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Hamlet e o desconcerto do mundo (por Renato José de Moraes)

Literatura | 23/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Introdução

Dentre todas as peças de Shakespeare, Hamlet ocupa um posto singular: é provavelmente a mais representativa, a que suscitou as mais diversas interpretações e, principalmente, a mais admirada e amada. Ao terminar de lê-la, ficamos com a sensação de termos saído de um mundo amplo e complexo, no qual ainda há muito que explorar e conhecer. Como sugere Harold Bloom, utilizando uma expressão que se encontra na própria peça, trata-se de um poema ilimitado pela sua riqueza e qualidade.

Na evolução da arte de Shakespeare, Hamlet representa o ponto de inflexão. Sem dúvida, antes já havia escrito obras imperecíveis, como Romeu e Julieta, Henrique V, as duas partes do Henrique IV, Noite de Reis, Sonho de uma noite de verão, e um longo etc. No entanto, Hamlet representa um salto em relação a tudo o que o dramaturgo inglês havia produzido até então, e ele manterá esse nível em algumas das suas obras posteriores

Hamlet e a saudável “incoerência”

A grandeza de Hamlet é algo que certos críticos têm dificuldade em explicar, apesar de a maior parte deles a reconhecer sem maiores dificuldades. No entanto, T.S. Eliot considera-a “certamente um fracasso artístico. […] De todas as peças, é a mais longa e possivelmente aquela em que Shakespeare empregou maiores esforços; mesmo assim, porém, deixou nela cenas supérfluas e inconsistentes, que mesmo uma revisão apressada perceberia”.

A afirmação de que Shakespeare trabalhou intensamente para escrever Hamlet é sustentada também por W.H. Auden, que vê nisso um sinal de certa insatisfação criativa. Esse esforço de composição é corroborado pela existência de no mínimo três, e talvez quatro, versões diferentes da obra. A primeira teria sido perdida, e alguns estudiosos a denominam ur-Hamlet, datando-a do início da carreira teatral de Shakespeare. A segunda – e a primeira a chegar até nós – é a chamada First Quarto, lançada descuidadamente e, provavelmente, sem autorização ou revisão do autor. A terceira, que é uma correção e ampliação do First Quarto, é o Second Quarto, publicado oficialmente pela companhia teatral de Shakespeare enquanto este ainda vivia. Finalmente, temos a versão que consta no First Folio, volume organizado postumamente por alguns amigos do autor e que recolheu quase todas as suas peças.

Apesar de todo o trabalho que consumiu, a peça teria, sempre segundo Eliot, várias imperfeições e “cenas supérfluas e inconsistentes”. No mesmo sentido, Auden acrescenta que o drama está “cheio de lacunas, tanto na ação quanto na motivação”. Não é fácil contradizer dois críticos que são, ao mesmo tempo, dois dos maiores poetas de língua inglesa dos últimos cem anos. Mas, então, como explicar a sedução que Hamlet exerce há tantos séculos sobre os estudiosos e amantes da literatura? Se é uma peça cheia de equívocos e inconsistências, por que se tornou o trabalho mais estudado e admirado de Shakespeare?

Em certo sentido, Eliot e Auden evidentemente estão certos ao sustentar que a obra tem lacunas e cenas “supérfluas”. Mas cabe aqui perguntar: qual é o problema disso? Esse tipo de “falhas” não é exclusivo de Shakespeare nem de Hamlet, e é encontrado em outras obras consagradas da literatura universal. Um dos mais reconhecidos estudiosos de Cervantes, Martín de Riquer, escreve que o Dom Quixote apresenta alguns defeitos, frutos todos eles da precipitação com que certos capítulos parecem ter sido escritos. Por sua vez, dentre as obras de Dostoievski, a sua preferida por muito tempo foi O idiota; no entanto, a espontaneidade narrativa e o caráter fortuito da ação fazem “desse romance a mais desorganizada das obras mais longas do autor e a mais difícil de analisar a partir de alguma perspectiva unificada”.

A crítica de Eliot chega a ser paradoxal quando nos lembramos da sua “poética do fragmento”, característica de várias de suas obras mais bem conseguidas. Ele mesmo dizia que freqüentemente escrevia poemas em separado e só depois via a possibilidade de fundi-los em um conjunto, perfazendo uma espécie de todo. Ora, Hamlet parece ter sido escrito, em boa parte, exatamente dessa maneira. Isso explica os diversos monólogos e situações da peça que, em um primeiro momento, podem parecer não ter relação direta entre si ou serem mesmo dispensáveis, mas que, em conjunto, formam um todo fortemente impressionante.

Ademais, Shakespeare utilizava de maneira habitual materiais previamente publicados por outros autores para servir de base para seus enredos. Esse método pode gerar “incoerências”, pois neste caso o enredo se origina de uma narrativa que será bastante modificada antes de atingir a forma final, mas é inegável que quase sempre funcionou extremamente bem. Concretamente, Shakespeare empregou, para produzir Hamlet, a história do príncipe dinamarquês Amleth, redigida no século XII por Saxo Grammaticus, no livro Historiae Danicae, e que deve ter chegado ao conhecimento do nosso autor por meio da versão de François de Beelforest, em Histories tragiques (1570). Provavelmente também foi influenciado pela Tragédia espanhola, de Thomas Kid, um drama de vingança hoje praticamente esquecido. Essa mistura pode gerar dificuldades e certos desencaixes, mas tudo isso acaba por enriquecer e tornar mais verdadeiro o drama teatral.

A vitalidade de Hamlet está em que espelha a realidade humana, cheia de inconsistências, incoerências, ações impensadas e coincidências inesperadas. Como escreveu Samuel Johnson, as peças shakespearianas “exibem o estado real da natureza sublunar, que tem partes de bem e de mal, alegria e tristeza, misturadas em uma infinita variedade de proporção e inumeráveis modos de combinação”. Não existe nenhuma vida humana absolutamente coerente e racional, e as obras literárias que tentaram ser “científicas” na composição da sua trama e na construção das personagens foram todas elas “certamente um fracasso artístico”.

