As virtudes perdidas do hospício (por Oliver Sacks)


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Hospício em Canterbury.

 

Normalmente pensamos nos hospitais psiquiátricos como ninhos de cobras, infernos de caos e miséria, penúria e brutalidade. Hoje, a maior parte deles foi fechada ou abandonada – e sentimos um calafrio ao pensar no terror daqueles que um dia foram confinados em lugares como esses. Assim, vale a pena ouvir a voz de uma de suas internas, uma certa Anna Agnew, julgada demente em 1878 (tais decisões, naqueles dias, eram tomadas não por um médico, mas um juiz) e “abandonada” no Hospital para Doentes Mentais de Indiana. Anna foi recebida no hospital após realizar tentativas cada vez mais desequilibradas de suicídio e tentar matar um de seus filhos com láudano. Sentiu profundo alívio quando a instituição fechou um círculo de proteção em torno de si, e ainda mais por terem reconhecido sua loucura.

Como escreveria mais tarde:

“Na primeira semana de internação no hospital, senti um grau de contentamento maior do que sentira todo o ano anterior. Não que estivesse reconciliada com a vida, mas porque minha triste condição mental fora compreendida, e fui tratada de acordo. Além disso, estava cercada por pessoas no mesmo estado de confusão e aflição mental, pessoas por cujas penas… passei a me interessar, na medida em que despertavam minha simpatia… E, ao mesmo tempo, eu também era tratada como uma mulher doente, com uma ternura até então desconhecida por mim.

O Dr. Hester foi a primeira pessoa suficientemente gentil para me dizer em resposta à minha pergunta, “Estou louca?” “Sim, madame, e bastante!”… “Mas”, continuou, “queremos ajudá-la da melhor maneira possível e nossa esperança para a senhora é a segurança deste lugar”…. Ouvi-o [dizer] certa vez, em reprimenda a um assistente negligente: “Fiz um juramento ao Estado de Indiana de proteger estas desafortunadas. Sou pai, filho, irmão e marido de mais de trezentas mulheres… e quero que sejam bem tratadas!”

Anna também conta (como Lucy King relata em seu livro From Under the Cloud at Seven Steeples [1]) o quanto era crucial, para os doentes e perturbados, a ordem e a previsibilidade do asilo:

Este lugar me lembra um grande relógio, tão regular e suave é o seu funcionamento. O sistema é perfeito, nosso cardápio é excelente e variado, como em uma família bem ordenada… Retiramo-nos ao toque do telefone, às oito, e uma hora depois há silêncio e escuridão… por todo este imenso edifício.

O antigo termo para hospital psiquiátrico era “asilo de lunáticos”, e “asilo”, em seu uso original, significa refúgio, proteção, santuário – nas palavras do Oxford English Dictionary, “uma instituição benevolente responsável por receber e cuidar de alguma classe de doentes, desabrigados ou abandonados”. Desde o século quarto de nossa era, monastérios, conventos e igrejas já serviam de asilos. E a estes se somaram os asilos seculares, que (segundo sugere Michel Foucault) surgiram após a virtual aniquilação dos leprosos na Europa pela Peste Negra, sendo os leprosários então vazios utilizados para abrigar pobres, doentes, loucos e criminosos. Erving Goffman, em seu famoso livro Asylums [2], classifica estas instituições como “totais” – lugares onde se estabelece um fosso intransponível entre funcionários e internos, onde regras e funções rígidas obliteram qualquer senso de amizade e simpatia, e onde internos são desprovidos de qualquer autonomia, liberdade, dignidade ou personalidade, reduzidos a cifras no sistema.

Nos anos 50, quando Goffman realizava sua pesquisa no Hospital St. Elizabeth em Washington, D.C., este era de fato o caso, ao menos em muitos destes hospitais. Mas é difícil acreditar que criar tal sistema tenha sido a intenção dos cidadãos íntegros e dos filantropos que fundaram a maior parte dos hospícios dos Estados Unidos na primeira metade do século dezenove. Na ausência de medicação própria para as doenças mentais na época, o “tratamento moral” – um tratamento voltado aos indivíduos como um todo e seu potencial para a saúde física e mental, e não somente para uma parte afetada de seu cérebro – era considerado a única alternativa humana.

