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Hannah Arendt: o compromisso de pensar, por Pablo González Blasco

Cinema | 19/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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“Hannah Arendt” – Direção: Margarethe von Trotta. Barbara Sukowa, Axel Milberg, Janet McTeer, Julia Jentsch, Ulrich Noethen,. Alemanha, Luxemburgo, França. 2012. 113 min.

     Todos os comentários que me chegaram deste filme eram unânimes: cinema de primeira categoria. Direção perfeita de Margarethe Von Trotta, interpretação magistral de Bárbara Sukowa. Magistral e realista: fumando o tempo todo, como a personagem que encarna, embora o filme não chegue a mostrar os charutos que Hanna fumava em público. Os intelectuais, os filósofos e o tabaco: alguém já escreveu sobre isso, eu não me detenho nessa particularidade, até porque estou em atraso com estas linhas. Explico.

Deixei o filme em suspenso, e debrucei-me sobre um livro que repousava na minha prateleira. Quis lê-lo antes de assistir o filme, para ter uma ideia da vida e obra da pensadora alemã. Levou-me algumas semanas, mas valeu a pena.  É pouco provável que os leitores tenham a oportunidade de ler alguma das obras de Arendt antes de ver o filme. Mas seria muito útil que, ao menos, lessem o comentário que fiz a esse livro, antes de mergulhar na fita. Sem preocupação; não conto a trama do filme, até porque o aspecto em que se foca a produção é pontual: a cobertura jornalística que Hanna Arendt fez para o New Yorker do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém.

O filme serve a modo de aperitivo a vida da Hanna Arendt e do seu marido Heinrich Blucher, as reuniões na sua casa com a tribo de pensadores e artistas,  e até alguns flash back com Heidegger, o amante da juventude. Mas o prato forte é, sem dúvida, a vivência do julgamento do criminal nazista. Arendt foi a Jerusalém para cobrir o evento como jornalista –mais colunista do que repórter, diríamos hoje- mas o resultado foi uma verdadeira experiência filosófica, a contemplação de uma realidade que se lhe figurava com perfis diferentes aos que todos os outros conseguiam enxergar. Tudo culmina no discurso onde, diante uma plateia de universitários absolutamente seduzidos pela pensadora, dá razão da sua perspectiva, e dos seus escritos que cristalizaram na obra polêmica: “Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal”.

     A cena do discurso cativou-me. Imediatamente a inclui no meu repertório de clips cinematográficos, e a utilizei seguidamente em duas conferências que tive de dar em dois congressos médicos diferentes. O impacto no público foi notável. E as ideias que me sugeria foram se desdobrando, com rapidez, enquanto eu tentava alinhavá-las para anotá-las nestas linhas.

Independente do tempo histórico e de uma possível justificativa para os que a criticavam por entender, equivocadamente, que estaria negando o holocausto, Arendt estabelece um paradigma de capital necessidade para o momento presente. Eichmann funcionou apenas como uma desculpa – um caso extremo- de alguém que abdicou de uma das características integrantes do ser humano: o compromisso de pensar. “Não encontrei ali um ser diabólico, nem a encarnação da perversidade. Deparei-me com um funcionário, um burocrata que se adaptou ao sistema e abriu mão de pensar”. E a seguir o grande recado: “Os maiores males do mundo são causados por gente comum que deixa de refletir, que não pondera suas ações, porque interrompeu o diálogo intimo que devemos ter conosco mesmos. Desta atitude medíocre nasce o que eu denominei a banalidade do mal”.

O caso extremo do carrasco nazista que despacha pessoas para os campos de concentração como quem controle estoque de mercadorias com apurada competência, serve para ilustrar aspectos menos chocantes, mas de premente atualidade. Lá está o tema que me ocupa habitualmente –a Humanização da Medicina- motivo dos convites e das conferências apontadas. Não tanto a humanização, mas o por que nos desumanizamos.