Evidentemente, a arte sempre passa por uma técnica e exige certa coerência, mas esta não deve ser bigger than life, sob pena de chegar a algo artificial, sem força nem impacto. Como lembrava Chesterton, “se algum ato humano pode grosso modo ser considerado sem causa, trata-se sem dúvida de um ato menor de um homem cordato: assobiar enquanto passeia, golpear o capim com uma bengala, bater os calcanhares no chão ou esfregar as mãos. […] São exatamente essas ações despreocupadas e sem causa que o louco jamais conseguiria entender; pois o louco (como o determinista) em geral enxerga causas demais em tudo”. Shakespeare não era louco, e por isso foi capaz de escrever situações e cenas “inúteis” que, ao mesmo tempo, estão carregadas de sentido humano.

O mergulho profundo na realidade

A questão crucial de Hamlet, que gera mais controvérsias entre os críticos e leitores, é a apresentada por Harold Bloom: “Como caracterizar a melancolia de Hamlet nos primeiros quatro atos, e como explicar a superação da mesma, no quinto ato, em que Hamlet alcança posicionamento tão singular?”

A melancolia de Hamlet, em um primeiro momento, parece ter sido causada pelos eventos que nos são narrados no início da peça: seu pai havia morrido poucas semanas antes; sua mãe viúva, a rainha Gertrudes, tinha-se casado rapidamente com Cláudio, irmão do rei morto e agora seu sucessor na coroa; pouco depois, o fantasma do falecido rei aparece a Hamlet, contando-lhe que fora assassinado por Cláudio e clamando para que o filho o vingue. De fato, é preciso reconhecer que não lhe faltavam motivos para estar deprimido…

No entanto, na crítica já citada do Hamlet, T.S. Eliot sustenta que a personagem principal é dominada por uma emoção inexprimível, por ser um excesso em relação aos fatos que aconteceram. Realmente, o príncipe não está desgostoso apenas com sua mãe, o rei usurpador e alguns membros da corte dinamarquesa; o seu sentimento derrama-se sobre toda a existência. Apesar dos motivos que a justificam, há nela algo de cósmico, superior aos eventos que a causaram.

Eliot considera essa inadequação entre os sentimentos de Hamlet e os fatos que os geraram uma falta que compromete o valor artístico da peça. Sem concordar com ele, Bloom sustenta que “logo constatamos que o príncipe transcende a peça. […] Algo em Hamlet parece exigir (e fornecer) evidências relacionadas a esferas que estão além dos nossos sentidos”. O crítico americano está certo em dizer que Hamlet transcende a peça, mas não repara que isso acontece porque transcende o mundo. Este é um dos pontos centrais: Hamlet teve um choque de realidade, sofreu um “mergulho profundo” na existência, e passou a ter uma visão diferente de tudo o que o cercava. Viu mais do que a maioria das pessoas jamais fará, e por isso fica como que fora do mundo, observando-o de um ponto de vista privilegiado, até parecendo louco para muitos dos que o rodeiam.

Aqueles que conversam ou ouvem o príncipe, apesar de perplexos com as suas afirmações, percebem que estas são de alguém com inteligência penetrante. Em determinado momento da ação, o rei Cláudio comenta:

Nem o que disse, embora um pouco estranho,

Parecia loucura. Há qualquer coisa

Na qual se escuda essa melancolia,

E eu prevejo que, abertas as comportas,

Venha o perigo [1].

Por sua vez, Polônio pensa em voz alta sobre Hamlet:

Como suas respostas são perspicazes. É uma felicidade que a loucura alcança, às vezes, e que a razão e a sanidade não têm a sorte de encontrar”.

Uma série de monólogos e diálogos de Hamlet denotam sua inteligência e sagacidade, bem como a tristeza, que podemos chamar de “metafísica”, que inunda a sua alma. Por exemplo, um diálogo com Polônio, a respeito da recepção a alguns atores que chegaram a Elsinore:

“Pol.: Senhor, tratá-los-ei de acordo com o seu merecimento.                                                

Ham.: Pelo amor de Deus, homem, muito melhor! Tratai cada homem segundo seu merecimento, e quem escapará à chibata?”

Diz a Ofélia, a quem ainda ama, palavras que mostram um conhecimento superior de si mesmo e da espécie humana:

“Entra para um convento: por que desejarias conceber pecadores? Eu próprio sou passavelmente honesto; mas poderia acusar a mim mesmo de tais coisas, que seria melhor que minha mãe não me tivesse concebido: sou muito orgulhoso, vingativo, ambicioso; com mais erros ao meu alcance do que pensamentos para expressá-los, imaginação para dar-lhes forma ou tempo para cometê-los. O que podem fazer sujeitos como eu a arrastar-se entre o céu e a terra? Somos todos uns rematados velhacos; não acredito em nenhum de nós. Entra para um convento”.

No mesmo sentido, abre-se com dois companheiros, mostrando que sua insatisfação, além de ser com o Homem, é com todas as coisas que o rodeiam:

Ultimamente – não sei por quê – perdi toda a alegria, desprezei todo o hábito dos exercícios, e, realmente, tudo pesa tanto na minha disposição que este grande cenário, a terra, me parece agora um promontório estéril; este magnífico dossel, o ar, vede, este belo e flutuante firmamento, este teto majestoso, ornado de ouro e flama – não me parece mais que uma repulsiva e pestilenta congregação de vapores. Que obra de arte é o homem! Como é nobre na razão! Como é infinito em faculdades! Na forma e no movimento, como é expressivo e admirável! Na ação, é como um anjo! Em inteligência, é como um Deus! A beleza do mundo! O paradigma dos animais! E, no entanto, para mim, o que é esta quintessência do pó?”

 O problema por que certos estudiosos não conseguem compreender a “melancolia” de Hamlet está na falta de conceitos sobre a “noite escura” da alma, a tristeza decorrente de observar a fugacidade, limitação e defeito de tudo o que existe sob o sol. Nas concepções meramente psicanalíticas e materialistas da existência, não há maneira de compreender a sede de infinito, a busca de plenitude que está na alma de cada ser humano, e, conseqüentemente, entender a dor causada pela insatisfação com as coisas criadas. Trata-se de uma crise propriamente espiritual, que não pode ser simplesmente curada com alguns medicamentos ou mediante a ficção de que não existe.

