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Humanidades: é o fim?

Opinião Pública | 09/05/2018 | | IFE CAMPINAS

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Nessas conversas de barbeiro, ouvi o cliente ao meu lado dizer que “finalmente, mandaram um projeto de lei lá em Brasília para acabar com vários cursos de humanidades nas universidades públicas”. E arrematou afirmando que “só assim vamos parar com essa fábrica de socialistas que só serve para apoiar causas políticas perdidas e doutrinar a cabeça dos jovens com essas porcarias de cotas, ideologia de gênero e assistencialismo do bolsa-família. Vocês não viram aquela professora de história que queria matar fascistas a pau e voadoras?”.

Bom, o sujeito despejou muita doxa para uma conversa informal e muito pano para manga para uma clientela que, por não ter muito cabelo, não costuma dispensar mais que meia hora para esse tipo de compromisso estético. Não pretendo entrar nas questões nominadas por ele, mas um detalhe chamou minha atenção: o fato dele misturar alhos com bugalhos. Não dá certo, porque, embora haja semelhança entre a cabeça de alho e a do bugalho, alho e bugalho continuam sendo alho e bugalho respectivamente.

Em primeiro lugar, dou-lhe razão em relação à citada professora. O besteirol da dita cuja é incompatível com o nível universitário de sua formação e com sua condição de docente de graduação. Para ela, quem discorde de suas ideais, é fascista, embora, muito provavelmente, nem ela saiba o que diz, já que o fascismo é uma espécie de irmão siamês do socialismo: ambos nutrem um gosto pelo messianismo político, pelo estado totalizante, pela escatologia terrena e pela ausência de liberdades públicas. Parece que, por falta de argumentação, ela prefere atacar o argumentador, o que é conhecido, em lógica retórica, como falácia ad hominem.

Em segundo lugar, se for para abolir as humanidades, dentro da lógica do cliente da barbearia, é melhor acabar com a medicina, pois, a longo prazo, todos estaremos mortos e com a engenharia, já que, um dia, com todos falecidos, só restarão os escombros. Esse é o ponto.

Há muito tempo, as universidades, sobretudo as humanidades, estão bem longe dos fundamentos que se inscrevem em seus mottos (verdade, liberdade, glória, sabedoria, luz, Deus) e, por isso, enfrentam um processo de decadêcia moral e axiológica. A universidade atual está bem longe de suas origens medievais, época em que eram vistas como centros de difusão da verdade e do bem.

O discurso de ódio da aludida professora é apenas o menor dos problemas e sabemos que muito dinheiro público financia obras acadêmicas, nas humanidades, de racionalidade científica duvidosa (“integrações homoeróticas em banheiros públicos” – UFBA) ou curiosa (“a grande pensadora contemporânea Valesca Popozuda” – UFF). Esses fatos demonstram bem um certo grau de auto-estultificação da atividade intelectual em muitas das instituições de ensino superior.

Tudo isso explica, mas não justifica o fim dos cursos de humanidades. Sem tais cursos, arrisco a dizer que nem as ciências exatas ou biológicas sabem que são ciências exatas ou biológicas. Mais. A história ensina-nos a não repetir os erros do passado; a sociologia ensina-nos que nem todas as desigualdades são naturais ou defensáveis; a política ensina-nos a distinguir entre formas de governo dos destinos da cidade que respeitam ou não a dignidade da pessoa humana; o direito, por meio do justo concreto, ensina-nos que as coisas estão distribuídas e precisam ser repartidas ou devolvidas; a antropologia ensina-nos o que nós somos e a filosofia dá a forma arquitetônica e organizativa em todo o prédio do conhecimento humano.

As humanidades pavimentaram o caminho civilizatório humano. Hoje, distanciadas de seus fundamentos, colocam em abalo os pilares de séculos de saber científico. Como solução, sugiro defenestrar, do mundo acadêmico, quem subverte ciência para arma ideológica ou a reduz a uma pura doxa, sob o manto diáfano de “liberdade de cátedra”, para, depois, recomeçar as humanidades, a partir da formulação das perguntas corretas para as questões fundamentais.

Já seria um bom recomeço. Afinal, um problema bem definido é um problema parcialmente resolvido, de forma que os alhos e os bugalhos também agradecem, por não serem confundidos um com o outro. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 09/05/2018, Página A-2, Opinião.

Vida universitária e vida real?

Opinião Pública | 26/08/2016 | | IFE CAMPINAS

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vida real - toniolo

Imagem: reprodução do artigo no jornal

 

Cansado nesse momento para escrever, mas mesmo assim sem desistência, tento registrar uma experiência de pouco tempo atrás que acho importante para nossos dias, especialmente para aqueles que têm vivência em universidades públicas do País.

Dia desses, estava com um amigo em uma dessas barracas de beira de estrada que vende água de coco, caldo de cana e outras coisas boas, com ambiente familiar e bela mata atrás da barraca e lhe disse algo: “Acho que vou aproveitar melhor este distrito morando aqui perto. O ambiente é mais familiar, a vida é mais normal, há famílias por aqui, há um clima diferente [tudo isso em comparação à residência estudantil e ao ambiente universitário onde vivia]”.

Ele me deu uma resposta de que gostei muito, por ser muito profunda e estar afinadíssima com o que tenho refletido a respeito nesses tempos. Ele, que é brasileiro e já saiu da universidade trabalhando com línguas, respondeu-me em inglês: “This is real life” [Essa é a vida real], ao que eu respondi de pronto: “Exatamente”.

Por que digo isso? Porque no ambiente universitário (especialmente público) se vive numa bolha, onde muitos estudantes ignoram leis, onde se vive num mundo à parte do mundo do trabalho e da vida cotidiana (que forma a maior parte da sociedade), onde se come a R$ 2,00 um prato que no mínimo valeria R$ 5,00 ou mais, onde estudantes fazem muitas coisas que não seriam feitas fora da universidade, enfim, onde muitos universitários estão enredados na chamada “segunda realidade” de que falava o escritor alemão Robert Musil e que o filósofo germano-americano Eric Voegelin a utilizou em sua obra.

“Segunda realidade” refere-se a uma realidade imaginária que não corresponde à realidade concreta, à estrutura da realidade. É uma realidade falsa, com muita imaginação utópica e deturpada acerca da realidade que só é possível na imaginação do sujeito que a carrega e que faz parte de sua visão de mundo e que, portanto, influi em suas ações. Trata-se das ideologias. Estas são daquelas que nos dão respostas prontas e nos fazem viver num mundo à parte. É um sistema de pensamento, uma visão de mundo que faz o sujeito enxergar só segundo as categorias desta ideologia, como o caso da ideologia materialista.

Um exemplo é quando se diz a um materialista que nem todo empreendimento econômico é explorador. Os mais aferrados a esta ideologia dirão que toda atividade econômica é exploradora, embora a teoria da exploração tenha sido refutada há várias décadas por diferentes economistas, como Böhm-Bawerk. Você, por sua parte, mostra casos reais de empresas que tratam bem seus funcionários e lhes pagam bem (nem todas são assim, seu sei), mas mesmo assim ele insiste em levantar uma teoria refutada: tem resposta pronta para qualquer contradito. Eis a ideologia.

Como essa segunda realidade é falsa, ela é incômoda e irritante para quem ama a primeira realidade, a “real life” de que certeiramente falou o amigo. Porque a “segunda realidade” tranca as pessoas dentro de si mesmas, dentro de sistemas, dentro de uma “casa sem janelas” – palavras que o escritor inglês G.K. Chesterton usou ao falar dos materialistas.

Você sair de um ambiente cujo tom é dominado por pessoas que estão enredadas nessa falsidade é um alívio, porque se vai a um ambiente onde as pessoas estão mais na vida real e onde não ficam em elucubrações mentais distantes, impossíveis. A vida real, apesar de suas dificuldades, é bela, é obra da Criação e é verdadeira. Nela você pode respirar e olhar além, sem as correntes dos jargões ideológicos e das idéias agarradas às paixões que sufocam o homem e o fazem justificar até barbaridades tremendas, como a de que os fins justificam os meios.

A vida real, ao contrário das ideologias, está aberta às novidades que a realidade apresenta. Coloca-se humilde a dizer “não sei” quando não se sabe, e a avançar no conhecimento sem fórmulas pré-fabricadas, mas atento ao que está sob seu olhar no mundo real e não apenas no mundo de sua imaginação. Se aceitada com humildade, é justamente um dizer sim à nossa existência neste mundo. Negá-la e não aceitá-la é como estar pelas ruas e acreditar que elas não existem, apesar de se estar pisando em solo quente e estar sentindo o calor do asfalto. — Viva a realidade! Viva a verdade! Sim, vivam elas, que estão quase mortas em diversos ambientes universitários.

■■ João Toniolo é bacharel, mestre e doutorando em Filosofia e gestor do Núcleo de Filosofia do IFE Campinas (joaotoniolo@ife.org.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 25 de fevereiro de 2014, Página A2 – Opinião.

Jordi Llovet: “Adiós a la Universidad. El Eclipse de las Humanidades” (por Pablo González Blasco)

Educação | 17/12/2015 | | IFE CAMPINAS

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Jordi Llovet: “Adiós a la Universidad. El Eclipse de las Humanidades”.  Galaxia Gutenberg/Círculo de Lectores. Barcelona (2011). 408 págs.

Aios a la universidadO sugestivo título desta obra, fez-me pensar que seria um ensaio em tema que muito me atrai. Comprei-o, e o deixei repousar algum tempo na prateleira, hábito que sempre sigo para não ir com muita sede ao pote. Os livros também precisam de repouso, como o bom vinho, antes de estabelecer um diálogo com eles, que isso é –e não outra coisa- a boa leitura…

Recupero o livro da estante-adega, e me encontro com um livro de memórias, sobre o qual o autor alinhava suas considerações humanistas. O adeus à universidade não é apenas uma figura de linguagem, mas a retirada do próprio autor da academia, aproveitando um programa de aposentadoria implementado na instituição universitária onde ensinava. O eclipse das humanidades –por fazer uma exegese completa do título- é a constatação do autor, na sua trajetória docente,  do declínio da formação humanística na universidade, e as consequências dessa postura. Uma formação que sucumbe ao utilitarismo do mercado vigente, que dita as normas educacionais, e que bem resume Llovet citando  Bertrand Russell: “Um dos defeitos de educação superior moderna é que se converteu num treino para adquirir habilidades  e cada vez se preocupa menos de abrir a mente e o coração dos estudantes”.

