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Da necessária separação entre Estado e Governo (por Marcus Boeira)

Política e Sociologia | 10/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Sabe-se que, diferentemente dos Estados Unidos, em que a separação tripartite dos Poderes representa um arranjo adequado de instituições para a sociedade americana, fortemente consensual em sentido social, o Brasil adentrou na era da axiologia constitucional sem um projeto coerente e racional de instituições políticas. Para a realidade americana, a tripartição de poderes aparece como um modelo de consagração histórica, existente desde a fundação do país e que, por isso, mostra-se extremamente adequado à realidade norte-americana, firmemente sustentada em princípios tais como o common law e o self-government, próprios da cultura anglo-saxônica. O self-government, enquanto princípio, refere que a sociedade americana é uma sociedade formada da base para o topo, isto é, uma sociedade que precede a formação do Estado, razão pela qual é uma sociedade fortemente detentora da capacitação para empreender projetos políticos e sociais a partir de si mesma, sem a necessidade de uma intervenção massiva do governo. Desta maneira, a tripartição de poderes, nos Estados Unidos, representa um modelo acidental de instituições políticas, uma vez que a maior parcela de poder é concentrada na própria sociedade e esta, organizada na base, possui condições sociais e políticas suficientes para controlar os poderes políticos, equilibrando-os. A democracia social americana, de que falou TOCQUEVILLE, representa um modelo político em que o monopólio da legitimidade de poder e de controle não se situa dentre os poderes, mas na própria base social. A sociedade, assim, possui condições de controlar o poder e, ao assim proceder, vivenciar na prática a democracia constitucional. Em um certo sentido, é apropriado dizer que nos Estado Unidos, a sociedade, e não o Estado, é o verdadeiro centro de poder. Tanto é, que ROBERT DAHL chama tal sistema de Poliarquia.

Este forte caráter de autogoverno presente na sociedade americana é devido ao processo histórico que resultou na revolução americana, verdadeira fundação do país. A América foi formada por um processo de emigração de famílias inglesas que se organizaram socialmente, em comunidades coloniais. Os Estados Unidos não conheceram um passado feudal, o que afastou o país das heranças baseadas nos ideários sociais de estratificação e sustentação tradicional do poder. Por estas razões, o consenso na América não é um atributo das instituições políticas, mas uma função desempenhada pela própria sociedade americana que, por meio do consenso social e do alto grau de poder que concentra e controla efetivamente o poder político (poliarquia). Sobre isto, CEZAR SALDANHA SOUZA JUNIOR demonstra que “nos Estados Unidos, a fonte sócio-política do poder está no povo, na comunidade. Lá a afirmação de que ‘o poder emana do povo’ não soa como simples princípio jurídico, um ‘dever-ser’ inscrito na Constituição, mas corresponde ao que foi, na realidade histórica, a formação americana. Conseqüentemente, o povo é politicamente forte em relação ao poder estatal que ele próprio criou”.

Tais características da sociedade política americana são diametralmente diferentes da realidade brasileira. A formação de nossa sociedade ocorreu de modo distinto daquele sucedido entre os norte-americanos. No entanto, a partir de 1891, com a adoção do modelo republicano em território brasileiro, transportamos para nossa realidade as instituições consagradas nos Estados Unidos. Tais instituições, em sua gênese, consistiam em dois pontos: primeiro, na adoção de um presidencialismo de estirpe norte-americana, em que as funções de chefia de estado e chefia de governo passariam, de imediato, a ser compreendidas em uma mesma pessoa que, ocupando o poder executivo (a presidência da república), exerceria duas funções distintas: a função de Estado e a função de Governo; o segundo ponto seria a transplantação de um arranjo tripartite de poderes, em que Executivo, Legislativo e Judiciário estariam em posições eqüidistantes e eqüipotentes, sem a presença de um poder acima destes para estabelecer o equilíbrio e a manutenção moderadora da integridade política.

A Constituição republicana de 24 de fevereiro de 1891, assim, fez tabula rasa das instituições do Império e consagrou entre nós um presidencialismo forte, bem como uma separação de poderes à moda clássica (vigente nos Estados Unidos). Com isto, derrubou o sistema tradicional do Império, em que existia um quarto poder, a saber, o poder moderador, responsável pela função de chefia de Estado e de árbitro dos demais poderes. Este, em suas atribuições constitucionais, controlava e limitava a atuação dos demais em função da manutenção da unidade política e da integridade do consenso.

JOÃO CAMILO DE OLIVEIRA TÔRRES é claro a esse respeito: “Depois do Poder Legislativo, isto é, do poder que tem a nação de determinar regras gerais para o comportamento de seus membros e de autoconstituir-se, vem o Poder Régio, aquele que possui a nação de reger-se a si mesma, de auto-determinar-se. Pela Constituição, tal função cabia ao Imperador, que exercia o Poder Moderador, o poder de manter em equilíbrio a máquina do Estado e de representar a nação perante o mundo. Uma prova da consciência toda especial que tinham os homens da primeira fase da história do Império do caráter essencialmente moderador das funções imperiais dá-nos a educação ministrada a D. Pedro II em menino. Pretendiam (e, no caso, conseguiram-no) fazer dele um homem em quem as paixões não deveriam nunca ter lugar e que, em tudo e por tudo, se fizesse inspirar pelos princípios abstratos da razão. E que pusesse os ideais espirituais e éticos acima de tudo. A grandeza e a fraqueza dos tediosos e quase tétricos educadores do ‘pupilo da Nação’ estava em que, no século do capitalismo e na América, criaram um chefe de Estado que colocava os fins morais do Estado acima dos valores econômicos. Daí a ditadura da moralidade e a tacha de inimigo do progresso que muitos deram a D. Pedro II. A Constituição de 1824, ao tratar do Poder Moderador, reproduzia em suas linhas mestras o conceito tradicional da realeza medieval. O Imperador, como chefe de Estado, continuava gozando das prerrogativas de seus antepassados”.

Nesse sentido, o art. 98 da Constituição do Império brasileiro de 1824 falava que “o Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao imperador como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”. Como se observa, o Poder Moderador era, à época imperial, o poder responsável pela manutenção do consenso político, a saber, pela manutenção da ordem política brasileira e, assim, da unidade da nação em seus valores comuns.

O fim da era imperial brasileira e o advento da República entre nós representou, portanto, a adoção de um modelo consagrado em território norte-americano, em que as características de formação social e política diferem em muito do caso brasileiro. Estas diferenças de formação, em razão de distintas posturas das sociedades políticas norte-americana e brasileira frente ao poder, ocasionaram também diferenças nos resultados em cada um dos países. Por que isso aconteceu?

SEYMOUR MARTIN LIPSET diz que “deve-se atentar para o fato de que o caráter dos regimes democráticos pode variar consideravelmente, dependendo dos diversos elementos na estrutura social das nações com os quais as instituições políticas devem entrelaçar-se”. Completando,
OLIVEIRA TÔRRES é salutar, ao referir que “em países diferentes as instituições serão diferentes, mesmo fundadas em leis iguais. Talvez que, se as Constituições tivessem tido redações dessemelhantes, os resultados se assemelhassem. Importa, pois, apurar a diferença, isto é, a razão pela qual os países da América Ibérica diferem, quanto à política, dos Estados Unidos”.

Parece claro que a diferença substancial entre os dois países reside na formação de suas sociedades políticas. Enquanto nos Estados Unidos a Sociedade precede a Política, havendo um consenso social forte e efetivo, a saber, um self-government, no Brasil, assim como em todos os países da América Ibérica, o Estado precede e forma a Sociedade, sem o qual esta não existiria. Na verdade, a precedência do Estado sobre a formação social, entre nós, caracteriza na sociedade brasileira, um forte apego às coisas do Estado, anteriormente à sociedade em si mesma. Por essa razão, a sociedade brasileira é uma sociedade altamente dissensual na base e ausente em forças sociais que possam mobilizá-la em direção a um projeto comum. Este apego às coisas do Estado intensifica-se com a herança de uma cultura altamente patrimonialista ofertada pela civilização lusitana, formadora do Brasil.

Por esse motivo, viu-se a adoção de uma versão republicana à moda norte-americana sendo transportada para o Brasil, uma realidade social em que o Estado é forte, patrimonialista e precedente em relação à sociedade. Quais as conseqüências desse fato?

