Dom Quixote e a superação da melancolia (por Renato José de Moraes)

Literatura | 26/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha é um clássico autêntico. Segundo as sempre discutíveis normas de “leituras obrigatórias para se chamar culto”, a obra de Cervantes costuma estar entre as primeiras leituras exigidas. No entanto, referir-se a uma “obrigação de ler” quando falamos do Quixote soa estranho, pois fruir do livro de Cervantes é antes um enorme prazer, uma autêntica dádiva! O mesmo não acontece com a maioria dos livros chamados “canônicos”, muitos dos quais têm o dom de enfadar e afastar da leitura as vítimas que se julgam obrigadas a enfrentá-los (não vamos citar exemplos, para evitar ferir suscetibilidades…).

Cabe então perguntar: por que Dom Quixote é um livro tão bom? Qual a razão de ser sempre contemporâneo a nós, muito mais do que a quase totalidade dos livros recém-lançados? Como Cervantes tornou a sua criação um dos livros mais importantes e deliciosos de todos os tempos?

Responder a essa pergunta não é fácil. A apreciação da grande arte dificilmente pode ser traduzida em palavras ou raciocínios. Antes, experimentamos que algo é grandioso e excepcional, mas não sabemos explicar exatamente o porquê. Há um mistério da arte, que tocamos de maneira especial ao examinar um livro como Dom Quixote. Apesar dessa dificuldade, vamos tentar traçar algumas considerações que nos ajudem a desfrutar dessa leitura, ao mesmo tempo em que buscamos desvendar parte desse mistério próprio da arte.

Comecemos com a vida de Cervantes. Sua personalidade formou-se em um ambiente peculiar – a Espanha do final do século XVI e início do século XVII -, durante uma vida cheia de percalços e aventuras, elementos todos que se refletirão em sua obra. Assim, é importante conhecer algo da vida do criador, de modo especial os eventos marcantes, que nos esclarecerão aspectos do seu livro.

Miguel de Cervantes y Saavedra nasceu, provavelmente, em 29 de setembro de 1547, em Alcalá de Henares, uma cidade de Castela. Sua família não tinha lá muitos meios econômicos, e seu pai, um modesto cirurgião, chegou a ser preso por dívidas. Em 1569, publicou a sua primeira poesia, e nesse mesmo ano foi para a Itália, fugindo por haver ferido em duelo um fidalgo (embora não seja certa essa atribuição, pois há quem argumente que se trataria de um homônimo).

Pouco depois, em 7 de outubro de 1571, participou da batalha naval de Lepanto, destacando-se pelo heroísmo. Nesse evento singular, por ele mesmo descrito como “a mais alta ocasião que viram os séculos passados, os presentes, e que não esperam ver os vindouros”, teve a mão ferida em combate.

Em 1575, quando voltava para a Espanha, seu barco foi capturado por corsários turcos, que o levaram cativo para Argel, onde passaria cinco anos. Neste período, tentou fugir quatro vezes, sempre levando seus companheiros; capturado todas as vezes, sempre assumiu diante das autoridades turcas a responsabilidade pelas tentativas de fuga. Decidiu-se deportá-lo para Constantinopla, de onde a fuga seria impossível. No dia 19 de setembro de 1580, quando já estava no navio “com duas correntes e um grilhão”, dois padres trinitários trouxeram a quantia exigida pelo seu resgate e o libertaram.

Ao voltar à Espanha, Cervantes relacionou-se com uma mulher casada, com a qual teve uma filha, Isabel. Em 1584, casa-se com Catalina de Salazar y Palacios, jovem de 22 anos. No ano seguinte, publicou La Galatea, uma novela pastoril. Durante esses anos, trabalhou como provedor de mantimentos para as galeras reais, e foi acusado – tudo indica que injustamente – de haver vendido trigo sem autorização, o que acarretou em sua primeira prisão, em 1592. Seria preso novamente em 1597, por não pagamento de dívidas, em conseqüência da quebra do banqueiro junto ao qual depositara quantias relacionadas com o seu trabalho. Foi nesses três meses de cárcere que começou a escrever o Don Quijote de la Mancha

A primeira parte deste livro foi publicada em 1604, e seu sucesso foi grande e imediato; no entanto, não acabaram aí as dificuldades na vida do nosso herói. Em 1605, uma pessoa foi morta em frente à sua casa em Valladolid, e esse fato levou-o novamente à prisão por uns poucos dias, sendo depois comprovada a sua inocência. E não faltaram falatórios suspicazes sobre a moralidade do seu lar, no qual também moravam as suas irmãs.