     As palavras em inglês arrastado de Hanna Arendt funcionaram como veículo perfeito para dar o meu recado. A grande –e preocupante- questão, é que os médicos que destratam o paciente, aqueles aos que lhes falta humanismo, não são pessoas más, cruéis e insensíveis: são, simplesmente, profissionais que entraram no sistema, que fizeram o que todos fazem, que não se deram ao trabalho de pensar na sua missão, no compromisso vocacional. Veio à mente algo que me aconteceu há já muitos anos. Foi também durante uma conferência, nessa ocasião dirigida a estudantes. Quando acabei, aproximou-se de mim uma aluna –os alunos nem sempre falam diante da plateia, reservam as melhores questões para os momentos em que o professor começa a abandonar a sala- e me disse que estava em crise. Sorri, e olhei para ela convidando-a a desabafar. “Estou no quinto ano de medicina. Ontem dei plantão no pronto socorro da obstetrícia, e chegou uma mulher que tinha provocado um aborto. Estava sangrando, com dor, assustada. O residente encarou-se com ela e gritou que essas coisas há que pensá-las antes. Foi se preparar para fazer a curetagem e eu segurei a mão da paciente e disse a ela que o médico (residente) não era má pessoa, que estava cansado do plantão”. Devo ter colocado uma cara compreensiva, porque ela continuou: “Professor, eu conheço esse residente. Ele estava no quarto ano quando entrei na faculdade. Era uma pessoa ótima, alegre, animada. Hoje ele é assim….” Minha cara deve ter assumido um interrogante, porque ela disparou: “Minha angústia é …..Quando é que a gente vira bandido, professor?”.

Não lembro o que respondi àquela aluna. Talvez não respondi nada. Mas contei este fato inúmeras vezes nos meus encontros com estudantes. Hoje, se tivesse ocasião –quem sabe agora com as redes sociais onde todos ficam sabendo de tudo ela leia estas linhas- lhe diria: convide-o, em nome dessa velha amizade, para assistir o filme de Hanna Arendt. Lá veria a pensadora apaixonada explicar por que abdicamos de ser pessoas –nos desumanizamos- quando abrimos mão da característica que define o homem como tal: a capacidade de pensar. Entenderia que a incapacidade de pensar é o que permite que gente normal, medíocre, cometa as maiores atrocidades.

     Naturalmente as conclusões no nosso cenário não são tão evidentes como no caso de Eichmann. É preciso conduzir a reflexão da plateia para que se atreva a pensar que o recado é para eles, para todos nós.  Até porque abdicar da reflexão, atitude frequentíssima, costuma estar disfarçada de condutas equívocas. Falávamos das redes sociais e da aluna de quem nunca mais tive notícia. O que poderia ser um bom recurso para oferecer agora uma ajuda concreta, é também uma arma de dois gumes. É difícil que alguém que passa a vida se comunicando com metade do planeta, imagine que não dedica um minuto da sua vida a….pensar. Troca informações, “curte” notícias, compartilha fotos, tem a vida –e a intimidade- como livro aberto, em vitrine comunitária. O barulho virtual é tanto, que não há espaço para o silêncio que a reflexão requer. E quando alguém põe as manguinhas de fora e se atreve a socializar uma carga de profundidade reflexiva, é muito provável que receba um comentário irônico, ou que seja sumariamente eliminado de grupo de “amigos”, que rapidamente podem substitui-lo por outras duas dúzias de elementos que transitam no universo de mediocridade não pensante.

Eu costumava ilustrar o descaminho do médico na figura do Cavalheiro Jedi que se passa para o lado negro da força. Alguém muito bem treinado, com poderes formidáveis que por medo cai para a escuridão.  Os olhos vermelhos de Anakin Skywalker transpirando medo de perder a mulher que ama são o prenúncio da metamorfose em Darth Vader. Agora, Hanna Arendt me mostra que a questão não é tão simples, e que os bandidos nem sempre estão integrados num Império que conspira. O perigo que nos ameaça, está dentro de cada um de nós, em tênue divisão, onde a reflexão é a verdadeira fronteira. Muito bem o adverte um conhecido educador quando escreve: “O  meu problema imediato sou eu mesmo, e o pacto silencioso que estabeleço com o sistema e que permite que “o de sempre” governe a minha vida e as minha decisões” (Parker Palmer: The Courage to Teach). Cruzam-se os limites sem maldade intrínseca, num deixar-se levar, maria-vai-com-as-outras; tudo sem grandes traumas, amparados pelo sistema, enfeitado com o cintilar de bijuterias que piscam alegremente no smartphone fazendo sentir o aconchego de um mundo virtual –milhares de amigos- que compartilham e “curtem” um gregarismo medíocre que promove a banalidade do mal.

