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Resumo sobre a concepção de ensino em Agostinho de Hipona (do livro “De Magistro”)*

Filosofia | 27/01/2015 | | IFE CAMPINAS

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Afresco entre 1464 e 1465 intitulado “St Augustine Teaching in Rome” (‘Santo Agostinho ensinando em Roma’), de Benozzo Gozzoli (1420–1497), atualmente na Apsidal Chapel, Sant’Agostino, San Gimignano (Itália).

Santo Agostinho, influenciado sobremaneira pela tradição platônica, faz a comum distinção encontrada em Platão entre conhecimento sensível e inteligível (De Magistro, XII, 40). Sem tal distinção, não conseguimos entender qual a relação entre conhecimento humano e Iluminação Divina, os dois elementos centrais da concepção filosófica de ensino e aprendizagem contida no De Magistro (“O Mestre”).

O diálogo se inicia perguntando pela finalidade da linguagem: “Que te parece que pretendemos fazer quando falamos?”, pergunta Agostinho a seu filho Adeodato. No decorrer do diálogo, ambos desenvolvem, a partir desta pergunta inicial, uma longa discussão acerca da linguagem e de sua relação com o ensino e o aprendizado, tanto em termos internos como em termos externos (inteligível e sensível).

No capítulo II, se discute se o homem mostra o significado das palavras só pelas palavras. No capítulo III, esta questão é aprofundada e se pergunta se é possível mostrar alguma coisa a outrem sem o emprego de um sinal:

AGOSTINHO: – Tens razão, confesso-o; porém se te perguntasse o significado destas três sílabas: “paries” (parede), não poderias tu mostrar-me com o dedo, de maneira que eu a visse, a coisa mesma de que é sinal esta palavra de três sílabas, demonstrando-a assim e indicando-a tu mesmo, sem usar palavra alguma? (De Mag., III, 5)

 Ao que se conclui, com as palavras de Adeodato: “Confesso que não se pode mostrar a coisa sem sinal, se, no momento em que a fazemos, somos interrogados” (De Mag., III, 6).

No capítulo IV, um dos maiores capítulos do De Magistro, se coloca se é possível os sinais se mostrarem por sinais. Diz Agostinho:

– Portanto, quando se discute sobre os sinais, resulta que se podem mostrar uns sinais pelos outros; mas quando se discute sobre as coisas que não são sinais, não se podem mostrar senão fazendo-o imediatamente após a pergunta – se for possível –, ou dando algum sinal pelo qual possam ser compreendidas (De Mag., IV, 7).

 Nos capítulos V e VI são postas as questões de sinais recíprocos e sinônimos. Pergunta Agostinho a seu filho: “(…) agora vê se é possível encontrar sinais que se signifiquem reciprocamente, de maneira que, assim como este significa aquele, também aquele signifique este” (De Mag., V, 11). Encontram, nesse sentido, por exemplo, “nome” e “palavra”.

O capítulo VII é um resumo de tudo o que se desenvolveu até aqui, feito por Adeodato. Agostinho o elogia por ter feito tão bom resumo.

Segundo Maria Leonor Xavier e António Soares Pinheiro, ela autora da introdução da edição portuguesa de “O Mestre” (De Magistro) e, ele, tradutor, respectivamente, esta obra pode ser dividida em duas partes. Os capítulos que até aqui percorremos brevemente se referem, então, à primeira parte, que eles denominam de “As palavras e os sinais”. A segunda, na qual agora vamos entrar, denominam “Os sinais, a realidade e O Mestre”.

Nessa parte, que começa no capítulo VIII, são discutidas as questões da importância desta discussão, isto é, se ela não é inútil (De Mag., VIII), se devemos preferir as coisas, ou o conhecimento delas em vez de seus sinais (De Mag., IX) e se é possível ensinar algo sem o uso de sinais (De Mag., X), além daquilo que agora vamos desenvolver, referente aos capítulos de XI a XIV (final do livro).