A partir de 1613, impulsionados pelo sucesso de Dom Quixote, foram publicados outros livros de Cervantes, sendo o último o já póstumo Persiles y Segismunda (1617). O êxito literário que encontrou junto ao público não trouxe consigo o reconhecimento das suas excepcionais qualidades de escritor pelos seus “colegas de profissão” (afinal, dizem que “é a inveja que move o mundo”…). Numa época em que os livros eram caros e os direitos autorais oscilavam entre míseros e inexistentes, a remuneração de um autor dependia essencialmente de mecenas, a que tinha acesso por meio dos seus pares; e o resultado foi que Cervantes encontrou na miséria uma companheira constante dos seus anos.

Morreu em Madri, em 22 de abril de 1616, e foi enterrado em um convento de freiras trinitárias, entre as quais talvez estivesse a sua filha Isabel de Saavedra. As monjas mudaram-se pouco depois para outro convento, e com isso perdeu-se o rastro do seu túmulo. Por isso, não é possível hoje identificar os seus restos.

Esses poucos dados da vida de Cervantes servem para mostrar um aspecto um tanto surpreendente: a antítese entre uma existência cheia de desilusões e dificuldades, e uma obra com um fundo alegre e otimista.

Realmente, Cervantes nada tem de atormentado, mas mostra-se alguém que cresce diante das dificuldades sem se deixar abater por elas. Mais ainda, parece que o sofrimento torna o seu humor mais aguçado e verdadeiro, porque não esquecia a realidade da aflição e da desgraça. Em certo sentido, podemos aplicar a ele os versos de Manuel Bandeira, tão distantes do modo de pensar hedonista e burguês:

Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

Nesse mesmo sentido, impressiona a serenidade com que escreve sobre a morte que se avizinha, em uma dedicatória na qual cita uns versos então bem conhecidos:

Puesto ya el pie en el estribo,
con las ansias de la muerte,
gran señor, ésta te escribo.

“Ontem deram-me a extrema-unção, e hoje escrevo esta; o tempo é breve, as ânsias crescem, as esperanças mínguam, e com tudo isso levo a vida com o desejo que tenho de viver […]. Mas se está decretado que tenha de a perder, cumpra-se a vontade dos céus”.

Um livro como o Dom Quixote só podia ser produzido por alguém com essa têmpera. As dificuldades da vida não foram capazes de criar nele o desespero ou a amargura – tão característicos de uma época de vitalidade mais frágil, como a nossa -, mas serviram de fundamento para uma construção artística otimista e admirável. Penso que a maioria de nós, se tivéssemos passado pela metade do que sofreu Cervantes, se encerraria provavelmente em um quarto escuro, remoendo as próprias amarguras e refletindo sobre como o mundo é injusto e como todos são infelizes. Já o nosso autor relevou – melhor ainda, assimilou – tudo isso e o plasmou no Quixote.

Por mais interpretações negativas que se tenham formulado sobre esta obra (“sublimação do fracasso”, “sarcasmo amargo”), por mais que tenham tentado descobrir nela amargura e supostas “tragédias”, o Dom Quixote é inegavelmente um livro humorístico, e mais, de um humor leve e amável. Essa opinião, sustentada por Martín de Riquer no admirável estudo Cervantes y el “Quijote”, também encontra guarida no Prólogo do livro, em que Cervantes põe na boca de um amigo imaginário estas palavras:

“Procurai também que, ao ler vossa história, o melancólico seja movido ao riso, o risonho ria mais, o simples não se canse, o discreto se admire da imaginação, o grave não a despreze e o prudente não a deixe de louvar”.

 

Não há dúvida que Cervantes foi bem sucedido ao seguir esse conselho, pois “quem não ri ao ler o Dom Quixote, ou não entendeu o romance, ou não possui a capacidade de rir” (Martín de Riquer).

Esse humor surge já da finalidade primeira do livro, que é “derribar a máquina mal-fundada dos livros de cavalaria, detestados por tantos e louvados por muitos mais” (Prólogo). Os romances de cavalaria – os best-sellers da época – enchiam a cabeça dos leitores com narrativas inverossímeis e de baixa qualidade artística. Foi o que aconteceu com Dom Quixote, que

 

“enfrascou-se tanto na sua leitura que passava as noites lendo de claro em claro, e os dias de turvo em turvo; e assim, do pouco dormir e do muito ler, secou-se-lhe o cérebro, de maneira que veio a perder o juízo”.

