Bioética e religião

Filosofia | 01/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Os debates em curso sobre a legalização ou a proibição de práticas como o aborto, a eutanásia, o uso de drogas, incluindo até mesmo os limites de velocidade nas cidades ou estradas e o uso obrigatório do assento infantil nos carros, mostra o quanto a proteção da vida requer uma intervenção direta, específica e prudencial dos parlamentos e autoridades civis.

A par disso, a abolição gradual da religião no ambiente atual de secularismo relativista é vista como uma evolução necessária da humanidade, para que esta possa avançar no caminho da liberdade e do progresso científico. Nesse vácuo de valores, não teria começado a se destacar uma outra forma de poder que, inicialmente, com uma tonalidade puramente beneficente e digna de aplauso, não seria, na verdade, um novo tipo de ameaça para o ser humano?

Ao que parece, o homem, ao ter condições de produzir seres humanos dentro da proveta ou mesmo de eliminá-los no ventre materno ou num leito hospitalar, tornou-se um produto perfeito e acabado de si mesmo. Causa-me a impressão de que o homem desceu às nascentes do poder de onde brota sua própria existência no afã de querer construir o ser humano perfeito, na tentação de instrumentalizá-lo e na loucura de considerar a si próprio como uma coisa descartável.

Tais desejos deixaram de ser uma criação teórica absurda de uns moralistas retrógrados. Se várias correntes científicas duvidam da religião como uma força moral positiva socialmente, temos de admitir, agora, que se duvide da confiabilidade da pura razão. Afinal de contas, a bomba atômica também foi produto da razão, assim como a criação, a seleção ou a morte de seres humanos foram engenhadas pela razão. Não seria o caso de a bioética e a religião se limitarem mutuamente, mostrando uma à outra as respectivas fronteiras naturais, para que possam prosseguir em seu caminho positivo de mãos dadas?

Por outro lado, penso que seria de pouca utilidade para a própria religião negar a legitimidade e a necessidade de uma reflexão racional e filosófica sobre os limites de atuação da bioética: o sujeito religioso teria apenas razões de natureza sobrenatural, as quais, por si só, não sustentariam o convencimento alheio diante de um interlocutor cético ou pessimista. A ninguém é dada a dispensa de refletir sobre os fatos humanos à luz da razão, cujo peso e valor são inestimáveis.

Esse reencontro entre bioética e religião, entre razão e revelação é tanto mais necessário quanto urgente, diante do incessante avanço das ciências experimentais e depois do longo período de “silêncio da metafísica”, que deixou a compreensão da realidade humana à mercê das veleidades dos poderes políticos, nascidos no seio do materialismo, do absolutismo, do historicismo e, posteriormente, desenvolvidos no meio do relativismo hoje reinante.

Cada ser humano é portador em seu coração, por assim dizer, de uma bioética interior dotada de uns princípios, pois o assento dos valores nunca permanece vago. Aqueles que utilizam células-tronco adultas nas pesquisas científicas ou defendem a dignidade da vida de um doente terminal agem segundo certos princípios éticos. Os campos de atuação da bioética são tão amplos que a própria bioética necessita dialogar continuamente com inúmeras disciplinas e, também, com o rico e bimilenar aporte teórico sobre a humanidade, em relação ao qual o Cristianismo tem muito a dizer.

Assim, a bioética e a religião, em outras palavras, a ciência e a fé, podem contribuir efetivamente para denunciar as ações que vão contra a dignidade da pessoa humana e para promover comportamentos concretos que auxiliem o homem a não se transformar em instrumento de si mesmo. Da engajada turma do proselitismo anticlerical, depois destas linhas, que venham os tomates: pelados e italianos, por favor!

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, mestre em Filosofia e História da Educação, Pesquisador, Professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP e da Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS) e coordenador do IFE CAMPINAS (agfernandes@tjsp.jus.br).