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Avançar aos clássicos

Opinião Pública | 03/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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Abro o jornal enquanto estava a aparar as madeixas laterais e deparo-me com uma longa reportagem sobre a Coreia do Norte, uma espécie de museu social das obsolescências políticas do século XX. Enquanto meu barbeiro fazia piada sobre a proibição do uso do biquíni e do nome do mesmo líder supremo da nação, minhas risadas externas alimentavam minhas risadas internas acerca do ridículo fim para o qual os humanismos utópicos conduziram-nos ao longo do século passado, o mais curto deles, na bela sacada de Hobsbawn.

Se existe algo patente no início deste século é a dissecação dos resultados desses humanismos que, há pelo menos duzentos anos, prometiam a definitiva consagração do homem como o centro e o cume do mundo e da vida. A mais grave carência dessas ideologias humanas, demasiadamente humanas, era precisamente o fato de que, no seio de cada uma delas, não se confiava na atuação de mulheres e de homens reais e concretos para se levar adiante a grande mudança revolucionária que deveria trazer consigo a paz e a abundância material para todos os povos.

Todo o processo de mudança fiava-se em forças mecânicas e anônimas, como o progresso científico, a luta de classes e a tal mão invisível do mercado, as quais tinham, em comum, uma escassa consideração por cada uma das pessoas humanas, vistas, em regra, como uma variável matemática da equação social. Recordo-me de Stalin quando disse que a morte de millhões era uma estatística. Hoje, chegado o momento de  despertar do ”sonho humanista”, estamos mais desamparados ainda, porque muitos desses humanismos, fundados numa postura de constante suspeita, corroeram nossa confiança nas possibilidades de aperfeiçoamento interior do ser humano.

Em certo sentido, os humanismos utópicos esfumaçaram-se, pois seus projetos cumpriram-se: não porque realizaram suas propostas de uma Sion terreste, mas por terem esvaziado o ser humano de sua essência, reduzindo-o à matéria e ao entrecruzar-se de forças puramente cegas e fáticas. Curioso notar que o desmascaramento de toda a ”velharia bolorenta” da tradição filosófica seria a condição necessária para o advento da emancipação definitiva da humanidade.

Tanto Schelling, como Kierkegaard ou Dostoievski e mesmo Nietzsche, cada qual a seu modo, descobriram que o resultado concreto dessa transmutação humanista, provocada pela maneira própria de se pensar na modernidade, foi o niilismo. O marxismo duro, o liberalismo economicista e o darwinismo social converteram-nos em homens ocos com a cabeça recheada de palha, no dizer de Eliot.

É hora de encaminhar esse novo milênio, ameaçado pelo esgotamento do modernismo e pela confusão do pós-modernismo, rumo ao resgate daquela essência perdida, dando-nos conta de que o parâmetro decisivo da vida social não oscila mais no eixo estado/mercado. Mas no eixo humano/não humano, isto é, na busca de um aclaramento intelectual daquilo que é bom e melhor para o homem, como contraposto àquilo que o desumaniza, esvazia seu ser e o reifica como mais uma coisa entre tantas outras. O ser humano está nauseantemente cheio de se sentir vazio.

Se Skinner queria situar o ser humano para além da dignidade e da liberdade, podemos dizer, com Spaemann, que, para o verdadeiro humanista, é suficiente não precisar ir além do bem ou do mal. Onde podemos encontrar, nesses tempos nebulosos, a luz que nos devolva a nós mesmos? Onde podemos descobrir um aguilhão espiritual que nos desperte do conformismo existencial e da anorexia reflexiva de uma época em que o consumismo massivo nos cega para a percepção daquilo que constitui o florescimento do homem enquanto tal?

Eis um bom começo de resposta: os clássicos. Mais do que simplesmente a eles retornar, numa espécie de resgate nostálgico de um passado perdido, devemos avançar em sua direção. Tentar, a partir de nossa própria condição, pensar seus ensinamentos com o rigor, a magnamidade e a beleza com que foram refletidos um dia. Sem uma postura neo-romântica, porém com a sede de se voltar a injetar um fluxo de vida que nunca se esgotou totalmente e do qual brotaram os melhores frutos de uma civilização que, hoje, esqueceu-se da seiva que sempre a nutriu.