Primeiro, o presidencialismo brasileiro acabou com a função moderadora do chefe de Estado, como era vigente na Constituição do Império. Assim, a partir da República, o presidente passa a concentrar duas funções: chefia de Estado e Chefia de Governo. Segundo, com a versão tripartite dos poderes, tal como temos hoje, não há um órgão para estabelecer o consenso político acima dos demais. Em razão disso, pressupunha-se que a sociedade brasileira pudesse realizar um forte controle efetivo sobre os poderes. Porém, tal não sucedeu. A sociedade brasileira, por herança patrimonialista e concebida pelo Estado, não o controla efetivamente. Muito pelo contrário. Por ele age e por ele é condicionada. A conseqüência disso foi uma inadequação das instituições americanas ao nosso contexto, que começou com a República e perpassa até os dias atuais.
A importação indevida das instituições americanas para o Brasil e também para toda a América Ibérica em geral, acabou assim, por concentrar uma alta carga de poderes nas mãos do Poder Executivo, o que durante o século XX se agravou com diversas ondas de golpes de Estado e de Autoritarismos que marcaram a região nesse período.

Este agravamento se deve ao fato de que, diferentemente dos Estados Unidos, a sociedade brasileira e latino-americana de um modo geral não possui forças sociais capacitadas para estabelecer um controle eficaz e poliárquico sobre o Poder do Governo, razão pela qual os golpes e regimes de exceção são facilitados frente ao fraco caráter controlador das sociedades da América Ibérica.

Assim, na realidade, a adoção do presidencialismo e sua perpetuação na história da República brasileira representou e continua a representar uma paulatina inviabilidade para todo e qualquer projeto político sério e comprometido com o bem comum. A saber: o sistema presidencialista e a tripartição clássica dos poderes demonstra um anacronismo em relação ao que a democracia constitucional brasileira aspira em termos práticos.

Os bens e valores do sistema democrático brasileiro são postados em nossa Constituição de 1988 como fins da democracia constitucional. Todavia, como vimos, tais finalidades são realizadas de modo mais concreto e eficiente quando o Estado de Direito e o arranjo de suas instituições estão organizados para corresponder às exigências do bem comum.

Ora, diante disso, qual o problema sociológico evidente que atrapalha para a melhor concretização da democracia constitucional brasileira, na realidade social? Ou melhor, como podemos pensar um caminho eficaz para a efetividade social das normas constitucionais que tratam da composição ontológica de nosso sistema político?

Se a sociedade brasileira foi fundada de cima para baixo, como ficou evidenciado, sendo o Estado e não a sociedade o verdadeiro pólo de poder entre nós, fato é que o caminho para um melhor arranjo de instituições rumo ao consenso não pode começar na sociedade, mas no Estado, gênese da existência nacional. O consenso, em razão disso, deve ser primeiro político, para depois almejar a comunidade.

Por essa razão, o presidencialismo e a tripartição clássica dos poderes não ofertam terreno sadio para nossa democracia constitucional. Isso por duas razões. Primeiro, ao elevar o caráter unipessoal do presidente da república na figura de chefe de estado e de chefe de governo confunde na mesma pessoa, duas funções diametralmente diferentes. Como define SOUZA JUNIOR, “estado não é o mesmo que governo. Enquanto o primeiro é a sociedade política global – o todo -, governo é um dos elementos do Estado, ou seja, o elemento diretor ou o conjunto de órgãos que detém o poder na sociedade política. E, em sentido mais estrito (…) governo é o grupo que exerce, num determinado Estado e em dado momento, a ‘função executiva’. Se o Estado, como unidade social, permanece no tempo, os governos, ao contrário, passam, sucedem-se uns aos outros. Ademais, o Estado, como sociedade global, não se identifica com raças, classes, regiões ou partidos, mas os transcende; já os governos devem exprimir, o melhor possível, a opinião político-partidária dominante. Enfim, o Estado tem objetivos próprios que não se confundem com os objetivos próprios dos governos”.

Enquanto o Estado cuida do consenso político, a saber, da unidade integral acerca dos valores éticos comuns partilhados na comunidade política, o governo, por ser produto de uma disputa político-partidária, representa interesses e aspirações de cunho ideológico e setorial, sendo controlado por uma oposição institucionalizada. Assim, como se vê, as funções de chefia de Estado e de chefia de Governo são diferentes, pois enquanto o primeiro cuida do consenso, o segundo, nasce do conflito ideológico.

Por isso, quando se misturam no mesmo órgão unipessoal duas funções tão distintas, acaba-se por, não raras vezes, confundir-se Estado com Governo, a saber, valores e consenso, com partidos e ideologias. Além disso, os objetivos setorizados do governo dificilmente, são partilhados com a oposição, o que não acontece com a chefia de Estado, que busca a integração nos valores do bem comum. Sendo assim, resta clara a imprescindibilidade de uma separação funcional e institucional entre tais funções, no sentido de que a manutenção dos valores e do consenso político não sejam instados por objetivos ideológicos presentes nas aspirações de um chefe de governo.

SOUZA JUNIOR, acerca disso, sustenta que “como corolário dessa distinção, extrai-se que os processos de preenchimento da chefia de Estado e da chefia de Governo não podem ser idênticos, mas devem se conformar à natureza específica de cada uma. A forma de designação do titular da chefia de Estado vede propiciar a escolha de alguém que seja, o máximo possível, desvinculado das correntes partidárias disputantes do poder. Já, ao contrário, a forma de indicação do ocupante da chefia de Governo deve conduzir à escolha de um líder de partido que esteja identificado com as aspirações da opinião pública dominante. Esses os critérios que nos devem orientar na busca da forma de designação ou de eleição mais conveniente à sociedade política, uma vez que a função de chefia de Estado exige, como condição para bom exercício, a imparcialidade e a neutralidade partidárias, ao passo que a chefia de Governo requer a condição de líder da corrente partidária prevalecente. Nomear o chefe de Estado segundo critérios político-partidários não quer dizer democracia política, mas parcialização da suprema magistratura do Estado, aliás perigosíssima para a sobrevivência da democracia.

Eleger o chefe de governo segundo critérios avessos à opinião política, isto sim, é limitar ou negar o princípio democrático de participação popular no governo”.

Diante disso, é fundamental ter presente a necessidade de se construir um caminho para uma nova engenharia de instituições políticas que assegure o consenso político. Entre nós, o presidencialismo acabou por concentrar alta carga funcional para o Poder Executivo, pois que lhe conectou as necessárias funções de chefiar o estado e chefiar o governo. Além disso, resultou em outra conseqüência própria do regime presidencialista: a de que o presidente é eleito diretamente pelo povo e, por isso, só a ele presta contas.

Fato é que, conforme já observamos, a sociedade brasileira é passiva e paternalista, pois tudo espera do Estado. Isso é assim porque em nossa formação, o Estado cria, concebe e forma a sociedade de cima para baixo, tornando-a dependente das castas políticas que formam o Estado brasileiro.

Ora, diante de uma sociedade fraca, com baixos fatores de consenso internos, paternalista e dependente do Estado, é evidente que ela não consiga estabelecer modos efetivos de controle sobre o poder político de baixo para cima, tal como a sociedade americana. Nesta, o self-government faz com que o meio social, tal como vimos em TOCQUEVILE, exerça efetivamente, um controle rigoroso sobre o poder. Diferentemente, a sociedade brasileira, formada de cima para baixo, não possui condições sociais e de formação histórica suficientes para estabelecer um controle efetivo sobre o poder.

Dessa forma, quando nossas elites políticas importaram o regime presidencialista e a tripartição clássica dos poderes, logo no advento da República, desconheciam os resultados que tal decisão poderia resultar para o futuro do Estado brasileiro. Sim, pois se a sociedade brasileira é paternalista e fraca para estabelecer controles eficazes sobre o poder político, como poderia controlar o poder do presidente da república e fazer com que o mesmo lhe prestasse contas? Ou ainda: como tal sociedade, sem caráter consensual de base, poderia estabelecer um controle sobre os três poderes políticos entre si, arbitrando-os em situação de conflitos? Ou mais: como podemos almejar o consenso se nem a sociedade brasileira, nem tampouco as instituições do presidencialismo possuem, na tripartição clássica, condições funcionais para um verdadeiro consenso político?

