Biodireito e bioética: realidades e limites

Direito | 29/01/2015 | | IFE CAMPINAS

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ética médica

A rapidez e o forte impacto social provocados pelos problemas decorrentes das inúmeras inovações das ciências médicas, sobretudo da engenharia genética e da embriologia, não podem ficar alheios ao direito, pois envolvem o contato com um indivíduo vivente, o qual é titular de uma série de direitos inalienáveis, em razão da dignidade da pessoa humana. Essa perene e imanente juridicidade é reconhecida desde a época do Digesto Romano: ius ex persona oritur[1].

O progresso científico criou uma nova mentalidade de atuação das ciências médicas. A medicina tradicional já não consegue acompanhar os efeitos deste progresso: esterelização compulsória de deficientes mentais, fertilização in vitro, inseminação artificial post mortem, eutanásia, aborto, banco de óvulos, estoque de embriões humanos excedentes, crioconservação, experimentação terapêutica de fetos mortos, mudança de sexo, reprodução humana assexuada, manipulações genéticas, enfim, uma gama enorme de técnicas médicas, cujos limites vão além da extravagância intelectual ou da torpeza dos interesses econômicos envolvidos.

O atendimento médico tomou um perfil mais socializado, restando muito restrita a atuação do médico de família. Os padrões de conduta nas relações entre médico, paciente e operadora do plano de saúde assumiram outros patamares, em razão da implementação de políticas públicas que buscam respeitar o direito constitucional à saúde. A telemedicina e o fone-med tornaram-se instrumentos de uso ordinário pelos profissionais da saúde no tratamento dos pacientes.

A universalização das organizações de saúde (“Médicos sem Fronteiras” e a Organização Panamericana da Saúde) é um fato incontroverso. São entes que se preocupam com o combate das doenças em locais sem qualquer estrutura e que editam várias recomendações e protocolos sobre questões delicadas da bioética. A medicalização da vida humana é cada vez maior, diante do aumento das ofertas de serviços médicos para cada fase da pessoa (embriologia, pediatria, cirurgia estética, geriatria, etc…).

É cada vez maior a atuação dos comitês de ética, tanto na esfera hospitalar, quanto na de grupos de pesquisa, com o fim de se dar credibilidade aos resultados obtidos e proteger os interesses dos pacientes envolvidos em questões bioéticas. Há também o crescente interesse da ética filosófica nos temas relativos à vida, reprodução e morte do ser humano.

Existe a necessidade de um padrão moral de atuação médica, a ser buscado pela razão e com respeito à realidade das coisas, diante da fragmentação dos valores, resultado inevitável do pluralismo social, a fim de resolver a questões oriundas do progresso científico e tecnológico das ciências biomédicas.

Como se vê, o repertório de questões é amplo. Some-se a isso a crescente especialização das diversas áreas que englobam as ciências biomédicas, cujo efeito negativo prático é o aumento dos riscos de manipulação do paciente ou de um tratamento para fins ilícitos. O diagnóstico é muito simples: a boa prática médica atual demanda uma renovação ética e deontológica.

Esse novo pensar ético e deontológico deve indicar os limites de atuação do imperativo científico-tecnológico, mas com respeito incondicionado ao primado da dignidade do ser humano, sobretudo quando o profissional da medicina se interroga a respeito do que pode e do que deve ser feito. Em bom português: diante dos riscos a que espécie humana está sujeita, impõe-se o estabelecimento de alguns limites à liberdade de pesquisa biomédica, em prol daquele primado incondicional (artigo 5º, caput e inciso IX, da CF 88).

A bioética, nesses moldes, surge como um novo domínio de reflexão que considera o ser humano em sua integralidade, evidencia os marcos éticos para uma vida humana digna, inquieta todos sobre os malefícios do avanço desordenado da biotecnologia e convoca a sociedade a uma tomada de consciência dos desafios trazidos pelas ciências biomédicas.

A bioética, em suma, deve ser personalista, por enxergar o homem como uma pessoa, isto é, como um ser individualizado e circunstancialmente considerado, com o claro fim de evitar qualquer intervenção no ser humano que não lhe acarrete um bem, pois a criatura humana sempre será um fim em si mesma e jamais um meio para  a conquista de outras finalidades.

E o biodireito deve caminhar, nas linhas gerais de seu natural campo político-normativo, de mãos dadas com a bioética personalista e sempre ecoando a lição do povo romano, cujo direito, por ser velho, é, ao mesmo tempo, novo, na medida em que, costumeiramente, é chamado a reinventar-se ao longo dos tempos.

Notas:

[1] Ius ex persona oritur: o Direito emana da pessoa. A pessoa deve constituir o centro do Direito em quaisquer de suas dimensões. Por ser tanto racional como livre, a pessoa humana é a protagonista do Direito, o sujeito de direito por antonomásia. “Todo Direito tem sido constituído por causa dos homens”, assinalou o jurisconsulto Hermogeniano, magister libellum de Diocleciano, inspirado na tradição do Direito Romano clássico (Digesto 1,5,2: Cum igitur hominum causa omne ius constitutum sit). O mesmo sentido é empregado por Justiniano em suas Institutiones (I.1,2,12), quando afirma que pouco se pode saber do Direito se a pessoa é ignorada (Nam parum est ius nosse si personae quarum causa statutum est ignorentur.). Por isso, podemos afirmar – categoricamente – que o Direito procede da pessoa. Eis a regra de ouro do Direito. O Direito tem origem na pessoa e não no Estado, essa construção teórica criada para servir o homem, ainda que, em muitas ocasiões, tenha sido instrumentalizado para fins iníquos à humanidade. As pessoas são autênticas nomóforas, isto é, portadoras do Direito. A crise da noção de pessoa, própria do ethos pós-moderno, também produz efeitos nefastos no vocabulário jurídico. Isso é patente na complexa distinção entre pessoa física e pessoa jurídica, nascida na Idade Média, por impulso do canonista Sinibaldo de Fieschi, mais tarde conhecido por papa Inocêncio IV: no comentário às Decretais de Graciano (Cânone 57.X.11.20), disse que cum collegium in causa universitatis fíngatur una persona. Thomas Hobbes também contribuiu nessa distinção, na passagem em que ele, como Sinibaldo no comentário anterior, equipara as instituições com os homens: quia civitates semel institutae induunt proprietates hominum personales (De Cive, 14.4).

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.