O príncipe dinamarquês, através das decepções com a conduta da mãe e do tio, é
levado a uma nova percepção da realidade que transcende os eventos concretos que a causaram. Essa transformação é narrada com muita freqüência por poetas, pensadores e religiosos; na verdade, é parte integrante da experiência humana. Hamlet parece estar tomado pelo mesmo estado espírito que levou Camões a escrever em “Sobre o desconcerto do mundo”:

Quem pode ser no mundo tão quieto,

ou quem terá tão livre o pensamento,

quem tão exprimentado e tão discreto,

tão fora, enfim, de humano entendimento

que, ou com público efeito, ou com secreto,

lhe não revolva e espante o sentimento,      

deixando-lhe o juízo quase incerto,                

ver e notar do mundo o desconcerto?

Daí a impropriedade de considerar que o príncipe esteja melancólico, ou que seu estado de espírito seja fora de proporção com os fatos presentes na peça, ou ainda que seja um cético. Hamlet sofre porque os fundamentos do seu mundo foram revirados, e percebe que não eram sólidos nem íntegros, como antes os considerava. Percebe que praticamente nada do que conhece pode alegrá-lo, pois tudo é manchado e finito.

A superação da angústia

Procuramos responder a primeira parte da questão de Harold Bloom, isto é, o motivo da “melancolia” de Hamlet nos quatro primeiros atos da peça. Agora, será mais fácil entender como a superou no Quinto Ato.

Antes de tudo, é importante verificar que o príncipe não deixa de agir mesmo quando está envolvido nas suas trevas interiores. Ao contrário do que ocorreria com alguém simplesmente depressivo, Hamlet procura saber se a visão do fantasma é verdadeira e se deve executar a vingança de que foi encarregado. Além disso, precisa agir com toda a cautela, pois Cláudio é considerado rei legítimo pela população e pela corte, e sua pessoa é sagrada.

Por meio de expedientes engenhosos, certifica-se da culpa do usurpador e da veracidade das palavras do espectro. Consegue, com sensatez e o auxílio da Fortuna, sobreviver a um plano traiçoeiro de levá-lo à morte. No decorrer da ação, Hamlet vai amadurecendo para sua missão, que não é uma mera vingança, mas a purificação de toda a Dinamarca, especialmente dos cortesãos e nobres que o rodeiam. Essa purificação virá pela morte e pela tragédia, mas será levada a cabo de maneira admirável.

Ao analisar tudo o que lhe ocorrera até então, de modo principal a fuga da morte que lhe havia sido preparada, Hamlet se reconhece levado pela Providência divina de um modo

irrefletido,                                                  

E a irreflexão me seja abençoada,

Pois nossa insensatez nos vale às vezes,

Quando falham os planos bem pensados,

Para ensinar-nos que há um deus guiando

Nosso fim, seja nosso embora o início.

 Apesar de saber que poderá morrer, o príncipe enfrenta seu destino. Percebe que o rei preparou-lhe uma nova cilada, mas não foge dela; antes, utiliza-a para cumprir seu papel. Antes de ir para o duelo no qual terminará por morrer traiçoeiramente – não sem antes eliminar o monarca usurpador e assassino –, quando pressente que seu fim pode estar próximo, Hamlet tem um importante diálogo com seu amigo Horácio:

Hor.: Se o teu espírito rejeita alguma coisa, obedece-lhe; eu evitarei que venham para cá, dizendo que não estás disposto.                                                                                                                  

“Ham.: De modo algum; nós desafiamos o agouro; há uma providência especial na queda de um pardal. Se tiver que ser agora, não está para vir; se não estiver para vir, será agora; e se não for agora, mesmo assim virá. O estar pronto é tudo: se ninguém conhece aquilo que aqui deixa, que importa deixá-lo um pouco antes? Seja o que for!”

 O príncipe dinamarquês não venceu propriamente a melancolia (porque não a tinha!), mas sua crise interior terminou com uma visão equilibrada e profunda da realidade, na qual tudo está em seu devido lugar. A percepção da fugacidade, maldade e fragilidade das realidades criadas é verdadeira, mas não esgota toda a verdade; há um bem por trás de tudo, uma providência e um sentido que a tudo regem. Quem consegue passar pela “imersão radical” na realidade sem se deixar levar pelo desespero, termina por adquirir uma sabedoria mais completa. Essa sabedoria leva a que Hamlet chegue ao final e faça o que deve fazer.

São verdadeiras as divertidas e profundas palavras de Chesterton sobre o príncipe: “Se Hamlet efetivamente tivesse sido um cético, não haveria a tragédia de Hamlet. Se tivesse tido qualquer ceticismo de que lançar mão, poderia tê-lo usado desde o princípio com relação ao fantasma altamente improvável do seu pai. Poderia ter considerado aquela figura eloqüente uma alucinação ou alguma outra coisa sem significado, ter-se casado com Ofélia e continuado a comer pão com manteiga. Se Hamlet fosse um cético, teria tido uma vida fácil. […] Mas ele era o oposto total de um cético. Era um pensador”.

 Conclusão

Hamlet é uma peça que sempre desafia e empolga. Os caminhos para abordá-la são inúmeros: é possível entendê-la como um drama político ou uma lição a respeito das relações entre os sexos, ou ainda uma análise meramente psicológica de alguns personagens exemplarmente construídos. Contudo, é necessário lembrar sempre que essas análises parciais são incapazes de compreender a peça em toda a sua profundidade.

Assim, a melhor abordagem de Hamlet, e de todas grandes obras literárias, será habitualmente a filosófica e, mais ainda, a teológica, que engloba todos os aspectos da vida humana. Shakespeare trata da condição humana em toda a sua radicalidade, sem admitir escapismos ou compromissos. Não há nada errado em estudá-lo a partir de uma ciência particular, como a psicologia, a política, ou mesmo a ética. Entretanto, apenas a filosofia e a teologia têm a amplitude necessária para compreender melhor o que um autor da sua categoria nos quer dizer.

A crise espiritual de Hamlet, tão bem construída por Shakespeare, é uma constante na vida dos seres humanos que aceitam a profundidade da vida. A superação dessa crise leva à ação purificadora, que terminará causando a morte do protagonista. No entanto, para Shakespeare e seus contemporâneos, a morte não era o pior nem o fim de tudo. A vida de Hamlet encontra sua plenitude no momento em que ele aceita sua morte por um motivo maior.

Hamlet e outras obras do seu nível nos lembram o que é ser humano, em toda a sua fragilidade e grandeza. Esse é um motivo mais que suficiente para que a continuemos lendo e aprofundando o que ela nos ensina.