Se o Brasil é um país em que o Estado precede a formação social, a gênese de nossa existência política nacional perpassa os quadros burocráticos e patrimoniais do Estado brasileiro. Assim, a construção de um consenso efetivo sobre valores partilhados em comum pela sociedade brasileira não pode começar no próprio seio social, mas na arquitetura das instituições políticas do Estado, razão pela qual o consenso entre nós não pode ser “social”, como nos Estados Unidos, mas “político”, respeitando-se aí o processo de formação histórica brasileira.

Um país marcado por diferenças culturais e regionais, deve organizar as suas instituições políticas para garantir o consenso político sobre os valores éticos comuns. E esse consenso só é possível, conforme vimos, quando se institucionaliza um órgão acima das disputas ideológicas partidárias, a saber: um poder político suprapartidário e localizado acima das ideologias e interesses setoriais. Enfim, uma instituição política (com funções políticas bem definidas), que assegure a preservação dos valores e assim, do consenso. Por essa razão, tal poder não pode ser o Poder Executivo, órgão governamental de direção política que, dinamizado pelos conflitos ideológicos e plurais ocorridos no espaço público em que partidos e tendências diametralmente opostas, competem em vista desse cargo. O órgão de que estamos falando é um poder que tem como função chefiar o Estado como um todo, buscar a unidade do país e a integração dos bens partilhados em comum por toda a sociedade brasileira. Por isso, sua principal missão é manter o consenso e assegurar a existência dos demais poderes políticos do Estado.

Separar Estado e Governo e, assim, dividir as funções hoje presentes em nosso presidencialismo, em atribuições cabíveis para dois órgãos distintos, parece ser o primeiro caminho para a construção de um modelo institucional mais eficiente e comprometido com o bem comum.

Vemos essa necessidade porque, diferentemente dos Estados Unidos, em que o consenso é social, motivo pela qual o governo é um mero acidente e não representa ameaça ideológica para a integração que já existe na base social (pois os partidos políticos norte-americanos não possuem diferenças ideológicas, mas apenas estratégicas diante do consenso que já existe na sociedade), o Brasil é um país em que o consenso só é possível por intermédio da política estatal. Para isso, o Estado deve arranjar suas instituições e conceber um poder acima das disputas ideológicas partidárias para manter a unidade da nação e a integração sobre os valores comuns. Eis porque, a chefia de Estado e a chefia de Governo devem estar em campos separados.

Ademais, dentro da estrutura política da tripartição de poderes brasileira, o presidente não poderia exercer o papel de um poder moderador, uma vez que nesse arranjo institucional há uma rígida separação entre os órgãos, não podendo, em tese, haver interferência de um poder sobre o outro. Assim, não há possibilidade de existir um controle efetivo sobre os poderes, uma vez que, nem a sociedade (fraca) e nem o Executivo (impossibilitado funcionalmente), podem estabelecer um controle efetivo sobre os poderes entre si. Daí, a necessidade de um poder acima dos demais para representar o consenso político e manter a integridade da nação, os valores comuns e, assim, cuidar do bem comum.

Para nossa democracia constitucional se dinamizar em direção ao seu fim (bem comum), é importante que todas as demais causas estejam em sintonia. Assim, a comunidade política é mais soberana quando a cidadania é mais plural e mais universal. A cidadania é plena quando a dignidade da pessoa é assegurada de modo concreto pelas instituições do Estado de Direito. E estas, quando melhor arquitetadas, facilitam a realização do bem comum. E, o melhor arranjo institucional para nosso sistema político é aquele que fomenta o consenso político, entendendo que a sociedade brasileira não é ativa para organizar por si própria, um consenso social. E, o consenso político só subsiste quando há um poder do Estado institucionalizado para manter a unidade e a integração, que esteja acima dos interesses partidários e dos grupos de pressão, enfim, que não comprometa o bem comum com posições ideológicas (típicas do órgão de direção política governamental).

KARL LOEWENSTEIN, constitucionalista alemão, tratou das diferenças entre democracias e autocracias dizendo que a marca das primeiras está na distribuição do poder. No presidencialismo, o poder é fortemente concentrado nas mãos do presidente da república, que concentra funções de Estado e de Governo que, em princípio, são incompatíveis.

Diferentemente disso, sugerimos que a distribuição política das funções indicadas em poderes distintos ocasionaria três resultados satisfatórios para a efetivação prática e sociológica das normas constitucionais que constituem nossa democracia constitucional: 1º) o surgimento de um órgão – chefia de Estado- para a preservação do consenso político; 2º) a divisão do poder executivo que, no modelo anacrônico do presidencialismo brasileiro, concentra várias funções políticas, tais como funções de Estado, Governo, Administração e Exército; 3º) a separação entre Estado e Governo, assim, acarretaria um distanciamento entre as duas funções que, agora ajustadas em dois poderes distintos, corresponderiam a duas atividades antagônicas: com relação ao Estado, haveria um órgão para a defesa do consenso político, para a preservação da unidade nacional e para a manutenção da integridade política dos demais poderes. Já com relação ao governo, existiria um órgão de direção política embasado em uma determinada ideologia representativa das aspirações sociais no momento eleitoral oportuno, em que o partido vencedor procuraria dinamizar o país rumo às exigências da sociedade, empreendendo a direção política em virtude das tendências legitimadas pela sociedade política no período eletivo.

A chefia do Estado, então, se justificaria como meio de manutenção da integridade dos valores comuns frente ao pluralismo de ideologias e interesses. Ao mesmo passo, porém, ter-se-ia um órgão institucionalizado – chefia de governo – para o conflito do pluralismo ideológico entre grupos, partidos, grupos, associações e todos os cidadãos que participassem na esfera pública.

Todavia, hoje, verificamos no Brasil um arranjo de instituições que une a mesma pessoa e o mesmo poder, funções estas que deveriam ser distintas. Apesar disso, a manutenção do modelo anacrônico de separação de poderes e do presidencialismo não impede “totalmente” a concretização do bem comum entre nós. Pari passu ao inadequado arranjo de instituições políticas, a democracia constitucional brasileira ainda assim procura, na medida do possível, realizar os valores consagrados no texto da Constituição de 1988.

As causas do sistema democrático constitucional brasileiro estão em sintonia normativa (Direito Constitucional) e justificativa (Filosofia Política), mas precisam corresponder de modo mais empírico à realidade democrática nacional. E isso é possível quando as instituições políticas, responsáveis pela própria existência do Estado de Direito e, assim, da própria matéria prima democrática, mostrem-se arquitetadas de modo coerente e realista com as finalidades éticas da ordem política postadas na Constituição.

RAMOS diz que “é verdade que não se pode conceber uma Democracia sem as divergências de opiniões, inerentes á liberdade de pensamento. Entretanto, não é menos verdadeiro que qualquer sistema democrático implica sempre em um mínimo de consenso: exatamente no que toca valores e instituições fundamentais da própria Democracia. As lutas político-partidárias, expressão do choque ideológico entre os diferentes segmentos sociais, devem ser travadas no plano da ação governamental, sem colocar em risco os pilares sobre os quais está assentado o edifício político”.

No caso brasileiro, o sucesso real de nossa democracia constitucional somente irá caminhar de modo mais seguro em direção aos valores e ao consenso quando nossas instituições políticas forem arranjadas de maneira a garantir o próprio consenso e a preservação dos valores. A existência de um órgão acima das disputas político-partidárias poderia ser um bom caminho para o desenvolvimento político e institucional de nosso sistema político. O advento de órgão responsável pelo Estado – chefia de Estado – não apenas asseguraria o consenso político e a integridade nacional, como também impediria instabilidades e possíveis golpes de Estado que formam o caráter genético das instituições de praticamente, todos os países latino-americanos, sobretudo, o Brasil. Além disso, facilitaria um jogo equilibrado e interativo entre os demais poderes políticos, uma vez que existiria, a partir de então, um poder funcional responsável pela harmonia dos demais.

Referências bibliográficas:

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Marcus Boeira é Professor de Filosofia Política e Filosofia do Direito, membro da Confraria de Artes Liberais (http://artesliberais.com.br/)

Publicado originalmente em <http://www.formacaopolitica.com.br/artigos/da-necessaria-separacao-entre-estado-e-governo-marcus-boeira/>

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Chesterton e o distributivismo (por Guilherme Freire)

Política e Sociologia | 31/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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“Nossa sociedade é tão anormal que o homem normal nunca sonha em ter a ocupação normal de cuidar se sua própria propriedade. Quando ele escolhe um negócio, ele escolhe um, entre milhares de negócios, que envolve cuidar da propriedade dos outros.” G.K. Chesterton

Inspirado pela encíclica do Papa Leão XIII, Rerum Novarum, o filósofo e jornalista inglês Gilbert Keith Chesterton divulgou e ajudou a criar uma forma de pensar a economia baseada na Doutrina Social da Igreja Católica. O estudo foi feito na esperança de recolocar a família e as pequenas propriedades no centro da organização econômica da sociedade. Essa escola de pensamento foi chamada de distributivismo (ou distributismo).