Estes manicômios públicos eram com freqüência edifícios palacianos, com telhados altos, amplas janelas, e grandes pavilhões, oferecendo luz e espaço abundantes, ar fresco, além de exercício e uma dieta variada. A maioria dos manicômios eram em grande medida auto-suficientes, produzindo a maior parte de sua própria comida. Os pacientes trabalhavam nos campos e celeiros, já que o trabalho era considerado uma forma central de terapia para eles, além de servir para o sustento do manicômio. Espírito de comunidade e companheirismo também eram centrais – na verdade vitais – para os pacientes, que de outra forma acabariam isolados em seu próprio mundo mental, entregues às suas obsessões e alucinações. Igualmente crucial era o reconhecimento e aceitação de sua insanidade (coisa que para Anna Agnew foi uma grande “gentileza”) pelos funcionários e pelos outros doentes.

Enfim, retomando o significado original de “asilo”, estes manicômios ofereciam controle e proteção para os pacientes, tanto em relação aos seus próprios impulsos (quiçá suicidas ou homicidas) quanto do ridículo, do isolamento, da agressão ou do abuso que com tanta freqüência sofriam no mundo exterior. Os asilos ofereciam uma vida com suas próprias proteções e limitações, uma vida possivelmente simplificada e estreita, mas que, dentro desta estrutura de segurança, dava a cada um a liberdade de ser tão louco quanto quisesse e, ao menos para alguns pacientes, a possibilidade de viver suas psicoses e emergir de suas profundezas mais sãos e estáveis.

Em geral, porém, os pacientes permaneciam nos asilos por longos períodos. Havia pouca preparação para um retorno à vida do lado de fora, e, possivelmente, após anos de confinamento em um asilo os residentes tornavam-se “institucionalizados” de alguma forma: já não desejavam, ou não podiam suportar, o mundo externo. Em geral, os pacientes viviam nos manicômios por décadas, e morriam neles – cada asilo tinha seu próprio cemitério. (As vidas dessas pessoas foram reconstruídas com grande sensibilidade por Darby Penney e Peter Stastny em seu livro The Lives They Left Behind [3]).

Era inevitável, em tais circunstâncias, que a população dos hospícios crescesse – e alguns asilos, imensos, chegaram a assemelhar-se a pequenas cidades. Pilgrim State, em Long Island, abrigava mais de 14.000 pacientes ao mesmo tempo. Era inevitável, também, que com números tão grandes de internos e recursos inadequados os manicômios públicos decaíssem de seus ideais originais. Nos últimos anos do século dezenove, haviam já se tornado sinônimo de miséria e negligência, freqüentemente entregues à direção de burocratas ineptos, corruptos ou sádicos – situação que permaneceu inalterada ao longo da primeira metade do século vinte.

Semelhante evolução, ou involução, ocorreu no Manicômio Creedmoor no Queens, Nova York, fundado muito modestamente em 1912 como a Fazenda Colônia do Manicômio Público do Brooklin, fiel aos ideais do século dezenove de oferecer espaço, ar fresco e trabalho para seus pacientes. Mas a população de Creedmoor cresceu rapidamente – chegando a sete mil em 1959 – e, como mostrou Susan Sheenan em seu livro de 1982 Is There no Place on Earth for Me?, tornou-se tão infame, superpovoado e mal dirigido quanto qualquer outro manicômio público. Ainda assim, as plantações e o gado originais foram mantidos, fornecendo recursos cruciais para alguns pacientes, que podiam cuidar de animais e plantas, ainda que fossem demasiado perturbados ou ambivalentes para manter qualquer relacionamento com outros seres humanos.

