Resumo sobre a concepção de ensino em Agostinho de Hipona (do livro “De Magistro”)*

Filosofia | 27/01/2015 | | IFE CAMPINAS

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Afresco entre 1464 e 1465 intitulado “St Augustine Teaching in Rome” (‘Santo Agostinho ensinando em Roma’), de Benozzo Gozzoli (1420–1497), atualmente na Apsidal Chapel, Sant’Agostino, San Gimignano (Itália).

Santo Agostinho, influenciado sobremaneira pela tradição platônica, faz a comum distinção encontrada em Platão entre conhecimento sensível e inteligível (De Magistro, XII, 40). Sem tal distinção, não conseguimos entender qual a relação entre conhecimento humano e Iluminação Divina, os dois elementos centrais da concepção filosófica de ensino e aprendizagem contida no De Magistro (“O Mestre”).

O diálogo se inicia perguntando pela finalidade da linguagem: “Que te parece que pretendemos fazer quando falamos?”, pergunta Agostinho a seu filho Adeodato. No decorrer do diálogo, ambos desenvolvem, a partir desta pergunta inicial, uma longa discussão acerca da linguagem e de sua relação com o ensino e o aprendizado, tanto em termos internos como em termos externos (inteligível e sensível).

No capítulo II, se discute se o homem mostra o significado das palavras só pelas palavras. No capítulo III, esta questão é aprofundada e se pergunta se é possível mostrar alguma coisa a outrem sem o emprego de um sinal:

AGOSTINHO: – Tens razão, confesso-o; porém se te perguntasse o significado destas três sílabas: “paries” (parede), não poderias tu mostrar-me com o dedo, de maneira que eu a visse, a coisa mesma de que é sinal esta palavra de três sílabas, demonstrando-a assim e indicando-a tu mesmo, sem usar palavra alguma? (De Mag., III, 5)

 Ao que se conclui, com as palavras de Adeodato: “Confesso que não se pode mostrar a coisa sem sinal, se, no momento em que a fazemos, somos interrogados” (De Mag., III, 6).

No capítulo IV, um dos maiores capítulos do De Magistro, se coloca se é possível os sinais se mostrarem por sinais. Diz Agostinho:

– Portanto, quando se discute sobre os sinais, resulta que se podem mostrar uns sinais pelos outros; mas quando se discute sobre as coisas que não são sinais, não se podem mostrar senão fazendo-o imediatamente após a pergunta – se for possível –, ou dando algum sinal pelo qual possam ser compreendidas (De Mag., IV, 7).

 Nos capítulos V e VI são postas as questões de sinais recíprocos e sinônimos. Pergunta Agostinho a seu filho: “(…) agora vê se é possível encontrar sinais que se signifiquem reciprocamente, de maneira que, assim como este significa aquele, também aquele signifique este” (De Mag., V, 11). Encontram, nesse sentido, por exemplo, “nome” e “palavra”.

O capítulo VII é um resumo de tudo o que se desenvolveu até aqui, feito por Adeodato. Agostinho o elogia por ter feito tão bom resumo.

Segundo Maria Leonor Xavier e António Soares Pinheiro, ela autora da introdução da edição portuguesa de “O Mestre” (De Magistro) e, ele, tradutor, respectivamente, esta obra pode ser dividida em duas partes. Os capítulos que até aqui percorremos brevemente se referem, então, à primeira parte, que eles denominam de “As palavras e os sinais”. A segunda, na qual agora vamos entrar, denominam “Os sinais, a realidade e O Mestre”.

Nessa parte, que começa no capítulo VIII, são discutidas as questões da importância desta discussão, isto é, se ela não é inútil (De Mag., VIII), se devemos preferir as coisas, ou o conhecimento delas em vez de seus sinais (De Mag., IX) e se é possível ensinar algo sem o uso de sinais (De Mag., X), além daquilo que agora vamos desenvolver, referente aos capítulos de XI a XIV (final do livro).

Para o filósofo, aprendemos algo não pelo poder das palavras, mas pelo conhecimento de seu significado e pelo contato com os objetos aos quais elas se referem (De Mag., XI), sejam eles exteriores ou interiores, isto é, sensíveis ou inteligíveis. Nesse sentido, o conhecimento é sensível quando se refere aos objetos que afetam os nossos cinco sentidos, como, por exemplo, quando conheço o cheiro de uma rosa ao levá-la próxima de meu rosto, tendo assim o conhecimento do cheiro da rosa através do olfato. Assim sendo, a minha aprendizagem de qual é o cheiro da rosa suceder-se-á mediante o contato sensível com a mesma. Se conheço o significado das palavras “cheiro da rosa” é porque, em algum momento, tive contato com o objeto “rosa”. Aprendo, portanto, conhecendo os objetos e não as palavras. De modo semelhante e ao mesmo tempo diferente, o conhecimento é inteligível quando se trata dos objetos que afetam nossa mente, o nosso interior – eis a diferença (De Mag., XII, 40), mas as palavras aqui também não nos ensinam – eis a semelhança.