O distributivismo não pode ser confundido com a estatização dos meios de produção, ou sua redistribuição forçada pelo Estado, que seria socialismo. Trata-se da distribuição natural da riqueza que se dá quando a produção já se encontra descentralizada. A idéia é priorizar empresas familiares de qualquer espécie, ou firmas cuja propriedade é dividida entre os empregados (como cooperativas), ou ainda pequena empresas e empresas de médio porte com atuação local. Também pequenas iniciativas privadas e trabalhos independentes, em geral, correspondem a essa descentralização da economia.

Essa defesa das pequenas propriedades, na perspectiva distributivista, não se dá por meio da força ou da coação. Na encíclica Rerum Novarum, Leão XIII diz que os socialistas, na medida em que violam o direito de propriedade, e usam a força para promover igualdades, criam uma elite mais poderosa que a elite anterior. Juntando o poder econômico com o poder político, a nova elite concentra ainda mais a propriedade. Chesterton completa dizendo que “Nenhuma sociedade pode sobreviver da falácia socialista de que existe um número absolutamente ilimitado de autoridades inspiradas e uma quantidade absolutamente ilimitada de dinheiro para pagá-las”.

A descentralização também não se dá por meio de um liberalismo fora de perspectiva. Se o único valor do indivíduo for a vitória do mundo capitalista – jogando a caridade no lixo –, esse mesmo indivíduo pode perfeitamente usar essa vitória, não para prestar serviços e fornecer bens dos quais as pessoas precisam, mas para colocar em uma péssima situação seus trabalhadores, ou para destruir o próprio sistema capitalista. É o que acontece quando, por exemplo, George Soros financia partidos e causas socialistas (Soros e os Rockefellers são a personificação viva da frase “Capitalismo demais não significa capitalistas demais, mas capitalistas de menos”).

Autor de um grande livro sobre São Tomás de Aquino (capaz de arrancar elogios imensos de Étienne Gilson), Chesterton tirou muitas coisas da obra do Doutor Angélico, inclusive as bases teóricas para desenvolver uma visão da economia que nem caísse na usura, e nem no autoritarismo. Essa influência foi ressaltada no Brasil por Gustavo Corção, autor do clássico “Três alqueires e uma vaca”.

Foi de certa forma, por influência de São Tomás, que toda essa escola de pensamento ligada à Doutrina Social da Igreja conseguiu ser refinada intelectualmente. De Tomás veio a idéia segundo a qual não se deve buscar justiça por meio da violência ou do isolamento, mas sim de maneira prudente e caridosa ou, por outra, buscar que cada indivíduo tenha seus meios de autossuficiência e sua propriedade, evitando a criação de uma classe de dependentes.

Tendo propriedade o indivíduo obtém uma liberdade que não tinha. Já dizia Chesterton que ao dar dez libras a um indivíduo você não lhe tirou uma liberdade, você lhe deu a liberdade de fazer o que bem entender com essas dez libras.

É claro, como escola de pensamento econômico, o distributivismo só faz sentido à luz de uma visão de mundo abrangente, personalista e atenta às comunidades. Curiosamente a palavra economia originalmente remontava a idéia de administração doméstica, e não a essa obsessão por macroeconomia que vemos hoje.

Entre outras coisas, o distributivismo acaba sendo uma grande apologia da iniciativa privada, pois espera aumentar o número de possuidores de propriedade privada, estimulando os indivíduos e as famílias a adquirir ou criar seus próprios meios de produção, em vez de depender de salários. Essa é a idéia por trás dos “três alqueires e uma vaca” e não um programa assistencialista estatal. Em outras palavras, é melhor ajudar e incentivar que todos a tenham e cuidem de uma vaca do que criar um programa “bolsa dos sem-vaca”. Claro, as vacas e os alqueires dos dias de hoje muitas vezes são pequenas empresas, lojas ou apartamentos.

Justamente por buscar restabelecer a vida microeconômica – o comércio local –, o distributivismo é um movimento que acaba aparecendo em oposição ao que pode haver de nocivo no globalismo.

Embora a globalização tenha seus postos positivos (ideologia que visa fortalecer administrações internacionais), ela pode tornar perigosamente frágeis as políticas locais, comprometendo a possibilidade de contato da vida pública com o cidadão comum. Muitas empresas hoje são dependentes ou estão envolvidas de maneira suspeita com governos e organismos internacionais, impossibilitando o que poderia ser uma verdadeira livre iniciativa.

Qualquer pessoa que pense que “livre iniciativa” quer dizer fábricas no Vietnã ou legiões de chineses pagos com salários irrisórios, trabalhando em benefício de acionistas de Wall Street, ou de capitalistas do Partido Comunista Chinês, estará errando feio. Algo muito errado está acontecendo, quando muitos estão sem emprego e alguns poucos repousam sobre uma carteira de ações bilionárias, construída em grande parte com trabalho quase escravo, sustentando uma ditadura na Ásia e ONGs gigantes que trabalham para suprimir a liberdade individual no ocidente.

No entanto, é compreensível que a clássica objeção levantada contra essa distribuição de propriedade seja a existência de atividades que aparentemente demandam grandes organizações. Por exemplo, empresas de automóveis ou de aviões, para as quais são necessárias fábricas grandes. Ocorre que nenhumas dessas atividades necessitam de um monopólio (do ponto de vista da economia liberal isso é indesejável, por sinal), e nada exclui a possibilidade de serem montadas cooperativas.

Um exemplo de cooperativa hoje se encontra no país Basco, na pequena cidade de Mondragón, onde o padre José María Arizmendiarrieta fundou diversas cooperativas. Os funcionários têm interesse em produzir mais, e ainda mais interesse no lucro da empresa, porque são eles, de certa forma, os próprios donos. Essas cooperativas já prosperaram tanto, que hoje a corporação de Mondragón forma um dos maiores complexos industriais da Espanha.

Além disso, os funcionários não vivem sobre constante ameaça de demissão, e nem têm interesse em conflitos com sucessivas greves. Eles voluntariamente assumem as posições de direção na cooperativa, sem precisar receber remunerações adicionais. De certa forma, Mondragón seguiu o que Chesterton disse: “Fazer o locatário e o locador a mesma pessoa tem certas vantagens, tal como o locatário não pagar o aluguel e o locador não trabalhar muito.”. Isso reduz os problemas que podemos ter com as associações sindicais de hoje, como as brigas entre sindicatos, ou dos patrões com os empregados.

O distributivismo pressupõe a liberdade econômica dos liberais, e a adesão a princípios e valores atemporais dos conservadores. Para esse tipo de reforma não é suficiente a ausência de um governo excessivo, mas também deve estar presente o espírito da caridade.

Nada resume tão bem isso quanto à história do economista E.F Schumacher, autor de Small is Beautiful. Ele se converteu ao catolicismo após ler uma Encíclica diferente do que geralmente se espera, a Humanae Vitae, de Paulo VI. Diz ele que essa é a encíclica da Igreja que protege os pequenos, que defende aqueles que ainda não podem se defender. De todas as reformas que podem ajudar a economia, a mais urgente, creio que os maiores distributivistas concordariam, é a dos espíritos.

 

Publicado originalmente em <http://www.formacaopolitica.com.br/artigos/chesterton-e-o-distributivismo-guilherme-freire/>

A pátria (por Gustavo Corção)

Política e Sociologia | 13/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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"A primeira missa no Brasil", Victor Meireles (1860)

“A primeira missa no Brasil”, Victor Meireles (1860)

 

A idéia de pátria e a correlata de patriotismo vêm sendo sabotadas, há séculos, pelas correntes históricas que nas últimas décadas formam o enorme estuário de equívocos que constituem o néctar, o uísque escocês dos “intelectuais” das chamadas esquerdas. A corrente anarco-socialista, bem como a marxista, sempre anunciaram em canto e prosa a Internacional, sem nunca suspeitarem que deste modo pretendiam combater uma exigência da alma humana tão profunda como a de querer constituir família.