O avanço aos clássicos em sentido estrito – a cultura greco-latina – será um empenho, para uns, de regeneração; para outros, de descobrimento; e, para todos, de deslumbramento da dimensão mais original e originária para mulheres e homens de todas as épocas. Até mesmo para o ditador do cabelo escovinha que não gosta de biquini e que cultua sua personalidade ao vetar a homonímia em sua nação. Afinal, como afirmava Strauss, o clássico caracteriza-se por sua incrível perenidade, nobre simplicidade e serena grandeza. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 3/6/2015, Opinião, Página A-2.

Antes de Partir: a alegria de fazer as opções certas na vida (por Pablo González Blasco)

Cinema | 07/05/2015 | | IFE CAMPINAS

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(The Bucket List). Diretor: Rob Reiner. Morgan Freeman, Jack Nicholson. 97 min.

downloadDevo confessar que já faz algum tempo que assisti a este filme. Mas faltou-me ocasião para escrever; não encontrava o momento para alinhavar as idéias – muitas e de todo tipo – que se juntaram na minha cabeça. Aconteceu-me, no fim, o mesmo que às personagens: nem sempre se consegue fazer o que previmos. É preciso decidir, estipular hierarquias, pois a sabedoria não consiste em fazer cada vez mais coisas – a pesar de que a técnica nos faz acreditar o contrário – mas em fazer as coisas que de verdadeiramente importam. Não as coisas importantes – afinal a importância é muito relativa – mas as que devem ser feitas. Sabedoria é, por tanto, abrir mão de muitas outras coisas que nunca se poderão fazer, para centrar-se naquelas que devem ser feitas. O universo de possibilidades que nos cerca é muitas vezes uma desculpa confortável para fugir de algumas tarefas – ações, conversas, decisões, ou mesmo saber perder tempo com um sorriso que conforta o próximo – que são nossa missão na vida. Por isso, bati o martelo e decidi escrever sem deixar passar nem um dia mais, enquanto coloquei na espera… algumas coisas ditas importantes que insistem em tomar a dianteira, e querem monopolizar o meu tempo.

O filme é um “mano-a-mano” genial de quase 100 minutos entre dois autores consagrados. Não há perigo de contar o argumento, porque não existe como tal. Mais se assemelha a um diálogo de Platão, em versão Hollywood, com a sabedoria de Morgan Freeman no papel de Sócrates, e um prosaico, deselegante e encantador Jack Nicholson, que personifica o sofista de turno. Pura reflexão sobre o que de verdade importa na vida e, como me dizia um amigo animando-me a escrever, um filme “sem desperdício”. Impossível não se lembrar daquele Schmidt de Nicholson, que se confessa por carta com o menino que adotou na África, e não consegue ver a utilidade da sua vida que se acaba. O Schmidt precisa agora de um câncer e de um interlocutor, também com câncer, para nos brindar as reflexões que vão muito além do cômico ou do anedótico.

”Antes de partir” é o título em português da lista de pendências que os dois protagonistas querem completar numa corrida contra o “relógio” do câncer que vai tomando conta do seu organismo. Quais são as coisas importantes na vida, as que não posso deixar de fazer? Eis uma excelente colocação que serve para quase tudo: decidir e fazer o que não pode deixar de ser feito, sem distrair-se – e depois desesperar-se – com o que poderia ser feito. A vida é um leque de possibilidades, e a escolha de uma excluirá possivelmente as outras. A figura do leque de possibilidades associa-se na minha mente ao filósofo dinamarquês Kierkegaard, desde os tempos das aulas de filosofia no colegial. Bons tempos aqueles, em que se estudava filosofia com 15 anos. Não estou certo de que aprendêssemos grandes teorias, mas ao menos tomávamos conhecimento de que existiam pessoas cujo ofício era pensar, questionar-se. Mesmo que, como Kierkegaard, sofressem por isso. Hoje, temos muito que fazer e não podemos dar-nos o luxo de pensar, muito menos de nos questionar. Vai ver que de repente descobrimos que não sabemos porque fazemos as coisas, ou porque fazemos sempre o que não é importante, e ignoramos o essencial. No dia em que essa ficha vier a cair a angústia será tremenda, como a do Schmidt, e o sofrimento dos filósofos existencialistas – que ao menos tiveram a coragem de pensar no assunto – será “café pequeno” comparada à do insensato que passou a vida em piloto automático. Não temos tempo – dizemos – e quase nos convencemos. A pressa é tanta, que não paramos para colocar gasolina no carro… e fatalmente o carro ficará no acostamento, cedo ou tarde.

