Arquivo da tag: Vida

image_pdfimage_print

José Ortega y Gasset e a encruzilhada da clareza (por Martim Vasques da Cunha)

Filosofia | 25/08/2015 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print
edicao1_txt6

Ilustração de Paulo von Poser para a edição impressa.

Sentía los quatro vientos,
en la encrucijada
de su pensamiento.

Antonio Machado, Proverbios y cantares,
LXIII, dedicado a Ortega

Todo grande pensador corre o risco de ser incompreendido – especialmente entre os seus admiradores. É normal na história da filosofia: afinal, um pensamento que abrange num só olhar todo o arco das ambigüidades da vida tem de provocar certo grau de incompreensão, o que só vem a confirmar sua grandeza. Contudo, há limites até para a incapacidade de entender; e, entre eles, a regra elementar – mas pouco observada até por alguns dos estudiosos mais sérios – de que, antes de se poder alimentar a pretensão de ter compreendido corretamente qualquer pensamento, é preciso devassar de ponta a ponta a alma de quem o formulou.

Ora, o problema dessa compreensão parcial diz respeito de uma maneira especial a José Ortega y Gasset (1883-1955). São justamente os seus admiradores quem pretende reduzir sua espantosa obra filosófica a uma ciência política divulgada em periódicos. Assim, é normal vermos como resumem, com ar gaiato, cinqüenta anos de esforço por entender a realidade do mundo e do seu país – a Espanha da primeira metade do século XX, uma nação profundamente violentada pelas ideologias – em um corpo de artigos reunidos na Rebelião das massas (1930).

O próprio Ortega ajudou a criar essa confusão ao afirmar que, desde criança, quando via o pai trabalhando em seu jornal El Imparcial, sempre experimentava o ímpeto do jornalista que quer ir ao fundo do real para descobrir novos matizes, novas luzes, novas possibilidades de entender o que se passa no mundo. Mas não devemos esquecer que também criticava o empenho de muitos jornalistas em pertencer a uma pretensa “elite espiritual”, quando não passam de mergulhadores que mal arranham a superfície do real, apesar da sua vontade de flutuar sem amarras. A verdadeira profundidade, dizia ele, cabe apenas ao filósofo.

Portanto, se o jornalista Ortega sentia o ímpeto de descobrir o real, era a dama Filosofia quem lhe permitia ir às raízes das coisas – e não lhe permitia esquecer a distância que há entre a vontade e a sua realização. Sobretudo, não lhe permitia esquecer que o abismo que existe entre a primeira e a segunda é o começo de qualquer tragédia; e a sombra da tragédia acompanhou-o ao longo de toda a sua vida e obra e, em especial, depois da morte.

Em 2005, Mario Vargas Llosa, que chegou a escrever livros notáveis como Conversa na catedral e A cidade e os cachorros, realizou uma Conferência Nexus em Amsterdam sobre os cinqüenta anos da morte de Ortega, motivado pela boa intenção de recuperar o pensador do “limbo da história das idéias” (de fato, com exceção de alguns eventos sem grande divulgação na mídia, ninguém havia lembrado mais amplamente o cinqüentenário). Chamava-se nada mais nada menos que “O resgate liberal de Ortega y Gasset”; infelizmente, o raciocínio do autor – como o de qualquer pessoa imbuída de uma ideologia (não esqueçamos que Mario, depois de um longo namoro com o socialismo latino-americano, é hoje um liberal inveterado) – é de uma estreiteza assustadora. Pois Vargas Llosa faz justamente o que um admirador de Ortega não deveria fazer: cita uma ou duas obras do filósofo e argumenta as suas idéias em um estilo belo mas vago, sob a impressão de estar traçando um panorama sintético do seu pensamento, quando na realidade mal chega a apresentar uma minúscula fração do seu trabalho. Por fim, voilá, aplica-lhe um chavão, classifica-o como um “livre-pensador” ou, pior ainda, um “filósofo laico”.

O problema é que Ortega nunca foi uma coisa ou a outra. Vargas Llosa tenta a todo custo encaixá-lo na ideologia liberal, esquecendo-se de que uma filosofia autêntica não se esgota em um sistema estreito. E isso se aplica especialmente à obra orteguiana, pois o filósofo espanhol foi contra qualquer petrificação do real, qualquer submissão a uma idéia que pudesse justificar atitudes políticas e, especialmente, atitudes políticas criminosas. Esta era, aliás, a base de sua “ciência política”, explicitada em dois livros exemplares: o já citado Rebelião, um clássico na análise da psicologia das multidões que viria a ser superado apenas por Masse und Macht (“Massa e poder”), de Elias Canetti, e o pequeno mas perspicaz España invertebrada (1921), cujo título já insinua todo um estado de coisas.

É um “estado de coisas” bastante tenebroso: Ortega enxerga na sociedade do seu tempo o domínio do “homem-massa”, que deixou perder-se a sua individualidade e, com ela, tudo o que o tornava autêntico; em conseqüência, rebaixou o seu nível de consciência, a sua forma de ver o mundo e de transmiti-lo por meio da cultura, a qual por sua vez se degradava e perdia a transcendência. Essas características só podiam desembocar em um resultado – guerras sobre guerras.

Em España invertebrada, Ortega adianta-se quinze anos à Guerra Civil Espanhola de 1936, o evento que antes de tudo “assassinou a verdade”, nas palavras do historiador Anthony Beevor; e vinte e quatro anos à Segunda Guerra Mundial, dominada pelo “homem-massa” nazista e socialista. E se o seu diagnóstico estava correto, como os fatos mostraram, não tinha deixado de prescrever também uma profilaxia, habitualmente esquecida por admiradores indiscretos como Vargas Llosa e, em conseqüência, pouco divulgada. Vamos examiná-la mais adiante, e sobretudo perguntar-nos se continua a ter validade para os nossos dias.

Seja como for, começamos já a perceber que o clichê do “filósofo laico” apenas parece oferecer um resumo fácil para uma obra que perturbou tantos dos seus contemporâneos pela sua determinação em pôr os problemas como problemas, sem oferecer soluções precipitadas para eles. Para Ortega, essas soluções só podiam vir de encarar os problemas com clareza, de caçar sua essência, de persegui-los como o toureiro persegue seu touro.

A obra de José Ortega y Gasset não se resume à sua “ciência política”, como pensou Vargas Llosa. É verdade que o pensador também foi um político ativo nas decisões de seu país – chegou a ser deputado, em 1931, pela Agrupacíon al Servicio de la República, um episódio da sua vida a que sempre se referiria com melancolia… -, mas acima de tudo há nele um profundo respeito perante a realidade. Aqui parece levantar-se uma divergência: pois se o político é um homem de ação, alguém que ousa modificar o mundo, o filósofo tem de ir ao fundo das coisas para, a partir dali, recuperar o sentido verdadeiro dessa realidade modificada pela ação dos contemporâneos. Como sair desse impasse, como conciliar ação política com contemplação filosófica?

