críticos da obra de Mozart é que não há uma relação direta entre a obra e a vida do compositor. Sente muito a morte do pai, em 1787, mas em sua obra nada se nota. Em maio morre Leopold, em agosto compõe a sua obra mais popular até hoje, a Pequena Música Noturna (Eine Kleine Natchmusik, KV 525).

Há duas características da obra de Mozart que são pouco admiradas hoje em dia, mas que sempre acompanharam os grandes artistas. A primeira é que nunca buscou a originalidade. A segunda era a preocupação de Mozart em fazer músicas que fossem acessíveis ao grande público, como explica em carta ao pai: “Aqui e ali só os entendidos podem extrair satisfação, mas de uma tal maneira que o não entendido se agradará sem saber por quê (28 de dezembro de 1782).”

É de se notar que suas últimas composições o fizeram voltar às origens. Mozart não compunha música sacra desde 1781. Mas no último ano de sua vida compõe duas obras belíssimas: Ave verum corpus e o Réquiem.

Essa última gerou muitas lendas. Mas se sabe hoje que foi encomendado por um misterioso personagem que não era nenhum enviado do além, mas um aristocrata que gostava de encomendar obras em sigilo para exibir como suas. Aliás, atualmente, até esse fato é contestado. Ao que tudo indica, o tal misterioso, o conde WallseggStuppach, costumava fazer apresentações em sua casa para que os participantes adivinhassem quem era o compositor (Mozart, um compêndio, pág. 370).

Outro belo fato sobre essa composição é que Mozart, no leito de morte, pediu para que os que estavam ao seu lado cantassem um trecho do hino, Lacrimosa:

Lacrimosa dies illa                         Dia de lágrimas será aquele

qua resurget ex favilla                   no qual os ressurgidos das cinzas

judicandus homo reus.                  serão julgados como réus.

—–

Huic ergo parce, Deus                  A este poupa, ó Deus

pie Jesu Domine                           piedoso Senhor Jesus

Dona eis requiem, Amen.             Dá-lhes repouso. Amém.

 

Vale a pena ouvir:

Eine Kleine Natchmusik – KV 525 (numeração da obra). Composição mais famosa de Mozart, porém, não a mais bela, mas de um charme irresistível

 Quartetos a Haydn – KV 458, chamado posteriormente de “A caça” e KV 428 (de um total de seis, todos ótimos). Como o título diz, dedicados ao famoso compositor Joseph Haydn.

Requiem – KV 626

Ave Verum corpus – KV 618

Concerto para piano e orquestra, KV 595 – especialmente o segundo movimento, um dos mais belos da história da música.

 

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista e publicitário e Gestor do Núcleo de Literatura do IFE Campinas.

Elogio à Leitura

Sem Categoria | 13/12/2014 | |

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"Ein kleiner Bücherwurm" de Eduard Swoboda (1814–1902)

“Ein kleiner Bücherwurm” de Eduard Swoboda (1814–1902)

 

A idade da maturidade aproxima-se inexoravelmente. Dizem que o homem, aos quarenta anos, passa por um período de profundo exame interior e, a partir dos resultados desse exame, busca novos desafios vitais, sintetizado pela máxima “a vida começa aos quarenta”. Na última semana, meu filho mais velho perguntou-me: “pai, o que você fez até hoje que resume o que você é?”. Respondi imediatamente: “Ler. E vou continuar me resumindo lendo”.

Hoje, para a geração twitter-tablet-smartphone, ler parece um exercício extraordinário, entediante e digno de sugar os miolos do cérebro. Não me estranha. Na minha juventude, para meus pais, a televisão, além de concorrente da leitura, era uma espécie de “a casa do capeta”. Olhando em perspectiva, comento com meus pais que eu tinha razão: naquela época, o máximo que a televisão conseguiu foi deixar uma boa pessoa alienada, a julgar pelos amigos daquele período com os quais ainda mantenho contato. Justamente porque eles não tinham o hábito da leitura para fazer o contraponto aos enlatados made in USA que entupiam a grade de programação dos canais.

Nunca é demais refletir sobre o lugar do livro e da leitura no mundo atual. Atualmente, mais que no passado, onde a televisão reinava sozinha, é indispensável que se proporcione, desde a aprendizagem mais elementar, uma verdadeira educação do gosto pela leitura, à luz da ativa valorização do rico patrimônio literário universal.