A perspectiva da morte – a única realidade certa na vida do homem – é a temática do filme. E por isso aborda o essencial. Já dizia V. Frankl – o estudioso do sentido da vida – que um dos melhores desafios que o homem tem é saber que não é eterno, que o seu tempo se acaba. E por isso deve empregar o tempo com sabedoria. Se tivéssemos todo o tempo do mundo provavelmente não faríamos nada de útil. Daí o mesmo Frankl aconselhar a, antes de realizar qualquer tarefa, fazê-la como se fosse a segunda vez que a fazemos, depois que, na primeira, a tivéssemos feito tão defeituosamente quanto estamos quase a ponto de fazer agora. Vale a pena pensar na frase, que é mais do que um jogo de palavras.

antes_de_partir_2Mas a morte parece estar longe demais do nosso dia-a-dia. Acontece a toda hora, lemos nos jornais, nos atinge de perto, mas parece que não é conosco. Não há outra explicação para que vivamos sem pensar, para que a tal ficha “do que realmente importa” demore tanto a cair. Os cursos de liderança tentam retomar o tema e propõem aos participantes que imaginem o dia do seu enterro, quem vai estar lá, o que falarão dele. Mas mesmo assim, tudo isso é visto mais como a passarela da fama do que um funeral. A realidade da morte – fenômeno de maior prevalência neste mundo – ignora-se, dissimula-se, esconde-se das crianças. Certa vez falaram-me de um menino americano a quem disseram que o seu avô tinha morrido. Ele perguntou muito triste: “Mas,… quem disparou nele?”

Há algum tempo li um magnífico livro: “A Morte Íntima” de Marie de Hennezel, – uma psicóloga francesa que dirige uma instituição hospitalar dedicada aos cuidados paliativos. Os pacientes que lá se internam não costumam sair. Mas se cuida deles, com carinho e dignidade, até o fim. A autora afirma que ao invés de enfrentar a realidade da proximidade da morte, empenhamos-nos em aparentar que nunca chegará. Mentimos aos outros, mentimos a nós mesmos, e ao invés de falar do essencial, envolvemos com o silêncio esse momento único da vida. Isso acontece antes e depois: basta ver a falta de originalidade – e o conseqüente martírio para a família – das conversas de velório. As monótonas perguntas de sempre: “Mas, como foi? Parecia estar tão bem…

As reflexões de Hennezel colocam o dedo na ferida, com maestria. “Os que têm o privilégio de acompanhar alguém nos últimos momentos sabem que se trata de algo especialmente íntimo, porque aquele que morre falará do essencial, daquilo que de verdade importa e nem sempre pôde ou soube dizer. A morte nos impulsiona a não ficar na superfície das coisas, nos faz aprofundar. E talvez por isso nos angustie tanto: porque nos situa diante das últimas perguntas, das autênticas, dessas que tantas vezes deixamos para responder em outra ocasião, quando sejamos velhos, ou mais sábios, quando tenhamos tempo de colocar-nos questões essenciais.

