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A lição de Balzac

Opinião Pública | 09/08/2017 | | IFE CAMPINAS

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Um hábito salutar há muito tempo esquecido – especialmente numa era de redes sociais – é o compartilhamento de impressões ocasionadas pela leitura de um romance. Contrariamente às tendências que buscam transformar o comentário de obras literárias em uma atividade exclusivamente acadêmica e que, forçosamente, exclui os simples mortais, penso que a finalidade principal da leitura e do comentário dos clássicos da literatura seja esclarecer, para o indivíduo comum, experiências que ele já viveu, ou que poderá viver, mas que não tem condições de verbalizar. Talvez nunca isso tenha ficado tão claro para mim quanto ao terminar de ler o romance Memórias de duas jovens esposas, de Honoré de Balzac, um retrato vivo e tocante dos motivos que podem levar um casamento à felicidade ou à infelicidade.

A história se passa na França, alguns anos depois da queda de Napoleão Bonaparte, no período conhecido como “restauração”, época em que a antiga monarquia e a antiga nobreza tentaram, sem sucesso, restaurar as instituições que vigoravam antes da revolução francesa. Nesse cenário, Renée e Louise, duas amigas de infância, membros de famílias aristocratas, trocam cartas durante vários anos abrindo seus corações a respeito de suas vidas amorosas. Enquanto Louise, após sair de um convento de irmãs carmelitas, deseja encontrar um príncipe encantado que a ela se dedique como num conto de fadas, Renée, que também havia estado no mesmo convento, aceita um casamento arranjado – por motivos financeiros — com um homem mais velho, a quem ela não ama.

Não sendo eu pessoa isenta das influências que um ambiente impregnado de sentimentalismo barato como o nosso infunde sobre as pessoas, imaginei, em um primeiro momento, que Renée seria profundamente infeliz, ao passo que Louise – que seguia seu coração – estava no caminho certo em busca da felicidade. No entanto, com toque de gênio, Balzac nos surpreende com uma profunda lição no desenrolar da trama: Renée não se rebela contra o seu destino, mas decide amar o homem com quem se casou quase sem ser consultada e, com o passar dos anos, descobre na dedicação ao esposo e na maternidade um conjunto de alegrias que vão enchendo a vida de sentido e tornando-a não uma pessoa amarga, mas uma mulher verdadeiramente sábia.

Louise, de outra parte, logo encontra o príncipe encantado que desejava, Felipe Henárez, o Barão de Macumer, um nobre espanhol refugiado na França após participar de uma revolução frustrada contra o rei Fernando da Espanha. O amor de Macumer por Louise nada deixa a desejar se comparado aos sacrifícios dos príncipes dos contos de fadas: para ele, a amada adquire feições de verdadeira divindade e, ao se casarem, ela o trata como verdadeiro escravo que satisfaz todos os seus mínimos caprichos. Não seria de bom tom em um convite à leitura contar o final de uma obra que eu gostaria de ver lida e divulgada entre os jovens de hoje, mas adianto que a vida amorosa de Louise passará por grandes tragédias, todas antevistas e alertadas por sua amiga Renée.

Quando examino os relacionamentos amorosos de hoje em dia, vejo muitas pessoas, que tiveram sua sensibilidade corrompida buscando príncipes ou princesas encantados e esquecendo-se que o casamento é uma relação que envolve grandes sacrifícios de ambas as partes, mas que, conforme já dizia Aristóteles, raízes amargas podem produzir frutos doces. Como muitos temem esse tipo de sacrifício, não é de se admirar que hoje em dia tantas pessoas substituam o casamento pela mera união estável – facilmente desmanchada quando terminar a “química” – e a geração de filhos pela adoção de animais. Também nunca vimos os consultórios psicanalíticos e psiquiátricos tão cheios. Reflitamos, portanto, sobre a lição de Balzac.

Fabio Florence, 32 anos, é professor de filosofia, sociologia e idiomas e membro do IFE Campinas (florenceunicamp@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 09/08/2017, Página A-2, Opinião.

A Ditadura do Afeto: uma crítica à introdução do sentimento como valor jurídico (por Caio Martins Cabeleira)

Direito | 03/11/2015 | | IFE CAMPINAS

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  1. Um breve esclarecimento.

O presente artigo tem como base uma curta palestra proferida nas Jornadas de Direito de Família e das Sucessões, ocorrida em fevereiro de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e, portanto, não segue uma padrão estritamente acadêmico. O artigo é mais voltado a suscitar um debate do que apresentar uma análise exaustiva sobre o tema – o que demandaria uma tese inteira.

Assim, para o fim do presente artigo, far-se-á uma redução do tema ao papel do afeto nas relações de família formadas por afinidade, ou seja, o casamento. Assim, não entra no escopo do presente texto o problema do afeto nas relações de filiação e nem na união estável.

Nossa discussão irá se atentar à pergunta: “O que é casamento?”. Resgatado seu sentido, ficará claro que as propostas que tentam incluir o afeto/sentimento como elemento essencial da família defendem, em verdade, uma outra concepção de casamento e família. São teorias que buscam redefinir o matrimônio, instaurando verdadeira instabilidade no seio familiar, deixando os cônjuges e toda a família sujeitos ao arbítrio dos sentimentos de uma das partes.

É preciso, antes de mais nada, resgatar o verdadeiro sentido do matrimônio, tal como estava consagrado nas legislações dos Estados ocidentais até poucas décadas. Somente assim se compreenderá claramente que a introdução do afeto/sentimento como elemento essencial do conceito de casamento cria uma verdadeira paródia do matrimônio verdadeiro.

……2. O casamento nas civilizações da antiguidade: o exemplo de Roma.

O casamento e a família sofreram grandes alterações ao longo dos séculos, isso é inquestionável. A família romana[1], uma síntese das tendências da antiguidade, compreendia todos que estavam sujeitos ao patria potestas do pater famílias[2].

ULPIANO afirma que a “união” (coniunctio) denominada matrimônio, é instituto de direito natural, porque ensinada a todos os seres vivos[3]:

D. 1,1,1,3 – O direito natural é o que a natureza ensinou a todos os animais. Pois este direito não é próprio do gênero humano, mas de todos os animais que nascem na terra ou no mar, comum também das aves. Daí deriva a união do macho e da fêmea, a qual denominamos matrimônio; daí a procriação dos filhos, daí a educação. Percebemos, pois, que também os outros animais, mesmo as feras, são guiados pela experiência deste direito.”