Por intermédio do livro, todos aprendemos a ler e a contar, a escrever e a pensar; pelo livro, aprendemos a conhecer os grandes pensadores e os escritores clássicos; pelo livro, aprendemos a conhecer os grandes textos sagrados; pelo livro, aprendemos as lições da história e os avanços da ciência; pelo livro, aprendemos os perenes valores que sempre regeram as sociedades em todos os tempos; pelo livro, aprendemos a sonhar outros mundos; pelo livro, aprendemos a rir, a chorar, a rezar e a amar; pelo livro aprendemos descobrir o que nos cerca; pelo livro, enriquecemos nossa linguagem, alimentamos uma fome de imaginário e educamos nossas emoções; no fundo, pelo livro, descobrimo-nos a nós próprios.

O livro e a leitura são instrumentos essenciais de exercício de inteligência, comunicação e informação. Afinal, o livro e a leitura moldaram definitivamente a nossa memória e identidade individuais e coletivas, bem como a nossa visão do mundo. Aliás, nunca repetimos a leitura de um mesmo livro, porque sempre somos diferentes no ato concreto da leitura. Gosto muito de uma definição de livro de Romano Guardini: um pequeno objeto irrepetível e cheio de mundo.

Em minha profissão, ler é muito importante para uma melhor expressão oral e escrita, comunicação, capacidade argumentativa e, de certo modo, maior expectativa de vida, afinal, como dizia Popper, convém que as opiniões enfrentem-se para que as pessoas não tenham que se enfrentar… Um homem lido é um homem mais maduro e mais livre, porque sabe ter uma posição crítica diante da realidade da vida. É por isso que, no passado, governos ditatoriais, regimes totalitários e fundamentalismos religiosos sempre buscaram queimar livros: como dizia um poeta alemão do começo do século XIX, uma sociedade que começa queimando livros acaba por exterminar pessoas. Dito e feito.

Ler, definitivamente, é uma necessidade existencial do espírito humano. Solitária, íntima e silenciosa: uma solidão, uma intimidade e um silêncio vibrantes, porque animados pela vida da palavra. Sem dúvida, nos dias atuais, se, para muitos, ler ou não ler é uma tremenda questão, para mim, é a melhor solução. Não a solução final, porque ainda me resta saber se o paraíso celestial será algum tipo de biblioteca com uma eternidade para devorá-la.

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, mestre em Filosofia e História da Educação, Pesquisador, Professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP e da Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS) e coordenador do IFE CAMPINAS (agfernandes@tjsp.jus.br).

Literatura em tempos áridos

Literatura | 24/11/2014 | | IFE CAMPINAS

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Meu gosto pela literatura começou cedo. Lá pelos dez anos já devorava as obras do Verne e do Doyle da mesma maneira como meus filhos adotados comeram o primeiro prato deles fora do abrigo no dia em que fomos lá buscá-los definitivamente. Depois, por influência de um amigo, o Renato, já na adolescência, comecei meu namoro literário com Cervantes, Shakespeare, Victor Hugo, Tolstoi e Dostoievski. No mesmo período, tive uma namorada, a Daniele, com quem troquei cartas de amor por longos dois anos e muitas brigas literárias entre Machado, Pessoa, Guimarães Rosa e Camões.

Já na faculdade, uma grande amiga, a Christianne, foi uma espécie de catalisadora de releituras daqueles autores e o Roberto, outro amigo, introduziu-me ao mundo de Eliot e Dickens. Mais tarde, minha esposa apresentou-me, depois de muita relutância e de um longo almoço com amigos em que fiquei calado por conta de minha ignorância no assunto, à literatura de Tolkien. Depois, também com ela, entendi melhor o universo feminino com Austen e, por culpa da literatura, em nossa suíte, não existe televisão: ajuda na vida de diálogo conjugal, propicia conversas literárias e alimenta, digamos assim, uma saudável libido sexual. E, há algum tempo, para fazer um trabalho acadêmico, li Homero e, recentemente, detive-me com Faulkner, Borges e Carpeaux.