 

Renato José de Moraes é Mestre pela Faculdade de Direito da USP e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS).

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 1, Jun/2008. Disponível [online] no link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-1/hamlet-e-o-desconcerto-do-mundo/

Dom Quixote e a superação da melancolia (por Renato José de Moraes)

Literatura | 26/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha é um clássico autêntico. Segundo as sempre discutíveis normas de “leituras obrigatórias para se chamar culto”, a obra de Cervantes costuma estar entre as primeiras leituras exigidas. No entanto, referir-se a uma “obrigação de ler” quando falamos do Quixote soa estranho, pois fruir do livro de Cervantes é antes um enorme prazer, uma autêntica dádiva! O mesmo não acontece com a maioria dos livros chamados “canônicos”, muitos dos quais têm o dom de enfadar e afastar da leitura as vítimas que se julgam obrigadas a enfrentá-los (não vamos citar exemplos, para evitar ferir suscetibilidades…).

Cabe então perguntar: por que Dom Quixote é um livro tão bom? Qual a razão de ser sempre contemporâneo a nós, muito mais do que a quase totalidade dos livros recém-lançados? Como Cervantes tornou a sua criação um dos livros mais importantes e deliciosos de todos os tempos?

Responder a essa pergunta não é fácil. A apreciação da grande arte dificilmente pode ser traduzida em palavras ou raciocínios. Antes, experimentamos que algo é grandioso e excepcional, mas não sabemos explicar exatamente o porquê. Há um mistério da arte, que tocamos de maneira especial ao examinar um livro como Dom Quixote. Apesar dessa dificuldade, vamos tentar traçar algumas considerações que nos ajudem a desfrutar dessa leitura, ao mesmo tempo em que buscamos desvendar parte desse mistério próprio da arte.

Comecemos com a vida de Cervantes. Sua personalidade formou-se em um ambiente peculiar – a Espanha do final do século XVI e início do século XVII -, durante uma vida cheia de percalços e aventuras, elementos todos que se refletirão em sua obra. Assim, é importante conhecer algo da vida do criador, de modo especial os eventos marcantes, que nos esclarecerão aspectos do seu livro.

Miguel de Cervantes y Saavedra nasceu, provavelmente, em 29 de setembro de 1547, em Alcalá de Henares, uma cidade de Castela. Sua família não tinha lá muitos meios econômicos, e seu pai, um modesto cirurgião, chegou a ser preso por dívidas. Em 1569, publicou a sua primeira poesia, e nesse mesmo ano foi para a Itália, fugindo por haver ferido em duelo um fidalgo (embora não seja certa essa atribuição, pois há quem argumente que se trataria de um homônimo).

Pouco depois, em 7 de outubro de 1571, participou da batalha naval de Lepanto, destacando-se pelo heroísmo. Nesse evento singular, por ele mesmo descrito como “a mais alta ocasião que viram os séculos passados, os presentes, e que não esperam ver os vindouros”, teve a mão ferida em combate.

Em 1575, quando voltava para a Espanha, seu barco foi capturado por corsários turcos, que o levaram cativo para Argel, onde passaria cinco anos. Neste período, tentou fugir quatro vezes, sempre levando seus companheiros; capturado todas as vezes, sempre assumiu diante das autoridades turcas a responsabilidade pelas tentativas de fuga. Decidiu-se deportá-lo para Constantinopla, de onde a fuga seria impossível. No dia 19 de setembro de 1580, quando já estava no navio “com duas correntes e um grilhão”, dois padres trinitários trouxeram a quantia exigida pelo seu resgate e o libertaram.

Ao voltar à Espanha, Cervantes relacionou-se com uma mulher casada, com a qual teve uma filha, Isabel. Em 1584, casa-se com Catalina de Salazar y Palacios, jovem de 22 anos. No ano seguinte, publicou La Galatea, uma novela pastoril. Durante esses anos, trabalhou como provedor de mantimentos para as galeras reais, e foi acusado – tudo indica que injustamente – de haver vendido trigo sem autorização, o que acarretou em sua primeira prisão, em 1592. Seria preso novamente em 1597, por não pagamento de dívidas, em conseqüência da quebra do banqueiro junto ao qual depositara quantias relacionadas com o seu trabalho. Foi nesses três meses de cárcere que começou a escrever o Don Quijote de la Mancha

A primeira parte deste livro foi publicada em 1604, e seu sucesso foi grande e imediato; no entanto, não acabaram aí as dificuldades na vida do nosso herói. Em 1605, uma pessoa foi morta em frente à sua casa em Valladolid, e esse fato levou-o novamente à prisão por uns poucos dias, sendo depois comprovada a sua inocência. E não faltaram falatórios suspicazes sobre a moralidade do seu lar, no qual também moravam as suas irmãs.

A partir de 1613, impulsionados pelo sucesso de Dom Quixote, foram publicados outros livros de Cervantes, sendo o último o já póstumo Persiles y Segismunda (1617). O êxito literário que encontrou junto ao público não trouxe consigo o reconhecimento das suas excepcionais qualidades de escritor pelos seus “colegas de profissão” (afinal, dizem que “é a inveja que move o mundo”…). Numa época em que os livros eram caros e os direitos autorais oscilavam entre míseros e inexistentes, a remuneração de um autor dependia essencialmente de mecenas, a que tinha acesso por meio dos seus pares; e o resultado foi que Cervantes encontrou na miséria uma companheira constante dos seus anos.

Morreu em Madri, em 22 de abril de 1616, e foi enterrado em um convento de freiras trinitárias, entre as quais talvez estivesse a sua filha Isabel de Saavedra. As monjas mudaram-se pouco depois para outro convento, e com isso perdeu-se o rastro do seu túmulo. Por isso, não é possível hoje identificar os seus restos.

Esses poucos dados da vida de Cervantes servem para mostrar um aspecto um tanto surpreendente: a antítese entre uma existência cheia de desilusões e dificuldades, e uma obra com um fundo alegre e otimista.

Realmente, Cervantes nada tem de atormentado, mas mostra-se alguém que cresce diante das dificuldades sem se deixar abater por elas. Mais ainda, parece que o sofrimento torna o seu humor mais aguçado e verdadeiro, porque não esquecia a realidade da aflição e da desgraça. Em certo sentido, podemos aplicar a ele os versos de Manuel Bandeira, tão distantes do modo de pensar hedonista e burguês:

Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

Nesse mesmo sentido, impressiona a serenidade com que escreve sobre a morte que se avizinha, em uma dedicatória na qual cita uns versos então bem conhecidos:

Puesto ya el pie en el estribo,
con las ansias de la muerte,
gran señor, ésta te escribo.