Descubro que o autor escreve o original em catalão, e o exemplar que tenho entre mãos é, por tanto, uma tradução. Llovet é catalão até o último fio de cabelo, ama a cultura e a língua da sua terra, mas é tremendamente crítico com os fundamentalistas catalães que tentam impor o seu próprio idioma  a qualquer custo, beirando o ridículo. Surge aqui uma lembrança pessoal: há alguns meses passei por Barcelona e comprovei como editoras catalãs, cujo objetivo é promover a língua local, traduzem a esse idioma, Dostoievski, Steinbeck , Victor Hugo –o que me parece muito bem- mas também autores que conquistaram o Prêmio Cervantes, maior reconhecimento no domínio do Castelhano…..o que me causou tremenda perplexidade. Talvez por isso Llovet escreve em catalão: para ter certeza de que o seu público alvo não colocará obstáculos e acabará lendo este mistura de legado e reflexão. Quer dizer, escreve, em primeiro lugar,  para os catalães, principais destinatários da sua crítica iconoclasta contra o formalismo acadêmico.

O capítulo que descreve as peripécias necessárias para completar um doutorado, é de um ironia finíssima –dei risada sozinho- e devastador: detona os processos formais para conseguir esse grau acadêmico, a solidão do candidato, a  omissão dos orientadores, o aluno que trabalha por conta, gasta dinheiro, e ninguém o orienta (ou quando o faz é para pesquisar algo que o orientador tem interesse, mas também lhe da preguiça fazer). Enfim, não deixa títere com cabeça…

Nesse mesmo capítulo relata suas viagens pela Europa, em busca de material para a sua pesquisa. Alemanha, França, a República Checa –memorável o encontro com  a sobrinha de Kafka-, onde junta lembranças e considerações. Fez me sorrir a narrativa onde no quarto em que viveu Holderlin, sente um desejo tremendo de recolhimento, mas é impedido “porque os  visitantes estavam providos de engenhocas audiovisuais, como se os homens não tivéssemos memória e somente as imagens fotográficas ou filmadas pudessem conservá-la.”. Se isto foi em 1978,  podemos imaginar hoje, onde as pessoas fotografam compulsivamente locais e a elas mesmas –o self sedutor!- sem dar tempo para viver os momentos, imagens vazias de qualquer vivência……

Muito sugestivo é o capítulo que dedica às humanidades perante as novas tecnologias.  “Quando alguém percebe que não há sinal no celular, sofre como um náufrago que não consegue que seus gritos cheguem até os que pilotam o bote salva-vidas. Uma absoluta sensação de solidão e impotência”. Aborda-se o desafio que a técnica impõe em vistas do imediatismo que proporciona. Temos rapidez, comunicação global, mas falta conteúdo elaborado. A ditadura da rapidez elimina o tempo que sempre foi necessário para cozinhar as ideias, impondo uma cultura em sintonia com o fast-food. O estudante senta na frente de um computador, e pensa que lhe é proporcionada uma facilitação em todos os níveis, incluído aquele processo que sempre foi considerado árduo: o do aprendizado.  Esquece-se que educar provem de ex-ducere, tirar de dentro; extrair e não apenas colocar, e muito menos inserir programas e aplicativos.  Por isso eu vou digitando todas estas linhas: para ir pensando enquanto escrevo, escolhendo as palavras, ordenando as ideias, ao invés de correr o scanner pelas páginas e coloca-las sem nenhuma conexão, nem temperadas com a minha própria reflexão.

Llovet levanta a bandeira das humanidades e adverte do perigo da educação utilitarista: “Os jovens não possuem formação alguma, nem sentem a necessidade de adquiri-la, de modo que cada vez será mais difícil que um universitário consiga situar num contexto histórico os modos de ver o mundo. A falta completa de referências e a falta de familiaridade com o tema, fará com que tudo aquilo que não faz parte da sua experiência vital –do que vivem, e sentem- nunca venha se converter em categorias epistemológica, em modos de interpretar e ver o mundo. Somente captarão sua experiência quotidiana. É a tirania do momento, que nega o curso e a densidade da historia. Uma caipirice  não do espaço –da terrinha- mas do tempo, onde parece que o mundo é propriedade apenas dos vivos, sem saber que para a Historia não há mortos”.

Mostra-se muito crítico em relação á reforma universitária europeia, o chamado plano Bolonha, de integração europeia, pois os estudantes não foram formados num ambiente de critica e diálogo no ensino médio –muito menos em dominar línguas como para mover-se de um lado a outro de Europa, e ninguém fala latim hoje como os Humanistas do século XVI. Os estudantes querem soluções e eficácia, esse é o ensino médio. Bolonha não vai funcionar porque o estudante não tem motor próprio, não se lhe ensinou: a questão, como sempre, é dos professores, não culpa do estudante. São os gestores universitários os que destroem a enorme carga de entusiasmo que um jovem tem nessa fase da vida; gestores que transformam a universidade num centro de treinamento de habilidades e distribuidora de títulos.

Percebe-se ao longo de toda a obra uma crítica contumaz ao utilitarismo que relega as Humanidades a um plano de diletantismo. Invoca, novamente, Holderlin quando criticava os alemães do seu tempo: “Entre os alemães encontrarás artesãos, mas não homens; pensadores, mas não homens; sacerdotes, mas não homens; senhores e criados, jovens e adultos, mas nenhum homem”. Se isso acontecia em tempos do poeta que exclamava “para que poetas em tempos de miséria?”, podemos facilmente concluir perante o panorama de hoje, e num universo que carece da seriedade do povo germânico…..Uma advertência contra os que prestam culto à utilidade e não à verdade. Não se pode vincular as humanidades ao mercado laboral, aos dividendos que podem render a curto prazo, ao que é útil no sentido mensurável da palavra.

Llovet não se ilude, a culpa é mesmo do sistema, dos professores que são coniventes com a mediocridade. “Se a literatura vincula-se somente a teorias recônditas, se não é colocada constantemente do lado da vida mesma, das condições sociais e do nosso quotidiano, as aulas de literatura não servem para praticamente nada”.  Essa atitude explica que hoje não existam discípulos, nem escolas de pensamento, apenas alunos que são clientes em busca do título.

As recomendações que fazia Diderot para a Universidade de S. Petersburgo, trazem mais luz sobre o tema: “O objeto de uma escola pública não é produzir um homem profundo de um gênero qualquer, mas inicia-lo numa série de conhecimentos cuja ignorância o converteria em alguém prejudicial em todos os estados de vida, e mais ou menos vergonhoso em alguns deles. Gerar homens de bem e não apenas sábios”. E também Jovellanos, o intelectual espanhol, que advertia contra o perigo da especialização sem critério: “esta especialização, tão proveitosa para o progresso, é funesta para o estado das ciências. Se quebramos a árvore da sabedoria, de nada aproveita ter ramas frondosas, se perdemos a conexão que entre si tem todos os conhecimentos humanos”. Já dizia Ortega –a lembrança é minha- que o especialista é um ser perigoso, porque sabendo apenas algumas coisas em certa profundidade, tem a pretensão de opinar e pontificar sobre tudo com a mesma arrogância.

Mas, no meio desta enxurrada de críticas –são histórias que o autor pessoalmente viveu e vive- despontam também as sugestões e a esperança   “Se depois da conquista de Europa pelos bárbaros, surgiu o proto-renascimento Carolíngio, é possível recuperarmos um novo renascimento hoje, com a reincorporação dos homens de letras e dos humanistas: teremos de esperar e não baixar a guarda. É preciso entender que o saber clássico tem uma função muito peculiar: o de ser um conservador nas ruinas do tempo. E por isso os humanistas, os que cultivam as humanidades, sabem extrair das culturas as formas produtivas e refinadas do pensamento e produção artística , compreende-las e criar os meios para que o resto da sociedade possa também pensar e perceber nesse mesmo nível. Uma tentativa que permite que o humano não se degrade, e ocupe o lugar que lhe corresponde. Quase poderíamos dizer, com Llovet e com Holderlin, “para que humanidades nestes tempos de Facebook?”….A resposta é por conta de cada um de nós.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Fonte:  <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/12/11/jordi-llovet-adios-a-la-universidad-el-eclipse-de-las-humanidades/#more-2523>

Newman e a educação liberal (por Júlio César Lemos)

Educação | 11/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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Ilustração por Paulo von Poser

Ilustração por Paulo von Poser

 

John Henry Newman inicia seu prefácio a The Idea of a University deixando claro o objetivo último dos discursos coligidos nessa obra, e dirigidos aos católicos de Dublin: mostrar que a Universidade é um “lugar onde se ensina o conhecimento universal”.

O pano de fundo dessa obra é a tentativa de Newman de estabelecer um programa de ensino superior (higher education) para a Universidade Católica da Irlanda, da qual se tornou o primeiro reitor em 1851. A criação dessa Universidade atendia a uma diretiva de Roma; desde a conquista da Irlanda pelos ingleses em 1653, os católicos irlandeses praticamente não tinham tido acesso ao ensino superior, e as instituições universitárias existentes eram de confissão anglicana, como o tradicional Trinity College de Dublin. Após a criação dos colleges governamentais de Cork e Galway – apelidados de “godless colleges” por Sir Robert Inglis -, a santa sé resolveu estimular a criação de um ambiente universitário católico na ilha.

A diretriz foi tomada a peito por Paul Cullen, arcebispo de Armagh. Este, que conhecia Newman desde quatro anos antes, chamou-o para tomar parte no empreendimento como reitor. A oposição que encontrou levou-o a uma declaração muito significativa: “Alguns dos bispos não querem essa nomeação, mas não dispomos na Irlanda de uma pessoa adequada. Newman equivale por si só a um exército”. Após considerar o assunto, Newman aceitou a nomeação em 14 de novembro de 1851. Para preparar o terreno, começou a redigir uma série de discursos públicos destinados cativar os ambientes cultos de Dublin e torná-los receptivos à Universidade, bem como atrair pessoas que pudessem ocupar as cátedras da nova instituição.