Os nossos personagens têm a oportunidade ímpar de conversar sobre este tema que todos parecem evitar. É verdade que a condição que padecem une-os, e por tanto de nada serve disfarçar. Freeman é Carter Chambers, um mecânico culto, um humanista, que faz questão de elaborar a lista de pendências. Nicholson é o terrível milionário Edward Cole, que entra no jogo, e acaba gostando. O mecânico almeja realizar as pendências, ao mesmo tempo em que comprova que a vida que viveu tem substância e não a trocaria por nada. A proximidade da morte é uma confirmação de que o importante é o de sempre, o que se fez com amor e carinho, as pequenas coisas da vida onde reside o encanto. O milionário vem descobrir o contrário: que não é feliz porque lhe falta simplicidade, saber apreciar os detalhes, e lhe sobra dinheiro. E descobre que também com dinheiro se pode ser feliz, sabendo usá-lo. Os dois constroem um diálogo filosófico – um banquete de Platão -, para descobrir que a felicidade e o sentido da vida têm muito a ver com a doação, com o que se faz pelos demais. “A porta da felicidade abre-se para fora e se tentarmos abri-la para dentro, para nós mesmos, acabaremos por fechá-la inexoravelmente”. Atenção a estas palavras que são de Kierkegaard, nada menos!!

antes_de_partirO humor e bom gosto do filme não lhe impedem dar o recado. Nestes tempos globalizados, em que a informação nos chega em tempo real, é preciso recorrer ao Cinema para provocar a reflexão, num mundo governado pela pressa e pela impaciência. Um pensador que faz o elogio da lentidão – característica da qual carecemos quase a nível cromossômico – comenta que o tema da velocidade não é de dimensão técnica, mas sim transcendente, porque é difícil admitir que vamos morrer, é desagradável. E por isso procuramos maneiras de distrair a consciência da nossa mortalidade. A velocidade seria uma espécie de estratégia de distração. Chegamos de novo ao início das nossas reflexões: conseguimos esquecer o que realmente é importante, para ocupar-nos com o periférico.

Os nossos filósofos atores nos guiam nesta reflexão plasmada no celulóide. A morte é o pano de fundo, mas o filme é alegre, positivo, real. Certamente porque a “ficha do importante” cai ainda em tempo. Na verdade, é na vida, no dia-a-dia, quando estas questões devem ser colocadas, e temos de conquistar o espaço para refletir, roubando-o à pressa infecunda, à globalização que nos massifica. Não há como deixar de lado os versos do nosso poeta, que colocam ponto final a estas linhas: “Podeis aprender que o homem/ é sempre a melhor medida/ Mais, que a medida do homem/ Não é a morte, mas a vida”. Para saber morrer, é preciso saber viver, com intensidade, sem medo, de portas abertas aos outros.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fontehttp://www.pablogonzalezblasco.com.br/2008/04/29/antes-de-partir-a-alegria-de-fazer-as-opcoes-certas-na-vida/

A hora e a vez das Humanidades

Política e Sociologia | 28/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Joven Lendo - Matthias

Já dizia Nietzsche, no final do século XIX: “Cada vez mais é possível perceber o vazio e a pobreza de valores. Por fim, o homem ousa uma crítica dos valores em geral. Conhece o bastante para não acreditar mais em valor nenhum. (…) A história que estou relatando é a dos dois próximos séculos”.

Esse panorama traçado pelo filósofo expõe uma visão corrente: a constatação de uma ausência de referências estáveis que, como resultado, gera um vazio existencial, uma falta de sentidos últimos para a vida. Perguntas como “É possível acreditar em verdades seguras?”, ou “Existem valores universais?” deixam de obter respostas, suscitando uma situação em que impera a dúvida ou até um ceticismo radical.

Nietzsche não lamentou o cenário que vislumbrou: pelo contrário, celebrou-o, enxergando ali a oportunidade para que tivéssemos um tipo de vida grandiosa, nobre, tornando a existência algo sublime, livre dos ídolos do passado.

O fato é que a vida de Nietzsche não terminou de modo “sublime”. Aliás, muito longe disso…

Ao enxergar o vazio existencial como uma “oportunidade” e não como um problema preocupante, ele cavou a própria cova: não entendeu que a falta de sentido é algo devastador para o ser humano.