No mesmo sentido, se manifestava Cícero em de off., 1,4,11-12:

11. Antes de tudo, a todos os seres vivos a natureza concedeu o instinto de conservar a si próprio, a vida e o corpo, de evitar tudo aquilo que pode prejudicar, e de buscar e procurar obter as coisas necessárias para o sustento da vida, como o alimento, os covis e outras coisas do mesmo gênero. Igualmente comum a todos é o desejo de procriar e o cuidado com a prole.(…) 12. A própria natureza, mediante a força da razão, une o homem aos outros animais, cria uma semelhança que se manifesta na linguagem e na relação de vida, inspira, principalmente, um amor extraordinário para com a prole, impele-o a desejar os agrupamentos e reuniões: por estes mesmos motivos o homem esforça-se em procurar as coisas que são necessárias ao culto e à sua subsistência, e não apenas para si mesmo, mas para a esposa, para os filhos, para os outros que ele tenha por queridos e deva proteger. (…)”

STEINWASCHER, ao analisar essas e outras fontes do Direito Romano, conclui que “O matrimônio fundamentado na expressão coniunctio maris et feminae, segundo afirma Ulpiano, influenciado pela doutrina estoica, tem o seu preceito no ius naturale e sua finalidade principal na procriação (procreatio) e na educação da prole (educatio)[4]. E continua, citando a melhor doutrina:

Para R. Astolfi, as concepções estoicas de matrimônio e de procriação, consideradas como “deveres públicos do cidadão”, influenciaram diretamente na elaboração e promulgação das Leis Matrimoniais de Augusto. Na opinião do autor, La concezione che il matrimonio e la procreazione sono doveri pubblici del cittadino è conforme (…) alla tradizione romana e all’etica stoica. La giurisprudenza sente l’influenza e li attua nell’interpretazione e nell’applicazione della legge. Para R. Besnier, La vieille doctrine stoïcienne du Portique fait également prevaloir l’interêt de l’Etat, elle considere le mariage comme une loi naturelle, l’homme a le devoir de perpétuer la race, dans ce but il doit se marier et procréer. Também alguns filósofos pitagóricos, principalmente Ocellus Lucanus, declaravam, já no século I a.C., que a finalidade do matrimônio é a procriação e não o mero prazer entre os cônjuges.“

No mesmo sentido, Pietro Paolo ONIDA, Professor de Sassari, afirma ainda que:

La considerazione dell’istinto alla procreazione come fattore propulsivo di società, non solo di uomini: da quella fondata sul ‘coniugium’, a quella dei ‘liberi’, e quindi a quella della ‘domus’ e delle altre ‘res communes’, costituisce le premesse perché il legame fra gli esseri animati trovi espressione nel sistema giuridico. La riflessione ciceroniana, attraverso il riferimento al tema del ‘coniugium’ e dalla ‘societas liberorum’, si pone in evidente rapporto con le problematiche relative alla ‘coniunctio’, alla ‘procreatio’ e alla ‘educatio liberorum’, richiamate nella concezione ulpianea del ‘ius naturale’, come ‘ius’ comune a uomini e animali non umani“.[5]

Percebe-se, claramente, que tanto do ponto de vista dos costumes, quanto do direito, o casamento era visto, principalmente, por sua função social e econômica: ampliar a cidade por meio da procriação e formar os futuros cidadãos. O ideal familiar, conforme coloca STEINWASCHER, é o de um casamento monogâmico e com prole numerosa, em que o cidadão romano cumpre tanto as regras da Natureza como as suas obrigações em relação à res publica.

Em outra celebre passagem de Cícero, consta:

53. Há vários graus de sociedade humana. Para não falar, de fato, da sociedade muito numerosa que une todos os homens, considera-se mais próxima aquela constituída entre os homens do mesmo povo, nação e língua, que são os vínculos mais importantes. Ainda mais íntima é aquela entre os homens da mesma civitas; uma vez que muitas coisas são comuns aos cidadãos, a praça principal (forum), os templos, o pórtico, as estradas, as leis, os direitos, os tribunais, os sufrágios, além disso, os costumes (consuetudines), os laços de parentesco, os numerosos negócios e relações contraídos. Sociedade mais restrita, é pois, o vínculo da própria família: de fato, da imensa sociedade do gênero humano encerra-se a um círculo muito pequeno. 54. E, uma vez que em todos os animais é natural o desejo da procriação, a sociedade é constituída primeiro no próprio casamento [união conjugal], depois nos filhos; em seguida numa única casa e nas coisas comuns. Isto é o princípio da cidade e como que a origem [sementeira] da res publica”.

Comentando o referido trecho, STEINWASCHER explica que a procriação era o fundamento do sistema jurídico-religioso de Roma, pois criava uma nova família, ou seja, uma nova unidade social (no sentido ontológico do termo), chamada por Cícero de “seminarium rei publicae”, “principium urbis”, “pusilla res publica”, a pedra angular da sociedade.

Nessa toada, aclara-se, com toda força, o interesso público do matrimônio (coniugium) para a cidade. Em nenhum momento se fala do matrimônio como meio de auto realização pessoal dos cônjuges. Ao contrário, deles se exige que se empenhem em ajudar a civitas ampliando o número de cidadãos pela procriação e educando as futuras gerações. Tanto que as leis de Augusto vieram para reforçar essa característica do matrimônio.

Para realização do matrimônio exigia-se a vontade de todos os interessados, ou seja, dos nubentes e dos que tinham potestas sobre eles. A intervenção do pater (ou de quem tivesse o potestas) era fundamental, tendo ele inclusive poder de vetar o matrimônio.

Somente com as leis de Augusto que se atenuou tal exigência, exigindo-se uma justa causa para o veto do pater. Tudo com o intuito de facilitar e incentivar os casamentos. Leia-se, por exemplo, trecho de PAULO no qual afirma que:

“Os matrimônios daqueles que estão sob o poder do pai não se contraem legitimamente sem a vontade dele, porém uma vez contraídos não se dissolvem, pois se prefere a consideração da utilidade pública aos interesses dos particulares”. IP: “Estando vivos os pais, os matrimônios entre filiosfamilias não se realizam legitimamente sem a vontade daqueles. Porém se tiverem se unido, não se dissolvem, porque a antiguidade decretou que corresponde à utilidade pública que uma união realizada para procriar filhos não se deva separar”.[6]

Fica claro, assim, que a vontade dos nubentes não bastava, pois dependia, ainda da aprovação do pater. Aliás, muitos ficavam noivos enquanto crianças, podendo celebrar as núpcias somente aos 12 anos (mulheres) e 14 anos (homens), período tido como suficiente para que alcançassem a puberdade. Todavia, fosse o casamento consumado, o pater não poderia mais fazer nada, pois o interesse público prevalecia ao seu.

  1. Casamento: precisões terminológicas.

Importante, ainda, frisar o caráter dúplice do matrimônio. Hoje estamos acostumados com um único ato para se celebrar o matrimônio, neste mesmo ato os nubentes declaram sua vontade de se casar, festejam e depois realizam as núpcias.

Por toda antiguidade e até o século XI e XII existiam duas fases distintas: a esponsalícia e a nupcial, costume que foi decaindo aos poucos no ocidente mas que ainda é mantido em diversas culturas tradicionais. Praticamente toda cultura antiga manteve essa dualidade, tanto as civilizações semíticas, quanto a greco-romana e até mesmo os povos germânicos.

Como observa o especialista em direito matrimonial canônico, Joan CARRERAS[7], a fase esponsalícia era a fase do pacto familiar, no qual as famílias, mais que os nubentes (principalmente pelo fatos destes serem impúberes ainda) firmavam um pacto jurídico para selar a união das famílias. Após o esponsal, a menina se convertia em esposa de seu marido e não era apenas noiva, mas verdadeira esposa, aplicando-se todas consequências patrimoniais e existenciais, e.g., no que diz respeito às penas por adultério. No entanto, tal pacto era mais fácil de ser rompido pelas famílias antes da consumação do matrimônio.