Em Creedmoor havia um ginásio, uma piscina e salas de recreação com mesas de pingue-pongue e de bilhar; havia um teatro e um estúdio de televisão onde os pacientes podiam produzir, dirigir e atuar em seus próprios espetáculos – espetáculos que, como o teatro de Sade no século dezoito, permitiam a expressão criativa de suas próprias preocupações e interesses. A música era importante – havia uma pequena orquestra de pacientes – assim como também o eram as artes visuais. (Ainda hoje, com a maior parte do hospital fechada e caindo em pedaços, o notável Museu Vivo de Creedmoor fornece aos pacientes material e espaço para trabalharem em pintura ou escultura. Um dos fundadores do Museu Vivo, Janos Marton, chama-o um “espaço protegido” para os artistas).

Havia imensas cozinhas e lavanderias, e estas, como as plantações e o gado, ofereciam trabalho e “terapia do trabalho” para muitos dos pacientes, além de oportunidades para aprender algumas das habilidades da vida cotidiana, que, dada sua debilitação pela doença mental, talvez jamais chegassem a adquirir. E havia grandes salas de jantar comunitárias, que, na melhor das hipóteses, nutria um senso de comunidade e companheirismo.

Assim, mesmo na década de 50, quando as condições dos manicômios públicos eram tão desoladoras, alguns dos bons aspectos da vida de um asilo ainda podiam ser encontrados. Havia com freqüência, mesmo nos piores manicômios, bolsões de decência humana, de verdadeira vida e ternura.

Os anos 50 trouxeram o advento de novos medicamentos anti-psicóticos, medicamentos que pareciam prometer ao menos algum alívio ou supressão dos sintomas psicóticos, quando não uma “cura”. A disponibilização destas drogas reforçou a idéia de que a hospitalização não precisava ser custodiada nem durar toda uma vida. Se uma rápida passagem pelo hospital podia “estancar” uma psicose e ser seguida pelo retorno dos pacientes às suas comunidades, onde poderiam ser mantidos sob medicação e monitorados sem internação por clínicas competentes, então, pensava-se, o prognóstico, toda a história natural das doenças mentais, poderia ser transformado, e a vasta e desesperançada população dos hospícios poderia ser drasticamente reduzida.

Durante a década de 60, diversos hospitais públicos dedicados a uma internação de curto período foram construídos sob esta premissa. Entre eles estava o Hospital Público do Bronx (hoje Centro Psiquiátrico do Bronx). O Hospital do Bronx tinha um diretor talentoso e visionário e um quadro de funcionários escolhidos a dedo quando foi inaugurado em 1963, mas com toda a sua orientação de vanguarda, tinha de lidar com um enorme influxo de pacientes de hospitais mais antigos, que começavam por então a ser fechados. Comecei a trabalhar como neurologista lá em 1966 e, ao longo dos anos, viria a conhecer centenas destes pacientes, muitos dos quais haviam passado a maior parte de sua vida adulta em manicômios.

Havia, no Hospital do Bronx, como em todos os hospitais de seu gênero, grande variação na qualidade do tratamento dado aos pacientes: havia departamentos bons, por vezes exemplares, com médicos e atendentes decentes e solícitos, como também os maus e revoltantes, marcados pela negligência e crueldade. Vi ambos em meus vinte e cinco anos no Hospital do Bronx. Mas também guardo memórias de como alguns pacientes, já não mais psicóticos violentos ou trancafiados nas alas de segurança, podiam passear tranqüilos pelos pavilhões, jogar baseball ou ir a concertos e filmes. Como os pacientes em Creedmoor, podiam produzir seus próprios espetáculos, e a qualquer hora do dia podia-se encontrar pacientes lendo calmamente na biblioteca do hospital ou folheando jornais e revistas nas salas de recreação.