 

Por outro lado, o romance “não é uma sátira da cavalaria ou dos ideais cavaleirescos, […] mas a paródia de um gênero literário muito em voga durante o século XVI. O Quixote não é, como creram alguns românticos, uma burla do heroísmo e do idealismo nobre, mas sim a burla de uma espécie de livros que, por seus exageros extremos e sua falta de medida, punham em ridículo o heróico e o ideal” (Martín de Riquer).

Cervantes não tem um espírito cético ou irônico – como o encontramos em Machado de Assis ou em Montaigne -, mas um olhar compreensivo e terno para com o ser humano. Por isso, há diversos momentos de nobreza em seu livro, muitas vezes em personagens secundárias; aliás, não podemos esquecer que o próprio autor foi heróico inúmeras vezes, de modo especial em Lepanto e no seu cativeiro em Argel.

Sendo a sua intenção desmoralizar os livros de cavalaria, Cervantes fez muito mais do que isso: como acontece freqüentemente com os grandes escritores, sua obra acaba sendo muito melhor do que a encomenda. Dom Quixote e Sancho Pança formam uma dupla que passa por aventuras que nos emocionam, elevam e divertem. O diálogo entre os dois é fundamental para o bom desenvolvimento do romance, e o autor introduz nele inúmeras pérolas de sabedoria, sempre com graça e oportunidade. Assim, o Dom Quixote nos leva a refletir sobre a vida, a honra, a nobreza, a fidelidade, o idealismo, ao mesmo tempo que a estória do cavaleiro e do seu escudeiro se desenrola à medida que encontram personagens secundárias muito bem construídas: nobres, fazendeiros, hospedeiros, mulheres da vida, letrados, barbeiros, e assim por diante.

Temos diálogos e aventuras em justa medida, com os episódios ligando-se com naturalidade e enriquecendo-se mutuamente. Aqui vemos que Cervantes é escritor de qualidades excepcionais, que sabe contar maravilhosamente histórias simples. A sua prosa é de uma leveza, de uma fluidez, de uma plasticidade e expressividade praticamente insuperáveis. Embora encontremos muitas páginas admiráveis em outras obras suas, especialmente nas Novelas ejemplares, poucas atingiram a qualidade do seu escrito mais famoso.

Otto Maria Carpeaux, no sugestivo “Ensaio de análise em profundidade”, lembra-nos de que “a literatura universal chega ao cume na criação daquelas personagens típicas, representantes simbólicas da humanidade”. Aqui encontramos novamente uma pista da grandiosidade do Quixote, símbolo de toda a humanidade (juntamente com seu fiel escudeiro…). Na sua loucura, considerava-se um cavaleiro andante chamado a vencer gigantes, salvar princesas, desfazer todo gênero de agravos, “granjear fama e renome eternos”. No entanto, a verdade é que se debatia com moinhos de vento, chamava de elmo a bacia de um barbeiro, era espancado com uma freqüência muito maior que a desejável… Enfim, havia uma enorme distância entre o que pensava de si e a realidade dos seus “feitos”, e isso é parte fundamental da sua loucura.

Somos forçados a reconhecer humildemente que todos temos muito dessa loucura. Julgamo-nos heróis, sábios, nobres e importantes, mas acabamos deparando-nos com a realidade da nossa mediocridade, mesquinhez, covardia e comodismo. Muitas vezes custa-nos aceitá-lo, e reagimos como o nobre cavaleiro, que atribuía a maior parte das suas desgraças à inveja de “encantadores e magos”.

Ao mesmo tempo, a loucura ajuda-nos a buscar metas mais altas, que os “prudentes” consideram tolas, mas que dão sentido aos nossos esforços. Somos bem menos do que pensamos, mas… que seria de nós sem os sonhos? Sem ideais, a vida do homem não vale nada, e o Dom Quixote lembra-nos disto. A loucura de Alonso Quijano, o bom, fez dele o Dom Quixote de La Mancha; e graças a isso –
entre muitas surras, situações ridículas e decepções -, o cavaleiro realizou também grandes feitos, ajudando a consertar a vida de boa parte das pessoas que o rodeavam. Podemos colocar na boca do Cavaleiro da Triste Figura aquilo que Fernando Pessoa atribuía a Dom Sebastião de Portugal:

 

Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

 

Haveria muito mais que falar sobre esse livro. Mas terminemos agradecendo a Cervantes por nos ter dado o seu Dom Quixote. Este, florescendo em um terreno marcado por contratempos e tristezas, mostra-nos que o seu autor soube superá-las; que, se era um grande escritor, soube ser um ser humano ainda maior.

 

Renato José de Moraes é Mestre pela Faculdade de Direito da USP e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS).

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 2, Dez/2008. Disponível [online] no link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-2/dom-quixote-e-a-superacao-da-melancolia/