Somente com a fase nupcial é que se celebrava o matrimônio com festas e se dava as núpcias, a consumação do casamento mediante a conjunção carnal entre os esposos. Normalmente a festa era acompanhada de alguma liturgia, na qual o pai da esposa dava sua benção e depois a encaminhava para a casa do marido, dando-se início à coabitação.

Assim, haviam três fases que em português se designam, indistintamente, por “casamento”: os esponsais, as núpcias (o matrimonium in fieri) e o estado de casado (matrimonium in facto esse).

CARRERAS ressalta a importância da constituição existencial do casamento mediante o ato sexual, previamente celebrado pela comunidade, em detrimento do aspecto meramente jurídico encarnado no pacto esponsalício. Continua o autor sobre o matrimônio na antiguidade e no início da era cristã:

“Tudo era mais singelo que hoje, pois os cristãos aceitavam de bom grado os ritos matrimoniais das próprias tradições jurídicas: a hebraica, a romana, a germânica etc. Em contrapartida, as tradições e os costumes matrimoniais foram muito parecidos em todas as civilizações antigas. Isso é o que ocorre, por exemplo, com as duas fases, a esponsal e a nupcial, com as quais se alcançava o casamento. O mesmo se pode dizer dos costumes e ritos próprios de cada uma das fases:

1. Na fase esponsal: A “dexterarum coniunctio” – o entrelaçamento das mãos direitas dos esposos -, e o beijo. Por esses gestos tínhamos uma significação do compromisso assumido; o presente de um anel entregue à esposa, com idêntico sentido, unido talvez a algum augúrio de fertilidade; entre povos semitas, costumava-se velar a mulher depois dos esponsais.

2. Na fase nupcial: 1) As tábulas nupciais redigidas no momento dos esponsais, mas lidas no dia da festa nupcial, em presença dos convidados e nas quais se indicava que o matrimônio era contraído para procriar filhos; 2) O sacrifício de algum animal propiciatório; 3) O banquete nupcial; 4) a domum deductio ou cortejo de acompanhamento da esposa à casa do marido, cortejo no qual não faltavam músicos e a declamação de poemas, e que se fazia por um caminho iluminado com tochas; 5) Ao chegar à casa do marido, a esposa era levada suspensa e acompanhada dentro da câmara ou do tálamo (leito) nupcial.[8]

E, como conclui CARRERAS, “No mundo antigo, e até durante o primeiro milênio depois de Cristo, o consentimento matrimonial tinha uma importância muito pequena. As pessoas não chegavam ao casamento por ‘amor’, pois que na maioria das vezes se viam obrigadas a aceitar a pessoa que lhes era apresentada e que estava destinada a ser seu cônjuge.[9]

Realmente, como coloca STEINWASCHER em sua monografia, o estado de casado se adquiria como se fosse posse, pela apreensão do corpus da mulher com animus ou affectio maritalis, sendo que affectio, no caso, nada tem a ver com afeto[10]:

„O matrimônio romano apresentava dois elementos constitutivos essenciais: a affectio maritalis (elemento subjetivo) e o honor matrimonii (elemento objetivo).

Devido a esses elementos constitutivos, o matrimônio era análogo à posse, esta última iniciada pela apreensão (corpus – elemento objetivo) e que gera uma situação de fato que perdura enquanto uma vontade (animus – elemento subjetivo) não a faça cessar.

  1. O matrimônio cristão: a invenção do casamento por amor.

A Igreja fez o que pôde para acabar com a prática do casamento forçado. Desde Santo Ambrósio (340-397) a Igreja tem afirmado o consentimento livre como essencial para o matrimônio. Todavia, vivendo num mundo em que as pessoas eram casadas (fase esponsal) desde crianças (e, nesses casos, em razão da vontade dos pais), o Papa Nicolau I (858-867), não tendo como declarar nulo tais casamentos, sob pena de todos casamentos serem nulos, criou uma saída criativa.

Ele reconheceu como válidos os casamentos celebrados pelas famílias dos cônjuges sem o consentimento destes, mas, por outro lado, estabeleceu como fundamental que houvesse o consentimento de ambos os esposos para as núpcias. E tal consentimento era expressado pelo ato conjugal, feito após a celebração em comunidade das núpcias e a procissão levando a esposa à casa do marido. No entanto, e.g., se uma jovem fosse casada no berço com alguém e os esposos realizassem o ato conjugal antes da festa de casamento, tal ato não era considerado fornicação, mas ato verdadeiramente conjugal e expressivo do consentimento dos esposos em se casar. Eram os casamentos presumidos. E se na juventude a moça decidisse entrar para um convento? Rompia-se o vínculo, vez que o casamento não foi consumado e somente com a consumação o vínculo se torna indissolúvel, pois somente no ato conjugal os esposos se tornam “uma só carne”.[11]

E se uma jovem, casada no berço pela família, se entregasse a um jovem que amava, ambos com intenção de contrair núpcias e formar uma família? Esse foi o grande debate dos séculos XI e XII, no qual se fez valer a questão da livre escolha dos noivos e se introduziu o casamento por amor na civilização ocidental.

GRACIANO defendia que o consentimento das partes era o elemento essencial para a formação do matrimônio e tal consentimento só poderia ser feito pelas partes. A promessa dos pais não podia se sobrepor à vontade dos esposos. Assim, deu o exemplo acima citado de, mesmo feito em segredo, o casamento era válido e legítimo, desde que feito com a intenção de contrair casamento (affectio maritalis) e realizada a cópula, pois para ele “onde há união de corpos, há que ter união de almas”[12]. Assim, a formação do matrimônio não dependeria da aprovação de mais ninguém, senão dos cônjuges, nem da Igreja.

Exemplo clássico trazido por Graciano é do casamento forçado da filha de Jordano, príncipe de Capua, com Renaud Ridel, Duque de Gaeta, feito no interesse político de seu pai. A filha de Jordano recorreu ao Papa Urbano II (1088-1099) que declarou nulo o casamento, contrariando os interesses políticos da própria Igreja naquele matrimônio[13].

Já Pedro Lombardo, defendia que o casamento, para ser válido, necessitava de uma declaração de presente, verba de praesenti, declaração expressa e não meramente presumida de que um aceitava o outro como marido e mulher a partir daquele momento. Mas manteve a desnecessidade de qualquer outra formalidade ou ritual.

No entanto, tal como ocorre hoje com a união estável, não era sempre fácil discernir um relacionamento com affectio maritalis de um relacionamento qualquer, gerando a chamada crise dos casamentos clandestinos.

Foi no IV Concílio de Latrão que se fixou a declaração mais formal e solene possível de tal consentimento: de forma pública, dentro da Igreja, depois de realizada as proclamas, mutatis mutandis do mesmo modo como o código civil positivou a celebração matrimonial. No entanto, nada asseverou sobre a nulidade dos casamentos clandestinos e feitos fora da Igreja. Somente com o Concílio de Trento no século XVI se estabeleceu a cerimônia eclesiástica como formalidade ad valitatem para o matrimônio.