Portanto, o que poderia ser chamado de “crise de sentido na modernidade” – abordada, de diferentes modos, por vários outros autores, como Camus, Beckett, Sartre, Musil, Kafka – não se mostrou como a salvação: é na verdade um problema a ser enfrentado. E aqui surge um vácuo que não pode ser preenchido com estatísticas, gráficos e porcentagens.

Nesse contexto, têm sido freqüentes discursos que buscam revalorizar as Humanidades.

Para ficarmos apenas com alguns exemplos, em recente livro, o professor de literatura italiana, Nuccio Ordine, ressalta como a lógica economicista imperante tem enxergado as Humanidades como algo inútil, por aparentemente não trazer benefícios imediatos. O autor procura desmontar tal visão, recuperando a importância dos clássicos, não por mera erudição, mas para lidarmos com os dilemas próprios do mundo contemporâneo.

Em um de seus últimos livros, a filósofa Martha Nussbaum diagnostica o que considera um “câncer” nas discussões atuais sobre educação: a tendência a abordá-la sob uma visão que busca meramente capacitar as pessoas para contribuírem para o PIB per capita da nação. Isso teria desvalorizado o apreço pelas Humanidades, o que segundo a autora é um perigo para qualquer sociedade que intenta promover valores democráticos.

Enfim, essas percepções tem sido uma tendência. Mas, o que a valorização das Humanidades poderia ajudar no que diz respeito ao vácuo existencial do mundo moderno?

Justamente, na questão da busca pelo sentido. Como afirmou o psiquiatra Viktor Frankl, reinterpretando ao seu modo justamente uma frase de Nietzsche – “quem tem um por que para viver, suporta quase qualquer como”.

E, se a frase citada “faz sentido”, também poderíamos dizer que “quem NÃO tem um porque para viver, NÃO suporta qualquer como”. E, com isso, temos indivíduos sem grandes perspectivas de futuro; insatisfeitos com os menores incômodos que aparecem; centrados nos seus próprios desejos superficiais; incapazes de lidar com os fracassos; e, para melhorar a situação, sempre prontos a demandar os seus “direitos inalienáveis”, como se o mundo estivesse ao seu dispor. Não é por acaso que os psicoterapeutas tem feito tanto sucesso: afinal, o sentido ficou nebuloso, mas a vida continua. E, uma vida vazia não é uma “oportunidade”, mas sim uma prisão, um absurdo.

Em um de seus quadros mais famosos, Paul Gauguin deu o seguinte título: “De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?”. Talvez seja um bom momento para enfrentarmos novamente essas questões fundamentais da existência, não para cair na prisão do absurdo, mas para vislumbrar novos horizontes de sentido. E é por isso que talvez essa seja a hora e a vez das Humanidades.

Guilherme Melo de Freitas é mestre em sociologia pela USP, professor e Gestor do Núcleo de Sociologia do IFE Campinas (gmelo.freitas@gmail.com).

Artigo publicado originalmente no jornal Correio Popular, 11 de Julho de 2014, Página A2 – Opinião.

Imagem:Jovem lendo“, de Mathias Stomer (1615–1649) – Holanda. Imagem em Domínio Público.

Sem rumo e sem prumo

Opinião Pública | 04/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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Quando o cruzeiro aportou logo cedo em Buenos Aires, a família dividiu-se em duas: a ala masculina queria visitar o estádio do Boca Juniors (eu queria muito tirar uma foto ao lado da estátua do Maradona, meu ídolo de infância) e, depois, um bar temático sobre futebol na região central. A ala feminina e o restante de nosso grupo de viagem pretendia visitar lojas e mais lojas da rua Florida. Não teve acordo e, assim, combinamos de nos reencontrar para o almoço num restaurante de Puerto Madero em que estivemos uns seis anos atrás.

Cumprimos nossa agenda turística e chegamos antes da hora combinada em Puerto Madero. Restava apenas localizar o restaurante ao longo dos extensos oito decks que compõem o ponto turístico. Mal sabia que, a partir de então, a programação tomaria outro rumo. Fui passando de deck em deck, eu e meus três pupilos, que gastam o dobro de passadas que eu para cobrir uma mesma trajetória, sem achar o dito restaurante.

