A hora e a vez das Humanidades


Joven Lendo - Matthias

Já dizia Nietzsche, no final do século XIX: “Cada vez mais é possível perceber o vazio e a pobreza de valores. Por fim, o homem ousa uma crítica dos valores em geral. Conhece o bastante para não acreditar mais em valor nenhum. (…) A história que estou relatando é a dos dois próximos séculos”.

Esse panorama traçado pelo filósofo expõe uma visão corrente: a constatação de uma ausência de referências estáveis que, como resultado, gera um vazio existencial, uma falta de sentidos últimos para a vida. Perguntas como “É possível acreditar em verdades seguras?”, ou “Existem valores universais?” deixam de obter respostas, suscitando uma situação em que impera a dúvida ou até um ceticismo radical.

Nietzsche não lamentou o cenário que vislumbrou: pelo contrário, celebrou-o, enxergando ali a oportunidade para que tivéssemos um tipo de vida grandiosa, nobre, tornando a existência algo sublime, livre dos ídolos do passado.

O fato é que a vida de Nietzsche não terminou de modo “sublime”. Aliás, muito longe disso…

Ao enxergar o vazio existencial como uma “oportunidade” e não como um problema preocupante, ele cavou a própria cova: não entendeu que a falta de sentido é algo devastador para o ser humano.

Portanto, o que poderia ser chamado de “crise de sentido na modernidade” – abordada, de diferentes modos, por vários outros autores, como Camus, Beckett, Sartre, Musil, Kafka – não se mostrou como a salvação: é na verdade um problema a ser enfrentado. E aqui surge um vácuo que não pode ser preenchido com estatísticas, gráficos e porcentagens.

Nesse contexto, têm sido freqüentes discursos que buscam revalorizar as Humanidades.

Para ficarmos apenas com alguns exemplos, em recente livro, o professor de literatura italiana, Nuccio Ordine, ressalta como a lógica economicista imperante tem enxergado as Humanidades como algo inútil, por aparentemente não trazer benefícios imediatos. O autor procura desmontar tal visão, recuperando a importância dos clássicos, não por mera erudição, mas para lidarmos com os dilemas próprios do mundo contemporâneo.

Em um de seus últimos livros, a filósofa Martha Nussbaum diagnostica o que considera um “câncer” nas discussões atuais sobre educação: a tendência a abordá-la sob uma visão que busca meramente capacitar as pessoas para contribuírem para o PIB per capita da nação. Isso teria desvalorizado o apreço pelas Humanidades, o que segundo a autora é um perigo para qualquer sociedade que intenta promover valores democráticos.

Enfim, essas percepções tem sido uma tendência. Mas, o que a valorização das Humanidades poderia ajudar no que diz respeito ao vácuo existencial do mundo moderno?

Justamente, na questão da busca pelo sentido. Como afirmou o psiquiatra Viktor Frankl, reinterpretando ao seu modo justamente uma frase de Nietzsche – “quem tem um por que para viver, suporta quase qualquer como”.

E, se a frase citada “faz sentido”, também poderíamos dizer que “quem NÃO tem um porque para viver, NÃO suporta qualquer como”. E, com isso, temos indivíduos sem grandes perspectivas de futuro; insatisfeitos com os menores incômodos que aparecem; centrados nos seus próprios desejos superficiais; incapazes de lidar com os fracassos; e, para melhorar a situação, sempre prontos a demandar os seus “direitos inalienáveis”, como se o mundo estivesse ao seu dispor. Não é por acaso que os psicoterapeutas tem feito tanto sucesso: afinal, o sentido ficou nebuloso, mas a vida continua. E, uma vida vazia não é uma “oportunidade”, mas sim uma prisão, um absurdo.

Em um de seus quadros mais famosos, Paul Gauguin deu o seguinte título: “De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?”. Talvez seja um bom momento para enfrentarmos novamente essas questões fundamentais da existência, não para cair na prisão do absurdo, mas para vislumbrar novos horizontes de sentido. E é por isso que talvez essa seja a hora e a vez das Humanidades.

Guilherme Melo de Freitas é mestre em sociologia pela USP, professor e Gestor do Núcleo de Sociologia do IFE Campinas (gmelo.freitas@gmail.com).

Artigo publicado originalmente no jornal Correio Popular, 11 de Julho de 2014, Página A2 – Opinião.

Imagem:Jovem lendo“, de Mathias Stomer (1615–1649) – Holanda. Imagem em Domínio Público.