À primeira vista, e numa análise sem vigor, parece que o amor da pátria exclui o resto da humanidade e assim se opõe ao mandamento de Deus. Na verdade, todo amor exclusivo será egoísta e defeituoso, já que o próprio do amor, ainda que inclua as mais densas dileções, é ser difusivo. E se não for difusivo não é amor; será quando muito egoísmo ou amor próprio.

Vejamos como se entende, dentro do imperativo de universalidade, o bom fundamento do amor da Pátria. É sabido que nenhum homem esgota em sua vida e com suas aptidões todas as virtualidades da alma humana. Para bem manifestar toda a grandeza e toda a beleza da alma humana, em todas as suas possibilidades, foi preciso que os homens se multiplicassem e se diversificassem. A perfeição do homem se vê na humanidade desdobrada. Mas não basta essa multiplicação. Para bem exibir diante do universo e das galerias angélicas toda a riqueza do animal-racional, ou da alma feita à imagem e semelhança de Deus, foi preciso ainda recorrer ao curso da história e ao contraponto das civilizações. E além dos desdobramentos e dos alongamentos individuais, foi preciso diferenciar os agrupamentos humanos em tipo, com línguas, costumes e cultura diversificados.

E este é o fundamento natural da pátria.

Faz parte da grande e inebriante aventura humana esse tipo de experiência que consiste em viver, num dado território e ao longo de uma história, uma vocação comum, uma cultura comum, que se exprime não apenas pela língua comum mas por todo o jogo de símbolos, de significações multiplicadas que resultam das alegrias comuns e dos sofrimentos comuns expressos na profundidade das almas por sinais comuns.

Quando eu penso com simplicidade no objeto do amor pátrio, eu penso numa grande comunidade que acabou de chegar na ponta de uma grande história e que acampou, se instalou numa imensa geografia. Tudo isso me envolve numa cercadura enorme, e tudo isso nos diz que somos portadores duma vocação, de uma parte, de uma tarefa na grande aventura humana. Toda essa cercadura, esse envoltório humano, cultural, sociológico, histórico, geográfico é um campo de forças que nos penetra, e que se cruza dentro de nós, e nos faz o que somos, o que sentimos e amamos. Curioso processo psicológico que sempre se repete para as coisas mais amplas e mais próximas. Nossos envoltórios, a família, o bairro, a pátria, são obras emanadas de nossas almas, e são elas que refluem e modelam nossas almas. Há por fora de nós um enorme Brasil exterior; há dentro de nós um Brasil interior de sentimentos e de virtudes que devem ser cultivadas e apuradas para que o Brasil exterior seja melhor e mais Brasil, e mais e melhor para formar as almas de seus filhos.

Precisamos cultivar essa piedade, esse respeito pelo grande quinhão que nos coube na prodigiosa aventura do gênero humano, não para nos excluirmos e nos fecharmos, mas para que nosso amor pátrio seja difusivo e se transforme em amor universal. Precisamos sentir e agir como se o mapa-múndi a cosmografia e a história fossem inconcebíveis sem a nossa presença.

Não há nenhum espasmo de eloquência convencional nem sombra de orgulho nesse reconhecimento de nosso valor: haverá até um ato de humildade acompanhado de um sentimento de responsabilidade. Aprendi essa lição do valor de cada ser dentro da Criação com um pobre cego, a quem uma senhora bondosa queria confortar e de quem lamentava a triste sorte. Agradecendo a bondade, o ceguinho confortou-a com estas palavras:

— Sem eu o mundo não estaria completo. Faltaria minha cegueira…

Tudo tem valor. Que valor tremendo, terrível, não terá essa comunidade pátria? Que aleijão enorme faria no mundo a falta desse jeitão coletivo, nosso, meu, seu, vosso, que chamamos Brasil! Esse modo de sermos, de falarmos, de sentirmos, essa esparsa alma comum: Brasil.

E para não desmerecermos em tal tarefa (a de completar o universo!) precisamos friccionar nossos sentimentos e nossas virtudes, e para isto precisamos de comemorações, de sinais e símbolos já que nesta vida terrena, como disse o apóstolo Paulo, vivemos entre sinais e enigmas. Daí a utilidade das bandeiras, dos hinos e das festividades cívicas que todos os povos normais sempre amaram. Mas a necessidade mais imperiosa e contínua que decorre da consciência patriótica é a do serviço prestado no dia a dia da vida profissional. Festejemos os dias da pátria, mas essas festividades seriam vazias e até falsas se não fossem sinais do desejo de servi-la.

Publicado originalmente em http://www.formacaopolitica.com.br/artigos/a-patria-gustavo-corcao/

As virtudes perdidas do hospício (por Oliver Sacks)

Política e Sociologia | 21/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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Hospício em Canterbury.

 

Normalmente pensamos nos hospitais psiquiátricos como ninhos de cobras, infernos de caos e miséria, penúria e brutalidade. Hoje, a maior parte deles foi fechada ou abandonada – e sentimos um calafrio ao pensar no terror daqueles que um dia foram confinados em lugares como esses. Assim, vale a pena ouvir a voz de uma de suas internas, uma certa Anna Agnew, julgada demente em 1878 (tais decisões, naqueles dias, eram tomadas não por um médico, mas um juiz) e “abandonada” no Hospital para Doentes Mentais de Indiana. Anna foi recebida no hospital após realizar tentativas cada vez mais desequilibradas de suicídio e tentar matar um de seus filhos com láudano. Sentiu profundo alívio quando a instituição fechou um círculo de proteção em torno de si, e ainda mais por terem reconhecido sua loucura.

Como escreveria mais tarde:

“Na primeira semana de internação no hospital, senti um grau de contentamento maior do que sentira todo o ano anterior. Não que estivesse reconciliada com a vida, mas porque minha triste condição mental fora compreendida, e fui tratada de acordo. Além disso, estava cercada por pessoas no mesmo estado de confusão e aflição mental, pessoas por cujas penas… passei a me interessar, na medida em que despertavam minha simpatia… E, ao mesmo tempo, eu também era tratada como uma mulher doente, com uma ternura até então desconhecida por mim.

O Dr. Hester foi a primeira pessoa suficientemente gentil para me dizer em resposta à minha pergunta, “Estou louca?” “Sim, madame, e bastante!”… “Mas”, continuou, “queremos ajudá-la da melhor maneira possível e nossa esperança para a senhora é a segurança deste lugar”…. Ouvi-o [dizer] certa vez, em reprimenda a um assistente negligente: “Fiz um juramento ao Estado de Indiana de proteger estas desafortunadas. Sou pai, filho, irmão e marido de mais de trezentas mulheres… e quero que sejam bem tratadas!”

Anna também conta (como Lucy King relata em seu livro From Under the Cloud at Seven Steeples [1]) o quanto era crucial, para os doentes e perturbados, a ordem e a previsibilidade do asilo:

Este lugar me lembra um grande relógio, tão regular e suave é o seu funcionamento. O sistema é perfeito, nosso cardápio é excelente e variado, como em uma família bem ordenada… Retiramo-nos ao toque do telefone, às oito, e uma hora depois há silêncio e escuridão… por todo este imenso edifício.

O antigo termo para hospital psiquiátrico era “asilo de lunáticos”, e “asilo”, em seu uso original, significa refúgio, proteção, santuário – nas palavras do Oxford English Dictionary, “uma instituição benevolente responsável por receber e cuidar de alguma classe de doentes, desabrigados ou abandonados”. Desde o século quarto de nossa era, monastérios, conventos e igrejas já serviam de asilos. E a estes se somaram os asilos seculares, que (segundo sugere Michel Foucault) surgiram após a virtual aniquilação dos leprosos na Europa pela Peste Negra, sendo os leprosários então vazios utilizados para abrigar pobres, doentes, loucos e criminosos. Erving Goffman, em seu famoso livro Asylums [2], classifica estas instituições como “totais” – lugares onde se estabelece um fosso intransponível entre funcionários e internos, onde regras e funções rígidas obliteram qualquer senso de amizade e simpatia, e onde internos são desprovidos de qualquer autonomia, liberdade, dignidade ou personalidade, reduzidos a cifras no sistema.