O primeiro discurso foi pronunciado a 10 de maio de 1852. Teve grande êxito, apesar do seu caráter “excessivamente intelectual”, como na ocasião se comentou. Mais quatro foram pronunciados nas semanas seguintes, mas os quatro últimos nunca chegaram a ser lidos publicamente, pois pouco mais tarde Newman foi forçado a desistir do projeto todo. Os nove discursos foram publicados mais de dez anos depois, em 1863, em Discourses on University Education, e uma segunda vez outros cinco anos mais tarde, em Lectures and Essays on University Subjects. Por fim, em 1873, passaram a constituir, já revistos e melhorados, a primeira parte do The Idea of a University, juntamente com outros que constituem a segunda parte; essa edição de 1873 é a considerada definitiva. Para efeitos deste ensaio, utilizamos a edição da Doubleday, New York, 1959.

Como diz o título desta seção, esta obra ainda não mereceu uma edição completa no Brasil. Até onde foi possível verificar, houve apenas o lançamento de Newman e a idéia de uma Universidade, organizado por Frank M. Turner, pela EDUSC (tradução de Gilson César Cardoso de Sousa; São Carlos, 2001, 474 págs.; o original, de 1996, é da Yale University Press). O problema é que essa edição não traz todos os textos originais e em vez disso introduz cinco ensaios que pretendem interpretar e atualizar o pensamento de Newman – com um sucesso bastante desigual. Para quem tiver interesse no original, há no momento duas edições completas disponíveis no mercado: a da Loyola University Press, de 1987, e a da University of Notre Dame Press, de 1982. Também se pode encontrar o texto integral em www.newmanreader.org, um site muito bem cuidado e criterioso [1].

Antes de entrarmos no livro propriamente dito, duas palavras sobre o autor. Diz-se com freqüência que as suas obras são um monumento da prosa inglesa – com o que só podemos concordar -, mas que as suas idéias estariam desatualizadas – o que a sua popularidade lenta e firmemente crescente não avaliza. Sem dúvida, não é um autor “de moda”: como todos os pensadores realmente grandes, nunca experimenta um boom nem é possível torná-lo popularesco sem perder o essencial do seu pensamento. Por isso, não o veremos em propagandas, filmes ou jornais; mas é conhecido e respeitado mesmo por aqueles que nunca se atreveram a enfrentar o que escreveu, o que é certamente um dos maiores sinais de grandeza.

Newman tem a reputação de ser um pensador, escritor e pregador “difícil” e altamente “intelectual”. Isso se deve, provavelmente, ao elevado nível de concatenação do seu pensamento, que faz com que praticamente nunca se repita, apesar de ter pronunciado literalmente centenas de sermões e discursos. Além disso, são notáveis as suas frases redondas, completas, sintaticamente ricas, que traduzem uma notável capacidade de observação aliada a um pensamento atento aos matizes e ao mesmo tempo extremamente claro, direto e simples nos diagnósticos, e imbuído ainda por cima de uma suave e amável ironia. Sirva de exemplo um trecho do “Discurso I” do The Idea of a University, que nos servirá para introduzir o tema central desta resenha-ensaio. Newman descreve aqui o homem intelectualmente imaturo:

 “Seria bom que ninguém permanecesse um menino ao longo da vida inteira; no entanto, o que é mais comum do que ver homens crescidos falando de temas políticos, morais ou religiosos dessa maneira superficial e frívola que descrevemos com a palavra absurdo? ‘Simplesmente não sabem do que estão falando’: essa é a observação espontânea e silenciosa de qualquer pessoa de bom senso que os ouça. Daí que esses homens não encontrem dificuldade em contradizer-se em sentenças sucessivas, sem terem consciência de fazê-lo.  Daí que outros, cujas deficiências de treinamento intelectual são mais latentes, apresentem lamentáveis distorções […] que os privam da influência que as suas qualidades, de resto muito grandes, lhes proporcionariam. Daí que outros nunca consigam enxergar com retidão, nunca vejam o que está em jogo, e nunca encontrem dificuldades mesmo nos assuntos mais difíceis. Outros são irremediavelmente obstinados e preconceituosos e, depois que tiveram de abrir mão das suas opiniões, retornam a elas logo no momento seguinte sem ao menos tentarem explicar por quê. Outros ainda são tão destemperados e teimosos que não há calamidade maior para uma causa boa do que contá-los entre os seus defensores”.

Como se vê, o trecho nada tem de obscuro ou difícil; simplesmente está formulado com uma amplitude e perfeição de acabamento da qual quase se pode dizer que perdemos o segredo.

Outra qualidade intelectual de Newman, essencial ao tema que nos interessa, é a sua honestidade intelectual, a disposição de “tomar a verdade pelos chifres” custasse o que lhe custasse. Foi por isso que teve a força suficiente para converter-se do anglicanismo ao catolicismo, mesmo sabendo que isso lhe custaria a sua posição de capelão de Oxford, o prestígio de teólogo renovador da Igreja anglicana e até o seu sacerdócio. E não é descabido supor que boa parte da resistência que enfrentou por parte dos católicos irlandeses também seja devida ao fato de não olhar a conveniências, mas à sua consciência.

Mas voltemos mais especificamente à obra que nos interessa. Graças às qualidades que acabamos de mencionar, o resultado final não é uma coletânea de peças de ocasião, mas um longo ensaio dividido em várias teses e dotado de uma forte unidade de pensamento. “A unidade que conecta entre si as diversas partes do Idea of a University – comenta G.N. Schuester – é a força da mente de Newman”.

O plano da primeira parte, intitulada “Ensino universitário”, é o seguinte:

– Discurso I: introdutório, sobre a definição e a necessidade do ensino universitário;

– Discurso II: a teologia como ramo da ciência (knowledge, “conhecimento certo”);

– Discurso III: a influência da teologia nas outras ciências;

– Discurso IV: a influência das outras ciências na teologia;

– Discurso V: o conhecimento como fim em si mesmo;

– Discurso VI: o conhecimento do ponto de vista do aprendizado;

– Discurso VII: o conhecimento do ponto de vista da habilidade profissional;

– Discurso VIII: o conhecimento do ponto de vista do dever religioso;

– Discurso IX: os deveres da Igreja com relação ao conhecimento.

A segunda parte, intitulada “Temas universitários”, traz ensaios sobre a relação entre o cristianismo e as letras, a literatura, a literatura católica de língua inglesa, os estudos básicos (gramática, redação), a descrença e o ensino universitário, o papel da pregação na Universidade, o cristianismo e a física, o cristianismo e a pesquisa científica, o cristianismo e as ciências médicas, e a disciplina (treinamento) da inteligência. Newman desenvolve aqui, em diversas direções especializadas, as idéias que já apresentou de maneira ampla na parte inicial.

Ainda um comentário antes de enfrentarmos a questão central que unifica esse temário. Num momento em que muitos pensariam encontrar uma intrusão indevida da fé em matérias científicas ou filosóficas, convém esclarecer que, se há alguém consciente das exigências da razão e da liberdade acadêmica, é esse pensador. Um dos aspectos em que fica mais evidente a sua grandeza intelectual é precisamente que seja capaz de harmonizar esses dois âmbitos de verdade sem encontrar oposição entre eles e sem reduzir nenhum dos dois a um simulacro, e por isso mesmo tenha uma clara distinção dos respectivos âmbitos num momento em que, na mentalidade eclesiástica e popular, os dois estavam completamente imbricados. Ninguém consegue ser mais honesta e entusiasticamente racional do que ele, e por isso também um cético e um descrente encontram muitas idéias luminosas mesmo nas obras mais católicas que escreveu.

O problema central em The Idea of a University é o da “educação liberal”, cuja atualidade é evidente. Com efeito, já há tempos que os “espíritos acadêmicos” vêm alertando as elites para a crise da instituição universitária. Geralmente, identifica-se a causa dessa crise no gradual deslizamento da própria concepção da Universidade: da universitas scientiarum (“conjunto universal das ciências”) medieval passamos para a “academia científica” dos séculos XIX-XX e estamos agora chegando à de “provedora do mercado de trabalho”. Já Newman – que pôde sentir na sua carne esse problema, graças aos dois períodos que passou em Oxford -, recupera e atualiza a concepção original, formulando-a como “a place of teaching universal knowledge”, “um lugar onde se ensina um conhecimento universal“.

A questão da universalidade do conhecimento é estudada no discurso intitulado Knowledge Its Own End, em que o autor se volta para os estudantes. A Universidade, diz ele, é antes de mais nada um ambiente composto por professores, pesquisadores e alunos. Embora os professores e pesquisadores não estejam estudando as mesmas ciências particulares, todos se beneficiam desse convívio: homens zelosos dos seus ramos de conhecimento, a princípio rivais uns dos outros, são trazidos a um habitat comum, por assim dizer “familiar” (não à toa a Universidade era conhecida como alma mater, que não quer dizer “alma mãe”, mas “mãe carinhosa”), ambiente esse que os obrigará a ajustar as suas próprias pretensões às das outras ciências, respeitando-se, ajudando-se e consultando-se mutuamente. É essa a atmosfera em que o aluno viverá, levando-o a inserir-se em uma tradição intelectual e a formar um hábito de estudo que durará toda a vida, e “cujos atributos são a liberdade, a eqüidade, a calma, a moderação e a sabedoria” (Discurso V).

Mas, afinal de contas, o que é a educação liberal?