Triste e ironicamente, logo após minha chegada nos anos 60 as oportunidades de trabalho para os pacientes virtualmente desapareceram sob o disfarce da proteção de seus direitos. Considerava-se que manter pacientes na cozinha, na lavanderia, na horta ou em oficinas de trabalho era uma “exploração”. Esta proscrição do trabalho – baseada em noções legalistas sobre os direitos dos pacientes e não em suas reais necessidades – privou muitos doentes de uma forma importante de terapia, algo que poderia lhes dar estímulo e identidade do tipo econômico e social. O trabalho podia “normalizá-los” e criar comunidades, podia tirá-los de seu solipsístico mundo interior, e os efeitos de sua interdição foram extremamente desalentadores. Para muitos pacientes que haviam anteriormente gozado os benefícios do trabalho e da atividade, havia agora pouco a fazer senão sentar, como zumbis, diante de um televisor incessantemente ligado.

A luta anti-manicomial, que começou como uma goteira nos anos 60, tornou-se uma inundação na década de 80, ainda que já na época fosse claro que estava criando tantos problemas quanto soluções. A imensa população de desabrigados, os “psicóticos de calçada”, em todas grandes metrópoles, era uma chocante evidência de que nenhuma cidade tinha uma rede adequada de clínicas psiquiátricas e abrigos ou a infra-estrutura para lidar com as centenas de milhares de pacientes que haviam sido despejados dos poucos manicômios restantes.

Os medicamentos anti-psicóticos que haviam sido introduzidos nesta onda anti-manicomial com freqüência revelaram-se muito menos milagrosos do que se esperava. Podiam mesmo diminuir os sintomas “positivos” das doenças mentais – as alucinações e ilusões da esquizofrenia. Todavia, faziam pouco pelos sintomas “negativos” – a apatia, a passividade, a falta de motivação e de habilidade para se relacionar com outras pessoas –, freqüentemente mais debilitantes que os sintomas positivos. Com efeito (ao menos do modo como foram originalmente utilizados), os remédios anti-psicóticos tendiam a reduzir a energia e a vitalidade, levando a uma apatia característica. Por vezes causavam efeitos colaterais intoleráveis, desordens motoras como o Parkinson e a discinesia tardia [4], que podiam persistir por anos após a interrupção do medicamento. E outras vezes os pacientes resistiam a se livrar de suas psicoses, psicoses que davam sentido ao seu mundo e os situava no centro deste mundo. Assim, era comum que alguns pacientes parassem de tomar o medicamento anti-psicótico prescrito.

Desta forma, pacientes que eram medicados com anti-psicóticos e dispensados, tinham de ser readmitidos algumas semanas ou meses depois. Conheci diversos destes pacientes, muitos dos quais me diziam, com efeito, “o Hospital do Bronx não é nenhum piquenique, mas é infinitamente melhor do que passar fome e frio nas ruas, ou ser esfaqueado numa viela”. O hospital, pelo menos, oferecia proteção e segurança – oferecia, em uma palavra, asilo.

Por volta de 1990 estava claro que o sistema havia exagerado, que o fechamento em massa dos manicômios fora precipitado, não havendo alternativas adequadas para repô-los. Não deveriam ter sido fechados, mas sim reformados, com novas medidas para a superpopulação, a qualidade dos funcionários, as negligências e brutalidades. Quanto aos tratamentos químicos, embora importantes, não eram suficientes. Esquecemos os aspectos benignos dos manicômios, ou talvez tenhamos acreditado não ser mais possível mantê-los: os amplos espaços e o senso de comunidade, o local para o trabalho e para a diversão, e o gradual aprendizado de habilidades sociais e vocacionais – um paraíso seguro que os manicômios públicos estavam bem equipados para garantir.

Não se deve ser muito romântico com relação à loucura ou aos manicômios nos quais os dementes eram confinados. Sob as manias, grandiloqüências, fantasias e alucinações, há uma tristeza profunda e incomensurável nas doenças mentais, uma tristeza que se reflete na arquitetura freqüentemente grandiosa mas melancólica dos antigos manicômios. Como as fotografias de Christopher Payne comprovam em seu livro Asylum [5], suas ruínas, desoladoras ao seu modo hoje em dia, oferecem um testemunho mudo e torturante tanto da dor que afligia os pacientes afetados por doenças mentais extremas, quanto das heróicas estruturas que na época foram erguidas para tentar aliviar esta dor.