Tratava-se de um falso impasse, pois para Ortega nada impediria o filósofo de ser também um homem de ação; a questão estaria em evitar qualquer espécie de pose, de veleidade intelectualista, de beataría de cultura, segundo sua formidável expressão. A ação do filósofo teria de ser mais demorada do que a do político por um motivo muito simples: o primeiro age para desvelar a verdade, a alethéia que a realidade insiste em esconder nas suas profundezas, enquanto o segundo provoca uma conseqüência imediata na physis, na própria natureza das coisas. O segundo pressuporia o primeiro.

Diante disso, Ortega impôs-se uma tarefa que ele próprio chamava de “luciferina” (no sentido original de “portadora de luz”): a de levar a luz para o que estava coberto pelas trevas; e reconhecia nela a tragédia de sua vocação, remetendo ao famoso adágio de seu querido Goethe: a cortesia do filósofo é a clareza. Uma clareza de que a sua Espanha, por sinal, necessitava desesperadamente.

Quando Ortega y Gasset surgiu no meio intelectual espanhol de começos do século XX, seus contemporâneos ainda estavam sob o impacto da Geração de 98, representada por gente do calibre de Antonio Machado, Miguel de Unamuno e Pio Baroja. Ortega nunca fez parte dessa geração, mas sempre frisou a influência dela em sua obra – em especial a de Unamuno, que lhe deu intuições importantes sobre “a vida como um naufrágio constante”, intensificando aliás o seu “sentimento trágico” da existência. Mas uma fissura separava os antigos mestres do jovem filósofo: a Geração de 98 queria apossar-se da Espanha, ao passo que Ortega queria compreendê-la com todas as suas forças intelectuais. E para compreender esse “mistério da iniqüidade espanhola”, era importantíssimo entender também a Europa.

Difícil empreitada! A publicação do seu primeiro livro, Meditaciones del Quijote, em 1914, quando tinha apenas 31 anos (“a idade em que um homem começa a atuar no mundo”, segundo o autor), marca o início de um diagnóstico e de uma profilaxia duras e afiadas, que não hesitam em mostrar a ferida. A partir da figura de Dom Quixote, a criação de Cervantes que revela o impulso espanhol pelo “idealismo da clareza”, o nosso pensador tenta apresentar uma filosofia do amor que frutifique naquele “território de infiéis” (“in partibus infidelium”) em que se havia convertido a Espanha.

O tema do eros filosófico e a referência religiosa não são aleatórios: Ortega já se vê como o representante de uma cruzada intramundana que tentará seduzir o leitor pela amizade, pela forma carinhosa de voltar aos princípios da filosofia como algo útil e concreto para a vida. Em contrapartida, a queda dos seus conterrâneos pela abstração, a insistência deles na beataría de cultura, a sua transformação em “homens-massa”, a perda que sofreram do sentido do amor – tudo isso, para ele, resulta no assassinato espiritual de seu país. Explica-o em um trecho antológico das Meditaciones:

 “Suspeito eu que, mercê de causas não conhecidas, a morada íntima dos espanhóis foi tomada há tempos pelo ódio, que ali permanece entrincheirado a mover guerra ao mundo. Ora bem: o ódio é um afeto que conduz à aniquilação dos valores. Quando odiamos alguma coisa, erguemos entre a nossa intimidade e esse objeto uma impiedosa cortina de aço que impede a fusão, mesmo transitória, da coisa com nosso espírito. Só existe para nós aquele ponto em que nosso ódio se fixa; tudo o mais, ou nos é desconhecido, ou o vamos esquecendo, tornando-o estranho a nós mesmos. A cada instante o objeto faz-se menos, consome-se, perde valor. Assim o Universo se transformou, para o espanhol, numa coisa rígida, seca, sórdida e deserta. E nossas almas atravessam a vida com trejeitos amargos, suspicazes e fugitivas como pobres cães famintos. Entre as páginas que simbolizam toda uma era espanhola deverão sempre incluir-se aquelas tremendas em que Matéo Alemán esboça a alegoria do Descontentamento”.

Ortega citava Matéo, mas poderia igualmente bem ter citado Antonio Machado, talvez um dos poucos espanhóis que enfrentou com coragem o “idealismo da clareza”, e que escrevia estes versos proféticos no poema “Por las tierras de la España”:

Pequeño, ágil, sufrido, los ojos de hombre

[astuto,

hundidos, recelosos, movibles; y trazadas

cual arco de ballesta, en el semblante enjuto

de pómulos salientes, las cejas muy pobladas.

Abunda el hombre malo del campo y de la

[aldea,

capaz de insanos vicios y crímenes bestiales,

que bajo el pardo sayo esconde un alma fea,

esclava de los siete pecados capitales.

Los ojos siempre turbios de envidia o de

[tristeza,

guarda su presa y llora la que el vecino alcanza;

ni para su infortunio ni goza su riqueza;

le hieren y acongojan fortuna y malandanza.

El numen de estos campos es sanguinario y

[fiero:

al declinar la tarde, sobre el remoto alcor,

veréis agigantarse la forma de un arquero,

la forma de un inmenso centauro flechador.

Veréis llanuras bélicas y páramos de asceta

¿no fue por estos campos el bíblico jardín?:

son tierras para el águila, un trozo de planeta

por donde cruza errante la sombra de Caín.

O que o poeta e o filósofo descobrem na Espanha é o retorno de um problema que já havia sido descrito por Platão em sua República: a de que as mazelas de um país sempre começam com as mazelas da alma individual. Neste caso, uma “sombra de Caim” que impede qualquer exercício unificador, seja da razão seja do espírito; e sua conseqüência direta: a institucionalização da estupidez, camuflada pelo gosto beletrista do hombre satisfecho, que mata o risco da vida e não percebe, de forma deliberada, que a sua existência não passa de um naufrágio. E nessa mesma medida prepara-se, de forma involuntária, para o fratricídio.

É aqui que Ortega esboça sua profilaxia – na qual se aprofundaria por cinqüenta e um anos de intensa atividade filosófica. A raiz da cura está na procura pela conexão, pela unidade que somente o eros philosophicus pode iniciar:

 “O amor […] nos une às coisas, ainda que de modo passageiro. Pergunte-se o leitor que novo caráter sobrevém a uma coisa quando sobre ela se derrama a qualidade de ‘amada’. Que sentimos quando amamos a mulher, quando amamos a ciência, quando amamos a pátria? Antes de qualquer outra coisa, encontraremos isto: o que chamamos ‘amar’ apresenta-se diante de nós como algo imprescindível. O amado torna-se imediatamente em algo que nos parece imprescindível. Imprescindível! Quer dizer que não podemos viver sem ele, que não podemos admitir uma vida na qual nós existíssemos e o amado não, que o consideramos parte de nós mesmos.

“Por conseguinte, há no amor uma ampliação da individualidade que absorve as outras coisas no seu íntimo, que as funde conosco. Tal liame e compenetração nos levam a internar-nos profundamente nas propriedades do amado. Vemo-lo inteiro, e ele se nos revela em todo o seu valor. E então percebemos que o amado é, por sua vez, parte de outra coisa, que dela necessita e a ela está ligado. Imprescindível ao amado, essa coisa também se faz imprescindível para nós. Deste modo o amor vai ligando coisa a coisa e tudo conosco, em firme estrutura essencial. O amor é um divino arquiteto que baixou ao mundo ‘a fim de que tudo no universo viva em conexão’.