Newman não considera adequado utilizar a distinção meramente gramatical entre liberale e servile, porque há atividades predominantemente “servis” (manuais) tidas por “liberais”, como o hipismo, os jogos olímpicos, a guerra, a caça, etc.; e atividades intelectuais que definitivamente não podem receber a qualificação de “liberais”, como o comércio, a medicina – na Antigüidade praticada por escravos -, e em geral as profissões de natureza técnica. Como ponto de partida, prefere valer-se desta consideração de Aristóteles: “Das coisas que possuímos […], algumas são úteis, por trazerem ‘fruto’; outras são liberais, por tenderem à ‘satisfação’. […] Estas últimas nenhuma outra conseqüência trazem além da produzida pelo seu uso em si mesmo” (Ret. 1, 5).

O contexto da educação liberal é, assim, o da posse de um conhecimento que é fim em si mesmo; e assim uma Universidade que se proponha essa meta – a de ensinar o conhecimento como um fim -, e eduque os estudantes de acordo com esse critério ministrará uma “educação liberal”. O conhecimento que lhe serve de fundamento é filosófico; pois “o conhecimento é especialmente liberal, ou suficiente em si mesmo – para além de qualquer finalidade externa e ulterior -, quando e na medida em que é filosófico” (Discurso V).

É evidente que “conhecer é poder”, mas antes de mais nada conhecer é um bem. Esse bem pode ser instrumentalizado por uma ars servilis e produzir um fruto tangível; mas também pode voltar-se para a razão que o informa, tornando-se filosófico. No primeiro caso, temos um saber útil; no outro, um saber liberal, “gentlemanly”. Embora a vida não possa existir sem o útil, torna-se muito mais nobre quando preenchida pelo conhecimento filosófico, de acordo com o “princípio da dignidade real do conhecimento” (Discurso VI). Por essa razão, no âmbito universitário deve-se falar, não em instrução, mas em educação.

A educação liberal consiste no cultivo da inteligência, e o seu objeto é unicamente a excelência intelectual; por si só, ela não promete nem a virtude, nem o conforto, nem a consolação espiritual. Eis um parêntese digno de nota. Newman recorda dolorosos exemplos de filósofos, homens serenos e magnânimos que, diante de fortes contrariedades, caíram no desespero, contradizendo o que vinham pregando a vida inteira. A observação é importante para mostrar aos leitores e ouvintes que não se pode esperar da educação liberal aquilo que não é da sua competência; a questão da educação da afetividade e da aquisição das virtudes é um capítulo à parte, pois a perfeição e a beleza da inteligência não trazem consigo, necessariamente, perfeição moral. Todavia, a liberal education é excelente estímulo e preparação para essa outra esfera.

O autor comenta que não há, em inglês, um termo que traduza essa idéia de excelência ou perfeição intelectual, como o fazem as palavras health (“saúde”) e virtue (“virtude”) em outras esferas. Wisdom (“sabedoria”) tem o inconveniente de pressupor a boa conduta pessoal, e “conhecimento” (knowledge, science) o de não ser uma qualidade do intelecto, mas um conteúdo desse mesmo intelecto. Como comentava J. Dufy em um artigo no Rambler, segundo Newman a educação liberal não constitui uma mera “aquisição mental”, mas o sistema, a forma, a vida que informa filosoficamente essa aquisição.

Em todo caso, a idéia não é difícil de compreender: trata-se do cultivo do intelecto como um fim em si mesmo; e a sua proposta é usar para isso o termo filosofia, ou então conhecimento filosófico. Seja qual for o termo utilizado, porém, o fim da Universidade é proporcionar aos estudantes exatamente esse tipo de cultura intelectual, analogamente ao que faz um hospital com os seus pacientes quando lhes proporciona os meios para atingir a saúde.

O resultado final dessa educação – o beau ideal da Universidade – será, deste modo, uma visão de mundo calma, acurada, serena; uma compreensão de todas as coisas, cada uma no seu lugar, enxergada com as suas características próprias. É uma idéia próxima da denotada pelo termo theoría de Aristóteles, a atividade mais nobre da qual se poderia ocupar o homem, não raro traduzida por “contemplação”.

Essa excelência intelectual, continua Newman, obtém-se com esforço. Mas pode-se ler muitos livros, observar muitos exemplos e comparações, examinar muitos assuntos, realizar experiências e assistir a muitas palestras sem atingir esse objetivo. O que é necessário, pergunta-se ele no Discurso VII, para obter essa qualidade intelectual, filosófica? Afinal, esta é justamente a finalidade da educação liberal: a capacidade de emitir julgamentos claros, filosóficos, que compreendam a diferença entre o verdadeiro e o falso, entre o que tem e o que não tem valor.

Como já ficou claro, a educação liberal é uma questão de disciplina e hábito, uma disciplina e um hábito que levam à apreensão, não de fins secundários do conhecimento – como ocorre nas filosofias utilitaristas -, mas do seu objeto próprio. A definição formulada por Newman, nesse sentido, merece ser chamada genial:

“O processo de treinamento pelo qual o intelecto, ao invés de ser formado em um propósito particular ou acidental – ou sacrificado a ele -, como uma profissão, ofício, estudo ou ciência específicos, é disciplinado em função de si mesmo, dirigido para a apreensão do seu objeto próprio [as coisas como são], tendo por fim o seu mais alto grau de cultivo, isso é o que se chama educação liberal” (Discurso VII).

Isto não significa que essa educação não seja útil. Newman lembra que, se é verdade que nem tudo o que é útil é bom, tudo o que é bom é sempre útil, porque o bem é difusivo, superabundante; e se o intelecto é uma porção tão excelente do homem, então o seu cultivo não é apenas o cultivo do belo, do agradável, da perfeição e da nobreza, mas também daquilo que é mais útil para o seu possuidor e para tudo o que está ao seu redor. Útil não no sentido mecânico, mercantil, mas como tesouro, dom, poder. Se se reconhece que a educação liberal é um bem, não se pode deixar de admitir que é útil.

Newman argumenta que a educação liberal dada pela Universidade – eis a sua utilidade – tem como objetivo aumentar o nível intelectual médio da sociedade. Ela cultiva a mentalidade pública, purifica o gosto, fornece verdadeiros princípios para o entusiasmo popular, confere sobriedade às idéias do tempo, facilita o exercício do poder político e refina o intercâmbio pessoal na esfera privada. Finalmente, o homem que a possui tem uma visão clara e consciente das suas próprias opiniões e juízos, desenvolve-os de acordo com um critério verdadeiro, exprime-os com eloqüên-cia e força.

Essa concepção newmaniana da educação liberal convida a um breve comentário, com o qual encerraremos o artigo.

A mentalidade moderna tende a considerar qualquer instituição – incluídas as de natureza religiosa – como mero produto histórico, sujeito à construção social, quando não a uma “dialética da História” determinista, no sentido hegeliano. A Universidade não seria uma exceção. É de se notar, contudo, que a Universidade, assim como muitas outras instituições importantes, possui não só uma origem que não pode ser ignorada, mas também uma vocação que lhe é própria, que a faz ser aquilo que é, e que desempenha um papel social insubstituível.

Isso não significa que os elementos acidentais da educação universitária não devam submeter-se às mudanças do Zeitgeist. E, por mais que a Universidade seja herdeira da Academia platônica e das primeiras Universidades medievais – Coimbra, Oxford, Paris, Salamanca… -, não se trata tampouco de reviver experiências já passadas ou manter a todo o custo estruturas fossilizadas. Agora, se a Universidade é transformada em outra coisa, mantendo-se embora o seu nome, desaparece ao mesmo tempo a sua função social. A sociedade como um todo, ao invés de enriquecer-se, empobrece.

Este é o motivo, segundo penso, do título atribuído por Newman: Idea of a University. O que ele procura é apresentar-nos uma Universidade ideal, fiel à sua vocação própria. Se descaracterizamos isso a que ele e outros pensadores dão esse nome, aplicando-o a instituições de ensino superior preocupadas apenas com produzir conhecimento ou, pior, informação, ou com o formar pessoas de acordo com a demanda em moda no mercado de trabalho, estamos desvirtuando esse nome. Há um lugar para esse tipo de ensino científico-técnico, certamente, e um lugar enormemente importante – só não deveria chamar-se “Universidade”, e sim “Escola superior técnica” (Technische Hochschule, como dizem os alemães), “Escola Politécnica”, “Faculdade” ou o que queiramos.

O panorama mundial, neste sentido, não é animador: estatisticamente, quase não há mais Universidades dignas do nome. Mas algo sobra desse ideal acadêmico genuíno em algumas Universidades européias e americanas, inclusive novas, que não só possuem um curriculum que inclui disciplinas de caráter liberal, mas também – o que é mais importante – professores e alunos animados por esse ideal.

Como sabemos, o empreendimento de Newman falhou, em boa parte devido às resistências que encontrou nos meios universitário e eclesiástico. No entanto, o grande fracasso deu-se depois da sua saída: vinte anos mais tarde, em 1879, a Universidade Católica da Irlanda recebeu ao todo três (!) pedidos de matrícula, porque nem era escola técnica reconhecida pelo Estado, nem empreendimento universitário digno desse nome.

Uma reforma geral das Universidades parece hoje uma causa perdida, embora seja muito mais uma questão do espírito com que se fazem as coisas do que das coisas que se fazem. Por isso mesmo, o ideário de Newman continua tão atual hoje como quando pronunciou os seus discursos na subdesenvolvida Irlanda de 1851. E para quem não perdeu o ideal da educação liberal e filosófica, ou para quem deseja adquiri-lo, o seu livro constitui um norte permanente. Basta que nos lembremos do conselho atribuído a Thomas Payne e que Chesterton repete em toda a sua obra: “Lost causes are the only causes worth fighting for”, as causas perdidas são as únicas pelas quais vale a pena lutar…

Júlio César Lemos é escritor e doutor pela Faculdade de Direito da USP.


NOTAS:

[1] É interessante ver também José Ortega y Gasset, Missão da Universidade e outros textos, trad. Carlos Filipe Nogueira, Coimbra: Angelus Novus, 2003, 142 págs.; e Jaroslav Pelikan, The Idea of the University: A Reexamination, Yale University Press, 1992, 248 págs., série de conferências sobre a situação contemporânea das academias influenciada por Newman


Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição 1, 2008.