“Ontem deram-me a extrema-unção, e hoje escrevo esta; o tempo é breve, as ânsias crescem, as esperanças mínguam, e com tudo isso levo a vida com o desejo que tenho de viver […]. Mas se está decretado que tenha de a perder, cumpra-se a vontade dos céus”.

Um livro como o Dom Quixote só podia ser produzido por alguém com essa têmpera. As dificuldades da vida não foram capazes de criar nele o desespero ou a amargura – tão característicos de uma época de vitalidade mais frágil, como a nossa -, mas serviram de fundamento para uma construção artística otimista e admirável. Penso que a maioria de nós, se tivéssemos passado pela metade do que sofreu Cervantes, se encerraria provavelmente em um quarto escuro, remoendo as próprias amarguras e refletindo sobre como o mundo é injusto e como todos são infelizes. Já o nosso autor relevou – melhor ainda, assimilou – tudo isso e o plasmou no Quixote.

Por mais interpretações negativas que se tenham formulado sobre esta obra (“sublimação do fracasso”, “sarcasmo amargo”), por mais que tenham tentado descobrir nela amargura e supostas “tragédias”, o Dom Quixote é inegavelmente um livro humorístico, e mais, de um humor leve e amável. Essa opinião, sustentada por Martín de Riquer no admirável estudo Cervantes y el “Quijote”, também encontra guarida no Prólogo do livro, em que Cervantes põe na boca de um amigo imaginário estas palavras:

“Procurai também que, ao ler vossa história, o melancólico seja movido ao riso, o risonho ria mais, o simples não se canse, o discreto se admire da imaginação, o grave não a despreze e o prudente não a deixe de louvar”.

 

Não há dúvida que Cervantes foi bem sucedido ao seguir esse conselho, pois “quem não ri ao ler o Dom Quixote, ou não entendeu o romance, ou não possui a capacidade de rir” (Martín de Riquer).

Esse humor surge já da finalidade primeira do livro, que é “derribar a máquina mal-fundada dos livros de cavalaria, detestados por tantos e louvados por muitos mais” (Prólogo). Os romances de cavalaria – os best-sellers da época – enchiam a cabeça dos leitores com narrativas inverossímeis e de baixa qualidade artística. Foi o que aconteceu com Dom Quixote, que

 

“enfrascou-se tanto na sua leitura que passava as noites lendo de claro em claro, e os dias de turvo em turvo; e assim, do pouco dormir e do muito ler, secou-se-lhe o cérebro, de maneira que veio a perder o juízo”.

 

Por outro lado, o romance “não é uma sátira da cavalaria ou dos ideais cavaleirescos, […] mas a paródia de um gênero literário muito em voga durante o século XVI. O Quixote não é, como creram alguns românticos, uma burla do heroísmo e do idealismo nobre, mas sim a burla de uma espécie de livros que, por seus exageros extremos e sua falta de medida, punham em ridículo o heróico e o ideal” (Martín de Riquer).

Cervantes não tem um espírito cético ou irônico – como o encontramos em Machado de Assis ou em Montaigne -, mas um olhar compreensivo e terno para com o ser humano. Por isso, há diversos momentos de nobreza em seu livro, muitas vezes em personagens secundárias; aliás, não podemos esquecer que o próprio autor foi heróico inúmeras vezes, de modo especial em Lepanto e no seu cativeiro em Argel.

Sendo a sua intenção desmoralizar os livros de cavalaria, Cervantes fez muito mais do que isso: como acontece freqüentemente com os grandes escritores, sua obra acaba sendo muito melhor do que a encomenda. Dom Quixote e Sancho Pança formam uma dupla que passa por aventuras que nos emocionam, elevam e divertem. O diálogo entre os dois é fundamental para o bom desenvolvimento do romance, e o autor introduz nele inúmeras pérolas de sabedoria, sempre com graça e oportunidade. Assim, o Dom Quixote nos leva a refletir sobre a vida, a honra, a nobreza, a fidelidade, o idealismo, ao mesmo tempo que a estória do cavaleiro e do seu escudeiro se desenrola à medida que encontram personagens secundárias muito bem construídas: nobres, fazendeiros, hospedeiros, mulheres da vida, letrados, barbeiros, e assim por diante.

Temos diálogos e aventuras em justa medida, com os episódios ligando-se com naturalidade e enriquecendo-se mutuamente. Aqui vemos que Cervantes é escritor de qualidades excepcionais, que sabe contar maravilhosamente histórias simples. A sua prosa é de uma leveza, de uma fluidez, de uma plasticidade e expressividade praticamente insuperáveis. Embora encontremos muitas páginas admiráveis em outras obras suas, especialmente nas Novelas ejemplares, poucas atingiram a qualidade do seu escrito mais famoso.

Otto Maria Carpeaux, no sugestivo “Ensaio de análise em profundidade”, lembra-nos de que “a literatura universal chega ao cume na criação daquelas personagens típicas, representantes simbólicas da humanidade”. Aqui encontramos novamente uma pista da grandiosidade do Quixote, símbolo de toda a humanidade (juntamente com seu fiel escudeiro…). Na sua loucura, considerava-se um cavaleiro andante chamado a vencer gigantes, salvar princesas, desfazer todo gênero de agravos, “granjear fama e renome eternos”. No entanto, a verdade é que se debatia com moinhos de vento, chamava de elmo a bacia de um barbeiro, era espancado com uma freqüência muito maior que a desejável… Enfim, havia uma enorme distância entre o que pensava de si e a realidade dos seus “feitos”, e isso é parte fundamental da sua loucura.

Somos forçados a reconhecer humildemente que todos temos muito dessa loucura. Julgamo-nos heróis, sábios, nobres e importantes, mas acabamos deparando-nos com a realidade da nossa mediocridade, mesquinhez, covardia e comodismo. Muitas vezes custa-nos aceitá-lo, e reagimos como o nobre cavaleiro, que atribuía a maior parte das suas desgraças à inveja de “encantadores e magos”.