“A inconexão é o aniquilamento. O ódio fabrica inconexão, isola e desliga, atomiza o orbe e pulveriza a individualidade.

“Nós, espanhóis, oferecemos à vida um coração blindado pelo rancor, e as coisas, ao ricochetear nele, são repelidas cruelmente. Existe ao nosso redor, há séculos, um incessante e progressivo derribamento dos valores”.

Ortega dedicar-se-á, em conseqüência, à tentativa de gerar o impulso do amor no coração dos espanhóis, especialmente na geração mais jovem. É um trabalho que lembra muito a missão de Sócrates – portanto, o motor fundamental de qualquer ação filosófica. Mas quais serão os passos seguintes? Ou, melhor: como transmitir esse impulso, há muito tempo perdido, sem esquecer que a vida continua e na verdade está em constante risco de extinguir-se?

Poderíamos dizer que a palavra-chave para compreender essa atitude seria circunstância. Contudo, se seguirmos por esta trilha, seremos obrigados a citar a famosa frase pela qual Ortega é sempre lembrado – e geralmente mal-lembrado e, portanto, mal-compreendido. Mas não é nossa intenção, nem ir por esse caminho, nem muito menos relembrar a frase tão batida. A circunstância é um termo central para entender o propósito orteguiano, mas não é o único, como ocorre com qualquer pensamento que não se deixa petrificar.

Para irmos além, talvez possamos lembrar uma exclamação sua – na verdade, um quase-imperativo que se parece muito com uma ordem militar – que é um aviso de profunda raiz moral: “Alerta!” Em um livro da maturidade chamado La caza y los toros, Ortega parte de um simples fato social do passado – o hábito da caçada como jogo que revela a capacidade humana de controlar ou dominar a natureza violenta – para levantar vôos vertiginosos, e afirmar que a própria existência humana é uma contínua caçada em que devemos estar constantemente alertas, em atenção imediata, para caçarmos a essência das coisas reais e não nos deixarmos capturar por ilusões do passado, nem muito menos do futuro – para nos atermos ao que ocorre no presente.

Eis aí o nó da circunstância para o filósofo espanhol: o seu país esqueceu-se da situação concreta, e é dever da Filosofia lembrar-lhe que não existe futuro, nem muito menos passado, se ninguém se preocupar com o que acontece agora. Não é, em hipótese nenhuma, o elogio de um carpe diem pasteurizado, mas o retorno a uma virtude que a modernidade deixou de lado e que a Espanha abandonaria na Guerra Civil de 1936 – a prudência.

Nesse sentido, quando Julián Marías, talvez o maior sucessor de Ortega, afirma que os escritos de seu mestre são, antes de tudo, escritos circunstanciais, escritos que precisam de uma determinada situação para articular uma filosofia sempre prestes a se desintegrar, temos de notar que a preocupação com a circunstância é um dos imperativos da prudência. Na verdade, é o imperativo: sem a noção real das coisas que o rodeiam, o homem jamais poderá agir com moderação, com a solércia necessária, amarrando em sua consciência tanto os princípios morais que o guiam como a superação dos obstáculos encontrados em sua trajetória.

Talvez seja aqui que se encontram tanto a grandeza como a limitação de Ortega. Sua grandeza está, sem dúvida, em fazer uma filosofia no “calor da hora”, fundamentada nos problemas de uma vida concreta, sem abstrações ou conceitos desnecessários, percebendo-a como um drama que nos atinge a todos (ele a chamaria depois de razão histórica). Entretanto, sua maior limitação está em que Ortega não expõe o organismo completo de sua filosofia em nenhum escrito; só a conhecemos através de fragmentos, artigos, palestras, livros póstumos ou incompletos – mas nunca em um tratado sistemático, certinho, sem nenhuma lacuna de raciocínio.

Evidentemente, não se trata de um problema insuperável; caso não estejamos lembrados, o mesmo acontece com Kierkegaard e tantos outros grandes pensadores. Então, por que isso dificultaria o nosso entendimento de Ortega? A resposta é simples: porque perdemos uma das coisas que o espanhol sempre nos recordava – perdemos a capacidade de viver a vida como uma viagem atribulada em que somente nos podemos fiar da incerteza do concreto. Sem este norte – ou, melhor, sem a aceitação desta ausência de um norte intramundano – jamais poderemos compreender Ortega (ou qualquer filósofo que valha a pena). Com ele, a verdade é que seremos capazes de entender em qualquer dos seus fragmentos, não a filosofia orteguiana em uma forma sistemática, mas o núcleo do seu pensamento.

Para sermos justos, ele nos deixou algo semelhante a um tratado orgânico, porém inacabado – La ideia de principio en Leibniz y la evolución de la teoría deductiva, publicado postumamente em 1957. É um dos livros mais vertiginosos já escritos, concebido enquanto Ortega era obrigado a viver num auto-exílio, seja na própria Espanha seja em Portugal, vendo o seu mundo ruir e aceitando a impotência de seu trabalho com uma dignidade quase estóica. Foi também nesse auto-exílio que aprofundou as raízes do problema já vislumbrado em 1914: Onde teve início esse ódio que aniquila não só o pensamento, mas também a alma européia? Como se deu essa aniquilação? Quem foram seus autores?

É deste período a publicação das suas obras mais importantes: En torno a Galileo, Una interpretación de la Historia Universal, La caza y los toros, El hombre y la gente. Nelas, Ortega não deixa espaço para nenhum pensamento simplificador, nenhuma ideologia que ofereça explicações simples e abrangentes para o mundo; pelo contrário, fiel ao seu modo de ser, aprofunda-se nos problemas, ataca-os sem misericórdia e tenta encontrar-lhes alguma saída. Infelizmente, sua tentativa não foi de grande utilidade – pelo menos a curto ou médio prazo. A Espanha era uma nação em que as ideologias políticas tinham substituído os hormônios.

Ao mesmo tempo, Ortega sofria fisicamente com o ostracismo e com as doenças que o acometeram nesses dez últimos anos de vida. Para os comunistas, era um problema porque nunca se opôs explicitamente a Franco – até se afirma que, em cartas pessoais, aceitava o caudillo como um “mal menor”. E, vejam só, para os nacionalistas sempre foi um simpatizante dos anarquistas e dos liberais de esquerda, uma verdadeira ameaça que temiam de tal forma que, nas vésperas da sua morte, lançou-se a seguinte ordem para a imprensa espanhola, redigida pelo Ministro da Informação de Franco, Arías Salgado: “Com a possível contingência do falecimento de don José Ortega y Gasset, esse diário dará a notícia com um título máximo de duas colunas e a inclusão, se quiser, de um único artigo encomiástico, sem se esquecer dos seus erros políticos e religiosos e, em qualquer caso, eliminará sempre a denominação de mestre“.

