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A Amizade ou Cícero e Riobaldo estão de acordo

Literatura | 27/08/2014 | | IFE CAMPINAS

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PortraitLHvers1870-dois-amigos-DP“Amigo para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual para o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e todos os sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é. Amigo meu era Diadorim.”[1]

Essa é, talvez, a definição da mais bela história de amizade da literatura. Em Grande Sertão:Veredas, Guimarães Rosa conta-nos a relação entre Riobaldo e Diadorim. Quem narra a história é Riobaldo, já velho, mas que mantém viva na lembrança a grande amizade com o amigo jagunço: “Diadorim e eu, a sombra da gente uma só formava. Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem.”[2]

Antes de destrinchar o sentido desta amizade, vale a pena contar como ela se deu. Riobaldo tinha cerca de catorze anos. Como havia se curado de uma doença, a mãe fez uma promessa. O menino teria de pedir esmolas no porto para pagar uma missa. Certo dia, enquanto cumpria a promessa, apareceu um menino e os dois começaram a conversar sobre assuntos triviais: de onde vem, para onde vai. Com o passar do tempo, Riobaldo começou a se afeiçoar àquele menino e desejou que ele não fosse mais embora. O menino foi fazer um passeio de canoa e o chamou. Uma observação que Riobaldo fez, já velho e que é muito importante: “Tudo fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a gente só podia responder que sim.”[3]

Neste passeio pelo Rio São Francisco, eles pararam em um determinado ponto, desceram e ficaram “espreitando distâncias do rio e o parado das coisas.”[4] Em seguida, despediram-se e, embora não soubesse o nome do amigo, sabia que ficaria para sempre em sua lembrança: “Dele nunca me esqueci, depois, tantos anos todos.”

No excelente romance de Guimarães Rosa, o futuro uniu os dois amigos que andaram pelos sertões, fazendo companhia um ao outro. Esse fato nos leva a pensar na citação inicial deste ensaio, em que Riobaldo define o laço que os unia como um prazer de estar junto e todos os sacrifícios. Talvez seja por isso que a amizade esteja em baixa atualmente, porque se é um prazer, também é exigente, requer esforço, dedicação. Mas não é um fardo, porque nos dá riquezas que não sonhávamos que existissem sobre a terra. Um amigo, na plena acepção do termo, é a pessoa que nos mostra a grandeza que cada ser humano guarda e como o guardar é relativo, pois o tesouro que ele tinha sob seu poder foi feito para dar a outra pessoa, ao seu amigo.

É desse modo que podemos entender também a grande amizade que ligou o filósofo, poeta e grande orador Cícero (106 a.C/43 a.C) a Ático. Foi por causa do amigo que Cícero escreveu o belo diálogo Da Amizade, que “oferece um interesse único: é a obra de um amigo escrevendo ao seu mais querido amigo, após uma vida de íntima amizade”[5], diz o tradutor da obra, Tassilo Orpheu Spalding. Afirma também que a obra está baseada nas seguintes reflexões: a amizade não é procurada para satisfazer o egoísmo, mas devido a um desejo da alma, e que não há amizade sem virtude. Se nos lembrarmos do que disse Riobaldo, vemos que é o mesmo que Cícero: prazer de estar junto e não prazer por sentir prazer e todos os sacrifícios, ou seja, ter e adquirir virtudes.

Discorrendo sobre a primeira reflexão, de que não é por egoísmo, Cícero diz que o egoísta se atormenta excessivamente com os seus próprios males, o que não é próprio do amigo. Talvez esteja aí também um dos motivos pelos quais se tem uma certa desconfiança atualmente em relação à amizade. Muitas vezes, as pessoas procuram não confidentes, mas depósitos de lamúrias, no qual um eu fica girando em seu próprio eixo sem ouvir e dar espaço ao outro: não é a busca de um amigo, mas a de um terceiro ouvido. É certo que o amigo tem essa função, a de escutar o outro, mas fala ao outro, não para si mesmo, embora quando falamos a um amigo verdadeiro é como se falássemos para nós mesmos, mas não porque não lhe damos ouvido, mas porque nos compreende, ou como diz Cícero:

“Existe um homem para quem viver seja realmente viver, como diz Ênio, se não conhece a felicidade de amar e ser amado? Que há de mais doce do que ter alguém com quem ouses falar como falarias a ti mesmo? Para que serviriam tão grandes frutos na felicidade se não tivesse com quem partilhar o gozo que eles nos dão?”[6]

Sobre a segunda reflexão, Cícero e Riobaldo também estão de acordo no que diz respeito às exigências de uma amizade. Após dizer que “tira o sol do mundo quem tira a amizade da vida”, Cícero afirma que não há razão para desistir da amizade devido aos dissabores que pode vir a nos causar, já que do mesmo modo é insensato renunciar à virtude pelo fato de exigir esforço. Além disso, suportar e auxiliar o amigo nos momentos em que ser amigo de fato é mais custoso, é uma grande oportunidade para alcançarmos novas virtudes e mais, demonstrar ao amigo que a amizade não é devida a um impulso gregário ou egoísta, mas devido a um amor desinteressado. É também o que diz Riobaldo quando fala da sua amizade por Diadorim: “Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor.”[7]

Portanto, embora exista uma troca muito benéfica na amizade, ela não se resume a isso, porque é doação. E o que se dá? O que há de mais profundo no ser humano: a sua interioridade, a sua intimidade. Cícero diz que não é “tanto a utilidade partilhada pelo amigo, como o próprio amor do amigo que deleita: o que vem dum amigo sempre nos agrada, quando seu zelo por nós o inspirou”. E concluiu esta reflexão afirmando que não é a amizade que segue a utilidade, mas a utilidade segue a amizade”, ou seja, não buscamos no amigo o que nos convêm, mas a própria amizade traz consigo o que nos convêm.