Para o primeiro tipo, também chamado por Agostinho de carnal, seguindo assim a tradição judaico-cristã, o conhecimento é realizado mediante o contato direto ou indireto com os objetos. O filósofo não se utiliza desta terminologia, mas podemo-la inferir através de suas palavras quando nos afirma que o contato com objetos pode ser com eles presentemente a nós, isto é, quando estão diante dos nossos sentidos no momento em que os percebemos ou quando, através das palavras ouvidas, lidas etc., tomamos conhecimento de uma dada realidade que, embora não a tenhamos contemplada diretamente, conhecemos contudo os objetos nela referidos por estarem em nossa memória e, desse modo, imaginamos como é esta realidade (De Mag., XII, 40). Contudo, este conhecimento não é tão completo como o primeiro, pois há certas coisas que não temos em nossa memória e tampouco teremos condição de tê-las, como é o caso dos três jovens bíblicos na fornalha ardente, Ananias, Azarias e Misael. Agostinho afirma que, quando se ouve esta história, sabe -se o que é “fogo”, o que é “jovens”, “fornalha” etc., mas não se sabe exatamente o que/quem são os jovens nomeados, pois não os viu, nem os percebeu através dos sentidos (De Mag., XI, 37–8).

Nesse primeiro tipo, os professores ou mestres, através de suas falas ou livros, e referindo-se a objetos sensíveis, só ensinam a nós ao apresentar os objetos referidos, mas não apenas os aludindo com palavras. Moacyr Novaes, estudioso da obra de Agostinho, afirma:

Mas se a coisa mesma não for vista, apreendida, não há conhecimento. Por quê? Porque só ensina aquele que apresenta a coisa mesma. Esta é a exigência para reconhecer alguém que ensine: é preciso que esse alguém apresente aos sentidos ou à mente aquilo que se quer conhecer (Novaes, 2007, pp.78–9).

Para o segundo tipo, o inteligível, também chamado de espiritual, o conhecimento realiza-se também mediante o contato direto ou indireto com os objetos, mas estes são interiores, como já referimos há pouco. Porém, aqui não há mestres que nos ensinam, pois nenhum ser humano é capaz de apresentar objetos interiores ao nosso interior, mas, de acordo com Agostinho, somente um Mestre, Jesus Cristo que, como diz São Paulo aos Efésios (3, 16–7), habita no homem interior. O processo de conhecimento e aprendizagem no domínio interno é semelhante ao externo, mas quem ensinará, quem apresentará estes objetos a nós de maneira clara e distinta e dizer se são verdadeiros ou falsos, será Cristo, este Mestre interior. Sendo assim, se nos é apresentado exteriormente através de palavras algo que se refere ao domínio interior, a aprendizagem e o conhecimento só se realizarão mediante o significado destas palavras e mediante o contato com estes objetos, que só serão possíveis de serem contemplados pela Luz Interior que é Cristo, que, habitando o interior do homem, ilumina sua alma. Aqui, portanto, está a relação entre conhecimento humano e Luz Divina. A Luz Divina está para o conhecimento humano na medida em que este pertence ao domínio interno do Homem, só podendo ser válido e verdadeiro na presença da Luz de Cristo. E, como diz Agostinho, “se às vezes há enganos, isto não acontece por erro da verdade consultada, como não é por erro da luz externa que os olhos, volta e meia, se enganam” (De Mag., XI).

Esta é, portanto, resumidamente, a posição de Santo Agostinho a respeito do ensino, da aprendizagem e do papel da linguagem neste processo.

NOTA

* Este texto é parte de um trabalho que apresentei na disciplina de Estágio Supervisionado II (necessária para o grau de Licenciatura em Filosofia), enquanto cursava a graduação de Filosofia na Unicamp, em meados de 2011.

BIBLIOGRAFIA

AGOSTINHO, Santo. De Magistro. Tradução de Angelo Ricci. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

______. O Mestre. Introdução e comentários de Maria Leonor Xavier. Tradução de António Soares Pinto. Porto: Porto Editora, 1995.

NOVAES FILHO, Moacyr Ayres. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho. São Paulo: Discurso Editorial, 2007.