Assim, a morte de Ortega, em 1955, passou praticamente em silêncio – mas a lista
dos discípulos comprova que um mestre o é, não por ordens estatais, mas sim pelo valor e continuidade de seu trabalho. É só observar os nomes que continuaram seu legado: Julián Marías, José Ferrater Mora, Manuel García Morente, José Gaos, Xavier Zubiri e tantos outros. Além disso, não se pode negar que ninguém no século XX se esforçou tanto quanto Ortega para difundir entre as pessoas um vínculo de amizade com a Filosofia, não através de termos ou conceitos que facilitassem a nossa compreensão das coisas, mas apenas graças ao seu estilo límpido, aguçado, veloz, capaz de reviravoltas que somente o pensamento sadio pode dar quando vê que o problema está ali, pronto para ser agarrado e transformado em uma questão que nos ajudará a encarar o drama de nossas vidas – um estilo que hoje é reconhecido como simplesmente a maior prosa espanhola já escrita desde Cervantes.

Contudo, “sentir os quatro ventos do mundo em seu pensamento”, como observa Antonio Machado na epígrafe deste texto, não permitiu a Ortega escapar de sua encruzilhada. É ela que talvez nos possibilite uma compreensão melhor do que acontecia em sua alma e, mais, um correto entendimento dos problemas que atingiram a sua Espanha e que nos atingem atualmente a nós. E é algo que não se pode observar no seu pensamento, mas em uma breve e singela ação.

A encruzilhada de Ortega y Gasset é, na realidade, muito simples: trata-se do problema de Deus. Apesar da amplidão temática de sua filosofia – tem-se a impressão de que falou de quase tudo, das artes à sociologia, sem desprezar os relatos de viagem -, há nela pouco espaço para o questionamento a respeito da abertura da alma à transcendência do real. Não há dúvida de que existe em sua obra uma compreensão sadia do ensimismamiento, da solidão radical em que o homem se recolhe em seu íntimo mais profundo – onde pode, se o quiser, encontrar a Deus. Ortega afirma que essa atitude é o início de toda verdadeira ação que atinge o mundo, da ação que procura respeitar a realidade pelo que é e não pelo que gostaríamos que fosse.

Mas será isso suficiente? Na filosofia orteguiana, a preocupação com o que seria ou poderia ser Deus parece antes uma presença reconhecida muito a contragosto, algo indesejado mas necessário para preencher determinado espaço. Qual seria o seu problema com Deus? Uma simples questão de anticlericalismo liberal clássico, como relatam diversos depoimentos, segundo os quais Ortega era dado a esbravejar contra a Igreja Católica na época da ditadura de Franco? Talvez uma tentativa patética de afirmar a sua independência e autonomia? Ou uma maneira de ressaltar que era um “realista espiritual”, alguém que não negava a existência do divino no mundo, mas também sabia que a falta de prudência em identificá-lo podia chegar às raias da loucura (como efetivamente aconteceu com a Espanha depois da Guerra Civil)?

O fato é que, se lermos com atenção suas páginas, encontraremos belíssimas meditações a respeito de experiências fundamentais para quem quer que se preocupe com o assunto “Deus”. Que dizer, por exemplo, da arguta análise da crise cristã renascentista que traça em En torno a Galileo? Ou da afeição com que descreve os êxtases de Santa Teresa de Ávila como maneira fundamental de conhecer o mundo em seus Estudios sobre el amor? Não se percebem ali as habituais notas anticlericais, nem muito menos uma pessoa fechada às intervenções da transcendência, e sim um pensador que sabe muito bem que seu país caiu em desgraça justamente por não ter compreendido melhor a importância desses fatos e experiências. Mas por que não foi além? Por que insistiu na ausência?

Talvez porque tenha cabido a Ortega y Gasset, na sua encruzilhada particular, o papel de revelar com a clareza do gênio a encruzilhada em que se encontrava o século XX. No âmbito do intramundano, a luz não existe sem treva. Os ideólogos tentaram criar uma luz racional que excluísse a treva, mas só conseguiram aprofundá-la, quando o primeiro passo é aceitá-la como parte da limitação do ser. No entanto, só se consegue perceber isso quando se ultrapassa o estágio em que Deus é reduzido a um problema ou conceito a ser discutido, e se consegue atingir um relacionamento pessoal que nenhuma filosofia, nenhum país, nenhuma razão histórica é capaz de dar. Muitos homens permanecem paralisados nessa encruzilhada situada apenas no seu pensamento, repleto de teias e tramas que dão a impressão de serem paradoxos jamais resolvidos e até insolúveis; no entanto, tudo o que se requer é uma simples e pequena ação.

Ortega observou demais o mundo e esqueceu-se do que movia o mundo. Mas, mesmo em seus últimos momentos de vida, foi de uma coerência exemplar com os seus princípios: agarrou o seu problema e perseguiu-o até o fim. Segundo sua esposa, Rosa Spottorno, em depoimento aos filhos, o filósofo espanhol teria agarrado e beijado um crucifixo oferecido por um padre que ninguém sabe como chegou ao seu leito de moribundo. A família prefere acreditar que o pai não estava lúcido nesse instante. Quem sabe? Em uma vida que se dedicou tanto a propagar o amor numa terra dominada pela sombra de Caim, não é de duvidar que a loucura final tenha sido o gesto de uma sabedoria conquistada a muito custo.

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista e doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo, com a tese “Violência e Epifania: a liberdade interior na filosofia política de John Milton”. É também mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP e foi um dos criadores e editores da revista cultural “Dicta&Contradicta”, do Instituto de Formação e Educação (IFE). Atualmente colabora com o “Jornal Rascunho”, de Curitiba, e é autor dos livros “Crise e Utopia: O dilema de Thomas More” (Vide Editorial, 2012) e “A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira” (Editora Record, no prelo). [informações a partir de seu CV Lattes]

Ensaio publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição 1, Junho/2008. Ilustração de Paulo von Poser para este artigo na edição impressa da revista.

A arte da província

Opinião Pública | 18/05/2015 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

IMG_58094790274969

Viver no interior reserva algumas surpresas. Ainda é possível encontrar em alguns rincões hábitos e costumes que preservam a “arte de viver”, tão desprezada pelos nossos tempos modernos. Em gestos simples ressoa o espírito de pessoas integradas à natureza das coisas e que enfrentam a vida com coragem e singela alegria, pois preservam uma sabedoria que não aprenderam em nossas escolas e universidades.

Numa tarde, na avenida da cidade, encontrei a pequena porta de uma casa velha, daquelas em que as portas e janelas dão direto para a rua e que lembram que já houve uma época em que não precisávamos de muros e grades. Eu levava meus sapatos para o conserto e fui recebido com um sorriso pelo sapateiro dono da casa. Com paciência ouviu o que precisava, tomando-os nas mãos, respeitoso como se segurasse uma obra de arte. Três dias depois, quando voltei, levantou-se da cadeira entusiasmado ao me ver entrar, chamando-me pelo nome. Com brilho nos olhos mostrou-me o serviço pronto e descreveu os detalhes, passando os dedos sobre o couro, contente com seu trabalho. Com os braços esticados, afastou o olhar admirando os sapatos quase novos e suspirou: Que beleza! Então, deu o preço, recebeu o dinheiro e despediu-se oferecendo seus préstimos para quando eu precisasse.