O imenso conhecimento que temos ao alcance da mão não dispensa o compromisso de pensar. Essa advertência seria a principal função dos professores universitários, ao invés de vomitar repetidamente informações que os alunos adquirem por si sós, mais rapidamente, de pijama nos respectivos domicílios. Advertir e provocar, fazer pensar: um verdadeiro desafio para os que se envolvem na educação, que não é simples treino, mas fomentar uma atitude de reflexão de por vida. Não dar peixes, ensinar a pescar, entender por que se pesca, e abrir espaço à criatividade e a novas modalidades de pesca.  As frases finais do contundente discurso de Hanna Arendt servem para fechar estas considerações: “A manifestação do ato de pensar não é simples conhecimento. Mas é a habilidade de distinguir o bem do mal, o feio do bonito. Sem pensar nos tornamos incapazes de fazer juízos morais. Espero que essa capacidade de pensar dê às pessoas a força para evitar as catástrofes nos momentos decisivos”.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fontehttp://www.pablogonzalezblasco.com.br/2013/10/25/hanna-arendt-o-compromisso-de-pensar/

Biodireito e bioética: realidades e limites

Direito | 29/01/2015 | | IFE CAMPINAS

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ética médica

A rapidez e o forte impacto social provocados pelos problemas decorrentes das inúmeras inovações das ciências médicas, sobretudo da engenharia genética e da embriologia, não podem ficar alheios ao direito, pois envolvem o contato com um indivíduo vivente, o qual é titular de uma série de direitos inalienáveis, em razão da dignidade da pessoa humana. Essa perene e imanente juridicidade é reconhecida desde a época do Digesto Romano: ius ex persona oritur[1].

O progresso científico criou uma nova mentalidade de atuação das ciências médicas. A medicina tradicional já não consegue acompanhar os efeitos deste progresso: esterelização compulsória de deficientes mentais, fertilização in vitro, inseminação artificial post mortem, eutanásia, aborto, banco de óvulos, estoque de embriões humanos excedentes, crioconservação, experimentação terapêutica de fetos mortos, mudança de sexo, reprodução humana assexuada, manipulações genéticas, enfim, uma gama enorme de técnicas médicas, cujos limites vão além da extravagância intelectual ou da torpeza dos interesses econômicos envolvidos.

O atendimento médico tomou um perfil mais socializado, restando muito restrita a atuação do médico de família. Os padrões de conduta nas relações entre médico, paciente e operadora do plano de saúde assumiram outros patamares, em razão da implementação de políticas públicas que buscam respeitar o direito constitucional à saúde. A telemedicina e o fone-med tornaram-se instrumentos de uso ordinário pelos profissionais da saúde no tratamento dos pacientes.

A universalização das organizações de saúde (“Médicos sem Fronteiras” e a Organização Panamericana da Saúde) é um fato incontroverso. São entes que se preocupam com o combate das doenças em locais sem qualquer estrutura e que editam várias recomendações e protocolos sobre questões delicadas da bioética. A medicalização da vida humana é cada vez maior, diante do aumento das ofertas de serviços médicos para cada fase da pessoa (embriologia, pediatria, cirurgia estética, geriatria, etc…).

É cada vez maior a atuação dos comitês de ética, tanto na esfera hospitalar, quanto na de grupos de pesquisa, com o fim de se dar credibilidade aos resultados obtidos e proteger os interesses dos pacientes envolvidos em questões bioéticas. Há também o crescente interesse da ética filosófica nos temas relativos à vida, reprodução e morte do ser humano.