Ao mesmo tempo, a loucura ajuda-nos a buscar metas mais altas, que os “prudentes” consideram tolas, mas que dão sentido aos nossos esforços. Somos bem menos do que pensamos, mas… que seria de nós sem os sonhos? Sem ideais, a vida do homem não vale nada, e o Dom Quixote lembra-nos disto. A loucura de Alonso Quijano, o bom, fez dele o Dom Quixote de La Mancha; e graças a isso –
entre muitas surras, situações ridículas e decepções -, o cavaleiro realizou também grandes feitos, ajudando a consertar a vida de boa parte das pessoas que o rodeavam. Podemos colocar na boca do Cavaleiro da Triste Figura aquilo que Fernando Pessoa atribuía a Dom Sebastião de Portugal:

 

Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

 

Haveria muito mais que falar sobre esse livro. Mas terminemos agradecendo a Cervantes por nos ter dado o seu Dom Quixote. Este, florescendo em um terreno marcado por contratempos e tristezas, mostra-nos que o seu autor soube superá-las; que, se era um grande escritor, soube ser um ser humano ainda maior.

 

Renato José de Moraes é Mestre pela Faculdade de Direito da USP e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS).

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 2, Dez/2008. Disponível [online] no link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-2/dom-quixote-e-a-superacao-da-melancolia/

 

Crítica do desejo humano – por Pedro Sette Câmara

Literatura | 15/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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Mais um pensador francês contemporâneo e inclassificável? Antes de pensar “não, obrigado”, veja algumas credenciais de René Girard: apesar de ter sido apresentado ao Brasil pela teologia da libertação, seu nome é o primeiro de um abaixo-assinado de intelectuais que pediam ao Papa Bento XVI a volta da missa “tridentina”; ele fez sua carreira não na própria França, que considera um tanto senil, mas nos EUA, onde diz estar “cercado de vida”, e, se você pensa que por isso ele se transformou em conservador, é preciso dizer logo que sua principal crítica a Nietzsche e Freud é que… eles não foram longe o suficiente.

Os fundamentos de seu pensamento foram apresentados em seus dois primeiros livros, Mensonge romantique et verité romanesque (“Mentira romântica e verdade romanesca”, publicado em inglês como Deceit, Desire and the Novel) e La violence et le sacré (publicado pela Paz e Terra no Brasil como “A violência e o sagrado”) e consistem, muito resumidamente, na teoria do desejo mimético e na explicação da origem dos mitos como falsas acusações levantadas contra bodes expiatórios. Girard observa que desde Platão o homem estuda diversos tipos de imitação, exceto um: a imitação dos desejos. Para crer que temos uma identidade própria, precisamos crer que nossos desejos tiveram sua origem em nós mesmos – na verdade, nada mais cafona ou inaceitável do que admitir que queremos algo porque nosso próximo quer. No entanto, pergunte a qualquer mulher se algo torna algum homem mais atraente do que ter ao seu lado outra mulher indubitavelmente maravilhosa. Não se trata exatamente de uma inveja (se aceitamos a definição de inveja como a tristeza pelo bem alheio), mas do desejo de ser o outro – desejo que existe porque os outros sempre parecem maravilhosos, sensacionais, intensos, e nós mesmos parecemos, a nossos próprios olhos, mesquinhos e banais. Também é fácil verificar que sempre atribuímos a objetos (concretos e abstratos) o poder mágico de transformar nossa existência: quando eu tiver aquela engenhoca, aquele carro, aquela casa, aquela pessoa, aquela educação, o resto maravilhoso da minha vida vai começar. Como nenhum objeto tem esse poder, vamos caminhando de frustração em frustração. Quando diversas pessoas desejam um mesmo objeto que não pode ser compartilhado, temos uma crise que só pode ser resolvida pelo sacrifício de um culpado – aquele que supostamente impede a posse do objeto. Se isso parece muito abstrato, basta pensar nas multidões que, durante a visita de George W. Bush ao Brasil, apedrejaram o consulado americano no Rio de Janeiro.

Isso não é tudo: só há crise porque desejamos algo que pertence ao próximo. Quando preferimos imitar um modelo distante – como os cristãos imitam Cristo, como os autores não tão antigos imitavam os mais antigos, os clássicos –, não temos problema em declarar nosso amor e em escancarar que estamos imitando, que esperamos ser julgados por aquele modelo e não por uma medida “nossa”. A existência de modelos distantes e comuns é fundamental para a coesão de uma sociedade – e provavelmente a nossa ainda será melhor entendida quando considerarmos que zombamos dos mesmos tipos, mas não respeitamos tipo nenhum. Agora, o próprio Girard admite que, apesar de logo ter reconhecido essa “boa” mímese, sua obra foi quase toda devotada ao estudo da mímese “má”. Para quem não a conhece, um excelente aperitivo é Mimesis & Theory: Essays on Literature & Criticism, 1953-2005, publicado em 2008 pela Stanford University Press, que reúne 20 artigos avulsos de Girard em publicações acadêmicas. Destes, 13 foram escritos originalmente em inglês. Quase todos tratam de um ou mais autores específicos: Saint-John Perse, Sartre, Tocqueville, Stendhal, Proust, Dostoiévski, Shakespeare; outros lidam diretamente com questões teóricas, remetendo-as – o que não pega bem em muitos departamentos universitários ditos de respeito – à própria vida. Assim, por exemplo, em Critical Reflections on Literary Studies, de 1966, Girard já considera que há um engessamento da crítica causado pela burocratização universitária e, na contramão da pseudo-prudência acadêmica, defende aquilo que uns consideram reducionismo: “Todo pensamento vigoroso mais cedo ou mais tarde acaba chegando aos próprios fundamentos; vai terminar, assim, numa redução. Podemos, é claro, continuar ignorando nossos primeiros princípios, achando que somos os únicos a não os ter, e até nos vangloriarmos desse vácuo: mas nada disso contribui para nosso pensamento. […] A fobia do reducionismo ameaça emascular todo o pensamento crítico” (p. 166).