Nos anos 50, quando Goffman realizava sua pesquisa no Hospital St. Elizabeth em Washington, D.C., este era de fato o caso, ao menos em muitos destes hospitais. Mas é difícil acreditar que criar tal sistema tenha sido a intenção dos cidadãos íntegros e dos filantropos que fundaram a maior parte dos hospícios dos Estados Unidos na primeira metade do século dezenove. Na ausência de medicação própria para as doenças mentais na época, o “tratamento moral” – um tratamento voltado aos indivíduos como um todo e seu potencial para a saúde física e mental, e não somente para uma parte afetada de seu cérebro – era considerado a única alternativa humana.

Estes manicômios públicos eram com freqüência edifícios palacianos, com telhados altos, amplas janelas, e grandes pavilhões, oferecendo luz e espaço abundantes, ar fresco, além de exercício e uma dieta variada. A maioria dos manicômios eram em grande medida auto-suficientes, produzindo a maior parte de sua própria comida. Os pacientes trabalhavam nos campos e celeiros, já que o trabalho era considerado uma forma central de terapia para eles, além de servir para o sustento do manicômio. Espírito de comunidade e companheirismo também eram centrais – na verdade vitais – para os pacientes, que de outra forma acabariam isolados em seu próprio mundo mental, entregues às suas obsessões e alucinações. Igualmente crucial era o reconhecimento e aceitação de sua insanidade (coisa que para Anna Agnew foi uma grande “gentileza”) pelos funcionários e pelos outros doentes.

Enfim, retomando o significado original de “asilo”, estes manicômios ofereciam controle e proteção para os pacientes, tanto em relação aos seus próprios impulsos (quiçá suicidas ou homicidas) quanto do ridículo, do isolamento, da agressão ou do abuso que com tanta freqüência sofriam no mundo exterior. Os asilos ofereciam uma vida com suas próprias proteções e limitações, uma vida possivelmente simplificada e estreita, mas que, dentro desta estrutura de segurança, dava a cada um a liberdade de ser tão louco quanto quisesse e, ao menos para alguns pacientes, a possibilidade de viver suas psicoses e emergir de suas profundezas mais sãos e estáveis.

Em geral, porém, os pacientes permaneciam nos asilos por longos períodos. Havia pouca preparação para um retorno à vida do lado de fora, e, possivelmente, após anos de confinamento em um asilo os residentes tornavam-se “institucionalizados” de alguma forma: já não desejavam, ou não podiam suportar, o mundo externo. Em geral, os pacientes viviam nos manicômios por décadas, e morriam neles – cada asilo tinha seu próprio cemitério. (As vidas dessas pessoas foram reconstruídas com grande sensibilidade por Darby Penney e Peter Stastny em seu livro The Lives They Left Behind [3]).

Era inevitável, em tais circunstâncias, que a população dos hospícios crescesse – e alguns asilos, imensos, chegaram a assemelhar-se a pequenas cidades. Pilgrim State, em Long Island, abrigava mais de 14.000 pacientes ao mesmo tempo. Era inevitável, também, que com números tão grandes de internos e recursos inadequados os manicômios públicos decaíssem de seus ideais originais. Nos últimos anos do século dezenove, haviam já se tornado sinônimo de miséria e negligência, freqüentemente entregues à direção de burocratas ineptos, corruptos ou sádicos – situação que permaneceu inalterada ao longo da primeira metade do século vinte.

Semelhante evolução, ou involução, ocorreu no Manicômio Creedmoor no Queens, Nova York, fundado muito modestamente em 1912 como a Fazenda Colônia do Manicômio Público do Brooklin, fiel aos ideais do século dezenove de oferecer espaço, ar fresco e trabalho para seus pacientes. Mas a população de Creedmoor cresceu rapidamente – chegando a sete mil em 1959 – e, como mostrou Susan Sheenan em seu livro de 1982 Is There no Place on Earth for Me?, tornou-se tão infame, superpovoado e mal dirigido quanto qualquer outro manicômio público. Ainda assim, as plantações e o gado originais foram mantidos, fornecendo recursos cruciais para alguns pacientes, que podiam cuidar de animais e plantas, ainda que fossem demasiado perturbados ou ambivalentes para manter qualquer relacionamento com outros seres humanos.

Em Creedmoor havia um ginásio, uma piscina e salas de recreação com mesas de pingue-pongue e de bilhar; havia um teatro e um estúdio de televisão onde os pacientes podiam produzir, dirigir e atuar em seus próprios espetáculos – espetáculos que, como o teatro de Sade no século dezoito, permitiam a expressão criativa de suas próprias preocupações e interesses. A música era importante – havia uma pequena orquestra de pacientes – assim como também o eram as artes visuais. (Ainda hoje, com a maior parte do hospital fechada e caindo em pedaços, o notável Museu Vivo de Creedmoor fornece aos pacientes material e espaço para trabalharem em pintura ou escultura. Um dos fundadores do Museu Vivo, Janos Marton, chama-o um “espaço protegido” para os artistas).

Havia imensas cozinhas e lavanderias, e estas, como as plantações e o gado, ofereciam trabalho e “terapia do trabalho” para muitos dos pacientes, além de oportunidades para aprender algumas das habilidades da vida cotidiana, que, dada sua debilitação pela doença mental, talvez jamais chegassem a adquirir. E havia grandes salas de jantar comunitárias, que, na melhor das hipóteses, nutria um senso de comunidade e companheirismo.

Assim, mesmo na década de 50, quando as condições dos manicômios públicos eram tão desoladoras, alguns dos bons aspectos da vida de um asilo ainda podiam ser encontrados. Havia com freqüência, mesmo nos piores manicômios, bolsões de decência humana, de verdadeira vida e ternura.

Os anos 50 trouxeram o advento de novos medicamentos anti-psicóticos, medicamentos que pareciam prometer ao menos algum alívio ou supressão dos sintomas psicóticos, quando não uma “cura”. A disponibilização destas drogas reforçou a idéia de que a hospitalização não precisava ser custodiada nem durar toda uma vida. Se uma rápida passagem pelo hospital podia “estancar” uma psicose e ser seguida pelo retorno dos pacientes às suas comunidades, onde poderiam ser mantidos sob medicação e monitorados sem internação por clínicas competentes, então, pensava-se, o prognóstico, toda a história natural das doenças mentais, poderia ser transformado, e a vasta e desesperançada população dos hospícios poderia ser drasticamente reduzida.

Durante a década de 60, diversos hospitais públicos dedicados a uma internação de curto período foram construídos sob esta premissa. Entre eles estava o Hospital Público do Bronx (hoje Centro Psiquiátrico do Bronx). O Hospital do Bronx tinha um diretor talentoso e visionário e um quadro de funcionários escolhidos a dedo quando foi inaugurado em 1963, mas com toda a sua orientação de vanguarda, tinha de lidar com um enorme influxo de pacientes de hospitais mais antigos, que começavam por então a ser fechados. Comecei a trabalhar como neurologista lá em 1966 e, ao longo dos anos, viria a conhecer centenas destes pacientes, muitos dos quais haviam passado a maior parte de sua vida adulta em manicômios.

Havia, no Hospital do Bronx, como em todos os hospitais de seu gênero, grande variação na qualidade do tratamento dado aos pacientes: havia departamentos bons, por vezes exemplares, com médicos e atendentes decentes e solícitos, como também os maus e revoltantes, marcados pela negligência e crueldade. Vi ambos em meus vinte e cinco anos no Hospital do Bronx. Mas também guardo memórias de como alguns pacientes, já não mais psicóticos violentos ou trancafiados nas alas de segurança, podiam passear tranqüilos pelos pavilhões, jogar baseball ou ir a concertos e filmes. Como os pacientes em Creedmoor, podiam produzir seus próprios espetáculos, e a qualquer hora do dia podia-se encontrar pacientes lendo calmamente na biblioteca do hospital ou folheando jornais e revistas nas salas de recreação.

Triste e ironicamente, logo após minha chegada nos anos 60 as oportunidades de trabalho para os pacientes virtualmente desapareceram sob o disfarce da proteção de seus direitos. Considerava-se que manter pacientes na cozinha, na lavanderia, na horta ou em oficinas de trabalho era uma “exploração”. Esta proscrição do trabalho – baseada em noções legalistas sobre os direitos dos pacientes e não em suas reais necessidades – privou muitos doentes de uma forma importante de terapia, algo que poderia lhes dar estímulo e identidade do tipo econômico e social. O trabalho podia “normalizá-los” e criar comunidades, podia tirá-los de seu solipsístico mundo interior, e os efeitos de sua interdição foram extremamente desalentadores. Para muitos pacientes que haviam anteriormente gozado os benefícios do trabalho e da atividade, havia agora pouco a fazer senão sentar, como zumbis, diante de um televisor incessantemente ligado.