Saí dali constrangido. Percebi que não sabia o seu nome. Sentia-me culpado. Eu era um mero consumidor, um cidadão bem consciente de seus direitos e deveres, que simplesmente queria a prestação eficiente de um serviço. O ambiente que encontrei era hostil. Não havia filas, nem caixas, nem mocinhas bem treinadas perguntando-me se vou pagar em dinheiro ou cartão ou se vou querer meu CPF na nota fiscal. Não me ofereceu nenhuma promoção, não me empurrou produtos (não tinha metas a cumprir) e não vi o exemplar do Código de Defesa do Consumidor sobre o balcão. Havia balcão?

Dentro do carro, ainda defronte à estranha sapataria, lembrei-me de um restaurante, muito diferente dos que normalmente encontro por aí, principalmente em praças de alimentação de shopping centers. A cozinheira nos recebeu no carro. Apresentou-nos o lugar, com cerca bem feita, animais no curral, lago, pomar, tudo inspirando beleza, cuidado e trabalho. Tomamos suco de carambola, bolo de cenoura e pão-feito-em-casa. Mesa rústica, com cadeiras duras, sem cardápio. Ela nos serviu, depois veio sentar-se conosco, tendo gosto de nos ver comer sua comida e prosear. Uma comida saborosa feita toda ali, nascida naquela terra, com aquele suor. Que ela nos oferecia, como quem oferece um presente. Quanto pagamos? Não posso lembrar. Nem se registrou o momento da entrega do dinheiro. Foi apenas um detalhe pequeno que se apagou neste dia de visita. A cozinheira, uma anfitriã. Poucos almoços me foram tão felizes.

Alguns podem neste momento sentir-se convocados a levantar uma bandeira e dar um grito de ordem, exigindo passeatas em nome da paz, da gentileza ou não sei mais o quê. Lamento decepcionar, mas não tenho um plano para um mundo melhor, uma pauta de reivindicações, nem pretendo conscientizar ninguém sobre nada. Outros talvez me acusem de romântico e sonhador, esquecendo-se de que lhes narro fatos reais da minha experiência, ocorridos há poucos meses.

Dou apenas o testemunho daquilo que vi pela pequena janela de onde contemplo o mundo, às vezes com a sensação de que somos uma geração de monstros, navegando à deriva, em direção ao caos. Quando, em plena era digital, entre fabulosas máquinas, largas avenidas e arranha-céus, recebi uma centelha de esperança no encontro com um sapateiro e uma cozinheira, que me abriram as “portas da percepção normativa”, na expressão do “man of letters” Russell Kirk, devolvendo-me à normalidade e à ordem.

Para o grande filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, as metrópoles são o “primeiro capítulo” de uma época de decadência, pois enquanto as províncias continuam a ser as “guardiãs das culturas”, aquelas representam a “depressão de todos os valores do homem”, substituídos por “brilhos de moeda falsas”. Pergunto-me se estas províncias e metrópoles são definidas em mapas ou são estados de alma, cultivados em todos os lugares. Não duvido que seja possível encontrar muitos destes sapateiros e cozinheiras vivendo nos bairros das grandes metrópoles do mundo. Na verdade, tenho firme esperança de encontrá-los, pois creio que o nosso futuro está nas mãos destes homens de província.

João Marcelo Sarkis, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), analista jurídico do Ministério Público de São Paulo, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 06 de Dezembro de 2013, Página A2 – Opinião.

Uma vida comum: o encanto de uma rotina iluminada, por Pablo González Blasco

Cinema | 05/03/2015 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Still Life. (2013). 92 min. Diretor: Uberto Pasolini . Eddie Marsan, Joanne Froggatt.

Still life     Uma vida comum. Esse é o título que nos oferece a tradução brasileira. Correto, resume o contexto, mas não chega a ser tão desafiante como o original: Still Life, natureza morta. Esse sim é preciso, audaz, impactante. Igual a temática, a interpretação – quase um solo extraordinário do protagonista- e os detalhes nas tomadas da câmara. Nada sobra, nada falta. Um quadro perfeitamente encaixado, silencioso e gritante, instigador. Uma verdadeira natureza morta pintada, para maior requinte, por um diretor italiano transplantado na Inglaterra. Uma bela mistura que cristaliza num filme singular e intrigante.

A estética merece comentários, muitos, e sem dúvida de mais categoria do que estes. Mas não é o propósito destas linhas. Mais do que descrever o quadro, o nosso é relatar o que o quadro nos provoca. E, isso sim, origina uma enxurrada de reflexões. Tive muitas quando o vi, vieram muitas mais depois –aquele efeito retardado próprio dos filmes de categoria-, e ampliaram-se quando coloquei a fita como base de um cine-debate com universitários. Ninguém tinha assistido o filme ainda –nos dias de hoje um verdadeiro recorde- e eu sentia a necessidade de observar as reações, os comentários, de espectadores variados para ampliar um universo de percepções que, desde o início, suspeitei ser de grande riqueza.

Still life - movie 2     Eddie Marsan é o ator monumental que dá vida ao protagonista, John May. Um funcionário público de um distrito londrinense que gasta seus dias –somam já muitos anos- buscando possíveis parentes daqueles que morrem sozinhos. E, naturalmente, ocupa-se de executar o que a lei prescreve sobre o sepultamento desses cidadãos. A tarefa em si é rotineira, cinzenta, uma estrita disposição municipal ao alcance de qualquer burocrata. A diferença –enorme- é o modo como Mr. May realiza sua função, quer dizer, o modo como vive o seu trabalho. Com delicadeza e ternura. Busca com afinco, esforça-se para que os defuntos tenham alguma companhia na hora de serem enterrados. Adapta o funeral aos prováveis gostos e crenças do falecido, arrisca homenagens póstumas e presta tributo pessoal com sua presença sempre discreta. Quase me atreveria a dizer que ‘humaniza’ a morte.

Não é pouco nestes tempos que vivemos onde a tal humanização parece ser a bola da vez: algo de que todos falam, dizem precisar dela, mas na prática pouco se percebe nas ações concretas que conduzam ao tal sonhado estado de humanização. Lembrei daquele outro filme japonês (A Partida) do qual saímos com uma pergunta crítica na cabeça: Como é possível fazer de um tema tão triste um filme tão delicado e positivo? A resposta trouxe outra lembrança –o filme é um gatilho de evocações- nos versos de Morte e Vida Severina: “Podeis aprender que o homem, é sempre a melhor medida; mais, que a medida do homem, não é a morte mas a vida!” A resposta, a almejada humanização, é preciso praticá-la em vida, no dia a dia, e não apenas in artículo mortis. Somente quem humaniza os detalhes simples, corriqueiros, que salpicam a rotina diária, é capaz de ter uma performance invejável no momento final, como John May.