Payne, um poeta visual, bem como um arquiteto por formação, passou anos pesquisando e fotografando estes edifícios – com freqüência o orgulho das comunidades locais e um símbolo poderoso da atenção humana para com os menos afortunados. Suas fotografias são lindas imagens por si só, além de prestar um tributo para um tipo de arquitetura pública que já não mais existe. Elas focam o monumental e o mundano, as extraordinárias fachadas e a pintura descascada.

As fotografias de Payne são uma potente elegia, especialmente, talvez, para quem trabalhou e viveu nesses lugares e os viu repletos de pessoas, plenos de vida. Os espaços desolados evocam as vidas que em outros tempos os preenchiam, os refeitórios estão mais uma vez tomados por pessoas, e as espaçosas salas de recreação, com suas altas janelas, mostram mais uma vez, como outrora, pacientes lendo tranquilamente, dormindo em sofás (coisa absolutamente permitida), ou simplesmente contemplando o espaço. Para mim elas evocam não só a vida tumultuosa destes lugares, mas a atmosfera protegida e particular que eles ofereciam no tempo em que, como notou Anna Agnew em seu diário, eram locais em que se podia ser louco e estar seguro, locais em que a loucura de uma pessoa podia encontrar, senão uma cura, ao menos reconhecimento e respeito, além de um senso vital de companheirismo e comunidade.

Qual é a situação agora? Os manicômios públicos que ainda existem estão quase todos vazios e contêm somente uma fração insignificante dos residentes com os quais contava antigamente. Os internos que restaram são em geral pacientes cronicamente doentes que não respondem à medicação, ou casos incorrigivelmente violentos que não podem circular com segurança no exterior. Assim, a vasta maioria das pessoas mentalmente doentes vive fora dos hospitais psiquiátricos. Alguns vivem sós ou com suas famílias, freqüentando clínicas de tratamento sem regime de internação; outros vivem em “casas de recolhimento”, residências que oferecem um quarto, uma ou mais refeições, e medicações prescritas.

A qualidade destas residências varia bastante – mas mesmo nas melhores entre elas (como aponta Tim Parks em sua resenha do livro de Jay Neugeboren sobre seu irmão esquizofrênico, Imagining Robert [6], e pelo próprio Neugeboren, em sua recente resenha de The Center Cannot Hold, relato autobiográfico de Elyn Saks sobre sua própria esquizofrenia[7]), os pacientes com freqüência sentem-se isolados e, pior ainda, desprovidos do aconselhamento e tratamento psiquiátricos necessários. Os últimos quinze anos testemunharam o surgimento de uma nova geração de remédios anti-psicóticos, com efeitos terapêuticos melhores e efeitos colaterais reduzidos, mas a ênfase exagerada nos modelos “químicos” de esquizofrenia e em tratamentos puramente farmacológicos podem deixar o centro da experiência humana e social da doença mental intocado.

Particularmente importante em Nova York – especialmente após o movimento anti-manicomial – é a Fountain House, fundada há sessenta anos, a qual oferece um clube na West 47th Street para doentes mentais de toda a cidade. Aqui eles podem ir e vir livremente, encontrar outras pessoas, sentar juntos nas refeições, e, acima de tudo, receber assistência na procura de um emprego estável, no preenchimento de formulários e em toda sorte de burocracia. Clubes semelhantes têm sido fundados em diversas cidades. Nestes clubes há funcionários regulares e voluntários, mas eles dependem crucialmente de recursos privados, os quais têm sido mais escassos desde a recessão.