Para o filósofo, aprendemos algo não pelo poder das palavras, mas pelo conhecimento de seu significado e pelo contato com os objetos aos quais elas se referem (De Mag., XI), sejam eles exteriores ou interiores, isto é, sensíveis ou inteligíveis. Nesse sentido, o conhecimento é sensível quando se refere aos objetos que afetam os nossos cinco sentidos, como, por exemplo, quando conheço o cheiro de uma rosa ao levá-la próxima de meu rosto, tendo assim o conhecimento do cheiro da rosa através do olfato. Assim sendo, a minha aprendizagem de qual é o cheiro da rosa suceder-se-á mediante o contato sensível com a mesma. Se conheço o significado das palavras “cheiro da rosa” é porque, em algum momento, tive contato com o objeto “rosa”. Aprendo, portanto, conhecendo os objetos e não as palavras. De modo semelhante e ao mesmo tempo diferente, o conhecimento é inteligível quando se trata dos objetos que afetam nossa mente, o nosso interior – eis a diferença (De Mag., XII, 40), mas as palavras aqui também não nos ensinam – eis a semelhança.

Para o primeiro tipo, também chamado por Agostinho de carnal, seguindo assim a tradição judaico-cristã, o conhecimento é realizado mediante o contato direto ou indireto com os objetos. O filósofo não se utiliza desta terminologia, mas podemo-la inferir através de suas palavras quando nos afirma que o contato com objetos pode ser com eles presentemente a nós, isto é, quando estão diante dos nossos sentidos no momento em que os percebemos ou quando, através das palavras ouvidas, lidas etc., tomamos conhecimento de uma dada realidade que, embora não a tenhamos contemplada diretamente, conhecemos contudo os objetos nela referidos por estarem em nossa memória e, desse modo, imaginamos como é esta realidade (De Mag., XII, 40). Contudo, este conhecimento não é tão completo como o primeiro, pois há certas coisas que não temos em nossa memória e tampouco teremos condição de tê-las, como é o caso dos três jovens bíblicos na fornalha ardente, Ananias, Azarias e Misael. Agostinho afirma que, quando se ouve esta história, sabe -se o que é “fogo”, o que é “jovens”, “fornalha” etc., mas não se sabe exatamente o que/quem são os jovens nomeados, pois não os viu, nem os percebeu através dos sentidos (De Mag., XI, 37–8).

Nesse primeiro tipo, os professores ou mestres, através de suas falas ou livros, e referindo-se a objetos sensíveis, só ensinam a nós ao apresentar os objetos referidos, mas não apenas os aludindo com palavras. Moacyr Novaes, estudioso da obra de Agostinho, afirma:

Mas se a coisa mesma não for vista, apreendida, não há conhecimento. Por quê? Porque só ensina aquele que apresenta a coisa mesma. Esta é a exigência para reconhecer alguém que ensine: é preciso que esse alguém apresente aos sentidos ou à mente aquilo que se quer conhecer (Novaes, 2007, pp.78–9).

Para o segundo tipo, o inteligível, também chamado de espiritual, o conhecimento realiza-se também mediante o contato direto ou indireto com os objetos, mas estes são interiores, como já referimos há pouco. Porém, aqui não há mestres que nos ensinam, pois nenhum ser humano é capaz de apresentar objetos interiores ao nosso interior, mas, de acordo com Agostinho, somente um Mestre, Jesus Cristo que, como diz São Paulo aos Efésios (3, 16–7), habita no homem interior. O processo de conhecimento e aprendizagem no domínio interno é semelhante ao externo, mas quem ensinará, quem apresentará estes objetos a nós de maneira clara e distinta e dizer se são verdadeiros ou falsos, será Cristo, este Mestre interior. Sendo assim, se nos é apresentado exteriormente através de palavras algo que se refere ao domínio interior, a aprendizagem e o conhecimento só se realizarão mediante o significado destas palavras e mediante o contato com estes objetos, que só serão possíveis de serem contemplados pela Luz Interior que é Cristo, que, habitando o interior do homem, ilumina sua alma. Aqui, portanto, está a relação entre conhecimento humano e Luz Divina. A Luz Divina está para o conhecimento humano na medida em que este pertence ao domínio interno do Homem, só podendo ser válido e verdadeiro na presença da Luz de Cristo. E, como diz Agostinho, “se às vezes há enganos, isto não acontece por erro da verdade consultada, como não é por erro da luz externa que os olhos, volta e meia, se enganam” (De Mag., XI).

Esta é, portanto, resumidamente, a posição de Santo Agostinho a respeito do ensino, da aprendizagem e do papel da linguagem neste processo.