Abertura para o Todo, a Chance da Universidade – Josef Pieper

Sem Categoria | 10/12/2014 | |

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Josef Pieper, filósofo alemão do século XX, foi um influente pensador da antropologia filosófica. Seguindo a tradição clássica do pensamento europeu, ele entendia que filosofar consiste na busca do ser, na linha da famosa pergunta de outro filósofo contemporâneo seu, Alfred Whitehead: “What is it all about?”. Dessa forma, a filosofia não se reduziria a este ou àquele ponto de vista, mas indagaria pelo todo e com tudo aquilo que guardaria relação real. Em suma, a filosofia abrir-se-ia omnidimensionalmente ao ser e a tudo que em si e em seus últimos fundamentos sustentaria tal realidade.

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No presente artigo, Pieper entende que a universidade deve agir com uma resoluta orientação do pensamento para o universum, para a unidade do conjunto do real, aliado a um decidido e persistente esforço de abertura para o todo, que desde sempre tem sido designado e entendido como filosofar. Nessa tarefa de busca do conhecimento, Pieper propõe que as ciências particulares devem dividir o trabalho empírico e, à filosofia, traçar os fins, função que, há algum tempo, foi usurpada, justamente, por aquelas ciências, provocando um efeito incontroverso no mundo acadêmico: uma série de saberes estanques e descompassados entre si, divorciados de qualquer unidade epistemológica e abertos à manipulações hermenêuticas e experimentais de ordem vária, sem que se alcance o todo da realidade.

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Abertura para o Todo: a Chance da Universidade – Josef Pieper

Fonte: http://www.paideuma.net/textos.htm

(Tradução: Gilda N. M. de Barros e Luiz Jean Lauand, a partir do texto Offenheit für das Ganze – Die Chance der Universität, publicado em 1963).

 Josef Pieper

 I- As experiências escondidas nas instituições

As grandes instituições costumam ser a expressão de grandes experiências, de experiências que estão como que vazadas nessas instituições e, conseqüentemente, um tanto escondidas nelas. Esta é precisamente uma das razões pelas quais é tão difícil dizer cabalmente em que consiste o verdadeiro significado das instituições que condicionam e emolduram a vida humana. Com o simples atentar para o aspecto aparente, histórico-concreto do fenômeno, não se pode decifrar o que elas realmente são e devem ser; para fazê-lo, é necessário penetrar, através de um paciente e cauteloso esforço de interpretação, naquelas experiências, intuições e convicções que se incorporaram nas instituições e que as fundamentam e legitimam.

Porém, quando se trata das grandes experiências que o homem tem consigo mesmo e com o mundo, das experiências que condicionam sua vida, não se pode dizer que elas possam ser apanhadas e formuladas facilmente, uma vez que não estão de modo algum ao alcance imediato da consciência reflexiva. Sabemos muito mais do que aquilo que somos capazes de exprimir de improviso, em palavras precisas, num determinado momento. E talvez aconteça que o que digamos de fato passe à margem de nossas verdadeiras convicções.

Precisamente aí é que reside a dificuldade inerente às pesquisas de opinião, quando o seu objeto diz respeito não à existência exterior, mas à interior. As respostas expressam aquilo que os entrevistados acham que pensam, enquanto sua verdadeira opinião lhes escapa e se esconde a tais apressadas pesquisas. “O senhor crê na imortalidade?” (este foi o tema de uma recente pesquisa internacional). Não é um resultado muito significativo o fato de que na Alemanha Ocidental, 47% dos entrevistados tenham respondido afirmativamente. O que realmente um homem pensa da imortalidade possivelmente só se tornará claro (talvez até para sua própria surpresa) num momento de abalo existencial: uma rápida entrevista tem pouca probabilidade de penetrar na dimensão em que se situam tais convicções.

Precisamente as nossas certezas mais vitais – as que atingem nosso fundamento e o do mundo, de que temos tanta segurança que por elas orientamos nossas vidas – estão fadadas a se transformarem logo em existência viva; se tudo segue seu caminho normal, convertem-se em vida vivida, tornam-se realidades, concretizam-se. Passam, por exemplo, como dizíamos, a formar a organização estrutural das instituições, nas quais se configura e se perfaz o viver histórico do homem. Ainda que não se deem a conhecer de modo imediato, essas experiências estão presentes e ativas, e quem queira expressá-las deve ultrapassar o que se manifesta na superfície e procurar atingi-las para, por assim dizer, retraduzi-las em forma de enunciado.

Nesse sentido, é muito significativo que justamente a forma institucional das “escolas superiores”, do “ensino superior”, daquilo que chamamos de universidade, seja uma daquelas realizações nas quais se “cristalizam” experiências humanas grandes e fundamentais. E é de presumir que, se queremos averiguar o que faz com que uma universidade seja verdadeiramente uma universidade, devamos transcender a pura descrição fática e procurar focalizar aquelas experiências existenciais que se escondem sob a forma da instituição em que se transformaram, e que nela se fundiram, tornando-se, assim, um tanto invisíveis.

Com isto se define de uma forma razoavelmente precisa, o objetivo da presente discussão: pretendo traduzir em palavras algumas das experiências, intuições e convicções que se cristalizaram na instituição ocidental da universidade e nas quais esta se fundamenta e se legitima. Além do mais, preocupam-me principalmente os elementos daquela intuição prévia que estão hoje especialmente ameaçados de se tornarem esquecidos ou distorcidos. É sempre necessário empreender de novo essa tarefa e certificarmo-nos do estado em que se encontram os impulsos dos quais as instituições recebem sua existência própria e pelos quais devem continuar a estruturar-se. Certamente, uma tal averiguação não teria sentido algum se a realidade que nos foi transmitida permanecesse vigente de forma imperturbável.

Ora, quem, como nós, está diante da estimulante tarefa não só da reconstrução, mas também da criação de novas universidades, tem a necessidade de identificar esse núcleo originário para implantá-lo nas novas fundações. Aqui, porém, levanta-se uma pergunta: será que esta necessidade é realmente percebida? Encontramos receptividade para ela? É o que realmente se quer?

Em todo caso, as novas fundações continuarão a receber o nome tradicional de universidades: quanto a isto não há divergências. Ora, este nome contém – como todo mundo sabe – uma palavra fundamental da linguagem humana: universum. E palavras fundamentais não podem sofrer alterações arbitrárias de sentido. Como pode o vocábulo universum, que se refere ao caráter de todo único e uno da realidade, de repente passar a significar algo de novo e diferente? Assim, é claro que também não depende do nosso gosto entender por universidade qualquer coisa, algo que não tivesse nada a ver com aquilo que expressa esta palavra fundamental[1].

De fato, por mais que em sua realidade concreta nossas universidades se diferenciem das escolas superiores da cristandade medieval (e nem se podia esperar outra coisa), mesmo assim elas realizam a mesma concepção fundamental que se exprime sob o nome de universitas: uma instituição que, de modo específico e singular, está relacionada com a totalidade do real, com o mundo como um todo.

 

De resto, as escolas de Paris, Oxford, Pádua, etc. – que desde o princípio do século XIII começaram a se chamar universidades – não se concebiam, de modo algum, como algo simplesmente novo, mas como herdeiras e continuadoras da escola do bosque de Academos, que o patriarca de todo o filosofar ocidental, Platão, fundara em Atenas um milênio e meio antes. Os historiadores não têm, parece-me, dado a devida atenção ao fato de que os grandes fundadores da cultura ocidental, pelo menos desde o grande mestre Alcuíno, constantemente invocam a Academia de Platão como modelo dos seus próprios projetos: estes fundadores consideram que o cultivo da sabedoria foi transplantado de Atenas para o meio dos francos.

Naturalmente, aqui este particular não é de maior interesse. Importante é, isto sim, que a própria fundação de Platão se autoconsiderava universitas, uma comunidade de ensino e aprendizagem formada por homens – é o que diz Sócrates na República (486 a) – “cuja alma se lança continuamente para atingir o todo e o universal, tanto divino quanto humano”.

 

II. A receptividade do espírito para a totalidade do mundo

Podemos agora falar da experiência fundamental que se encarnou e que tem permanecido por mais de dois mil anos nesta instituição da civilização ocidental européia: essa experiência que, só ela, é em última análise o fundamento da universidade e sua razão de ser.

Essa experiência tem por objeto, nada menos, a natureza do espírito humano. Para formulá-la, pode-se dizer o seguinte: o espírito por sua própria essência, refere-se ao todo da realidade; não é, no fundo, senão aquela capacidade de relacionamento que aponta para a universalidade do real; está capacitado e disposto a entrar em contato (e a manter este contato) com o “em si” de tudo que é. “Ter espírito”, ser “um ente dotado de espírito”, significa sobretudo ser capax universi, capaz de abarcar e de ser receptivo ao todo do mundo. Ao contrário do animal, que está encerrado num meio fragmentário, num “mundo circundante”, ter espírito significa existir face ao conjunto da realidade, vis-à-vis de l’univers.

Este pensamento tem sido repetido inúmeras vezes, desde os antigos até hoje: Aristóteles diz que a alma é, de certo modo, todas as coisas, anima est quodammodo omnia; S. Tomás de Aquino atribui ao espírito humano a potência natural de convenire cum omni ente, “ir junto”, entrar em positiva relação com qualquer ente; e Max Scheler fala de “abertura para o mundo” e de “posse-do-mundo” (Welt-haben); todos estes pensadores estão falando da mesma situação da realidade. Mas esta situação implica em algo mais: implica que um ente espiritual (e, portanto, também o homem) só realiza suas verdadeiras potencialidades quando divisa o todo da realidade e a ele se abre expressamente.

A educação daquilo que é própria e especificamente humano, ou, em outras palavras, a verdadeira formação do homem, somente se dá quando se põe em marcha esse confronto com o todo existente. Um homem verdadeiramente formado é alguém que sabe como se relacionar com o mundo como um todo, ainda que (e sobre isto ainda falaremos mais adiante) esse conhecimento da realidade seja imperfeito.