Este resenhista crê que o filé do livro está na seqüência de três ensaios – “Innovation and Repetition”, “Feodor Dostoievsky: Mimetic Desire in the Underground” e “Conversion in Literature and Christianity” – que antecede o último, sobre Romeu e Julieta. No primeiro deles, Girard começa observando que mesmo na querelle des anciens et des modernes a disputa era em torno de quais os melhores modelos, os antigos ou os modernos, não da idéia mesma de imitação. Com o surgimento da obrigação de originalidade no romantismo – não diminuída nem mesmo pela impressão cada vez mais forte de que, em arte, “tudo já foi feito” –, hoje chegamos à paradoxal situação de a imitação aberta e admitida ter-se tornado, se não original, ao menos singular. Mas Girard não se restringe às belas artes e leva sua análise para o âmbito da competição capitalista, mostrando que o livre mercado é uma forma de conter pacificamente a mímese má, e que inovação e imitação fazem parte do jogo entre as empresas. No segundo, que discute Notas do subsolo, de Dostoiévski, Girard tenta reduzir a uma lei aquilo que o autor russo manteve como metáfora: “as pessoas do subsolo são irresistivelmente atraídas por aqueles que os desprezam, e sentem um desprezo irresistível por aqueles que se sentem atraídos por elas” (p. 253). Isso pode ser encontrado na primeira parte do romance, a parte “teórica”, em que Dostoiévski afirma que o desejo de independência é maior do que aquilo que os iluministas chamavam de “interesse próprio”. Na famosa passagem da “mão invisível” de A riqueza das nações, Adam Smith recorda que não é por caridade que o açougueiro trabalha, mas por interesse próprio; Dostoievski quer demonstrar pelas histórias de seu personagem que o desejo de mostrar-se superior, independente, autodeterminado – isto é, de mostrar a espontaneidade dos próprios desejos –, é maior do que o desejo de beneficiar-se. Desejo esse que não é outra coisa do que o ressentimento de não ser Deus. O terceiro ensaio leva a questão adiante, mostrando uma analogia entre a conversão cristã e a percepção que leva um autor de talento a se transformar em um autor verdadeiramente grande: a capacidade de perceber a própria finitude e acusar a si mesmo, em vez de acusar os outros ou alguma abstração (a sociedade, os deuses, o mercado, o neoliberalismo). O grande autor, em vez de buscar a realização pelo desejo, sabe que deve suspeitar dele, e, sempre segundo Girard, freqüentemente se transforma em parodista de suas primeiras obras. A “conversão” está em passar a sacrificar a si próprio (Lucas 9, 24; Mateus 8, 35-36) e assim escapar do círculo vicioso de frustrações que, levado ao paroxismo, é o “subsolo” de Dostoiévski.

Duas coisas acabam chamando a atenção na leitura de Girard: primeiro, que, ao contrário de boa parte da crítica, ele não se esquiva do mundo da vida. Em vez de circunscrever-se a um suposto mundo isolado das obras literárias, Girard o tempo inteiro considera que elas se referem a experiências humanas possíveis. Sua tese inicial, aliás, não é literária, mas psicológica ou antropológica; é uma tese sobre um aspecto do desejo, não das obras de arte. Segundo, pode-se dizer que ele inverte a tendência de certa crítica contemporânea de querer considerar-se também “arte” ou ao menos atividade criadora, pois Girard vê-se não como o crítico que interpreta obras artísticas, mas como o intérprete de obras artísticas que contêm – não apenas sob a forma de exemplos, mas de comentários diretos – teorias sobre o desejo. É a arte que, por fim, que se transforma em “crítica” do ser humano.

Pedro Sette Câmara é poeta, tradutor e colunista da Dicta&Contradicta.

Dados técnicos: René Girard, Mimesis & Theory. Stanford University Press, 2008. 334 pp.

Texto publicado na revista Dicta&Contradicta, edição nº3, Jun/2009, principal meio impresso do Instituto de Formação e Educação (IFE).

 

A Amizade ou Cícero e Riobaldo estão de acordo

Literatura | 27/08/2014 | | IFE CAMPINAS

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PortraitLHvers1870-dois-amigos-DP“Amigo para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual para o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e todos os sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é. Amigo meu era Diadorim.”[1]

Essa é, talvez, a definição da mais bela história de amizade da literatura. Em Grande Sertão:Veredas, Guimarães Rosa conta-nos a relação entre Riobaldo e Diadorim. Quem narra a história é Riobaldo, já velho, mas que mantém viva na lembrança a grande amizade com o amigo jagunço: “Diadorim e eu, a sombra da gente uma só formava. Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem.”[2]

Antes de destrinchar o sentido desta amizade, vale a pena contar como ela se deu. Riobaldo tinha cerca de catorze anos. Como havia se curado de uma doença, a mãe fez uma promessa. O menino teria de pedir esmolas no porto para pagar uma missa. Certo dia, enquanto cumpria a promessa, apareceu um menino e os dois começaram a conversar sobre assuntos triviais: de onde vem, para onde vai. Com o passar do tempo, Riobaldo começou a se afeiçoar àquele menino e desejou que ele não fosse mais embora. O menino foi fazer um passeio de canoa e o chamou. Uma observação que Riobaldo fez, já velho e que é muito importante: “Tudo fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a gente só podia responder que sim.”[3]

Neste passeio pelo Rio São Francisco, eles pararam em um determinado ponto, desceram e ficaram “espreitando distâncias do rio e o parado das coisas.”[4] Em seguida, despediram-se e, embora não soubesse o nome do amigo, sabia que ficaria para sempre em sua lembrança: “Dele nunca me esqueci, depois, tantos anos todos.”

No excelente romance de Guimarães Rosa, o futuro uniu os dois amigos que andaram pelos sertões, fazendo companhia um ao outro. Esse fato nos leva a pensar na citação inicial deste ensaio, em que Riobaldo define o laço que os unia como um prazer de estar junto e todos os sacrifícios. Talvez seja por isso que a amizade esteja em baixa atualmente, porque se é um prazer, também é exigente, requer esforço, dedicação. Mas não é um fardo, porque nos dá riquezas que não sonhávamos que existissem sobre a terra. Um amigo, na plena acepção do termo, é a pessoa que nos mostra a grandeza que cada ser humano guarda e como o guardar é relativo, pois o tesouro que ele tinha sob seu poder foi feito para dar a outra pessoa, ao seu amigo.