NOTA

* Este texto é parte de um trabalho que apresentei na disciplina de Estágio Supervisionado II (necessária para o grau de Licenciatura em Filosofia), enquanto cursava a graduação de Filosofia na Unicamp, em meados de 2011.

BIBLIOGRAFIA

AGOSTINHO, Santo. De Magistro. Tradução de Angelo Ricci. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

______. O Mestre. Introdução e comentários de Maria Leonor Xavier. Tradução de António Soares Pinto. Porto: Porto Editora, 1995.

NOVAES FILHO, Moacyr Ayres. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho. São Paulo: Discurso Editorial, 2007.

O “Conhece-te a ti mesmo” de Santo Agostinho tratado por Pierre Courcelle

Filosofia | 06/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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augustinus_277Pierre Courcelle é um dos grandes estudiosos do preceito délfico “Conhece-te a ti mesmo”: dedicou três volumes (em língua francesa) ao tema, denominado Connais-toi toi-meme: de Socrate a saint Bernard (“Conhece-te a ti mesmo: de Sócrates a São Bernardo”), no qual mostra os paralelos textuais entre os diversos autores gregos e latinos desde a época de Platão (século V a.C.) até São Bernardo – figura esta de envergadura da cultura européia e, por extensão, ocidental (século XII d.C.). Além disso, além do paralelo, interpreta os textos dos autores que aborda. Nesta resenha – que na verdade é mais do que uma resenha, pois abordamos como Courcelle trata o preceito délfico em Agostinho –, enfocamos o Capítulo VIII do Tomo I da obra, denominado “Ambroise et Augustin” (Ambrósio e Agostinho), com atenção a Santo Agostinho de Hipona.

(Todas as traduções do francês são nossas.)

***

Para Pierre Courcelle, em seu capítulo sobre o Nosce te ipsum (“Conhece-te a ti mesmo”, em latim) em Agostinho, é possível observar uma progressão da reflexão sobre esse tema na obra de Agostinho ao longo de sua vida e conforme ele amadurece.[1] De fato, Courcelle parece ter lido toda a obra de Agostinho separando dela os trechos em que é abordado o “Conhece-te a ti mesmo” para formar seu capítulo. Nesse sentido, ele encontra o tema desde o primeiro diálogo agostiniano Contra academicos até seu tratado de maturidade De Trinitate, no qual, segundo o autor, é onde Agostinho desenvolve o tema com mais frequência e de modo mais longo.

A respeito do Contra Academicos, Courcelle diz que Agostinho empresta de Licencio, um de seus interlocutores, a visão de que a filosofia,

pelo fato mesmo que ela busca a sabedoria, despoja sua alma dos invólucros (enveloppes, em francês) corporais, se subtrai às concupiscências que a dilaceram, se recolhe ela mesma nela mesma, tende em direção a ela e em direção a Deus, atinge enfim, pelo uso mesmo de sua razão, a serenidade da alma e a vida feliz análoga à beatitude divina que a alcança depois da morte”.[2]

Algo que, para Courcelle, é uma visão impregnada do tratado de Porfírio sobre o “Conhece-te a ti mesmo”. Mas observa também que, mais adiante no diálogo, Agostinho confessa que sua conversão recente foi um retorno a si mesmo devido a influência dos libri Platonicorum, porém mais ao cristianismo.[3]

No diálogo De Ordine, Courcelle observa que, para Agostinho, se o homem não consegue discernir a ordem providencial do universo, é porque ele não conhece a si mesmo. E não conhece a si mesmo porque está habituado às coisas exteriores e não se volta para si mesmo para uma vida solitária ou que cure esse hábito às coisas exteriores pelo estudo das disciplinas liberais (Artes Liberais). A beleza da ordem provém do Uno. Courcelle ainda observa que, nesse texto, suas linhas são impregnadas de neoplatonismo porfiriano.