Na medida em que uma comunidade humana considere como plenas de sentido e necessárias, não só as instituições que têm por fim assegurar a existência do homem e atender “às necessidades da vida” (nas quais se incluem também as, sem dúvida indispensáveis, organizações de ensino especializado, técnico, de treinamento e instrução), mas também a “escola superior” em sentido pleno, verdadeiramente dirigida para o ideal de construir um lugar de formação que sirva para a educação daquilo que é propriamente humano; nessa mesma medida, essa comunidade considerará necessária uma instituição que tenha expressa e metodicamente por projeto o confronto do homem com o todo real.

Tal instituição é exatamente a universidade! O que faz com que a universidade seja universidade não é a ciência, mas… Mas o quê? Mas a resoluta orientação do pensamento para o universum, para a unidade do conjunto do real; o decidido e persistente esforço de abertura para o todo, que desde sempre tem sido designado e entendido como filosofar. Com esta tese – que traduz uma realidade complexa no mais alto grau e, infelizmente, não triunfalmente unívoca como talvez poderia parecer à primeira vista – encontramo-nos naturalmente situados no meio de uma polêmica. Antes de tomarmos nossa posição, porém, é necessário precisar um pouco melhor o que deve ser entendido por filosofia, filosofar e ciência.

Filosofar significa: dirigir o olhar a tudo aquilo que se nos depara e, num esforço de pensamento preciso e metodicamente disciplinado, suscitar a questão de seu significado último e fundamental. Alfred North Whitehead († 1947), o célebre filósofo da Universidade de Harvard, que foi ao mesmo tempo um dos fundadores da moderna Lógica Matemática (e em relação a quem, portanto, não se admite facilmente a suspeita de que não expressasse seu pensamento com suficiente precisão), afirmou em seus últimos anos de vida que a Filosofia simplesmente se ocupa da questão: What is all about? questão que indaga do todo e que quer saber o que o todo tem a ver com esta realidade concreta.

É, sem dúvida, uma questão bem simples, mas não passível de ser respondida definitivamente. Por outro lado, nenhuma ciência indaga: “o que o todo, afinal, tem a ver com esta realidade concreta?”. As ciências perguntam: qual é causa de tal doença; como se produziu tal evento histórico; de que tipo é a estrutura do átomo; e assim por diante. A ciência está constituída precisamente por estes saberes setoriais, que são gerados através de enunciados especializados, aspectos particulares sob os quais a realidade é considerada. As ciências existem, por assim dizer, por causa dos limites que as opõem uma às outras.

Quando um físico, enquanto físico, considera um corpo, não lhe interessam absolutamente os aspectos que são importantes para o químico ou para o biólogo. Já o filósofo, pelo contrário, mesmo quando focaliza uma realidade concreta (e naturalmente nem sempre fala, expressa e exclusivamente, do “mundo como um todo”), tanto faz que se trate de uma folha de papel, de mim mesmo ou de um de meus ouvintes, de um evento político, de um ato religioso ou da morte; o filósofo, dizia, busca responder as questões do tipo: o que é – sob toda a perspectiva de reflexão – “isto aqui”? (e, para fazê-lo, talvez nem mesmo precise estar claro o que são essas “perspectivas de reflexão” – mesmo isto continua em aberto).

O próprio Whitehead exprime a mesma idéia do seguinte modo: o problema filosófico é to conceive a complete fact, compreender plenamente, totalmente, de ponta a ponta uma realidade; completely, completamente. Dizia há pouco que nem sempre o filósofo pergunta expressamente pelo todo do mundo e devo fazer uma pequena correção: no mesmo instante em que procuro conhecer uma realidade completa (ou: conhecer completamente uma realidade), já não se trata tanto de uma realidade particular e especial. Neste mesmo instante, tenho que voltar-me para o todo da realidade, para a coesão global do real, não posso evitar de falar, por assim dizer, “de Deus e do mundo”.

Na medida em que me pergunto: “o que acontece na morte de um homem?” do ponto de vista fisiológico, isto é, enquanto cientista, só formulo um aspecto parcial; não me é necessário falar “de Deus e do mundo”; isto nem mesmo me é permitido: seria claramente procedimento não-científico. Mas, a partir do momento em que me pergunte o que acontece na morte de um homem, o que é a morte, não só do ponto de vista fisiológico, mas sob toda a “perspectiva de reflexão”, a partir desse momento em que interrogo filosoficamente, já estou falando da “coesão global” do mundo e da vida; não proceder assim seria simplesmente não-filosófico.

Ao indagar de modo verdadeiramente filosófico, o espírito humano abre-se sem reservas para o todo do ser, e é somente então que penetra em suas próprias possibilidades: dá-se aquele convenire cum omni ente que constitui sua natureza. E é precisamente esta convicção que se cristalizou e se encarnou na instituição ocidental da universidade. Daí se segue que não é tanto a ciência que dá a esta instituição sua marca específica, no que ela tem de decisivo, mas antes a viva relação com o mundo realizada por aquele que filosofa.

E também a pretensão de ser, no sentido antes indicado, “escola superior”, lugar de educação e formação daquilo que é verdadeira e profundamente humano; também essa pretensão somente se legitima através do confronto com o todo da realidade, que estimula a realização das potencialidades últimas do espírito.

 

III. O Papel das Ciências

Esta concepção, como se sabe, não é aceita pacificamente, e não é raro que se ouça o contrário, algo assim como o seguinte: certamente a tarefa essencial da universidade é, na pesquisa e no ensino, abarcar o todo da realidade, mas esta tarefa compete faticamente às diversas ciências particulares que dividem entre si o trabalho; o papel de estabelecer fins, antigamente atribuição da filosofia, foi totalmente assumido pelas ciências.

Por outro lado, é claro que não se pode expressar numa fórmula cabal “a totalidade do ser”. A pergunta pelo significado último e fundamental do modo e da existência mostra-se, por princípio, irrespondível, o que se situa fora do âmbito da ciência.

Modestamente críticas em relação a si mesmas, as ciências se limitam ao que pode ser conhecido com precisão, ao particular e, portanto, ao concreto. Por isso, elas alcançam resultados seguros e comprováveis e, acima de tudo, um progresso incontestável; efetivamente, a pesquisa científica tem atingido campos até então desconhecidos. Além disso, os resultados assim adquiridos podem ser frutuosamente traduzidos em aplicações práticas: a descoberta de novas fontes de energia, colheitas mais abundantes, melhores métodos de cura, maior rapidez nas comunicações, meios mais eficazes de defesa militar, etc.

Também o significado educativo de tudo isto é evidente: impele o homem à critica objetiva, a disciplinar todo devaneio especulativo descomprometido, à orientação para o serviço ao bem comum. Numa formulação resumida, a tese poderia enunciar-se assim: a universidade é primariamente um lugar das ciências e da colaboração entre elas; sua missão educativa consiste em ser, no dizer de Fichte, “uma escola da arte de usar cientificamente a inteligência”. Precisamente isto é o que faz dela uma universidade.

Tais teses são-nos bastante familiares e, à primeira vista, parecem totalmente plausíveis. Parece muito difícil, senão impossível, opor-lhes uma refutação convincente. No entanto, é precisamente isto que pretendo apresentar. Começo por concordar. É evidente que a universidade é essencialmente um lugar de ciência; ela não pode sequer ser imaginada de modo diferente. E é perfeitamente acertado dizer que é graças às ciências e só a elas que se dá o progresso no conhecimento tanto do cosmos quanto da realidade histórica do homem.

Como também é verdade que os resultados da pesquisa científica atingiram um grau incomparável de precisão e segurança. E mais: tais resultados, por sua natureza, são aplicáveis ao que é útil e prático e, no mais estrito sentido, vitalmente importantes (para milhões de homens a existência física só é possível graças à ciência). Finalmente, ninguém contestará que a atividade científica tem podido, de modo insubstituível, formar o homem, na medida em que ela, e só ela, leva sempre a clareza e à disciplina de pensamento, à objetividade, à sobriedade e à devida integridade.

É necessário, porém, especificar também as críticas. A justaposição espacial ou organizacional das ciências particulares é claramente insuficiente para revelar, a quem quer que seja, aquele universum, a realidade como um todo, com a qual a universidade tem – até pelo seu próprio nome – um compromisso. A própria universidade, enquanto instituição, não é um indivíduo, que “possa dirigir seu olhar para algo” ou considerar algo; para fazê-lo, é necessário o sujeito, o espírito singular, a pessoa. Só as pessoas que constituem a universidade podem realizar essa abertura para a totalidade de que estamos falando.

É necessário, pois, que os estudantes, por mais que se limitem a um aspecto parcialmente formado da realidade (aliás, pela sua própria disciplina científica), sejam postos em condições, sejam estimulados, continuamente provocados, compelidos pelo próprio espírito da instituição, a olhar de modo pessoal o todo do mundo e da existência. Ao se discutir, por exemplo, a questão da liberdade humana, não se deve considerá-la somente dos pontos de vista psicológico, biológico, jurídico, etc. mas “em si”, sob toda a “perspectiva de reflexão”. Ou o que “em si” é e o que deve ser a poesia; ou ainda, o que acontece realmente – para além da dimensão fisiológica ou puramente biográfica – na morte de um homem; e assim por diante.

Não há nenhuma outra forma de encarar a coesão global do existente e de ponderar a nossa experiência sobre isso. O que faz com que uma universidade seja uma universidade, é que ela é o núcleo, o reduto, a cidadela e o território livre preparados e permanentemente abertos, deliberadamente, por uma organização que específica e metodicamente visa esse objetivo. Quando isto não se dá, ela fracassa na sua missão essencial; desperdiça uma potencialidade que se encontra em nenhuma outra parte do mundo.

 

IV. A filosofia como centro da universidade

É claro que este revelar-se da realidade como um todo se dá necessariamente sob um outro signo que não o da ciência; como já foi dito, ocorre por meio da atitude de entrega filosófica em relação ao mundo. Acerca dessa diferença, preciso ainda fazer algumas observações concisas, não apenas para uma elucidação do papel da filosofia, como também para a justificação e defesa dela.