Still life - movie 1     As muitas recordações que lutavam por abrir-se passo a passo ampliaram-se no cine debate. Tomei algumas notas, o que rendeu ainda mais reflexões, e outras lembranças estocadas na memória vieram a tona. Também as aparentemente cômicas, como a do sujeito que está sendo enterrado na presença de apenas duas pessoas que comentam: onde estão os milhares de amigos que ele dizia ter no Facebook? E outras, muito pessoais, como aquele comentário que escutei do meu irmão, um ano antes dele falecer, e que utilizei no seu funeral para agradecer a presença de muitos amigos que lá estavam: “Meu irmão disse-me certa vez, falando de um velho conhecido que estava no final da vida, que ele dizia aos amigos que não se preocupassem de ir ao seu funeral, que havia muita coisa que fazer. Sei que meu irmão teria dito o mesmo, mas felizmente ninguém obedeceu, e eu agradeço a presença de todos vocês nestes momentos tão especiais”.

Mas a nossa natureza morta não é um filme sombrio, uma espécie de elegia em celuloide. Fala da vida, do trabalho, da rotina, do encanto. Da amizade, e do melhor investimento que é sempre pensar nos demais, sair do casulo do egoísmo. Dai provém os melhores dividendos, mesmo os que não conseguimos apreciar naquele momento. A vida virtual que muitas vezes vivemos –vivemos mesmo? ou sonhamos que vivemos?- situa-nos num universo de paradigmas falsos que na hora do balanço aponta inexoravelmente os lucros e os prejuízos. Os ativos a receber –inflacionados por supostas relações e networks globais- , esfarelam-se, transformam-se em perdas porque ninguém aparece para pagar esse crédito…..que nunca existiu.

Still life - movie 3     Certa vez conversava sobre estes temas com um profissional de informática, que era cego. Tinha conseguido desenvolver sistemas e recursos de computador para pessoas deficientes, apoiando-se na capacidade de escuta que nessa situação sempre é aguçada. Falava-me do muito que tinha pensado sobre o valor real das coisas na vida, e ilustrou o tema com um comentário definitivo: “Quando vou a um enterro, e escuto o golpe da terra caindo sobre a madeira do caixão, penso que é preciso gastar a vida sendo útil. Do contrário tudo se acaba nesse golpe seco e fatal”. Cada um percebe a hora do balanço como pode, e mesmo quem ganhava a vida ajudando os outros a se comunicar não se deixava enganar com quimeras virtuais.

A medida não é a morte, mas a vida. A vida que se gasta em rotinas iluminadas, porque a rotina gris não consiste em fazer as coisas de sempre, mas em fazê-las como sempre. E no suceder-se dos dias iguais, é possível um colorido repleto de detalhes, viver uma cortesia como Mr. May, quase litúrgica, com os semelhantes, com os mortos e com os vivos. Atitude que personaliza o trato, que se adapta a cada um, que humaniza –que permite dar transito ao humano que todos levamos dentro- , sem desculpar-se com ações globais, ou atentar aos impactos do último post no Youtube. De que serve que acessem milhões de vezes a tua página web, se na hora do vamos ver não há um ombro onde chorar, alguém com quem conversar de coração aberto? Dizia Gustavo Corção que os milhares de conquistas da técnica não consolam o namorado infeliz, ou o pai que perdeu o mais amável dos filhos. Os acessos também não possuem esse predicado. E quando alguém se atreve a batizar esses relacionamentos vulgarizando o termo amizade, converte-o numa palavra vazia. Um flatus vocis, como diziam os filósofos medievais. Um termo sem nenhuma substância; thin air, por usar uma genuína expressão britânica ao gosto de John May.

Still life - movie 5     Voltamos ao filme japonês, A Partida, que também se fez presente no cine debate. Há um momento onde alguém pergunta à esposa do protagonista, já convencida da importância do trabalho do marido, como é possível viver dessa atividade, arrumando cadáveres para o sepultamento. Ela responde sem hesitar: “O meu marido é um profissional!”. Foi mais uma evocação quando vi surgir na tela a protagonista feminina aproximando-se de Mr. May. Curiosidade no início, seguida de admiração, para converter-se em encanto. O entusiasmo pelo trabalho, a capacidade de sonhar e de aperfeiçoá-lo, independente do conteúdo, tem um poder sedutor para a alma feminina. Talvez porque as mulheres têm essa leitura transcendente que sabe apreciar os detalhes que realmente importam, na hora de fazer o balanço. Esse deve ser o motivo que explica porque, diariamente, encontro muitas mais mulheres do que homens do lado dos pacientes que sofrem, atentas aos pormenores que fazem a doença mais suportável.

Um homem apaixonado pelo seu trabalho, que não precisa de plateia para certificar-se do valor que encerram suas cuidadosas ações diárias. São qualidades que costumam passar desapercebidas aos que vivem na superfície dos acontecimentos. O chefe de John May é um belo exemplo de insensibilidade. Não é mau, até cumpre o seu dever, mas escapa-lhe o essencial. Vivemos rodeados desses espécimes, e com frequência sucumbimos ao seu fascínio. A tentação de entregar-se a aparência e desprezar a verdadeira substância, de prestar culto ao sucesso sem avaliar a competência é realidade que convive conosco e nos absorve ao menor descuido. A opinião dos espectadores pesa demais nas nossas decisões, é um tributo enorme contra o qual nos custa revelar-nos. Talvez é questão de mudar o foco, e escolher outra plateia.

Still life - movie 4     Vai uma última lembrança, visto que são as recordações as que teceram esta colcha de retalhos, a modo de um quadro impressionista, manchas de luz. Foi um comentário em espanhol sobre esta produção, que chegou há algum tempo à minha caixa de e-mails. A tradução do titulo não reflete o miolo do filme (Nunca é tarde demais), mas não me pareceu totalmente infeliz, especialmente pelo subtítulo que lá colocam: Deus o vê! Se a proposta para atuar com eficácia, é livrar-se da plateia convencional e estabelecer o gabarito com outros paradigmas, a construção de virtudes em que tudo se passa entre Deus e o homem parece um bom começo. Sempre há tempo para isso. Este filme pode ser uma boa largada nessa empreitada.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005). 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/02/18/uma-vida-comum-o-encanto-de-uma-rotina-iluminada/#more-2289

Precisamos falar sobre aborto

Opinião Pública | 10/12/2014 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Circula nas redes sociais, encampada por uma famigerada revista, diversos artistas e outras pessoas públicas, uma campanha intitulada “Precisamos falar sobre aborto”. Para variar, camisetas estilizadas, rostos bonitos, pessoas famosas e que influenciam a muitos, em especial os mais jovens… O que chama a atenção são os semblantes, que, para mim, antes de demonstrar uma indignação para com os contrários ao ato, soam como as faces de muitas mães tristes e arrependidas após o terem praticado. E, não obstante a campanha fomentar o homicídio, perdão, o aborto, é louvável a atitude dos que a estão perfilhando de buscarem uma discussão honesta e à luz da ciência, vez que, hodiernamente, ela descamba para searas que não contribuem para uma boa solução.