A seguir, é interessante ressaltar a origem e o caminho dessas idéias até Agostinho, os quais o autor traça:

A idéia de que a alma, depois de sua queda do ‘plano da Verdade’ nesse mundo baixo, torna-se jogo da Opinião, remonta ao Fedro de Platão. Através de Plotino e Porfírio, ela passou por Proclo, e em latim por Arnóbio que a combate, por Macróbio e por Mario Vitorino. O tema do estado de indigência onde a alma se encontra quando se derrama entre os múltiplos objetos dos sentidos é longamente desenvolvida por Porfírio em suas Sentenças (…).”[4]

Essa temática vem de Platão através Plotino e depois Porfirio. Contudo, conforme uma demonstração textual entre o texto grego de Platão e o latino de Agostinho, Courcelle sustenta que Agostinho segue de perto o texto do Fedro, com a diferença de o último ser “munido de um comentário neoplatônico”.[5]

Ainda com relação ao De ordine, Courcelle levanta mais duas passagens do texto que completam, segundo ele, as visões de Agostinho sobre o “Conhece-te a ti mesmo” no referido texto. Uma delas que convém destacar – a que está no final do De ordine – é a de que a filosofia tem por objeto a alma e Deus, isto é, “o conhecimento de nós mesmos e aquele de nossa origem; o primeiro nos torna dignos da vida feliz; o segundo, nos obtém essa vida feliz”.[6]

Outro texto de Agostinho no qual Courcelle encontra o Nosce te ipsum é os Soliloquiorum, onde Agostinho dialoga consigo mesmo, ele e sua Razão. Para o autor, a ligação íntima entre conhecimento de si e conhecimento de Deus é reafirmada com força nesse diálogo.[7] Depois da prece inicial, a Razão pergunta a Agostinho o que ele deseja saber e o pede para que faça de modo breve. Sua resposta é “Deum et animam scire cupio[8], isto é, “Desejo conhecer a Deus e a alma”.

Para Courcelle,

Na prece inicial do Livro I, ele [Agostinho] sublinha, sem dificuldade, em seu próprio nome, o acordo entre as pesquisas filosóficas sobre o ‘Conhece-te a ti mesmo’ e o versículo do Gênesis do homem feito à imagem e à semelhança de Deus. Isso supõe que, desde o início do ano 387, em Cassicíaco, ele está informado das exegeses cristãs sobre o Cântico dos Cânticos, tais como de Orígenes, Basílio e Gregório de Nissa. O senso profundo de toda essa prece é seu desejo de conhecer a relação entre a alma humana e a divindade.[9]

Mais a frente nos Soliloquiorum, Courcelle afirma que, com relação à passagem “Deus semper idem, nouerim me, nouerim te. Oratum est”,[10] há um substrato dessa prece no Livro I das Tusculanas de Cícero em I, 29, 70, citado no texto e colocado ao lado do texto de Agostinho.[11] Por fim, citando a conclusão de Agostinho desse texto, Courcelle afirma que “a condição de reflexão sobre si (…) é o entrar em si mesmo (repli[12] em francês), que se obtém somente quando nos desviamos a nossa atenção dos objetos dos sentidos.”[13]

No De vera religione encontra-se um novo apelo ao homem para que ele se desvie dos objetos exteriores e entre em si mesmo e descubra, para além de sua razão, a Verdade, harmonia soberana.[14] A passagem referente ao conhecimento de si desta obra – conhecida de muitos, aliás – é aquela em que santo Agostinho afirma:

Não vás para fora, volta para ti mesmo. No homem interior habita a verdade. E se descobrires que tua natureza é mutável, transcende também a ti mesmo. (De Vera Religione, XXXIX, 72) [*]

Nas Confessionum vê-se, segundo Courcelle, o caminho até Deus para além da razão em sentido inverso, tal como sugere um versículo do Eclesiástico (X, 9-10).[15] O homem nesse sentido seria um abismo de corrupção, um abismo sem fundo e suas concupiscências constituiriam entraves para ele, de tal sorte que, se o ímpio interroga sobre si mesmo, ele não sabe o que responde, ao passo que, ao contrário,

o homem que faz retorno a si mesmo progredindo – segundo a dialética neoplatônica dos degraus – do exterior em direção à própria intimidade, com a condição de o que é interior é preferível, aquele toma consciência de seu mal estado de saúde moral, descobre sua dessemelhança de natureza com a da divindade e, do mesmo modo, a presença de Deus no mais profundo dos seus intima.[16]

Segundo Courcelle, esse ensinamento neoplatônico do retorno a si pelo “Conhece-te a ti mesmo” concorda com um versículo de Isaías, o qual afirma que, se nós voltarmos a nosso próprio coração, nós encontraremos a Deus que está no fundo.[17]

A partir de agora, em seis páginas, Courcelle mostra as diversas formas como Agostinho trata da presença divina imanente. Podemos resumi-lo notando que, em diversos escritos de Agostinho citados pelo autor, os verbos utilizados para se referir a essa presença divina interior são adesse (numa tradução em inglês seria como “to be at, be present, be at hand[18]) e praesens (presente, no particípio). Contudo, observa Courcelle, neste último caso é frequente o praesens vir acompanhado de secretus “para indicar que essa presença é invisível”, imaterial, como em Confessionum I, 4, 4, “secretissime et praesentissime”.