A luta anti-manicomial, que começou como uma goteira nos anos 60, tornou-se uma inundação na década de 80, ainda que já na época fosse claro que estava criando tantos problemas quanto soluções. A imensa população de desabrigados, os “psicóticos de calçada”, em todas grandes metrópoles, era uma chocante evidência de que nenhuma cidade tinha uma rede adequada de clínicas psiquiátricas e abrigos ou a infra-estrutura para lidar com as centenas de milhares de pacientes que haviam sido despejados dos poucos manicômios restantes.

Os medicamentos anti-psicóticos que haviam sido introduzidos nesta onda anti-manicomial com freqüência revelaram-se muito menos milagrosos do que se esperava. Podiam mesmo diminuir os sintomas “positivos” das doenças mentais – as alucinações e ilusões da esquizofrenia. Todavia, faziam pouco pelos sintomas “negativos” – a apatia, a passividade, a falta de motivação e de habilidade para se relacionar com outras pessoas –, freqüentemente mais debilitantes que os sintomas positivos. Com efeito (ao menos do modo como foram originalmente utilizados), os remédios anti-psicóticos tendiam a reduzir a energia e a vitalidade, levando a uma apatia característica. Por vezes causavam efeitos colaterais intoleráveis, desordens motoras como o Parkinson e a discinesia tardia [4], que podiam persistir por anos após a interrupção do medicamento. E outras vezes os pacientes resistiam a se livrar de suas psicoses, psicoses que davam sentido ao seu mundo e os situava no centro deste mundo. Assim, era comum que alguns pacientes parassem de tomar o medicamento anti-psicótico prescrito.

Desta forma, pacientes que eram medicados com anti-psicóticos e dispensados, tinham de ser readmitidos algumas semanas ou meses depois. Conheci diversos destes pacientes, muitos dos quais me diziam, com efeito, “o Hospital do Bronx não é nenhum piquenique, mas é infinitamente melhor do que passar fome e frio nas ruas, ou ser esfaqueado numa viela”. O hospital, pelo menos, oferecia proteção e segurança – oferecia, em uma palavra, asilo.

Por volta de 1990 estava claro que o sistema havia exagerado, que o fechamento em massa dos manicômios fora precipitado, não havendo alternativas adequadas para repô-los. Não deveriam ter sido fechados, mas sim reformados, com novas medidas para a superpopulação, a qualidade dos funcionários, as negligências e brutalidades. Quanto aos tratamentos químicos, embora importantes, não eram suficientes. Esquecemos os aspectos benignos dos manicômios, ou talvez tenhamos acreditado não ser mais possível mantê-los: os amplos espaços e o senso de comunidade, o local para o trabalho e para a diversão, e o gradual aprendizado de habilidades sociais e vocacionais – um paraíso seguro que os manicômios públicos estavam bem equipados para garantir.

Não se deve ser muito romântico com relação à loucura ou aos manicômios nos quais os dementes eram confinados. Sob as manias, grandiloqüências, fantasias e alucinações, há uma tristeza profunda e incomensurável nas doenças mentais, uma tristeza que se reflete na arquitetura freqüentemente grandiosa mas melancólica dos antigos manicômios. Como as fotografias de Christopher Payne comprovam em seu livro Asylum [5], suas ruínas, desoladoras ao seu modo hoje em dia, oferecem um testemunho mudo e torturante tanto da dor que afligia os pacientes afetados por doenças mentais extremas, quanto das heróicas estruturas que na época foram erguidas para tentar aliviar esta dor.

Payne, um poeta visual, bem como um arquiteto por formação, passou anos pesquisando e fotografando estes edifícios – com freqüência o orgulho das comunidades locais e um símbolo poderoso da atenção humana para com os menos afortunados. Suas fotografias são lindas imagens por si só, além de prestar um tributo para um tipo de arquitetura pública que já não mais existe. Elas focam o monumental e o mundano, as extraordinárias fachadas e a pintura descascada.

As fotografias de Payne são uma potente elegia, especialmente, talvez, para quem trabalhou e viveu nesses lugares e os viu repletos de pessoas, plenos de vida. Os espaços desolados evocam as vidas que em outros tempos os preenchiam, os refeitórios estão mais uma vez tomados por pessoas, e as espaçosas salas de recreação, com suas altas janelas, mostram mais uma vez, como outrora, pacientes lendo tranquilamente, dormindo em sofás (coisa absolutamente permitida), ou simplesmente contemplando o espaço. Para mim elas evocam não só a vida tumultuosa destes lugares, mas a atmosfera protegida e particular que eles ofereciam no tempo em que, como notou Anna Agnew em seu diário, eram locais em que se podia ser louco e estar seguro, locais em que a loucura de uma pessoa podia encontrar, senão uma cura, ao menos reconhecimento e respeito, além de um senso vital de companheirismo e comunidade.

Qual é a situação agora? Os manicômios públicos que ainda existem estão quase todos vazios e contêm somente uma fração insignificante dos residentes com os quais contava antigamente. Os internos que restaram são em geral pacientes cronicamente doentes que não respondem à medicação, ou casos incorrigivelmente violentos que não podem circular com segurança no exterior. Assim, a vasta maioria das pessoas mentalmente doentes vive fora dos hospitais psiquiátricos. Alguns vivem sós ou com suas famílias, freqüentando clínicas de tratamento sem regime de internação; outros vivem em “casas de recolhimento”, residências que oferecem um quarto, uma ou mais refeições, e medicações prescritas.

A qualidade destas residências varia bastante – mas mesmo nas melhores entre elas (como aponta Tim Parks em sua resenha do livro de Jay Neugeboren sobre seu irmão esquizofrênico, Imagining Robert [6], e pelo próprio Neugeboren, em sua recente resenha de The Center Cannot Hold, relato autobiográfico de Elyn Saks sobre sua própria esquizofrenia[7]), os pacientes com freqüência sentem-se isolados e, pior ainda, desprovidos do aconselhamento e tratamento psiquiátricos necessários. Os últimos quinze anos testemunharam o surgimento de uma nova geração de remédios anti-psicóticos, com efeitos terapêuticos melhores e efeitos colaterais reduzidos, mas a ênfase exagerada nos modelos “químicos” de esquizofrenia e em tratamentos puramente farmacológicos podem deixar o centro da experiência humana e social da doença mental intocado.

Particularmente importante em Nova York – especialmente após o movimento anti-manicomial – é a Fountain House, fundada há sessenta anos, a qual oferece um clube na West 47th Street para doentes mentais de toda a cidade. Aqui eles podem ir e vir livremente, encontrar outras pessoas, sentar juntos nas refeições, e, acima de tudo, receber assistência na procura de um emprego estável, no preenchimento de formulários e em toda sorte de burocracia. Clubes semelhantes têm sido fundados em diversas cidades. Nestes clubes há funcionários regulares e voluntários, mas eles dependem crucialmente de recursos privados, os quais têm sido mais escassos desde a recessão.

Há também, curiosamente, certas residências comunitárias que derivam, historicamente, tanto dos asilos quanto das fazendas terapêuticas do século dezenove, e elas oferecem, para os poucos afortunados que conseguem se internar, programas compreensivos para os doentes mentais. Visitei algumas delas – Gould Farm em Massachusetts e Cooper Riis na Carolina do Norte – e vi muito daquilo que era admirável nos antigos manicômios públicos: comunidade, companheirismo, oportunidades de trabalho e criação, além do respeito pela individualidade de cada um, somando-se a tudo isso o melhor que há em tratamento psicoterapêutico e todas as medicações necessárias.

Freqüentemente a medicação é bastante modesta nestas circunstâncias ideais. Muitos dos pacientes nestes lugares (embora a esquizofrenia e a condição maníaca depressiva sejam permanentes) são “graduados” após muitos meses ou mesmo um ano ou dois, assumindo uma vida independente e por vezes retornando à escola ou ao trabalho, com uma quantidade modesta de assistência continuada e aconselhamento. Para muitos deles, uma vida plena e satisfatória com poucas ou mesmo nenhuma recaída está ao alcance.