Primeiro, segundo, terceiro, quarto deck e nada. Fazia um sol de rachar e o dinheiro vivo já tinha acabado. Meu celular estava sem sinal e dependia de uma rede wi-fi para enviar uma mensagem para o celular da ala feminina. Mas a bateria já dava seus sinais de esgotamento. Então, lá no sexto deck, comecei a observar a idade dos manobristas e, quando me deparei com um mais velho em idade, perguntei-lhe sobre o tal restaurante. Ele me respondeu secamente: “Não existe mais. Fechou há dois anos!”.

Sentei num banco com os meninos, expus o problema, passei o quadro geral de nossas provisões e equipamentos e pedi sugestões. Nossa reunião começou bem e, logo, ficou desgovernada. Parecia o encontro inicial em Valfenda para a fundação da sociedade do anel da obra de Tolkien: todos falando ao mesmo tempo sem que ninguém se entendesse. Já estava sem rumo. Agora, sem apoio logístico, também fiquei sem prumo. E, diante daquela confusão de línguas, sem palavras. Mudo.

Ficar perdido não é bom. Estar constantemente perdido é pior. Nossa vida passa por caminhos e descaminhos. Qualquer caminho conduz a alguma parte, ao centro, em suma, a algum lugar. Alguém já disse que a vida do homem é uma grande senda. De fato, o homem precisa ver e mover-se para aprender e aprender eleva o ser humano à categoria de homem capaz de assimilar as coisas e sobre elas se debruçar reflexivamente.

Aquele que caminha sem ir à parte alguma, encontra-se em estado de constante conflito ou contradição. Muitas vezes, somos colocados em caminhos inusitados e a perplexidade que daí surge pode provocar uma paralisação, justamente por não termos um caminho e, assim, não sermos capazes de buscar um desvio salvador. É a hora de perguntarmos por outros caminhos, porque, quando temos um caminho, não se quer parar. Mas a paralisação pode falar mais forte. Surge um mau silêncio.

Nesse momento, o silêncio é uma forma de expressão não expressada. Quem não se expressa, está reprimido e não maneja a forma mais comum de expressão do ser humano, a linguagem. O silêncio representa um estado de incômodo ou confusão momentânea. Aquele que não se expressa, está se despreciando e àqueles que estão ao seu redor, pois este silêncio prolongado causa mal-estar: os outros querem saber o que pensamos, ainda que nossa ideia seja exteriorizada por meio de um sorriso apenas.

Mas também há o bom silêncio. O silêncio pode ser um dar um tempo para si mesmo para pensar e, depois, passar para a ação. A palavra, então, nem é tão necessária, pois o sujeito passa a ser presente a si mesmo e aos que o cercam. É uma espécie de silêncio diáfano, onde se dá a pura presença que vence qualquer tipo de inércia arrebatadora.

Naquele dia, deixei-me levar pelo um mau silêncio. Na medida em que os minutos foram se passando, a fome e o mau humor da prole foi crescendo. A minha também. Foi quando percebi que estávamos numa zona de passagem obrigatória entre os dois decks mais frequentados. O jeito era ficar ali esperando que alguém do grupo nos encontrasse, mas com olhos atentos à nossa volta.

Algum tempo depois, fomos resgatados. Então, meu mau silêncio corporificou-se num bom silêncio. Dei um sorriso de alívio. Voltei a ter um rumo e um prumo depois de ter ficado desencontrado. E desejo o mesmo para quem está constantemente desencontrado. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 04.03.2015, Página A-2, Opinião.

Protagonistas do futuro – por Isabella Silveira de Castro

Opinião Pública | 22/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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O mundo sofre hoje as dolorosas penas do desenvolvimento de uma sociedade que se tornou insustentável; não pela falta de recursos, mas pela falta de perspectivas. A realidade é tão crítica que quem acredita em um futuro realmente melhor é taxado como sonhador. Entretanto, como suprir as carências do mundo sem acreditar que isto seja possível?