Além disso, Courcelle vê paralelos de textos filosóficos que Agostinho leu ou recebeu de segunda mão com relação ao tema de presença imanente em Sêneca, Epiteto e Simplício. Mas observa, por fim, que, quando Agostinho afirma nas Confessionum “Por isso, enquanto peregrino longe de ti, estou mais presente a mim que a ti” (X, 5, 7),[19] ele se separa tanto dos estóicos como dos neoplatônicos, segundo os quais se conhecer a si mesmo é conhecer Deus em si. Agostinho – diz Courcelle – “está convencido de que esse conhecimento, durante nossa vida terrestre, tem seus limites”.[20]

Em muitos Sermones, Enarrationes in Psalmos e no Tratactus in Iohannen Courcelle observa que o tema do “Conhece-te a ti mesmo” é implementado e adaptado para fins edificantes.[21] Contudo, pelo que pude ler nos textos anteriores citados pelo autor e pelo que ele mesmo cita desses textos, a idéia não destoa do que foi apresentado segundo Agostinho até o momento. Por exemplo, o autor observa que o perverso não se conhece, algo que foi visto pouco acima. A diferença que se nota nesses textos, em relação aos outros, a meu ver, é a maior quantidade do conteúdo da Revelação Judaico-Cristã presente, o que também pressupõe um vocabulário mais afinado à Escritura e à tradição cristã, como “fraqueza carnal”.[22] Mas algo interessante é o aparecimento, por parte de Courcelle, do uso da palavra “introspeção” para se referir ao “Conhece-te a ti mesmo”. Nesse sentido, afirma ele:

A introspeção tem duas faces. Antes de mais, o homem que descende nele mesmo descobre a guerra intestina entre a carne e o espírito e toma consciência de sua fraqueza carnal. O Evangelho propõe o exemplo do retorno a si do Filho pródigo e mostra por lá que o conhecimento de si é uma fase prévia ao retorno a Deus. Do mesmo modo, o retorno a si não é somente voltar-se sobre si mesmo, mas conduz ao próximo: porque ninguém pode amar seu próximo como a si mesmo se ele se ignora a si mesmo. Jesus fez o elogio do publicano porque este prestou atenção a sua conduta moral (…).

Mas, ao mesmo tempo, descender em nós mesmos nos faz descobrir nossa grandeza de ser criados à imagem e semelhança de Deus e superior aos animais, porque a alma recepta memoria e cogitatio que o conduz a Deus.”[23]

Courcelle segue na conclusão de seu capítulo mostrando que o tema do “Conhece-te a ti mesmo” é mais desenvolvido e aprofundado em um texto de maturidade de Agostinho, o De Trinitate. O autor observa que logo no Livro IV do De Trinitate há uma referência ao Nosce te ipsum. No começo desse livro, Agostinho fala o seguinte:

O gênero humano geralmente (solet) tem em grande estima as ciências da terra e as do céu. Levam, entretanto, grande vantagem aqueles que preferem o conhecimento de si mesmos aos dessas ciências. É mais digna de louvor a alma que tem consciência de sua debilidade do que aquela que não a tendo esquadrinha o curso dos astros com afã de novos conhecimentos.[24]

Além disso, três outros livros do De Trinitate são levantados por Courcelle para mostrar a presença do Nosce te ipsum, os livros IX, X e XIV, mas é sobretudo no Livro X, segundo o autor, que o tema é mais desenvolvido e abordado, sendo, contudo, retomado e aprofundado no livro XIV.