Embora o custo de internação nestas casas seja considerável – mais de US$100.000,00 por ano (em parte financiados por contribuições familiares e o resto por doações privadas) – é muito menor do que o custo de um ano em um hospital, para não dizer nada dos custos humanos envolvidos. Mas há poucas casas deste nível nos Estados Unidos – elas são capazes de acomodar não mais do que algumas centenas de pacientes dentre os milhões existentes.

Os restantes – os 99% de doentes mentais que não dispõem de recursos suficientes – têm de se resignar a um tratamento inadequado e a uma vida incapaz de atingir seu potencial. A Aliança Nacional para os Doentes Mentais faz o que pode, mas milhões de doentes mentais continuam a ser as pessoas menos assistidas, mais desprovidas de direitos e mais excluídas da nossa sociedade. E ainda assim, é evidente – da experiência de lugares como Cooper Riis e Gould Farm, e de indivíduos como Elyn Saks – que a esquizofrenia não é necessariamente (embora possa ser) uma doença inevitavelmente deteriorante; e que, em circunstâncias ideais e havendo recursos, mesmo as pessoas mais profundamente afetadas – relegadas a um prognóstico “sem esperança” – podem ser levadas a viver uma vida satisfatória e produtiva.

Oliver Sacks nasceu em Londres, em 1933, e mora nos EUA, onde leciona no Albert Einstein College of Medicine (Nova York). É autor de Enxaqueca, Tempo de despertar (que inspirou o filme homônimo com Robert de Niro e Robin Williams), O homem que confundiu sua mulher com chapéu, A Ilha dos daltônicos, Vendo vozes, Tio Tungstênio e Com uma perna só – todos publicados pela Companhia das Letras.

Tradução de Marcelo Consentino.


[1] From Under the Cloud at Seven Steeples, 1878–1885: The Peculiarly Saddened Life of Anna Agnew at the Indiana Hospital for the Insane (Guild Press/Emmis, 2002).

[2] Asylums: Essays on the Social Situation of Mental Patients and Other Inmates (Anchor, 1961). Publicado no Brasil como Manicômios, prisões e conventos, na coleção Debates da Editora Perspectiva.

[3] The Lives They Left Behind: Suitcases from a State Hospital Attic (Bellevue Literary Press, 2008).

[4] Distúrbio da atividade motora.

[5] Publicado pela MIT Press em setembro. Este ensaio aparece de uma forma modificada como introdução.

[6] Imagining Robert: My Brother, Madness, and Survival (Morrow, 1997); ver a resenha de Tim Parks nestas páginas, “In the Locked Ward”, 24 de fevereiro de 2000.

[7] The Center Cannot Hold: My Journey Through Madness (Hyperion, 2007); ver a resenha de Jay Neugeboren nestas páginas, “Infiltrating the Enemy of the Mind”, 12 de abril de 2008.

*

Artigo publicado em português originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradica, Edição 4, Dezembro/2009.

Considerações sobre o atentado em Paris: cultura ocidental e extremismo (por Cesar A. Ranquetat Jr.)

Política e Sociologia | 06/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em 7 de janeiro o mundo assistiu com um misto de perplexidade e revolta as imagens do atentado ocorrido em Paris contra os cartunistas e jornalistas do semanário Charlie Hebdo. Três homens armados – vinculados a grupos extremistas islâmicos – foram os autores do massacre.  O pretexto absurdo para a ação jihadista foi de que este jornal havia publicado charges em tom de zombaria com a figura mais importante da religião muçulmana o profeta Maomé. Ato bárbaro, covarde e, sob todos os aspectos, injustificável que ilustra de maneira cabal o caráter doentio do fanatismo e do extremismo político e religioso.

Este nefando acontecimento, contudo, enseja uma reflexão sobre o tema da liberdade de expressão e dos destinos da cultura ocidental. Para muitos analistas apressados estaríamos diante de um confronto entre os valores sacrossantos do laicismo, da democracia e das liberdades ocidentais contra a selvageria e o primitivismo religioso islâmico. Embate entre a ilustrada e racionalista cultura francesa e a retrógada e arcaica cultura oriental muçulmana.  Sinto frustrá-los, mas a questão não é tão simples assim.

Em primeiro lugar, os jihadistas não representam a totalidade da tradicional e milenar civilização oriental islâmica, mas uma facção “moderna”, minoritária e belicosa do islã que, equivocadamente, instrumentaliza a religião para fins políticos. Por outro lado, a cultura liberal e iluminista francesa é apenas uma expressão secularizada, particular, e, ainda, muito recente da denominada civilização ocidental. Cultura iluminista e laicista que, cabe destacar, em seus primórdios fora marcada pelo seu ódio medular e irracional ao cristianismo. Em síntese, o Ocidente não é apenas o iluminismo francês.

Além disso, importa lembrar que o semanário Charlie Hebdo não apenas escarneceu – através de desenhos de gosto duvidoso – da imagem do profeta Maomé, mas sucessivas vezes zombou de maneira irresponsável dos símbolos mais caros às tradições cristãs e judaicas. Blasfemar e ultrajar imagens religiosas são também atitudes condenáveis e, ademais, sacrílegas. Há um inegável laivo de barbarismo e mesmo de satanismo em blasfemar contra o divino.

Ao contrário do que pensam os porta-vozes da cultura ilustrada, a liberdade de expressão não é um valor absoluto e um direito ilimitado. A liberdade infrene acaba por descambar em libertinagem e licenciosidade. Uma liberdade vazia, sem conteúdo, irresponsável e autodestrutiva, aliás, vigora hoje na sociedade ocidental moderna.

Os corifeus do anarquismo pós-moderno e do “socialismo libertário” defendem ardorosamente e inescrupulosamente a bandeira de uma falsa liberdade que destrói os pilares da civilização ocidental, de acordo com a penetrante observação do diplomata e cientista político Mário Vieira de Mello:

 A liberdade – que está sendo carregada como o pavilhão, a bandeira, o símbolo essencial da civilização contemporânea – não é a verdadeira liberdade. Em nome desse falso símbolo se criticam, se rejeitam, se desmerecem valores que são legítimos representantes da substância cultural do Ocidente.

Reina soberanamente uma concepção radical e anárquica da liberdade, uma liberdade espúria e destrutiva para ofender, mentir, perverter, vilipendiar, blasfemar, atiçar ódios e paixões ignóbeis. Liberdade bastarda que não tem direção nem medida, hostil a qualquer vínculo e compromisso moral e alérgica a todo tipo de norma e ordem. O homem moderno parece ter esquecido a lição elementar de que a liberdade deve estar orientada pela verdade, conforme assevera o teólogo Joseph Ratzinger: “[…] a liberdade está associada a uma medida, a medida da realidade, que é a verdade. A liberdade de destruir a si mesmo ou destruir o outro não é liberdade, mas uma paródia demoníaca”.

Não tenho dúvidas, os desenhos satíricos e ofensivos do semanário francês, assim como o fundo ideológico anarquista e progressista radical que alimenta este periódico, são uma expressão e um sintoma doentio da própria corrosão interna e da dissolução moral que assola a civilização europeia contemporânea.

Por sua vez, o laicismo, a licenciosidade e o relativismo moral hoje dominantes no ocidente moderno não são barreiras protetoras contra o avanço do fundamentalismo islâmico; pelo contrário. A cultura ocidental moderna desvinculada de suas raízes morais e religiosas tradicionais torna-se uma presa fácil para qualquer tipo de radicalismo e extremismo, pois encontra-se espiritualmente vazia e privada de fundamentos superiores e sólidos. Segundo a arguta colocação do filósofo Rob Riemen

[…] a ameaça que o fundamentalismo islâmico representa para a nossa sociedade é muito menor do que a crise inerente à sociedade de massas – a crise moral, a trivialidade e o embrutecimento crescente que minam a nossa sociedade. Esta crise da civilização representa a verdadeira ameaça aos nossos valores fundamentais, esses valores que devemos proteger e salvaguardar para possamos continuar a ser uma sociedade civilizada.

Como afirma o escritor espanhol Juan Manuel de Prada, uma cultura que renega suas tradições espirituais está pronta para ser conquistada e dominada por bárbaros. A verdadeira civilização ocidental, a autêntica e grandiosa cultura europeia não se encontra bem representada no Charlie Hebdo. Devemos procurá-la em outras fontes, instituições, símbolos, convicções, normas e valores.

 

Cesar A. Ranquetat Jr é Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor universitário

Publicado originalmente no site da Revista Dicta&Contradicta.