Enfim, é inquestionável a luta da Igreja pelo casamento livre e por amor, sendo a imposição da forma ad valitatem uma garantia da liberdade da manifestação de vontade dos cônjuges, além de ser, claro, uma forma de publicidade. E tal como afirma CARRERAS:

“Amor e consentimento iam, pois, de mãos dadas, pois o casamento era considerado fundamentalmente como um ato de amor pessoal. Estou consciente de essa afirmação poderá surpreender a mais de um: como? Poder-se-ia ponderar que a Idade Média se caracterizou precisamente pelo fato de não atribuir ao amor dos esposos a importância que ele merece; que todo o mundo sabe que é na Idade Média que o casamento se converte em um instrumento de poder nas mãos da nobreza e da burguesia que além de tudo era machista; que levamos séculos ouvindo dizer que o amor nada tem a ver com o casamento, e que bastava existir um ato de vontade negocial, pelo qual se instituísse o vínculo conjugal. Todas essas afirmações estão equivocadas. Em sentido absoluto são falsas, porque, como vimos, foram os teólogos e canonistas da Baixa Idade Média que descobriram só haver casamento verdadeiro, com maiúscula, onde houvesse um ato de amor pessoal. E esse triunfo cultural, um autêntico monumento intelectual dos pensadores cristãos, não pode ser arrebatado aos canonistas medievais. Foram eles que vincularam os dois conceitos que até esse momento estavam separados: amor e consentimento. Só o consentimento dos esposos cria o casamento.” [14]

Foi também no período medieval que surgiu o ideal de amor, também muito diferente do atual ideal hoje mais difundido. Quanto mais intangível e difícil era o amor, maior o seu valor. Tanto que a forma mais pura do amor era o amor platônico, pois mantinha-se pura a mulher amada.

O ideal do amor concebia também o sacrifício do homem pela mulher amada, daí muitos dos torneios em disputa por mulheres. Não havia maior honra para o homem do que morrer ou sofrer pela mulher amada. E isso não é apenas literatura, mas a vida real de então e, de certa forma, de todos os tempos.

Veja-se, por exemplo, trecho de HUIZINGA sobre o tema:

O cavaleiro e a amada, o herói em nome do amor, são o motivo romântico mais primário e imutável que em toda parte renasce, e sempre renascerá. É a transformação imediata do impulso sensual em uma abnegação ética ou quase ética. Ele nasce diretamente da necessidade do homem de demonstrar a sua coragem para conquistar uma mulher, para correr perigos e ser forte, sofrer e sangrar: a aspiração de todo jovem de dezesseis anos. Expressar e satisfazer pelo ato heroico praticado por amor. Com isso, a morte passa a ser imediatamente uma alternativa para tornar plena a satisfação que, por assim dizer, fica garantida de ambos os lados. […] A libertação da virgem é o motivo romântico mais primordial, sempre renovado. Como é possível que uma explicação de mito tão antiquada veja nele a imagem de um fenômeno natural, enquanto o imediatismo do pensamento pode ser diariamente provado por todos? Na literatura, por causa da repetição exagerada, embora possa ser evitado durante algum tempo, o motivo sempre volta em novas formas, como por exemplo, no romantismo do cowboy dos cinemas. E na concepção amorosa individual fora da literatura, ele sem dúvida nenhuma permanece igualmente forte.[15]

De qualquer modo, o amor não estava desligado de determinada forma de sacrifício.

Assim, foi o cristianismo que atenuou a “brutalidade” do casamento antigo, voltado somente ao interesse público, à procriação, enfim, à alguma utilidade. E, dessa maneira, passou o matrimônio a ser baseado nesses dois elementos constitutivos de sua essência: o amor e procriação (ou abertura à procriação) e a consequente educação da prole.

Claro que essa verdadeira revolução do amor no direito matrimonial demorou séculos para ser realmente implementada, pois isso exigia uma drástica mudança de cultura. Somente no século XIX e XX é que a doutrina cristã do casamento por amor se difunde amplamente até nas classes mais abastadas.

Todavia, vivemos hoje no Ocidente uma paródia dessa verdadeira conquista civilizacional, que está nos levando a um retrocesso, isso porque perdeu-se o sentido correto do amor.

  1. Afeto: precisões terminológicas.

Antes de tudo é preciso compreender o significado do termo “afeto”, pois ele pode designar situações distintas. Como comparar o afeto entre um casal de namorados adolescentes, com o afeto de um casal de esposos? Ou com o afeto da mãe pelo filho? Nitidamente, há diversos significados para o termo.

O psicanalista francês e professor da Universidade de Paris, TONY ANATRELLA, identifica quatro sentidos distintos para o termo afeto[16]: (i) relação de apego; (ii) relação sentimental; (iii) sedução sexual; (iv) relação amorosa.

Em apertada síntese, o primeiro sentido se refere à uma relação na qual há uma necessidade de se depender de outra pessoa, sem um projeto comum de vida, mas antes uma busca por segurança e proteção. “As relações de apego mais não fazem do que perpetuar relações primitivas que não puderam ser elaboradas, nem permitir a autonomia dos sujeitos”.

Já a relação sentimental “se assenta na troca de sentimentos e emoções, sem quaisquer outros projetos na realidade”. Neste tipo de relação há uma idealização do outro, não se aceita o parceiro pelo o que ele é, mas pela representação que se faz dele. Esse tipo de casal dificilmente resiste aos conflitos, vez que enxergam na variação dos sentimentos uma falta de amor. “Os parceiros ficam surpreendidos com o impasse em que se encontram e pensam que amam o outro, quando o único projeto que têm é o de se contemplarem nele. Confundem sentimentos com o amor. Ou seja, aquilo que cega não é o amor, é a paixão sentimental.”

O afeto também pode significar uma sedução sexual, um desejo de se exprimir sexualmente com o outro. O casal formado por esse tipo de afeto é ainda mais instável do que o casal sentimental, sua relação pode ser de apenas um dia, algumas semanas ou meses. Aqui não há um compartilhamento dos projetos de vida, mas somente de uma procura de uma expressão sexual.

Mas é à relação amorosa que todos aspiram. Leia-se na íntegra as lições do renomado psicanalista:

“Com efeito, há uma grande tendência para confundir sentimentos com uma relação amorosa, ou um apego com uma dependência alienante ou uma atracão sexual com uma qualidade relacional que não existe. Em contrapartida, a relação amorosa unifica a vida sentimental e a atracão sexual. […] Inscrever a vida sentimental e sexual na ordem do amor é querer comprometer-se e inscrever-se no tempo.

Ressalta ainda que a palavra amor etimologicamente significa “sem morte”, isto é, amar o outro é querer durar com o outro para sempre, partilhando as alegrias e tristezas e enfrentando as provas da existência. Nessa toada, dizer que “não te amo mais”, afirma o autor, é o mesmo que dizer “nunca te amei”.

Descobrir o sentido do amor é ser capaz de se comprometer”, ressalta.

Dessa maneira, percebe-se que o verdadeiro amor se diferencia dos demais tipos de afeto exatamente pelo elemento do comprometimento, sendo que tal sentido se aplica da mesma maneira para o amor entre pais e filhos, por exemplo.