No Livro IX, Courcelle observa que Agostinho procura na “psicologia do homem, que é criado à imagem de Deus, as analogias suscetíveis de esclarecer o mistério da Trindade das pessoas divinas”.[25] Além disso, faz uma importante distinção que ele reconhece no texto agostiniano: é a de que Agostinho opõe (já neste livro) o conhecimento intelectual ao conhecimento sensível. Nesse sentido, Courcelle diz que

os olhos do corpo podem ver os olhos de outra pessoa, mas não se pode ver a si mesmo. Agostinho evita estender-se sobre as diversas teorias de óptica, porque ele quer colocar em relevo que a alma recolhe por ela mesma os conhecimentos que ela tem das realidades incorpóreas e que ela se conhece ela mesma por ela mesma.[26]

Para Courcelle, seguindo M. Pépin, o Capítulo 3 do Livro IX que Agostinho opõe o conhecimento sensível ao intelectual, aproxima-se das Sentenças de Porfírio em XLIII, 2-4.[27]

Agostinho prossegue no livro IX ao notar uma tríade, posto que a alma se conhece, que é a mens (alma ou espírito), notitia (conhecimento) e amor (amor). Essa tríade, para Agostinho, são três coisas iguais e são uma ao mesmo tempo. Amor e conhecimento não são para a alma substratos, como seriam a cor ou a figura, mas existem “como a alma ela mesma, a título de substância”.[28] A passagem do texto agostiniano de onde Courcelle retira seu comentário é o Livro IX, 4, 5, onde Agostinho afirma, entre outros, que

Essas reflexões atiram nossa atenção, além disso, sobre o fato (se de alguma maneira pudermos ver) que essas realidades [mens, notitia, amor] coexistem na alma, e aí se desenvolvem como numa espécie de involução mútua, a ponto de se deixarem perceber e recensear, como substâncias, ou por assim dizer, essências. Elas não estão aí como acidentes, à maneira da cor, da figura, em um corpo ou qualquer outra qualidade ou quantidade. Tais acidentes estão limitados ao substrato onde subsistem. Pois tal cor e tal figura não podem estar em nenhum outro corpo.

Entretanto, a mente, com o amor com que se ama, pode amar outras realidades fora de si. Ela também não conhece apenas a si mesma, mas a muitas outras coisas. Por isso, o amor e o conhecimento não estão inerentes à mente como um acidente está a um sujeito.[29]

Com relação ao conhecimento de si que está ligado ao amor e à mens (espírito), Courcelle observa que há a aporia das partes da alma. Se com relação ao conhecimento há um sujeito e um objeto de conhecimento, e se a tríade é uma só e três ao mesmo tempo, como é possível que a alma quando se conheça se conheça e se ame toda inteira de acordo com Agostinho, sem separação? Pois a relação entre amor e conhecimento não é de justaposição, nem de mistura, pois a justaposição supõe possível a separação e, a mistura, destrói a pluralidade inicial.[30] Como isso se resolveria? Courcelle responde que

Agostinho indica em seguida qual é, a seus olhos, a verdadeira solução da aporia. A alma, diz ele, quando ela se ama e se conhece, não se conhece como imutável. Mas ela possui também a intuição do caráter específico ou genérico da alma, objeto eterno e inteligível, e sua união com as inteligências, sem confusão, nem corrupção, nem alteração. / Uma tal solução figura nos Symmikta Zetemata de Porfírio.[31]

Por fim, no Livro IX, Courcelle comenta que Agostinho desenvolve nele a doutrina do verbo mental: é o conhecimento unido ao amor; “quando a alma se conhece e se ama, seu verbo lhe é unido por amor”.[32]

O desenvolvimento tocante ao conhecimento de si se aprofunda no Livro X, no qual, segundo o autor, Agostinho se esforça para determinar o modo de conhecimento da alma que busca se conhecer a si mesma. Agostinho se pergunta: como pode a alma se amar antes de se conhecer? Ela não pode se conhecer por um espelho, como o olho, porque é imaterial. Seria na razão da Verdade eterna que ela vê o quão belo é se conhecer? Ou por lembrança de uma beatitude anterior? Ou, ainda, por amor do saber?