Há também, curiosamente, certas residências comunitárias que derivam, historicamente, tanto dos asilos quanto das fazendas terapêuticas do século dezenove, e elas oferecem, para os poucos afortunados que conseguem se internar, programas compreensivos para os doentes mentais. Visitei algumas delas – Gould Farm em Massachusetts e Cooper Riis na Carolina do Norte – e vi muito daquilo que era admirável nos antigos manicômios públicos: comunidade, companheirismo, oportunidades de trabalho e criação, além do respeito pela individualidade de cada um, somando-se a tudo isso o melhor que há em tratamento psicoterapêutico e todas as medicações necessárias.

Freqüentemente a medicação é bastante modesta nestas circunstâncias ideais. Muitos dos pacientes nestes lugares (embora a esquizofrenia e a condição maníaca depressiva sejam permanentes) são “graduados” após muitos meses ou mesmo um ano ou dois, assumindo uma vida independente e por vezes retornando à escola ou ao trabalho, com uma quantidade modesta de assistência continuada e aconselhamento. Para muitos deles, uma vida plena e satisfatória com poucas ou mesmo nenhuma recaída está ao alcance.

Embora o custo de internação nestas casas seja considerável – mais de US$100.000,00 por ano (em parte financiados por contribuições familiares e o resto por doações privadas) – é muito menor do que o custo de um ano em um hospital, para não dizer nada dos custos humanos envolvidos. Mas há poucas casas deste nível nos Estados Unidos – elas são capazes de acomodar não mais do que algumas centenas de pacientes dentre os milhões existentes.

Os restantes – os 99% de doentes mentais que não dispõem de recursos suficientes – têm de se resignar a um tratamento inadequado e a uma vida incapaz de atingir seu potencial. A Aliança Nacional para os Doentes Mentais faz o que pode, mas milhões de doentes mentais continuam a ser as pessoas menos assistidas, mais desprovidas de direitos e mais excluídas da nossa sociedade. E ainda assim, é evidente – da experiência de lugares como Cooper Riis e Gould Farm, e de indivíduos como Elyn Saks – que a esquizofrenia não é necessariamente (embora possa ser) uma doença inevitavelmente deteriorante; e que, em circunstâncias ideais e havendo recursos, mesmo as pessoas mais profundamente afetadas – relegadas a um prognóstico “sem esperança” – podem ser levadas a viver uma vida satisfatória e produtiva.

Oliver Sacks nasceu em Londres, em 1933, e mora nos EUA, onde leciona no Albert Einstein College of Medicine (Nova York). É autor de Enxaqueca, Tempo de despertar (que inspirou o filme homônimo com Robert de Niro e Robin Williams), O homem que confundiu sua mulher com chapéu, A Ilha dos daltônicos, Vendo vozes, Tio Tungstênio e Com uma perna só – todos publicados pela Companhia das Letras.

Tradução de Marcelo Consentino.


[1] From Under the Cloud at Seven Steeples, 1878–1885: The Peculiarly Saddened Life of Anna Agnew at the Indiana Hospital for the Insane (Guild Press/Emmis, 2002).

[2] Asylums: Essays on the Social Situation of Mental Patients and Other Inmates (Anchor, 1961). Publicado no Brasil como Manicômios, prisões e conventos, na coleção Debates da Editora Perspectiva.

[3] The Lives They Left Behind: Suitcases from a State Hospital Attic (Bellevue Literary Press, 2008).

[4] Distúrbio da atividade motora.

[5] Publicado pela MIT Press em setembro. Este ensaio aparece de uma forma modificada como introdução.

[6] Imagining Robert: My Brother, Madness, and Survival (Morrow, 1997); ver a resenha de Tim Parks nestas páginas, “In the Locked Ward”, 24 de fevereiro de 2000.

[7] The Center Cannot Hold: My Journey Through Madness (Hyperion, 2007); ver a resenha de Jay Neugeboren nestas páginas, “Infiltrating the Enemy of the Mind”, 12 de abril de 2008.

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Artigo publicado em português originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradica, Edição 4, Dezembro/2009.