Existe a necessidade de um padrão moral de atuação médica, a ser buscado pela razão e com respeito à realidade das coisas, diante da fragmentação dos valores, resultado inevitável do pluralismo social, a fim de resolver a questões oriundas do progresso científico e tecnológico das ciências biomédicas.

Como se vê, o repertório de questões é amplo. Some-se a isso a crescente especialização das diversas áreas que englobam as ciências biomédicas, cujo efeito negativo prático é o aumento dos riscos de manipulação do paciente ou de um tratamento para fins ilícitos. O diagnóstico é muito simples: a boa prática médica atual demanda uma renovação ética e deontológica.

Esse novo pensar ético e deontológico deve indicar os limites de atuação do imperativo científico-tecnológico, mas com respeito incondicionado ao primado da dignidade do ser humano, sobretudo quando o profissional da medicina se interroga a respeito do que pode e do que deve ser feito. Em bom português: diante dos riscos a que espécie humana está sujeita, impõe-se o estabelecimento de alguns limites à liberdade de pesquisa biomédica, em prol daquele primado incondicional (artigo 5º, caput e inciso IX, da CF 88).

A bioética, nesses moldes, surge como um novo domínio de reflexão que considera o ser humano em sua integralidade, evidencia os marcos éticos para uma vida humana digna, inquieta todos sobre os malefícios do avanço desordenado da biotecnologia e convoca a sociedade a uma tomada de consciência dos desafios trazidos pelas ciências biomédicas.

A bioética, em suma, deve ser personalista, por enxergar o homem como uma pessoa, isto é, como um ser individualizado e circunstancialmente considerado, com o claro fim de evitar qualquer intervenção no ser humano que não lhe acarrete um bem, pois a criatura humana sempre será um fim em si mesma e jamais um meio para  a conquista de outras finalidades.

E o biodireito deve caminhar, nas linhas gerais de seu natural campo político-normativo, de mãos dadas com a bioética personalista e sempre ecoando a lição do povo romano, cujo direito, por ser velho, é, ao mesmo tempo, novo, na medida em que, costumeiramente, é chamado a reinventar-se ao longo dos tempos.

Notas:

[1] Ius ex persona oritur: o Direito emana da pessoa. A pessoa deve constituir o centro do Direito em quaisquer de suas dimensões. Por ser tanto racional como livre, a pessoa humana é a protagonista do Direito, o sujeito de direito por antonomásia. “Todo Direito tem sido constituído por causa dos homens”, assinalou o jurisconsulto Hermogeniano, magister libellum de Diocleciano, inspirado na tradição do Direito Romano clássico (Digesto 1,5,2: Cum igitur hominum causa omne ius constitutum sit). O mesmo sentido é empregado por Justiniano em suas Institutiones (I.1,2,12), quando afirma que pouco se pode saber do Direito se a pessoa é ignorada (Nam parum est ius nosse si personae quarum causa statutum est ignorentur.). Por isso, podemos afirmar – categoricamente – que o Direito procede da pessoa. Eis a regra de ouro do Direito. O Direito tem origem na pessoa e não no Estado, essa construção teórica criada para servir o homem, ainda que, em muitas ocasiões, tenha sido instrumentalizado para fins iníquos à humanidade. As pessoas são autênticas nomóforas, isto é, portadoras do Direito. A crise da noção de pessoa, própria do ethos pós-moderno, também produz efeitos nefastos no vocabulário jurídico. Isso é patente na complexa distinção entre pessoa física e pessoa jurídica, nascida na Idade Média, por impulso do canonista Sinibaldo de Fieschi, mais tarde conhecido por papa Inocêncio IV: no comentário às Decretais de Graciano (Cânone 57.X.11.20), disse que cum collegium in causa universitatis fíngatur una persona. Thomas Hobbes também contribuiu nessa distinção, na passagem em que ele, como Sinibaldo no comentário anterior, equipara as instituições com os homens: quia civitates semel institutae induunt proprietates hominum personales (De Cive, 14.4).