Na verdade, para Courcelle,

é por uma intuição dela mesma: ela é presente a ela mesma no momento em que ela busca representar-se a si mesma. Segundo Agostinho, o conhecimento do sujeito por ele mesmo está envolvido no ato de se conhecer e a alma não pode conhecer uma parte dela mesma por uma outra parte. Ele responde por lá, seguindo uma argumentação plotiniana, à aporia apresentada em Sexto Empírico segundo a qual todo conhecimento supõe uma divisão entre o sujeito do conhecimento e o objeto conhecido. A alma toda inteira se conhece intuitivamente, ao mesmo tempo enquanto vida e enquanto alma.[33]

Na sequência, Agostinho pergunta: mas por que é dirigido à alma um preceito para que ela se conheça a si mesma se ela já se conhece? De acordo com Courcelle, é para convidá-la a se pensar nela mesma e a viver segundo sua natureza, “intermediária entre Deus que a rege e os seres que ela deve reger.”[34]

Nesse ponto, Courcelle observa que há muito provavelmente uma lembrança de uma interpretação de Antíoco de Ascalão que adaptou o ‘Gnothi Seauton[35]’ platônico – transliteração da exortação grega γνῶθι σεαυτόν, que significa “Conhece-te a ti mesmo!” – à antropologia de Crisipo. Para o autor, Agostinho o conheceu através do De finibus de Cícero, se se julga pelos paralelos textuais apresentados por ele em seu capítulo, pp. 156–157.

A seguir, no Livro X, Agostinho, passa agora em revisão as teorias de diferentes filósofos que reduzem a alma à matéria, que dizem ser ela constituída de sangue, átomo ou outro elemento. Citando Schindler e Hagendahl, Courcelle afirma que esse parágrafo de Agostinho resume algumas páginas do Livro I das Tusculanas de Cícero. “Agostinho – diz Courcelle – conclui essa revisão de opiniões filosóficas dizendo que a alma, por sua natureza, é uma substância não corporal; ela não tem que se procurar como se ela estivesse ausente de si mesma.”[36] E, nesse sentido, como já se conhece a si mesma, deve se pensar em si mesma para arrancar as crostas terrestres que nela se ajuntou. Com relação à temática da crosta terrestre usada como metáfora para alma, Courcelle vê um desenvolvimento porfiriano e depois identifica a discussão com elementos do Fédon de Platão e a presença de autores como Cícero e Virgílio.[37]

Referente à conclusão do Livro X, Courcelle comenta:

O próprio da alma, diz ele, é se conhecer com certidão. O erro comum a esses que crêem ser a alma corporal é de não notar que ela já se conhece, mesmo quando ela se busca. Agostinho conclui o Livro X fazendo observar que memória, inteligência e vontade constituem uma só vida, uma só alma.[38]

Contudo, para Courcelle, o De Trinitate não se esgota no Livro X a respeito do “Conhece-te a ti mesmo”. Para o autor, o desenvolvimento (développement) do Livro X é aprofundado e retomado no Livro XIV: enquanto o olho só pode se ver através de um espelho, a alma pode se aperceber de si mesma pela “cogitatio”. Segundo o autor, Agostinho “compara esse conhecimento implícito que o homem tem dele mesmo com a memória mesma que contém as lembranças que nós não procuramos para nos lembrar.”[39]

Acompanhando esses livros, Courcelle conclui seu capítulo afirmando que Agostinho opõe o conhecimento intelectual ao conhecimento sensível e que, no De Trinitate, “ele luta – à maneira de Platão no Fédon – contra os physicistes que não refletem mais do que empurrar a observação até os ‘moenia mundi’”[40], isto é, até o firmamento.

NOTAS:

[1] Courcelle, 1974, p. 125 e p. 163.

[2] Ibid., pp. 125-126.

[3] Ibid., pp. 125-126.

[4] Ibid., pp. 127-128.

[5] Ibid., p. 128.

[6] Ibid., pp. 130-131. Cf. Agostinho, De ordine, II, 18.

[7] Ibid., p. 131.

[8] Agostinho, Soliloquiorum, I, 2, 7.

[9] Courcelle, 1974, p. 131.

[10] Agostinho, Soliloquiorum, II, 1, 1.

[11] Courcelle, 1974, p. 132.

[12]Replier” segundo o Hachette Le Dictionnaire (1991): “(…) II. v. pron. Rentrer en soi-même, se fermer”.

[13] Ibid., p. 132-133. Cf. Agostinho, cit. por Courcelle, De imortalitate animae, x, 17.