  1. Matrimônio: a instituição do amor conjugal.

Praticamente todos erros modernos referentes ao casamento tem como origem uma má compreensão do significado do amor, confundindo-o ora com o apego, com a sedução e, mais comumente, com o mero sentimento ou paixão sentimental.

Seja o apego, seja a relação meramente sentimental ou de sedução, tratam-se de matérias puramente privativas das partes envolvidas, enquanto que o amor e o matrimônio são exatamente o contrário disso.

O que importa destacar é a importância do reconhecimento social do matrimônio, o fato de não ser um ato meramente privativo das partes, e a maior prova disso são as festas nupciais, existentes em todas as culturas e os ritos que normalmente acompanham a festa. É na festa que os noivos se casam perante a sociedade, perante a família e os amigos, a interferência do Estado ou da Igreja é acidental e meramente formal e utilitária.

O casamento tem como traço distintivo de outras formas de relacionamento a sua publicidade e formalidade, os cônjuges, quando se casam, querem exatamente expressar publicamente seu comprometimento, elevar tal comprometimento, que antes era limitado ao âmbito emocional e privado. Daí realizarem isso perante seus parentes e a sociedade em que vivem.

Como afirmam as sociólogas e pesquisadoras americanas Maggie GALLANGHER e Linda WAIT:

Os americanos pensam no casamento como uma relação profundamente íntima e pessoal. E, por óbvio, isso é verdade. Mas o casamento, diferentemente de outros relacionamentos pessoais e amorosos tem um aspecto inerentemente público e social. Casamento é o que o casal faz quando quer elevar seu amor do âmbito puramente privado e emocional e fazer dele um ato social, algo visível e reconhecido por todos, dos pais aos funcionários de instituições bancárias.” [17]

E como bem ressalta o psicanalista francês:

Partilhar sentimentos e viver juntos não tem, do ponto de vista social, o mesmo sentido que manifestá-lo numa declaração destinada a inscrever legalmente a relação do casal no tempo e na duração, bem como a colocar os filhos sob a proteção institucional da família e da sociedade.”[18]

Outro aspecto importante do matrimônio é o seu caráter institucional[19], voltado para abarcar o comprometimento amoroso dos cônjuges. O amor, no seu sentido verdadeiro, precisa ser conjugal, isto é, abarcado pela instituição matrimonial, pois ela é o que garante e viabiliza o pleno comprometimento amoroso, a doação recíproca dos cônjuges, a procriação e educação da prole.

A visão institucional se opõe a visão individualista do casamento. Em qualquer instituição, seus membros atuam no interesse comum, não no interesse próprio. E é exatamente isso que as doutrinas ditas “progressistas” tentam atacar, baseando-se no princípio da dignidade da pessoa humana (!?).

Leia-se, por exemplo, trecho escrito por Gustavo TEPEDINO, um dos grandes expoentes “progressistas”:

“O constituinte de 1988, todavia, além dos dispositivos acima enunciados, consagrou, no art. 1§, III, entre os princípios fundamentais da República, que antecedem todo o Texto Maior, a dignidade da pessoa humana, impedindo assim que se pudesse admitir a superposição de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes, mesmo em se tratando de instituições com status constitucional, como é o caso da empresa, da propriedade e da família. Assim sendo, a família, embora tenha ampliado, com a Carta de 1988, o seu prestígio constitucional, deixa de ter valor intrínseco, como instituição capaz de merecer tutela jurídica pelo simples fato de existir, passando a ser valorada de maneira instrumental, tutelada na medida em que – e somente na exata medida em que – se constitua em um núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade dos filhos e de promoção da dignidade dos seus integrantes. Dito diversamente, altera-se o conceito de unidade familiar, antes delineado como aglutinação formal de pais e filhos legítimos baseada no casamento, para um conceito flexível e instrumental, que tem em mira o liame substancial de pelo menos um dos genitores com seus filhos – tendo por origem não apenas o casamento – e inteiramente voltado para a realização espiritual e o desenvolvimento da personalidade de seus membros.”[20]

Nota-se claramente o deslocamento do interesse pelo bem da instituição para o bem de seus membros. Para o autor, a Constituição não deixou espaço ao sacrifício individual e transformou a família e um instrumento da “realização espiritual” de seus membros. Não são mais os indivíduos que devem se sacrificar pela família, mas esta que deve ser sacrificada pelos indivíduos.

Mas como justificar, sob esta ótica, o serviço militar obrigatório, por exemplo? Não é um nítido exemplo de que a Constituição reconhece interesses superiores aos do indivíduo? Colocar o interesse individual acima do interesse do bem comum não seria um verdadeiro regresso à barbárie?

Infelizmente é essa absurda visão que tem movido o direito de família das últimas décadas e embasado as reformas legislativas.

Nossa legislação é clara ao reconhecer na família um sujeito de direitos autônomo de seus membros, como deixa claro o art. 220, §3º da Constituição Federal, por exemplo:

§ 3º – Compete à lei federal: II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.”

E não é outro o sentido do art. 226 da Constituição, que confere especial proteção constitucional à família.

Tem-se que ter em mente a figura da representação.[21] O marido e a mulher, enquanto na direção da sociedade conjugal, devem agir no interesse da família, não nos seus interesses egoísticos, tal como estabelece o art. 1.567 do Código Civil: “A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.”. Da mesma maneira, quando exercem o poder familiar sobre os filhos, devem buscar o melhor interesse destes, não os seus próprios.

Como já dizia sabiamente H. Capitant “il n’y a pas de place pour la notion de droit subjectif dans la réglementation juridique de la famille[22]. Sem dúvida, a administração da sociedade conjugal não pode ser vista como uma direito subjetivo, tal como o direito de propriedade, mas como um dever, ordenado, ainda que mediatamente, à satisfação do interesse da família.

Os próprios deveres conjugais, se bem analisados, não buscam atribuir direitos subjetivos aos cônjuges, mas antes atribuir poderes-deveres a estes, todos voltados aos interesses da família, não dos cônjuges individualmente.

Percebe-se, assim, claramente, que a legislação brasileira (embora deturpada por reformas legislativas recentes) ainda estabelece e protege uma família institucionalizada e que, de forma alguma, o princípio da dignidade da pessoa humana pode ser usado para justificar a introdução de um individualismo exacerbado, promovendo uma privatização do direito de família ao reduzir a tutela do estado somente aos interesses e caprichos individuais, deixando de lado os interesse da família.

  1. Conclusão.

Um bom casamento, se existe, recusa a companhia e os modos de viver do amor [paixão]: ele tenta imitar os da amizade. É uma doce concordância de vida plena de continuidade, de confiança e de um número infinito de úteis e sólidos serviços e obrigações mútuas..” Montaigne

Como vimos, não existe amor sem comprometimento, mas também não existe verdadeiro comprometimento sem uma tutela jurídica que reforce e garanta esse comprometimento, impondo deveres e poderes-deveres às partes, todos voltados ao melhor interesse da família enquanto sujeito de direitos distinto de seus membros, sendo que o melhor interesse da família é também o melhor interesse público, vez que é na família que se formam as futuras gerações – e é por isso que todas as civilizações sempre regularam, de uma forma ou de outra, o casamento.