Mesmo o futuro parecendo obscuro e incerto, é preciso nutrir o sonho para ficarmos enérgicos na modificação do presente. Caso contrário, alimentando a visão pessimista e conformista de incapacidade, apenas favorecer-se-á a manutenção dos problemas, tornando-nos cúmplices e igualmente culpados pela realidade. Um cientista vive na perspectiva de descobertas, aparentemente distantes, muitas vezes improváveis; mas, mesmo com tantos obstáculos, empenha-se em seu trabalho. Por isso, espero que os cientistas acreditem na cura do câncer e espero que todos acreditem em uma melhora.

Embora exista uma tendência ao conformismo, os jovens, principalmente, são naturais questionadores e dificilmente acatam submissos a realidade imposta. Contudo, devido ao disseminado individualismo, ao passarem pela fase de revolta, não fazem com que sua consciência crítica reverta-se em ações concretas. Nota-se que a revolta de muitos jovens é expressa por atitudes de pura autoafirmação, como adoção de estilos alternativos e vida desregrada, ou seja, atos que sirvam para afirmarem seu controle sobre suas vidas e futuros; entretanto, tal controle é equivocado.

O equívoco não está na possibilidade de determinarem seus futuros, mas em colocarem como objetivo a ser alcançado a satisfação de prazeres momentâneos, pois, justamente por sua característica de transitoriedade, os prazeres não transformam futuro algum. Logo, na tentativa de determinarem seus futuros, os jovens acabam apenas preenchendo o presente.

Consequentemente, cria-se um ciclo, há sempre expectativa em “preencher” novamente o presente com prazeres. Por conseguinte, realizações a longo prazo perdem o significado, o imediatismo prevalece, ao lado da falsa sensação de satisfação pessoal. Com esta mentalidade, a sociedade ficará para sempre estagnada. O jovem de hoje não almeja fazer escolhas em proveito de melhoras sociais e sustenta discursos justificantes: o discurso é fruto da escolha e não mais as escolhas como o resultado de convicções.

A filosofia do “deixa a vida me levar” é insustentável em sua essência, pois a vida é construção humana, cada um tem papel indispensável em sua história, por isso, o “deixar-se levar” é o mesmo que desistir de si mesmo se entregando ao acaso. A citação de Frei Beto ilustra a questão: “Quando não se injeta utopia na veia, corre-se o risco de injetar drogas”. Não nego importância de momentos prazerosos e de lazer, mas a vida não resume-se a eles.

A compreensão do valor da vida em sua universalidade, isto é, a concebendo não apenas no momento presente e além de sua individualidade, é essencial para construção de um mundo diferente. Quando não damos sentido a nossa existência – não temos objetivos ou convicções – caminhamos sem rumo à procura incessante da felicidade e acabamos equivocadamente confundindo-a com prazer.

A busca pelo sentido da vida é um dos maiores dilemas da história e cabe a cada um dar sentido a sua: as condutas que nos propomos a fazer e a finalidade pelas quais as fazemos revelam o sentido que almejamos dar a elas. Talvez aí esteja a chave de um enigma: o combustível do homem é o reconhecimento do valor de suas ações. Sendo assim, o primeiro passo para um mundo melhor é a convicção, sobretudo da juventude, na necessidade de posturas que contribuam para melhora social. O segundo passo é deixar que os objetivos norteiem as condutas, objetivos coletivos e pessoais.

Quem sabe assim, o futuro seja diferente, diferente de verdade. Quando o homem decide desenvolver novas tecnologias, cria coisas fantásticas. Basta nos inspirarmos no espirito inovador dos inventores e persistência dos cientistas. Tantos ideais alcançados pela ciência foram ditos inatingíveis; vamos educar as novas gerações a provar que um projeto de futuro melhor é concretizável.

■■ Isabella Silveira de Castro é graduanda em Direito pela PUC-Campinas e colaboradora do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, dia 11 de Outubro de 2014, Página A2 – Opinião.