De saída, é oportuno destacar que, como os próprios promovedores da campanha sinalizam, o aborto deve ser discutido à luz da ciência e com honestidade, razão pela qual eles não podem se furtar de lastrear suas justificativas em premissas deste jaez, como sucede muitas vezes quando, no ápice de uma gentil conversa sobre o tema, os defensores da prática esperneiam: “Ah, mas você é cristão, e traz os seus ‘preconceitos’!”. Após o insulto, retiram-se solertemente, como se uma pá de cal houvesse posto fim às indagações científicas que se apresentaram. Assim, partamos para uma discussão unicamente à luz da ciência, seguindo a sugestão de Umberto Eco: “Quando se confrontam problemas deste alcance [discutia-se o início da vida humana], é necessário pôr as cartas sobre a mesa, para evitar qualquer equívoco: quem expõe a pergunta deve esclarecer a perspectiva da qual a expõe e o que espera do interlocutor”.

A fim de evitar essa desonesta censura, colho recentes palavras do Papa Francisco sobre o tema, dirigidas a médicos italianos: “quantas vezes, na minha vida de sacerdote, escutei objeções: ‘Por que a Igreja se opõe ao aborto?’, por exemplo. É um problema religioso? É um problema filosófico? Não, não é um problema filosófico, é um problema científico, porque ali há uma vida humana e não é lícito eliminar uma vida humana para resolver um problema”. Mais uma vítima dos desencontros que marcam a discussão, o Pontífice tem toda razão.

Jérôme Lejeune, pediatra e primeiro professor de genética da Faculdade de Medicina de Paris, esclarecia, ao tratar do tema da ontogenia humana, que, aos olhos da ciência, a vida humana se inicia com a concepção. Explicava que o fenômeno não era complexo: o gameta masculino encontra-se com o gameta feminino e dá origem ao zigoto, detentor de uma carga genética própria, distinta e irrepetível; como a minha e a sua, a carga genética do feto é única. Noutras palavras, um novo ser humano está ali, não sendo permitido simplesmente extraí-lo, porquanto tirar a vida de um ser humano, além de tipificado no Código Penal como homicídio, é socialmente reprochável desde os tempos primórdios; especificamente no caso do feto, só se altera o “nomen juris” do crime, que de homicídio passa a ser aborto, e o “locus delicti commissi”, que ao invés de extra é intrauterino.

Como ressaltado, a vida humana é valor defensável desde as mais incipientes sociedades. No seu famoso juramento, escrito no século V a.C., Hipócrates conclamava os vocacionados à arte de Esculápio: “A vida que professar será para benefício dos doentes e para o meu próprio bem, nunca para prejuízo deles ou com malévolos propósitos. Mesmo instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei; também não darei pessário abortivo às mulheres”. Clara e definitivamente, Hipócrates era contra o homicídio intrauterino. Atualmente, há, no Código de Ética Médica, orientação no mesmo sentido, a despeito de uma interpretação sistemática e outras normas um tanto quanto controversas darem ensejo à prática do aborto nalguns casos: “O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade”.

Enfim, à luz da ciência, a vida deve ser entendida como a formação de um novo ser, e afigura-se inegável que, a partir da concepção, o ser acondicionado no útero já pode e deve ser qualificado como humano, sendo-lhe, por isso, garantido o direito à vida, que o aborto objetiva tolher. Honestamente, atribuamos o verdadeiro valor aos avanços científicos e, pondo de lado preconceitos, reconheçamos ao feto o direito que tem de formar-se para, no futuro, tornar-se o que somos hoje, claro, com seu código genético próprio.

Lázaro Fernandes é advogado e secretário do IFE Campinas (email: netofernandes1@hotmail.com)

Publicado no jornal “Correio Popular”, 08 de Dezembro de 2014, Página A2 – Opinião.

A Árvore da Vida: Terrence Malick em busca de Sentido – por Pablo González Blasco

Filosofia | 08/12/2014 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

 

Poster-arvore-da-vida-734278

The Tree of Life (2011). Diretor: Terrence Malick. Brad Pitt, Sean Penn and Jessica Chastain. 139 minutos. 2011.

Este é um desses filmes que eu nunca teria me animado a assistir, mas não tive escapatória. A convocação me chegou a través de um amigo, depois outro, e mais um. “Você tem que ver esse filme que ganhou Cannes”. Assim de simples. Na verdade, o que se deve ler é “Você tem de ver esse filme, e escrever sobre ele, porque quero saber o que você vai comentar”. É o que da quando a gente se mete a crítico de cinema – que, aliás, nunca afirmei ser, nada mais longe do meu propósito. Apenas compartilho as ideias que me ocorrem quando vejo filmes, na tentativa –isso sim é verdade- de promover a reflexão.

A bandeira do humanismo que, também é fato, levanto sempre que se me oferece a oportunidade, é estandarte confeccionado à base da reflexão. Educar no humanismo não é tanto ensinar coisas novas, mas, sobretudo ajudar a lembrar das raízes que todos levamos dentro. Ou, como me dizia o outro dia um professor universitário envolvido com os temas da bioética, trata-se de despertar o humano que está adormecido, esquecido dentro de nós. Não se trata de inventar nada, ou melhor, é pura invenção, no sentido latino que Ortega lembra nos seus escritos: inventar- invenire, descobrir, encontrar. Não é criar–afirma o filósofo-, mas aprender a demorar-se em contemplar as coisas próximas da nossa intimidade, do nosso âmbito doméstico, que preenchem as horas da nossa vida. Lá encontramos o filão do humanismo, das raízes, das aventuras que somos chamados a viver.

Terrence Malick é um diretor muito peculiar, um cult. Como já comentei em alguma ocasião, não sou entusiasta dos diretores que fazem um filme a cada 5 ou 10 anos, e depois desaparecem. Uma espécie de cometa Halley do Cinema. Mas a insistência dos amigos e o premio de Cannes –logo mais volto sobre isto, pois tem sua importância- foram o motor de arranque para enfrentar as quase duas horas e meia de filme.

Malick deve ter suas razões para trabalhar assim: estudou filosofia em Harvard, foi para Oxford onde desenvolveu uma tese sobre Heidegger. Temos, pois, um filósofo atrás da câmara, e nada surpreende a profundidade das suas produções – que, naturalmente, ele mesmo escreve – e que não são acessíveis para qualquer um. A Árvore da Vida é um claro exemplo de cinema de autor, no caso, de cinema de filósofo. E em se tratando de um filósofo sintonizado com os existencialistas, o resultado sempre será denso. Até agora não estou certo se isto é um filme, ou uma reflexão existencial desenhada em fotogramas. O que não subtrai o mérito, inegável, deste espesso mergulho vital.

Vale dizer, para nos entender melhor, que o menos acessível é a forma, não tanto o fundo do que Malick transmite. É possível ventilar questões existenciais e perspectivas transcendentes, em linguagem aberta. O cinema está repleto de exemplos: das comedias americanas de Frank Capra, até os ensaios de transcendência de Clint Eastwood; do cinema de Chaplin e os dramas de William Wyler até Peter Weir ou Spielberg, por citar alguns. Mas tudo isso é Hollywood, um modus dicendi direto, aberto, onde as questões existenciais estão diluídas em histórias fortes, cativantes. Malick não é Hollywood, e a advertência procede.