Por isso, o matrimônio é a instituição do amor conjugal, isto é, o matrimônio exerce uma função enquanto instituição de altíssimo interesse público, qual seja, expandir a população e educar as futuras gerações (função esta presente em todos os tempos e povos civilizados), mas fruto do amor conjugal, que deve ser buscado pelos esposos e que, por sua vez, é o comprometimento para formar um projeto de vida em comum, livremente abraçado pelas partes.

Ou seja, o matrimônio é institucional (caráter público) e amoroso (privado). Os aspectos privados e públicos co-existem numa relação de tensão e de complementaridade. Nem só públicos são os interesses da família, e nem só privados.

E, compreendendo-se o que é o matrimônio, percebe-se claramente que reduzir o matrimônio ao mero sentimento é redefinir o matrimônio, reduzindo-o ao seu aspecto radicalmente privado e individualista. Infelizmente, é isso que tem-se prevalecido na doutrina mais recente e nas últimas reformas legislativas. A introdução do divórcio-direto é o maior exemplo disso, pois rompe-se a segurança jurídica que deve reinar em qualquer relação de longa duração, deixando as partes numa verdadeira relação de sujeição a outra. Ou pior, deixando as partes numa relação de sujeição aos sentimentos da outra…

E, assim, buscando-se uma liberdade, criou-se uma arbitrariedade: a ditadura do afeto.

 

Caio Martins Cabeleira, Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo, com graduação parcial pela Albert Ludwig Universität Freiburg – Alemanha. Doutorando em Direito Civil na Universidade de São Paulo, Diretor Nacional da Associação de Direito de Família e das Sucessões. Advogado.

— Artigo publicado originalmente na RDFAS, v. 1, n. 1, 2014.

NOTAS:

[1] Sobre o tema, utilizaremos como base a recente monografia de STEINWASCHER, que tratou exaustivamente sobre o matrimônio romano, tanto do ponto de vista jurídico quanto cultura. Cf. STEINWASCHER NETO, Helmut, A procriação e o interesse da res publica: uma análise das leis matrimoniais de Augusto, São Paulo: dissertação de mestrado defendida na USP em 2012.

[2] CRUZ, Gulherme Braga e LIMA, Fernando Andrade Pires, Direitos de Família, 3ª ed., Coimbra: Coimbra ed., 1949, pág. 1.

[3] Tradução e citação tirada de STEINWASCHER NETO, Helmut, A procriação e o interesse da res publica: uma análise das leis matrimoniais de Augusto, São Paulo: dissertação de mestrado defendida na USP em 2012.

[4] A procriação e o interesse da res publica: uma análise das leis matrimoniais de Augusto, São Paulo: dissertação de mestrado defendida na USP em 2012.

[5] Studi sulla condizione degli animali non umani nel sistema giuridico romano, Torino, Giappichelli, 2002, pp.153-154. Citado por STEINWASCHER NETO, Helmut, A procriação… veja-se, também, outras citações do mesmo autor, acompanhadas por seus comentários sobre o tema, ipsis literis:

„M.P. Baccari, Persona e famiglia, p.34; O. Robleda, Intorno alla nozione di matrimonio nel diritto romano e nel diritto canonico, in Apollinaris 50 (1977), p.183. P.P. Onida, Studi sulla condizione cit. pp.95-96. Nesta obra de Onida, pp.104-106, o autor estabelece uma interessante analogia entre o trecho de Ulpiano (D.1,1,1,3) e um trecho de Filostrato sobre a “Vida de Apolônio de Tiana” (Philostr. Vita Apoll. 2,14). Apolônio observa o comportamento de trinta elefantes que atravessam o Rio Indo. Depois analisa diversos comportamentos comuns a todos os animais (Apolônio descreve a Damis, seu discípulo, situações análogas com as baleias, as focas, os golfinhos, os peixes, os leões, os leopardos, os tigres, as panteras, as águias, as cegonhas): o auxílio mútuo quando se encontram em situações difíceis (no caso, a travessia do Indo), o modo como eles protegem suas crias, a educação da prole, a procriação. Na opinião de M. Kaser, Ius gentium cit. (nota 12 supra), pp.86-88, estes fenômenos comuns à vida tanto dos homens quanto dos animais (e principalmente, o paralelo realizado entre as relações do macho e da fêmea, a procriação e o matrimônio liberorum procreandorum causa) são na verdade fruto de um instinto inato, um impulso natural, destinado à reprodução da espécie mediante a procriação e a educação dos filhos. A poesia e a filosofia grega deduziram regras de comportamento comuns aos homens e animais, porém falta aos últimos a compreensão “intelectual” destes fenômenos. A idéia de relações jurídicas comuns aos homens e animais e a idéia da existência de “leis naturais” parecem ter se baseado na compreensão das palavras “direito” e “lei” do termo grego νόμος. Ulpiano fundamentou seu pensamento nas fontes gregas e em Cic. de rep. 3,11,19: Pythagoras et Empedocles unam omnium animantium condicionem iuris esse denuntiant.

Caius Musonius Rufus, filósofo estóico do período neroniano (30?–101?), escritor de 700 livros segundo Prisciano, fez várias referências à “virtude própria” das relações sexuais entre os animais, que tem como finalidade a procriação e a manutenção da espécie e não os meros “prazeres”. O filósofo ressalta que nada era mais belo que a união entre o homem e a mulher, nada mais forte do que esta união para constituir uma cidade e que estas uniões agradavam as divindades como Eros e Afrodite. O criador do homem distinguiu dois órgãos reprodutores, um na fêmea e outro no macho e infundiu em ambos um forte e intenso desejo recíproco de viverem em união. Quanto ao ius commune entre homens e animais, a opinião de Musônio Rufo em relação ao aborto é muito significativa. Em suas assertivas éticas ele condena abertamente tal prática, ainda que a família com prole numerosa tivesse poucos recursos econômicos. O filósofo narra a situação de um homem pobre com muitos filhos e sem condições de mantê-los e que questiona como poderá alimentar todos eles. Musônio dá o exemplo dos passarinhos, andorinhas, rouxinóis, cotovias e melros que alimentam suas ninhadas mesmo sendo muito mais frágeis e pobres que qualquer homem.

  1. Laurenti, Musonio, maestro di Epitteto, in ANRW II.36 (1989), p.2141; p.2142, nota 151; M.P. Baccari, Persona e famiglia cit., p.35; P.P. Onida, Studi sulla condizione cit., pp.95-96;151-152 defendem a existência de um ius commune entre homens e animais, pois a união do macho e da fêmea, a procriação, o aleitamento, a alimentação e a educação da prole são, igualmente, relações do ius naturale também presentes nos animais. Sêneca faz referência a este ius commune a todos os seres vivos em Sen., Clem. 1,18,2 ao falar dos escravos que se refugiavam nos templos e junto às estátuas dos imperadores por sofrerem maus tratos de seus donos: Servis ad statuam licet confugere! Cum in servum omnia liceant, est aliquid, quod in hominem licere commune ius animantium vetet. “Mesmo aos escravos é permitido refugiarem-se junto a uma estátua! Embora tudo seja lícito contra os escravos, existe algo que o direito comum aos seres vivos impede utilizar contra um ser humano”. Vejam-se também Gai.1,53; Ulp. 8 de off. procons. D.1,6,2; Ulp. l.s. de off. praef. urb. D.1,12,1,1; Ulp. 1 ad ed. Aedil. Curul. D.21,1,17,12; Ulp. 5 de off. procons. D.47,11,5; Inst. 1,8,2; Coll. 3,3,1-3; 3,3,5-6.