A amizade, enfim, é um tipo de amor em que a alma é o que conta, como disse Riobaldo: “Diadorim e eu, a sombra da gente uma só formava. Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem”[8]. Do mesmo modo, e mostrando que as diferentes épocas viram a amizade como um bem sem preço que possa medir o seu valor, Cícero vê na busca da amigo o transbordar do amor que cada um sente por si – não como egoísmo, mas como instinto fundamental de sobrevivência e acolhimento verdadeiro da própria riqueza como pessoa:

“Se alguém ama a si mesmo, não é porque exija de si mesmo o preço desse afeto, mas porque cada um é caro a si próprio. A não ser que se transfira isto para a amizade, jamais será encontro verdadeiro: pois o verdadeiro amigo é como um outro nós mesmos. Se isto se evidencia nos animais, nas aves, nos peixes que primeiro amam a si mesmos (pois este instinto nasce com todo ser vivo), em seguida procuram e perseguem o do seu gênero para a eles se unirem, e fazem isto com tal ternura que lembra a dos homens, mais ainda no homem, onde ocorre por sua própria natureza, o qual ama a si mesmo e procura, a seguir, um coração com o qual o seu se possa unir tão estreitamente que os dois não façam senão um!”[9]

O escritor C.S.Lewis afirmou no livro The Four Loves que a baixa estima que a amizade tem atualmente é devido ao fato de que poucos a experimentam.[10] Duas grandes obras provam que vale a pena.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista e publicitário, e gestor do Núcleo de Educação do IFE Campinas.

NOTAS

[1] Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, in Ficção completa, Rio de Janeiro, 1995, Nova Aguilar, p. 119.

[2] Id. Ib., p. 160.

[3] Op. Cit. p. 70-71.

[4] Op. Cit. p.74.

[5] Op. Cit., p. 122.

[6] Op. Cit., p. 135.

[7] Op. Cit., p. 104.

[8] Op. Cit., p. 160.

[9] Marco Túlio Cícero, Da amizade. In: Da velhice e da amizade, São Paulo, Cultrix, s/d, p. 160.

[10] C.S. Lewis, Los cuatroamores, Rialp.8ª ed. p.70.

A verdadeira tradição

Literatura | 08/07/2014 | | IFE CAMPINAS

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Nunca me sai da memória o poema Gesso, de Manuel Bandeira – para o meu gosto, o maior poeta brasileiro. “Essa minha estatuazinha de gesso quando nova, o gesso muito branco, as linhas muitos puras” são os versos iniciais. Uma rápida paráfrase: a partir de um pequeno acidente doméstico – a queda de uma estátua de gesso – o poeta realiza uma consideração filosófica. Após colar os pedaços do objeto, olha novamente para a estátua refeita e conclui: “só é verdadeiramente vivo o que já sofreu”. A simplicidade profunda!

Pois bem. Outro dia estava lendo uma coletânea de poemas franceses traduzidos por Guilherme de Almeida. Encontrei um chamado o verso partido, de Sully Prudhome. São poemas bem diferentes, já que o do brasileiro é em versos livres e o de Prudhome é composto por quadras de versos de oito sílabas. Contudo, o tema é semelhante. O poeta francês conta que um vaso é derrubado por um leque. Ele trinca, mas ninguém nota. Por isso “Ill est brise, n’y touchez pas” (“já se quebrou, não toquem não”). Assim ocorre com o coração de quem teve uma desilusão amorosa.

Essa semelhança em poemas tão diferentes lembrou-me do que é a tradição.

O assunto não é nada novo, já que Cícero, com a herança grega em mãos, refletiu sobre a tradição e modos de não ser mero imitador daquela cultura.Tratava-se, então, de uma questão relevante, já que a literatura romana “nasce sob o signo da tradução, e sob o impulso de um grego de Tarento, Lívio Andronico, que traduz a Odisseia e ainda outras tragédias e comédias gregas.” (Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica II – Cultura Romana, Calouste Gulbenkian, 2002, p. 63).

Também Petrarca, tido como o primeiro dos humanistas dizia, a respeito da relação da arte nova e a tradição: “Devemos cuidar para que, quando uma coisa for semelhante, muitas sejam diferentes, e o que é semelhante deve estar tão escondido que só possa ser captado pela busca silenciosa da mente, sendo mais inteligível do que descritível. Portanto, devemos recorrer ao tom e à qualidade interiores de outro homem, mas evitar suas palavras, pois um tipo de semelhança está oculto, e o outro salienta; uma cria poetas, a outra, macacos” (Francesco Petrarca, Le familiari, XXIII, apud. Ernst Gombrich, Norma e forma, Martins Fontes, 1990, p. 161).

Bandeira leu Prudhomme e escreveu: “Foi ele que me deu a vontade de estudar a prosódia poética francesa” (Itinerário da Pasárgada, p. 43). Vase brise e Gesso mostram o valor de uma tradição bem entendida: não mera imitação, mas recriação a partir de tópicas semelhantes ou iguais.

A morte do antigo sempre acaba na morte do novo que, sem referência, pensa que cria, mas repete. Quando cria, é vazio, inflado apenas de… nada.

Eduardo Gama (IFE Campinas)