Uma história pessoal esclarecerá melhor esta temática. Há já alguns anos, durante a defesa da minha tese doutoral em Medicina -coloquei lá vários filmes como recurso pedagógico para fomentar o humanismo nos estudantes de medicina- um professor da banca me interpelou: “Noto que você utiliza somente filmes americanos. Seria de esperar que alguém com a sua formação humanística e filosófica, além da sua origem europeia, utilizasse autores como Bergman, Kurosawa, Kieslovsky. Por que essa preferência por Hollywood? Não estará adotando um viés muito americano em sua docência?”. Limitei-me a sorrir, enquanto buscava as palavras mais delicadas para responder ao professor. Para minha felicidade as encontrei em tempo. “Sem dúvida, os autores que o senhor cita são de fundamental importância para provocar a reflexão do estudante. Mas, devemos convir, que o que Kurosawa diz em 30 minutos, Hollywood consegue de algum modo coloca-lo em 5 segundos. E eu, professor, não tenho todo o tempo do mundo para ensinar. A economia do tempo orienta os autores que escolho”. Parece que minhas razões convenceram, porque o diálogo se encerrou por ali mesmo.

Voltando ao nosso filme: Malick não é Hollywood, e a temática do filme é servida em ritmo lento, pausado, com um visual atraente, que solicita continuamente a cooperação do espectador, sua interação vital, como vital é a posta em cena, onde se adivinha a própria alma do diretor. Uma alma repleta de sensações e vivências, de dúvidas e de procura, onde se mesclam numa estética visual espetacular os mais diversos ingredientes.

A dor da mãe que perde um filho – ponto de partida do filme, e de todos os interrogantes-, o relacionamento familiar com luzes e sombras, as omissões no amor, a celebração da vida, a criação do universo com Big-Bang incluído, os dinossauros, a vida além da morte. E, como uma constante, Deus. Não um Deus panteísta, difuso, que se confunde com o universo. Um Deus que se busca com afinco, com quem se pode falar e a quem se pedem explicações; um Deus pessoal em quem se busca o sentido do sofrimento, do amor, da vida como um todo. Ver as coisas como Deus as vê: “Quero ver o que você vê” clama a protagonista no meio da sua aflição. Vulcões e lava, trovões e criaturas pré-históricas, seres humanos frágeis que proferem verdadeiros gemidos de transcendência. É tão explicita a forma com que Malick o apresenta, que até São Paulo veio à minha memória, quando fala dos gemidos inenarráveis da criação, que espera a manifestação dos filhos de Deus.

Os tais amigos não deixaram por menos, e sabendo que já tinha assistido, perguntaram-me: “O que te pareceu?”. Eu, que estava alinhavando –ainda estou- o impacto das reflexões, respondi de bate pronto: “Uma mistura de Viktor Frankl com Santo Agostinho”. Perplexidade: “Como assim? Explique-se”. Nisso estamos, nas explicações.

V. Frankl, psiquiatra e neurologista vienense, sobrevivente de Auschwitz e fundador da Logoterapia, recolhe na sua obra “Um psicólogo num campo de concentração: um homem em busca de sentido”, os fundamentos dessa escola psicológica. Valha um resumo em poucas palavras. Não é falta de prazer o que frustra o homem, como dizia Freud, de quem Frankl foi discípulo; nem a falta de poder, opinião da Adler, seu colega. O que afunda o homem é a falta de sentido na vida. Sem sentido, sucumbe-se: no campo de concentração, e em Wall Street, tanto faz. Frankl afirma que todo homem precisa de uma sadia dose de tensão para conservar na sua vida um sentido claro para viver. Essa sadia tensão vem em forma de dor, de sofrimento, de privações; um tempero necessário para manter-se em forma, para não adormecer.

     E como bússola do sentido, o amor. “Ama e faz o que quiseres” – diz Santo Agostinho, em frase tão conhecida, como frequentemente mal interpretada. Não por falta de limpidez, pois o recado é claro. Diz assim a frase completa: “Ama e faz o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos.” Os mal-entendidos não são por conta do que Agostinho escreveu, mas do mercado negro onde o termo amor se ventila em subasta pública. Até o próprio Ortega – nada suspeito nestes temas teológicos-, comentando este pensamento se atreve a afirmar que Agostinho foi um dos temperamentos mais eróticos que já houve, um campeão do amor, porque colocava em Deus todo o seu peso, a sua densidade, o seu sentido de existência. “Deus meus, amor meus et pondus meus– Deus é o meu amor, o meu peso, a minha medida”.

A Árvore da Vida são inúmeras pinceladas, a modo de quadro impressionista, que desenha os contornos que o espectador deverá adivinhar e completar em si mesmo. Perfis que se projetam no sentido que é preciso buscar na vida, e no amor que sara as feridas que se produzem nessa procura. Lesões que nos mesmos causamos naqueles que amamos, por insuficiência e desatenção, por pura falta de jeito, quando não por orgulho e despeito. Estragos que a vida infecta, mas que o sofrimento e o amor purificam.

Este amplo repertório de questões existenciais não chega por surpresa, pois a abertura do filme é clara e contundente. Quem avisa, amigo é. Diz assim, em tradução livre: “Ensinaram-me que há dois modos de viver a vida: o modo da natureza, e o modo da graça. É preciso escolher qual dos dois vai seguir. A graça não busca o seu conforto; aceita ser esquecido e desprezado. Aceita insultos e injurias. A natureza somente busca satisfazer-se e que os outros a agradem; e encontra sempre motivos para não estar alegre, mesmo com o mundo brilhando à sua volta, e o amor transpirando em todos os cantos. Ensinaram-me que quem escolhe o modo da graça, nunca se da mal. Venha o que vier, sempre chega a bom termo”.

E agora, a pergunta fatal. Como um filme assim conquista a Palma de Ouro de Cannes? Vai ver que é o intelectualismo de Malick, o cinema de autor, enfim, motivos que sempre se ventilam nestes palcos. Mas depois do que aconteceu no ano passado, onde os nove monges da Argélia levaram a Palma, (Homens e Deuses), tudo isso não me convence. Perguntei a um amigo, filósofo, o que está acontecendo na França onde os prêmios os levam filmes que falam abertamente de transcendência, da alma, de Deus. “Deve ser a crise” – me disse, sem dar muita importância ao tema. Sim, a crise, pensei; mas não a do euro, nem a da bolha imobiliária, mas a emparentada com sua própria etimologia. Em latim, crisis, mudança; em grego, krisis, momento de decisão. As mudanças que, antes ou depois, teremos de enfrentar para decidir o sentido que vamos dar à nossa vida. Um filme ou uma reflexão? Tanto faz. Se catalisar nossas crises, já cumpriu o seu papel.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005). 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2011/10/24/a-arvore-da-vida-terrence-malick-em-busca-de-sentido/

Sobre o mesmo filme também indicamos o texto “As lágrimas da Criação”, de Martim Vasques da Cunha, publicado no site da revista Dicta&Contradicta.