Primeiro ponto: É com razão que a ciência não se propõe questões irrespondíveis, ou então as deixa de lado assim que percebe com clareza que tal é a natureza delas. O filósofo, pelo contrário, não cessa de considerar e de discutir questões que, reconhecidamente, nunca poderão ser respondidas de uma forma definitiva. O que é, no fundo, conhecer? Podemos estar certos da imortalidade? O que significa ser real?

Para perguntas desse tipo, nunca se encontrará uma resposta que resolva plenamente a questão, uma resposta como aquela que diz que o bacilo de Koch é o agente da tuberculose pulmonar. Por que, então, insistir na pergunta? Resposta: por que o próprio ato de perguntar é, ainda, uma forma de ficar no encalço da realidade e estar sempre atento a ela; uma forma também de conservar, em face do todo, aquela receptividade que constitui a natureza do espírito.

Aquele que, por princípio, renuncia a discutir questões não suscetíveis de uma resposta exata, aquele que permanece simplesmente no âmbito da investigação especializada, já deixou de lado, não só como cientista, mas também como pessoa humana, a totalidade do real e renunciou à possibilidade de realizar-se plenamente. Isto pode perfeitamente ocorrer. Existe uma forma específica de estreiteza espiritual, para não dizer de servidão, que tem o seu fundamento estritamente na auto-limitação do espírito ao cientificamente cognoscível.

Segundo ponto: O trabalho das ciências consiste, por meio de um processo contínuo, em tornar claro o que até então era desconhecido. Todo conhecimento científico realmente revela novos saberes; todo conhecimento científico é um “progresso”. O sistema periódico dos elementos, a circulação do sangue, o modo de ação dos hormônios – todas estas verdades eram completamente ignoradas até o momento da sua descoberta.

Na reflexão filosófica, contudo, ocorre o seguinte: é muito provável que o problema se torne mais claro à medida que o filósofo mais e mais se deixe envolver por ele, verse a questão sobre a morte e a imortalidade, a liberdade, a culpa etc. Todavia, é claro que isto não implica a descoberta de algo que até então lhe era absolutamente desconhecido. O que ocorre é antes o esclarecer algo já sabido, porém mal sabido. Eis porque Platão compreendeu e designou o conhecimento filosófico como a recuperação de algo esquecido, como reminiscência.

Mas que sentido deve ter a reflexão sobre a totalidade da existência, se ela não revela nada de novo? A esta questão responde-se: ao homem não é necessário apenas ampliar seu saber acerca do mundo, mas talvez seja mais necessário ainda lembrar-se das verdades imutáveis e ser lembrado delas. E fazer isto de espírito inteiramente vigilante, sem fugir romanticamente da realidade, nada esquecendo ou desprezando do que, criticamente, sabemos sobre nós próprios e sobre o mundo.

Terceiro ponto: Diferentemente do que ocorre com o conhecimento científico, não se pode aplicar ou utilizar a consideração filosófica da realidade para garantir a existência ou prover as necessidades da vida; ela não é do tipo que, como Descartes proclamou, poderia pôr-nos em condições de nos tornarmos “senhores e possuidores da natureza” (maîtres et possesseurs de la nature). O mais importante, contudo, é o reverso da moeda: por natureza, o filosofar é “livre”; ele é um fazer pleno de sentido em si, não se prestando a fins estranhos ao seu próprio. Ele não é instrumentalizável.

O caráter prático da ciência, por outro lado, tem igualmente seu reverso: obrigatoriedade e ambivalência. Sabe-se que, entre os descobridores da energia atômica, havia alguns que procuravam evitar toda exploração técnica do invento. (A peça teatral de Dürrenmatt, “Os físicos”, mostra isso com clareza e de forma drástica). Essa espécie de ciência, essa espécie de saber, é aplicável por natureza; refere-se por natureza à aplicação e à utilização, e até mesmo a ambos: uso e mau uso.

Apenas com base em considerações outras, que transcendem o âmbito da física atômica, é possível avaliar até onde vai o limite dessa aplicação, em que ponto começa o mau uso. E também a provisão daquilo que de fato é útil para a vida pressupõe que se tem claro aquilo em que esta “vida” mesmo consiste, a vida verdadeiramente humana. Para isso, não basta a ciência, para isto é necessária a reflexão filosófica sobre a totalidade da vida.

Quarto ponto: Diz respeito ao poder educativo que a ciência, por um lado, e a filosofia, pelo outro, reivindicam. Com razão se diz que a ciência força seus cultores à objetividade de pensamento, ao senso do real, à sobriedade, à disciplina. Ninguém contestará que estas são virtudes intelectuais elevadas e imprescindíveis, cuja força se irradia amplamente para além do campo da atividade científica. Todavia, quando acontece de se dar um verdadeiro ato filosófico, ele marca o homem de forma incomparavelmente mais profunda do que a “educação pela ciência” pode ou pretendeu fazê-lo alguma vez.

Do filósofo que quer, acima de tudo, contemplar o seu objeto, exige-se muito mais. Sem dúvida, exige-se dele muito mais do que a objetividade de pensamento; ou seja, exige-se dele um olhar de profunda e franca ingenuidade, um ouvir em silêncio absoluto, um espírito simples, de uma simplicidade (simplicitas) que nada perturba, que alcança o íntimo da pessoa. O que importa, em filosofia, não é apenas possuir aptidões ou aplicar forças. O espírito se vê muito mais obrigado a realizar sua mais alta possibilidade enquanto ser, muito mais do que limitar-se a fazer o que pode; deve antes tornar-se o que é, a saber, a ter receptividade à totalidade do mundo.

 

V. Liberdade de juízo com relação a todo aspecto pensável

Soa muito pretensioso falar da abertura para o todo. Mas não se trata de uma exigência que se faz, e sim de uma exigência à qual nos expomos e a que nos submetemos. O que distingue o filosofar concerne, antes de mais nada, ao ter em vista a própria modéstia, do que a alguma espécie de “superioridade”. Concretamente falando, com isto não se quer dizer que a filosofia possua a totalidade em um sistema fechado de conhecimento cabal. Como se sabe, isto de modo algum é evidente.

Cito apenas os três grandes representantes do chamado “idealismo alemão” – Schelling, que chama a filosofia de “a ciência dos eternos arquétipos das coisas”; Hegel, que a compreende como “apreensão do absoluto”; e Fichte, que diz: “A filosofia antecipa a experiência total”. Nada é tão compreensível como o fato de as ciências empíricas, mesmo ao se apropriarem dos seus domínios, terem tido de recusar, como algo grotescamente descabido e pretensioso, a exigência de superioridade formulada pela filosofia, mormente quando esta a expôs claramente.

Na verdade, essa pretensiosa auto-afirmação, que continua até hoje, afeta a própria reorganização da universidade, já que é extremamente difícil desfazer o desacordo entre a ciência e a filosofia. Em contrapartida, é preciso remontar ao sentido original do nome philosophia, que tanto a Antigüidade como a Idade Média radicalmente aceitaram. Filosofia não significa precisamente a posse de um saber que abarca tudo e tudo compreende, e que nós chamamos sabedoria, mas a busca amorosa desse saber, de um lado interminável, mas do outro proveitosa.

O mundo e a própria existência também são assim: por um lado, são luminosos, translúcidos, cognoscíveis até os fundamentos; pelo outro, contudo, são inapreensíveis, inescrutáveis. Porque isto é assim, por esta razão é que o filósofo sempre continua na dependência de cada nova informação acessível sobre o seu objetivo, nunca definitivamente esclarecido; sempre continua a necessitar precisamente das novas informações descobertas pela ciência. Não lhe é permitido dizer: “a mim, interessa-me perguntar sobre o ser metafísico do homem, não sobre o que a psicologia, a fisiologia do cérebro, a pesquisa sobre o comportamento têm a dizer sobre o homem”.

Se o fizesse, no mesmo momento deixaria de filosofar seriamente, isto é, de considerar a realidade sob cada aspecto pensável. Precisamente isto, contudo, determina o posto da filosofia e constitui a sua dignidade. A reflexão filosófica sobre a realidade como um todo, como dissemos, é o núcleo plasmador da universidade; mas isto, por si só, justificaria a “exigência de superioridade” da filosofia? Que outro significado esta exigência poderia ter?

Significa que a filosofia, ainda que sempre na dependência de toda descoberta de todas as ciências, e a elas atenta, tem contudo de cuidar, ela sozinha, para que nem um único aspecto pensável da realidade seja minimizado, descurado, encoberto ou desprezado. Por outras palavras, a filosofia tem de cuidar para que a consideração do objeto na sua totalidade, isto é, “o fato completo”, seja aberta e assim permaneça.

Este compromisso com a abertura, que não pode fechar-se a nenhuma informação acessível, não importa de onde esta venha, esse compromisso traz ainda uma outra conseqüência. Em todo caso, a pergunta é inevitável: não se estenderia este compromisso também àquelas informações, oriundas não de nossa própria experiência e investigação, mas de esfera sobrehumana, de tradição sagrada, da revelação, de uma fala de Deus?

Não existe dúvida alguma de que os grandes iniciadores e fundadores da filosofia ocidental, não só Platão, mas também Aristóteles, trataram formalmente dessas informações sobrehumanas, e refletiram sobre elas. Precisamente isto dá aos diálogos platônicos e à metafísica aristotélica o sabor do existencial, em virtude do qual eles podem manter até hoje ativo o pensamento. Essa corajosa imparcialidade em relação à teologia é uma marca da filosofia antiga; ela se funda na convicção de que simplesmente não seria filosófico excluir, por princípio, qualquer informação possível sobre a realidade.

Pela mesma razão, não pode uma universidade sem teologia ser uma universidade no sentido pleno, se sob o nome “escola superior” se compreende aquela escola que exige a consideração da totalidade do mundo e da existência e a ela se obriga. O grande humanista do século XIX, John Henry Newman, expressou isto em uma frase um tanto agressiva: “University teaching without theology is simply unphilosophical”. A exclusão da teologia contraria o caráter da universidade como uma instituição filosófica.