É desse modo que podemos entender também a grande amizade que ligou o filósofo, poeta e grande orador Cícero (106 a.C/43 a.C) a Ático. Foi por causa do amigo que Cícero escreveu o belo diálogo Da Amizade, que “oferece um interesse único: é a obra de um amigo escrevendo ao seu mais querido amigo, após uma vida de íntima amizade”[5], diz o tradutor da obra, Tassilo Orpheu Spalding. Afirma também que a obra está baseada nas seguintes reflexões: a amizade não é procurada para satisfazer o egoísmo, mas devido a um desejo da alma, e que não há amizade sem virtude. Se nos lembrarmos do que disse Riobaldo, vemos que é o mesmo que Cícero: prazer de estar junto e não prazer por sentir prazer e todos os sacrifícios, ou seja, ter e adquirir virtudes.

Discorrendo sobre a primeira reflexão, de que não é por egoísmo, Cícero diz que o egoísta se atormenta excessivamente com os seus próprios males, o que não é próprio do amigo. Talvez esteja aí também um dos motivos pelos quais se tem uma certa desconfiança atualmente em relação à amizade. Muitas vezes, as pessoas procuram não confidentes, mas depósitos de lamúrias, no qual um eu fica girando em seu próprio eixo sem ouvir e dar espaço ao outro: não é a busca de um amigo, mas a de um terceiro ouvido. É certo que o amigo tem essa função, a de escutar o outro, mas fala ao outro, não para si mesmo, embora quando falamos a um amigo verdadeiro é como se falássemos para nós mesmos, mas não porque não lhe damos ouvido, mas porque nos compreende, ou como diz Cícero:

“Existe um homem para quem viver seja realmente viver, como diz Ênio, se não conhece a felicidade de amar e ser amado? Que há de mais doce do que ter alguém com quem ouses falar como falarias a ti mesmo? Para que serviriam tão grandes frutos na felicidade se não tivesse com quem partilhar o gozo que eles nos dão?”[6]

Sobre a segunda reflexão, Cícero e Riobaldo também estão de acordo no que diz respeito às exigências de uma amizade. Após dizer que “tira o sol do mundo quem tira a amizade da vida”, Cícero afirma que não há razão para desistir da amizade devido aos dissabores que pode vir a nos causar, já que do mesmo modo é insensato renunciar à virtude pelo fato de exigir esforço. Além disso, suportar e auxiliar o amigo nos momentos em que ser amigo de fato é mais custoso, é uma grande oportunidade para alcançarmos novas virtudes e mais, demonstrar ao amigo que a amizade não é devida a um impulso gregário ou egoísta, mas devido a um amor desinteressado. É também o que diz Riobaldo quando fala da sua amizade por Diadorim: “Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor.”[7]

Portanto, embora exista uma troca muito benéfica na amizade, ela não se resume a isso, porque é doação. E o que se dá? O que há de mais profundo no ser humano: a sua interioridade, a sua intimidade. Cícero diz que não é “tanto a utilidade partilhada pelo amigo, como o próprio amor do amigo que deleita: o que vem dum amigo sempre nos agrada, quando seu zelo por nós o inspirou”. E concluiu esta reflexão afirmando que não é a amizade que segue a utilidade, mas a utilidade segue a amizade”, ou seja, não buscamos no amigo o que nos convêm, mas a própria amizade traz consigo o que nos convêm.

A amizade, enfim, é um tipo de amor em que a alma é o que conta, como disse Riobaldo: “Diadorim e eu, a sombra da gente uma só formava. Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem”[8]. Do mesmo modo, e mostrando que as diferentes épocas viram a amizade como um bem sem preço que possa medir o seu valor, Cícero vê na busca da amigo o transbordar do amor que cada um sente por si – não como egoísmo, mas como instinto fundamental de sobrevivência e acolhimento verdadeiro da própria riqueza como pessoa:

“Se alguém ama a si mesmo, não é porque exija de si mesmo o preço desse afeto, mas porque cada um é caro a si próprio. A não ser que se transfira isto para a amizade, jamais será encontro verdadeiro: pois o verdadeiro amigo é como um outro nós mesmos. Se isto se evidencia nos animais, nas aves, nos peixes que primeiro amam a si mesmos (pois este instinto nasce com todo ser vivo), em seguida procuram e perseguem o do seu gênero para a eles se unirem, e fazem isto com tal ternura que lembra a dos homens, mais ainda no homem, onde ocorre por sua própria natureza, o qual ama a si mesmo e procura, a seguir, um coração com o qual o seu se possa unir tão estreitamente que os dois não façam senão um!”[9]

O escritor C.S.Lewis afirmou no livro The Four Loves que a baixa estima que a amizade tem atualmente é devido ao fato de que poucos a experimentam.[10] Duas grandes obras provam que vale a pena.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista e publicitário, e gestor do Núcleo de Educação do IFE Campinas.

NOTAS

[1] Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, in Ficção completa, Rio de Janeiro, 1995, Nova Aguilar, p. 119.

[2] Id. Ib., p. 160.

[3] Op. Cit. p. 70-71.

[4] Op. Cit. p.74.

[5] Op. Cit., p. 122.

[6] Op. Cit., p. 135.

[7] Op. Cit., p. 104.

[8] Op. Cit., p. 160.

[9] Marco Túlio Cícero, Da amizade. In: Da velhice e da amizade, São Paulo, Cultrix, s/d, p. 160.

[10] C.S. Lewis, Los cuatroamores, Rialp.8ª ed. p.70.

Apresentação Núcleo de Literatura

Literatura | 21/04/2014 | | IFE CAMPINAS

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A Literatura corre perigo. Esse alerta do crítico Todorov não deve passar em branco. Atualmente, a Literatura parece confinada às Universidades que, via de regra, restringem-se à discussão de teorias. A obra literária parece relegada a segundo plano. Por outro lado, surge o problema da apreensão do conteúdo de uma obra literária, o que exige uma ativa participação do leitor, um esforço de imaginação, além de complicadas operações de memória, associação e criação, algo que vai muito além do mero estudo de teorias acadêmicas.

Uma boa obra literária aguça nosso olfato existencial e nos torna sensíveis para detectar as raízes da crueldade, da maldade e da violência e, ao mesmo tempo, as da magnanimidade, da alteridade e da bondade de que somos naturalmente capazes. Quando a literatura é posta fora de toda essa dimensão, perde seu sentido último e fica parecendo as horas que perderam seu relógio. Por isso, os clássicos da literatura assim são chamados não somente pela habilidade formal com que foram criados, mas também pelo que revelam do homem para o homem. O IFE CAMPINAS pretende ser um espaço para ideias que valorizem a Literatura em toda a sua riqueza.