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

Bioética: Fundamentos

Sem Categoria | 26/12/2014 | |

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A bioética descobre seus fundamentos quando chega a uma série de questões que, implícita ou explicitamente, cada um responde ao longo de sua vida. Às vezes, são como as tranquilas águas profundas de um oceano agitado e, em outros casos, agem na pessoa como um tsumani que arrebata a tudo que está em seu caminho.

Estas perguntas tocam em questões fundamentais: a vida humana, sua dignidade, o amor humano, seu sentido e alcance, o nascimento, o sofrimento, a doença, a morte e as relações com outros seres vivos e o meio ambiente. São temas muito amplos e que não podem ser abordados com pressa. As respostas dadas a cada uma daquelas perguntas, consciente ou inconscientemente, moldam cada um de nossos comportamentos.

As ações que empreendemos diariamente influem sobre a própria vida e sobre as daqueles que vivem ao nosso redor. Num certo sentido, não existem atos indiferentes, pois mesmo as omissões podem ser danosas, como por exemplo, deixar de praticar exercícios, o que favorece a obesidade e “hibernar” aos finais de semana, quando se poderia aproveitar o tempo com os outros.

O estudo da bioética pretende orientar e avaliar nossas ações de maneira a promover um mundo mais saudável, mais solidário e justo, mais atento para os indefesos, para aqueles que sofrem e mais preocupado com a proteção adequada da pessoa e do ambiente.

Isso implica, em primeiro lugar, na elaboração de uma antropologia dotada de validade, a qual deve estar em diálogo constante com as mais sólidas propostas filosóficas elaboradas ao longo dos séculos, fruto destilado de uma longa e contínua investigação e teorização da natureza humana, bem como com as descobertas da psicologia moderna e das ciências biológicas e médicas, sem prejuízo dos trabalhos sociológicos e pedagógicos.

Ao mesmo tempo, a antropologia confronta com a visão particular da identidade própria e da alheia. É impossível, como em qualquer área das humanidades, um estudo neutro da antropologia, pois, por intermédio deste ramo do saber, pomos em claro as próprias ideias sobre o que somos como seres humanos.

Em segundo lugar, a bioética depende de uma série de princípios éticos fundamentais. A ética, como a antropologia, é apresentada segundo diferentes formas e teorias, por vezes, absolutamente contraditórias, o que dificulta o estudo da bioética.

Diante deste panorama pluralista, faz falta ter uma noção das principais teorias bioéticas em suas relações com as linhas éticas do passado ou do presente. Concomitantemente, a reflexão sobre os desafios éticos interpela a consciência de cada ser humano, seja leigo ou intelectual, pois o conhecimento do bem e do mal permite o julgamento de nossas ações e daquelas realizadas pelos outros.

Em terceiro lugar, o estudo da bioética está em estreita relação com outras áreas afins, especialmente com a medicina, a biologia, a filosofia e o direito. De fato, ao se estudar a bioética, não pode encarar tantas disciplinas simultaneamente. Felizmente, o mundo contemporâneo difunde numerosas e ricas ideias sobre estas áreas do conhecimento, de forma que resulta possível a elaboração de uma visão pessoal sobre o que seja mais adequado para preservar a própria saúde, a dos outros, sobre a importância da proteção do indivíduo e assim por diante.

Em quarto lugar, a bioética questiona e julga as distintas formas de organização da sociedade, bem como a correção das leis estabelecidas por escrito ou de modo habitual nos povos. Evidente que isso acarreta o domínio do Direito, a fim de que o estudioso possa analisar quais os segmentos da vida são dignos de atenção e de tutela legal pelas autoridades e quais outros podem ser objeto de uma livre escolha dos indivíduos.

Por fim, a bioética deve ter um matiz metafísico, buscando os princípios primeiros e as razões últimas do valor da pessoa, sua concepção, sua relação de prioridade e de complementaridade para com a sociedade, a fim de que não seja mais ameaçada de instrumentalização pelo próprio homem. Em suma, a busca dos fundamentos da bioética encerra uma urgente tarefa e um enorme desafio.