Sem dúvida, é preciso dizer logo que é muito provável que venham, a teologia mesma e seu papel dentro da universidade, a ser mal compreendidos e isto, de modo algum, é uma simples possibilidade abstrata. Assim, a missão da teologia é cuidar de que toda a dimensão da realidade não seja esquecida, embora a teologia ocidental – por meio de seus grandes representantes -, sempre tenha compreendido que ela, para realizar a tarefa que lhe é própria, isto é, a interpretação da tradição sagrada, simplesmente tem necessidade de todas as contribuições do esforço cognoscente das ciências da natureza.

Até mesmo a palavra “serva”, palavra chocante, a que se liga a idéia segundo a qual as ciências teriam de servir à teologia, até esta palavra, mil vezes e até mesmo de ambos os lados mal interpretada, no fundo não significa outra coisa senão que a cooperação é indispensável. Apenas uma teologia que não se desvia desse inevitável e incômodo confronto com a investigação científica pode discernir, com superioridade, sua própria tarefa teológica[2].

Por exemplo, como poderia a teologia, de modo fidedigno, sem deixar de considerar todos os resultados da pesquisa sobre a evolução, dizer-nos qual é exatamente o verdadeiro significado, que não deve ser deixado de lado, da frase bíblica segundo a qual Deus criou o homem do barro da terra e lhe insuflou o fôlego da vida? O que isto significa? Está vivo ou não o confronto da teologia com a pesquisa científica? Eu me propus esta questão há pouco, durante alguns meses de exercício do magistério em universidades indianas.

Na Índia, onde a totalidade da vida é penetrada por impulsos religiosos, não existe na universidade teologia alguma; nem mesmo a universidade hindu de Benares, embora construída ao redor de um templo, tem uma cátedra de teologia de hinduísmo. E ficou-me muito claro que esta ausência é perigosa e plena de conseqüências inesperadas. O perigo não está apenas no fato de que, da forma mais natural, a teologia e a tradição religiosa caiam em descrédito e se tornem estéreis; pior do que isso, a elite intelectual de todo um povo corre o risco de alhear-se das verdadeiras origens de sua cultura.

Naturalmente, já não basta o mero fato de que a filosofia e a teologia sejam representados na universidade em faculdades próprias, como “especialidades”. Por certo, a implantação institucional é um pressuposto indispensável. Mas a particularidade da filosofia e da teologia está justamente em que elas, por natureza, não são “disciplinas especializadas”. Precisamente falando, ambas não se definem pelo fato de ocuparem uma área determinada, claramente demarcável.

Ao contrário, quase se poderia dizer que o ser que filosofa com seriedade não se interessa pela “especialidade” filosofia. O teólogo também enquanto exerce a atividade que lhe é pertinente, pode não ter como objetivo originário exercer a teologia na sua “pureza metódica”, embora ele também precise fazer isso. O problema da limitação temática do próprio campo teórico é, tanto para a filosofia quanto para a teologia, igualmente sem sentido; uma e outra, e apenas elas, dizem respeito à realidade como um todo. E justamente nisso reside o significado delas para a vida da universidade.

Muitas vezes foi dito, sem dúvida com razão, que é decisivo para a universidade a “cooperação entre as ciências”. Mas freqüentemente não se percebe que as especialidades científicas se constituem justamente pela delimitação de um aspecto parcial da realidade e que então esta cooperação pode tornar-se impossível de ser realizada a partir delas próprias. Esta é uma expectativa que, por princípio, não pode ser satisfeita.

Para tanto, é preciso um intermediário que promova esse encontro e compreensão, tarefa que as ciências não podem levar a cabo. Apenas a consideração filosófico-teológica da realidade é capaz disso. Apenas ela, desde que também não venha a ser exercida como simples disciplina especializada, pode tornar possível e manter o diálogo plural, exclusivamente no qual se estabelece e se legitima a verdadeira unidade da universidade.

 

VI. A capacidade de discussão

Nesse ponto, ousaria apresentar a única proposta concreta de organização com a qual eu tenho colaborado para a discussão sobre a renovação da universidade. Ela assim se formula: poderíamos reservar no plano de construção da universidade um lugar ao debate acadêmico, que transcenda as disciplinas e faculdades. É, provavelmente, um mal-entendido romântico pensar que a universidade medieval pura e simplesmente transmitiu aos seus estudantes uma visão de conjunto.

Todavia, houve nela a instituição regular da disputatio, que, por princípio, não recusava nenhum argumento e nenhum contendor, prática que obrigava, assim, à consideração temática sob um ângulo universal. Um homem como Tomás de Aquino parece ter considerado que precisamente o espírito da disputatio é o espírito da universidade. Naturalmente não tenho empenho algum em reintroduzir em nossas universidades os procedimentos formais da disputatio escolástica, embora não se devam menosprezar as regras formuladas; cito, por exemplo, aquela pequenina regra segundo a qual somente se poderia responder a uma objeção após tê-la repetido com as próprias palavras e ter o seu autor confirmado com precisão o que pensara.

Mas a questão em si é que, por trás do aspecto formal, da discussão cultivada com toda a agudeza de um confronto real, a disputatio era, todavia, um diálogo, e o ser um autêntico diálogo, que nela era decisivo, é hoje, para a universidade, mil vezes mais importante do que pode ter sido alguma vez para a universidade medieval. Na verdade, também não houve outrora possibilidade de oferecer um sistema global harmônico de interpretação do mundo. Não foi por acaso que a maior Summa do século XIII permaneceu incompleta.

Mas, para nós, logo se tornou impensável o projeto de uma Summa. A multiplicidade de nossos saberes sobre o mundo tornou-se tão imponderável que não nos é mais possível, de modo legítimo, fazer afirmações cabais e fechadas sobre o mundo. Mas a renúncia à conclusão de uma imagem definitiva da realidade de modo algum tem de significar também desespero agnóstico.

Esta expressa abstenção pode muito bem, pelo contrário, ter o sentido de justamente salvar, apesar de tudo, uma imagem unitária do mundo, e manter aberta uma perspectiva para o todo, o qual escapa a toda formulação. Contudo, esta abertura para a totalidade, como já foi dito, também não é realizável pelo simples fato de a universidade abrigar estas ciências especializadas. Ela se realiza sobretudo no espírito do sujeito singular, que, falando ou ouvindo, participa desse diálogo plural das disciplinas.

O que faz de alguém um verdadeiro professor universitário é esta capacidade de participação e, de resto, ainda, esta disposição para fazê-lo. Além de cientificamente qualificado, o professor deve poder reconhecer a relevância de seu próprio trabalho para a reflexão permanente sobre o todo; ele deve ser capaz de introduzir no diálogo filosófico esse conhecimento, sem generalização diletante ou apressada. Isto pressupõe, sem dúvida, alguma coisa a mais, isto é, que em caso de necessidade ele não se recuse a trazer para o debate as últimas posições.

O que no âmbito das ciências especializadas com razão não é permitido, não apenas por ser anti-científico como também por atentar contra a discrição acadêmica, justamente isto torna-se inevitável no diálogo filosófico, à medida que se trata de levar em conta expressamente o “fato completo” sob toda perspectiva de reflexão. É dispensável dizer expressamente que isto não deve significar um apoio a confissões particulares ou uma tolerância em relação a elas. O filosofar tem a sua própria forma de discrição. Contudo a mais resoluta simplicidade exige que o professor, como tal, se manifeste necessariamente, quando solicitado acerca do problema da coesão global do mundo.

Basta apenas formular, e já ficarão claras, as dificuldades e resistências com as quais quase seguramente é preciso contar nessa matéria. Em suas memórias, Fedor Stepun dá-nos um exemplo que ainda poderia ter um certo valor sintomático. Trata-se da preleção de Wilhelm Windelband, com quem era difícil estabelecer um relacionamento humano, porque ele era “um típico professor alemão de seu tempo, isto é, pesquisador e professor de uma disciplina científica”, enquanto ele próprio, Stepun, era “um típico jovem russo, que viera à Europa pala decifrar o enigma do mundo e da vida”.

Em certa ocasião verificou-se no seminário de Windelband uma calorosa discussão sobre o tema “liberdade e culpa”. O resultado do debate foi uma série de várias respostas possíveis, claramente não definitivas. Stepun reuniu, então, toda a sua coragem e perguntou ao professor qual, era a sua posição pessoal última. A resposta de Windelband, conta-nos Stepun, foi: “que ele naturalmente tinha uma resposta para a pergunta, mas que esta pertencia à sua metafísica particular, à sua fé pessoal, que não poderia ser transformada em objeto de um trabalho de seminário”. “Eu senti”, assim prosseguiu Stepun, “que era envolvido de todos os lados por uma malha de arame farpado de metodologias sutis, e que era impossível uma ruptura na esfera da verdade, que me torturava”.

Essa história, propícia à reflexão, é também característica, enquanto mostra que ninguém precisa realmente ficar apreensivo devido à eventual disponibilidade do estudante para uma reflexão sobre o todo. Desta perspectiva, o problema não são os alunos, mas os professores. Por isso, é preciso insistir em que o que exatamente está em consideração é o que faz da universidade uma universidade. “Como obter para a universidade cientistas de valor, que possam ser igualmente verdadeiros professores universitários?”

Seria pouco realista encerrar esta questão de outra forma que não com um problema em aberto, o qual, embora seja um entre muitos, é o mais urgente. Contudo, é também aquele que tem a menor possibilidade de ser resolvido a partir de “medidas administrativas”. Do quadro da situação empírica de nossas universidades de modo algum foi expressamente falado. Sabe-se que a crítica a respeito passou, entrementes, a integrar a conversação do cotidiano.

Meu interesse é outro, ou seja, desejo lembrar o critério sem o qual é absolutamente impossível uma crítica plena de sentido. Dessa maneira, falei da oportunidade que é oferecida à universidade desde as suas origens e que assim o creio, também hoje e no futuro continua aberta para ela. Mas a oportunidade, enquanto tal, por certo, tanto pode ser percebida e aproveitada, como também perdida e desperdiçada.

 

[1] O documento mais antigo em que se menciona a expressão Universitas é uma carta do Papa Inocêncio III para o Studium Generale Parisiensis.

[2] Philosophiae ancilla theologiae: melhor seria, então, philosophiae amicus theologiae?