Nas palavras de Ulpiano em D.1,1,1,3, (…) quod natura omnia animalia docuit (…). Segundo R. Laurenti, Musonio cit. pp.2.131; 2141, o termo grego συνεῖναι utilizado por Musônio Rufo em diatribe XIV indica a vontade de viver junto do casal, de um cuidar do outro e de priorizar a procriação e a educação dos filhos.

Em relação à educação, Musônio defendia sua aplicação, tanto para os meninos quanto para as meninas, baseada na ἀπόδειξις. Desde pequena, a criança já deveria aprender a discernir aquilo que é bom daquilo que é mau, o útil do prejudicial, aquilo que é permitido daquilo que é proibido, para que, por meio do costume, tenha seus atos dirigidos pela justiça e pela verdade quando tornar-se adulto. Afirma P. Veyne, L’Empire Romain. Histoire de la vie privée. I. De l’Empire Romain à l’an mil, Paris, Du Seuil, 1985, trad. it. de Maria Garin, La vita privata nell’impero romano, Roma-Bari, Laterza, 1992, pp.11-16, a finalidade da educação era fortalecer o caráter do cidadão desde criança, a transmissão dos hábitos dos antepassados pelo paterfamilias. Era justificável este cuidado com a prole por ela constituir a continuação e a manutenção do nome e da condição social desta família. A educação nos primeiros anos de vida ficava a encargo da mãe; nas famílias nobres e mais ricas, além da mãe, da nutriz (ama-de-leite); e, sob influência grega, de um pedagogo (paedagogium), geralmente um escravo ou liberto, que era encarregado de ensinar a criança a ler e a ter boas maneiras. Aos sete anos a criança passava a ser um infans maior e ingressava na escola primária (ludus litterarius) sob a autoridade do magister. De acordo com A. Calderini, Antichità private, in Vicenzo Ussani e Francesco Arnaldi (org.), Guida allo studio della civiltà romana antica, vol.2, Napoli, Istituto Editoriale del Mezzogiorno, 1954, p.23, o cuidado e a responsabilidade pela educação da criança romana era uma tarefa da família. O menino romano, para uma austera disciplina do seu corpo e do seu caráter, acompanhava seu pai em várias atividades sociais e religiosas. Se nas famílias mais ricas e nobres existia a figura do pedagogo, geralmente era tarefa do pai ensinar a criança a ler, escrever, fazer cálculos, decorar as leis e guardá-las na memória. Vejam-se M.C. Giordani, História de Roma, 16ªed., Petrópolis, Vozes, 2005, pp. 166-177; G. Cipriani – P. Fedeli, Vivere a Roma antica cit. (nota 4 supra), pp.75-76; H. Bornecque – D. Mornet, Rome et les Romains, Paris, Delagrave, s.d., trad. port. de Alceu Dias Lima, Roma e os Romanos – Literatura, História, Antigüidades, São Paulo, EPU, 1977, pp.155-157.”

Para maior aprofundamento, cf. a obra completa de STEINWASCHER.

[6] D. 2,19.2 – citado e traduzido por STEINWASCHER, Helmut, A procriação e o interesse da res publica: uma análise das leis matrimoniais de Augusto, São Paulo: dissertação de mestrado defendida na USP em 2012.

[7] CARRERAS, Joan, Casamento:sexo, festa e direito. Loyola: São Paulo, 2004, pág. 20 e 21

[8] CARRERAS, Joan, Casamento:sexo, festa e direito… pág. 27 e 28.

[9] CARRERAS, Joan, Casamento:sexo, festa e direito… pág. 35.

[10] Conforme E.C.S. Marchi, Matrimônio moderno e matrimônio clássico – divórcio e “Soneto de Fidelidade”, in Direito de Família no Novo Milênio, Estudos em homenagem ao Professor Álvaro Villaça Azevedo, São Paulo, Atlas, 2010, pág.58-59: “(…) a palavra affectio, ao invés de significar ‘afeição’, corresponderia mais propriamente, em comparação com as atuais línguas neolatinas, como o português, a ‘afecção’, vocábulo hoje a indicar ‘estado de enfermidade’ ou ‘processo constante de uma doença’, vale dizer, uma situação que perdura

[11] No direito canônico continua o entendimento de que o casamento rato, mas não consumado, pode ser dissolvido pela Igreja. Cf. Cân. 1142: „O matrimónio não consumado entre baptizados ou entre uma parte baptizada e outra não baptizada pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as partes ou só de uma, mesmo contra a vontade da outra.

[12] Gies, Frances e Gies, Joseph, Marriage and Family in the Middle Ages, Harper & Row: New York, 1989, pág. 138 – tradução livre.

[13] Veja, por exemplo, o caso do. Cf. NOONAN, John T., Marriage in the Middle Ages: Power to Choose, Viator v. 4, 1973, pág. 419-420.

[14] CARRERAS, Joan, cit., pág. 41 e 42.

[15] HUIZINGA, Johann, O Outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos, São Paulo: Cosac Naify, 2010, pág. 116-117. Obra fundamental sobre o tema do amor na sociedade da Alta Idade Média e início da era moderna.

[16] Casal Hoje e Confusões Afectivas e Ideológicas, in Lexico da Família: Termos ambíguos e controversos sobre família, vida e aspectos éticos, Príncipia: Caiscais, 2010.

[17] The Case for Marriage: Why married people are happier, healthier, and better off financially, Broadway books: New York, 2000, pág. 34. e-book.

[18] ANATRELLA, Tony, Casal Hoje e Confusões Afectivas e Ideológicas, in Lexico da Família: Termos ambíguos e controversos sobre família, vida e aspectos éticos, Príncipia: Caiscais, 2010, pág. 83.

[19] Sobre o institucionalismo e a família, cf. HAURIOU, Maurice, Aux sources du droit : le pouvoir, l’ordre et la liberté, Centre de philosophie politique et juridique: Caen, 1986. Edição original foi editada por Bloud y Gay, Paris, 1933.

[20] TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina Civil-Constitucional das Relações Familiares. Disponível em http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/publicacoes/diversos/tepedino_3.html.

[21] Sobre a representação, a personoficação e o poder-dever no direito de família, cf. especialmente GAILLARD, Emmanuel, Le pouvoir en droit privé, Econômica: Paris, 1985.

[22] Sur l’abus des droits, in R.T.D.C., 1928, p. 373.

Direito e Amor

Direito | 04/05/2015 | | IFE CAMPINAS

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Curioso notar que o direito dispõe sobre muitas normas em diversas dimensões da vida humana, mas nada trata sobre o amor humano. Alguém poderia arguir que o amor é uma realidade própria da psicologia e não do direito, porque, afinal, o amor não goza de uma juridicidade natural e, assim, não tem condições de lhe ser atribuído um status de bem jurídico. Enfim, direito e amor seriam como água e azeite.