[14] Ibid., p. 133. Agostinho, cit. por Courcelle, De vera religione, xxxix, 72: “(…) Noli foras ire, in teipsum redi; in interiore homine habitat Veritas. (…)”

[*] De Ver., XXXIX, 72, tradução de Novaes, 2007, p. 202. No texto latino usado por Novaes: “Noli foras ire, in teipsum redi; in interiore homine habitat veritas; et si tuam naturam mutabilem inveneris, transcende et teipsum.” Cf. NOVAES, Moacyr. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho. São Paulo: Discurso Editorial, 2007.

[15] Na Vulgata: “9. avaro autem nihil est scelestius quid superbit terra et cinis 10. nihil est iniquius quam amare pecuniam hic enim et animam suam venalem habet quoniam in vita sua projecit intima sua” (Eclo 10, 9-10). Fala-se aqui em scelestius (“pior”) e intima sua que se traduz por intestino, mas não encontramos alguma referência propriamente ao tumor nesta passagem. Parece-nos, então, que a metáfora do tumor está em Confissões e que esta metáfora é sugerida, e não propriamente dita, por Eclo 10, 9-10. Ficamos de conferir as Confissões a esse respeito.

[16] Ibid., p. 136.

[17] Ibid., p. 137.

[18] Perseus, Latin Word Study Tool. Link: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=adesse&la=la&can=adesse40&prior=quem Acesso em 28/03/2014.

[19] Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante, Santo Agostinho, Confissões, São Paulo, Paulus, 1984, p. 270. No original: “Quamdiu peregrinor abs te, mihi sum praesentior quam tibi, et tamen te noui nullo modo posse uiolare” (Conf. X, 5, 7).

[20] Courcelle, 1974, p. 144.

[21] Ibid., p. 144.

[22] Agostinho, Enarrationes in Psalmos LXV, 14, 16.

[23] Courcelle, 1974, pp. 144-146.

[24] Agostinho, De Trinitate, IV, 1. Tradução nossa adaptada de Agustinho Belmonte, Paulus, São Paulo, 1994. No original latino da Patrologia Latina, tomo 42: “Scientiam terrestrium caelestiumque rerum magni aestimare solet genus humanum. In quo profecto meliores sunt qui huic scientiae praeponunt nosse semetipsos, laudabiliorque est animus cui nota est vel infirmitas sua quam qui ea non respecta vias siderum scrutatur etiam cogniturus aut qui iam cognitas tenet ignorans ipse qua ingrediatur ad salutem ac firmitatem suam.” Uma edição crítica mais apurada e atualizada do texto latino de Agostinho do De Trinitate está em AUGUSTINUS, Sanctus Aurelius. De Trinitate. Edição crítica do texto latino preparada por Beatrice Cillerai e Giovanni Catapano com base nas edições de W.J. Mountain e F. Glorie no “Corpus Christianorum” (1968). IN: AGOSTINO. La Trinità – Texto latino a fronte. Introdução e notas ao texto latino de Giovanni Catapano. Tradução, notas e aparatos de Beatrice Cillerai. Bompiani: Milão, 2013.

[25] Courcelle, 1974, p. 151.

[26] Ibid., p. 151.

[27] Ibid., p. 151.

[28] Ibid., p. 151.

[29] Agostinho, De Trinitate, IX, 4, 5. Tradução de Agustinho Belmonte, Paulus, São Paulo, 1994.

[30] Courcelle, 1974, p. 152.

[31] Ibid., p. 153.

[32] Ibid., p. 153.

[33] Ibid., pp. 154-155.

[34] Ibid., p. 155.

[35] “Conhece-te a ti mesmo” transliterado do grego.

[36] Ibid., pp. 157-158.

[37] Ibid., pp. 158-159.

[38] Ibid., p. 160.

[39] Ibid., p. 161.

[40] Tradução nossa: “muralhas do mundo”.

João Toniolo é mestrando em Filosofia pela Unicamp e gestor do Núcleo de Filosofia do IFE Campinas (joaotoniolo@ife.org.br). Resenha elaborada originalmente em Abril de 2014 e adaptada para este site em Setembro de 2014. 

REFERÊNCIA DA RESENHA: COURCELLE, Pierre. Connais-toi toi-même. Tomo I. «Chapitre VIII : Abroise et Augustin». Institut d’Études Augustiniennes : Paris, 1974.