Foi um longo caminho. Aliás, continua sendo. Porque a literatura, para mim, no seio do universo da educação, abarca toda a experiência humana, a ponto de a refletir e contribuir decisivamente para modelá-la e que, por isso mesmo, deveria ser patrimônio de todos, já que se trata de um atividade que se alimenta no fundo comum da espécie. Mas, hoje, a literatura, como ferramenta pedagógica, reduziu-se a um mero entretenimento escapista da realidade, como uma espécie de droga “injetável” intelectualmente.

Sei que as estatísticas dizem que nunca foram publicados e vendidos tantos livros no mercado editorial. O problema surge quando, não satisfeitos com os confortáveis números sobre publicações e vendas de livros, que parecem garantir a perenidade da literatura, espiamos atrás das roupagens numéricas e descobrimos uma realidade muitas vezes deprimente. Com raras exceções, quase ninguém mais acredita que a literatura sirva para muita coisa, salvo para não se entediar demais no ônibus ou no metrô (nos consultórios, ela já foi expulsa pelas revistas semanais de celebridades) e para, se a indústria do entretenimento puder ter muito lucro, que se tornem ficções cinematográficas.

Assim, a literatura assumiu uma faceta “light” — noção que é um erro traduzir por leve, pois, na verdade, apesar das exceções, quer dizer irresponsável e, frequentemente, nada instrutivo. Por isso, alguns renomados críticos acreditam que a literatura já morreu e excelentes romancistas proclamam que não voltarão a escrever tão cedo. Pudera. Essa postura “light”, no fundo, encobre a intenção de transformar a literatura numa espécie de mecanismo de indolência espiritual relaxada, a fim de possibilitar ao indivíduo uns momentos agradáveis, imergindo-o na irrealidade e emancipando-o da sordidez cotidiana, do inferno doméstico ou da angústia econômica.

A apreensão de uma obra literária exige ativa participação do leitor, esforço de imaginação, além de complicadas operações de memória, associação e criação, bem ao contrário da proposta da literatura “light” que, na melhor das hipóteses, torna seus leitores mais preguiçosos e mais alérgicos a uma leitura que exija deles esforço intelectual.

Posso afirmar que toda essa literatura “light” não ajuda – nem remotamente – a entender o labirinto da psicologia humana tanto quanto os romances de Dostoievski ou os mecanismos da vida social tanto quanto as obras de Tolstoi ou os abismos da miséria tanto quanto as obras de Shakespeare e os ápices da beleza tanto quanto nas obras de Homero. Um livro inteiro dessa literatura “light” não é capaz de ensinar tanto quanto alguns capítulos das sagas literárias da maioria dos autores já citados são capazes de fazê-lo.

Eu não seria como sou, nem acreditaria no que acredito, nem teria as dúvidas e as certezas que me fazem viver sem esses autores e muitos outros aqui não mencionados. As obras desses escritores modificaram-me e modelaram-me e, a cada releitura, ainda continuam me modificando e me modelando incessantemente, no ritmo de uma vida com a qual os vou cotejando. Neles aprendi que o mundo é imperfeito e que toda tentativa de transformação da realidade num paraíso celestial acabará sempre num inferno terrestre.

Entretanto, isso não significa que não devamos fazer o possível para que o mundo não seja ainda pior do que é, isto é, que somos inferiores ao que sonhamos e que, na comédia humana de que somos atores, há uma condição transcendental que compartilhamos em nossa diversidade de culturas, raças e crenças e que nos transforma em iguais e deveria tornar-nos, também, solidários e fraternos.

O fato de não ser assim é algo que posso entender muito melhor graças àqueles livros que me mantiveram alerta e em brasas enquanto os lia, porque nada melhor do que a boa literatura para aguçar nosso olfato existencial e nos tornar sensíveis para detectar as raízes da crueldade, da maldade e da violência e, ao mesmo tempo, as da magnanimidade, da alteridade e da bondade de que somos naturalmente capazes. Quando a literatura é posta fora de toda essa dimensão, perde seu sentido último e fica parecendo umas horas que perderam seu relógio.

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, mestre em Filosofia e História da Educação, Pesquisador, Professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP e da Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS) e coordenador do IFE CAMPINAS (agfernandes@tjsp.jus.br).