O revogado artigo 1.338 do Código Civil de 1916 era o único dispositivo legal em que a expressão “amor” foi empregada pelo legislador: “O gestor responde pelo caso fortuito, quando fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesse deste por amor dos seus”.

O ordenamento civil em vigor não manteve a palavra. Inclusive, consegue a rara façanha de tratar dos deveres do casamento, sem mencionar expressamente a expressão “amor”. Nesse ponto, será que existe uma relação entre o direito e o amor? E, caso positivo, no âmbito da relação conjugal, qual regra deveria iluminar as relações entre os casados: uma normatividade perene ou a simples espontaneidade do amor?

É um fato notório que, por trás de algumas posturas atuais em relação ao matrimônio, há uma clara, porém, aparente contraposição entre aquilo que se denomina como “exigências do amor” e o que é tido como disposição estável para uma fecunda conjugalidade, ou seja, uma certa lei natural. É uma tendência que defende a autenticidade como um dos pilares da atuação da mulher e do homem no seio de uma relação conjugal.

A dita autenticidade estaria justamente na espontaneidade do amor, num livre fluir da relação amorosa, marcada por uma invencível fragilidade intrínseca, algo bem retratado na famosa obra literária de Milan Kundera, “A insustentável leveza do ser” (1984), frente à inautenticidade representada por aquela lei normativa natural, reduzida a um produto cultural de uma mentalidade ultrapassada e alienante. Bauman, nesta virada de século, sintetizou tudo isso com a expressão “amor líquido”.

Esta autenticidade parte do pressuposto de que o homem é considerado um ser autêntico quando segue a inclinação espontânea que radica em si, porque toda inclinação é natural, ou seja, é conforme ao seu ser. Negam, sob outro ângulo, que a pessoa possa ter uma desordem em suas inclinações naturais, como a concupiscência.

A desordem não teria espaço, porque, inspirado na concepção rousseauniana de natureza humana, o ser do homem não portaria nem o bem e nem o mal: há simplesmente o seu ser, que deve ser assumido tal como é ontologicamente, em virtude de sua bondade inerente.

Eis a chamada autenticidade: uma tese pertinazmente proclamada e vivida por muitos, os quais, certamente, não acreditam que a antropologia kantiana aproxima-se muito mais da realidade que nos cerca: o homem é naturalmente capaz de agir mal. E sem necessidade de sociedade, de qualquer estrutura ou mesmo instituição, as quais fazem apenas potencializar o mal praticado individualmente.

Sem qualquer possibilidade de desordem nas inclinações naturais, a espontaneidade do amor surge, assim, como a regra de ouro da ação humana. O mal está em agir sem amor. Migrado este critério ao amor conjugal, infere-se, sem muito esforço intelectual, que esta regra deva pautar as relações entre os cônjuges, já que, onde há amor espontâneo, não pode haver qualquer tipo de desordem.

Mas aí reside o engano antropológico. Há um só amor, esse primeiro movimento da vontade que se orienta e adere intencionalmente ao objeto amado. É o primeiro movimento da inclinação natural do homem ao bem. Contudo, o homem tem, dentro de si, um fator de desordem em sua tendência inata ao bem, de maneira que, apesar daquela lei natural, goza também de uma inclinação para o mal, a chamada concupiscência. Uma vez domado por seus efeitos, o amor fica cego. E se o amor é cego, nunca acerta o alvo, como já dizia Shakespeare.

Os efeitos desta ética da autenticidade, entendida como um agir social segundo a inclinação espontânea que radica em cada um de nós (afinal, toda inclinação é natural, ou seja, é conforme ao nosso ser), acabam por produzir uma relação dialética entre as demandas do amor conjugal e sua lei natural, positivada nos deveres legais do matrimônio (artigos 1.565 a 1.568 do Código Civil), como se os imperativos do amor fossem dificilmente compatíveis com sua lei natural.

A interrogação é inevitável: pode haver tal contraposição entre o amor conjugal e a lei natural (positivada ou não) que origina o matrimônio e regula a vida conjugal? Dentro do âmbito mais amplo das relações entre o amor e a lei, se o amor é a fonte criadora de toda decisão acerca de uma ação humana, não seria o mesmo amor, proclamado em prosa e verso pela literatura de todos os tempos e de todas as épocas, a mais elevada norma do viver do homem, o princípio supremo de ordenação social, ao invés da lei?

Recordo-me de uma frase de Agostinho – ama et fac quod vis (ama e faze o que quiseres) – que, em tempos idos, quando os intelectuais eram mais cultos, gozava de prestígio, como citação clássica, entre eles. O “ama e faze o que quiseres” não equivaleria a um desprendimento de toda lei imposta, de toda condicionante normativa derivada do exterior do indivíduo e, muitas vezes, posta pelo direito?

Se mesmo qualquer matrimônio religioso deposita no amor humano sua lei fundamental de valor moral, não seria o amor fonte originária de ordem? Por outro ângulo, existiriam razões que permitem afirmar que tal contraposição seria aparente e que o amor, por ser a regra mais elevada da ação humana, poderia ser exercido dentro das balizas daquela lei natural?

Certa vez, li uma afirmação do filósofo alemão Josef Pieper, em sua obra Amor, que dá bem o tom da natureza do amor que aqui se propõe: “O amor e somente o amor é o que tem de estar em ordem para que todo o homem o esteja e seja bom”. Assim, segundo o amor esteja ou não ordenado, a vida de um homem será reta ou desordenada.

A ordem aqui mencionada não decorre de uma fonte normativa exterior, como as convenções sociais ou os costumes de um povo, mas daquela ordem intrínseca do amor que lhe é inerente. Filosoficamente, a ordem como transcendental do ser: uma roda é tanto mais uma roda, quanto mais perfeito é o círculo que a forma.

Se deixa de ser uma circunferência e passa a ser uma parábola, deixa de ser roda, ou seja, perde, em parte, seu ser próprio de roda. Pode até servir para outro fim, mas não atenderia sua finalidade natural, a de girar como uma roda. Se, então, sua estrutura ficasse mais desordenada e se transformasse num quadrado ou num triângulo, deixaria ser roda por completo.

Quando um músculo, ao invés de se mover segundo sua lei biológica, move-se desordenadamente, dá causa a um estiramento, ou seja, a uma alteração naquilo que lhe é normal, segundo sua ordem em sentido filosófico, a mesma ordem a que está sujeito o amor.

No âmbito desta ordem, o amor aperfeiçoa-se e cresce quanto mais o ser desenvolve-se normalmente e, ao contrário, o amor diminui sua intensidade na medida em que se atrofia a capacidade de ser. Basta comparar o amor de uma mãe pelo filho com o amor de um avaro pelo dinheiro: as diferenças são tão gritantes que é melhor não comparar…

Neste sentido, o amor é tanto mais amor quanto mais ordenado for e, por consequência, o amor desordenado é a imperfeição ou degradação do mesmo amor. Uma caricatura do amor. Desta sorte, compreende-se a outra famosa máxima de Agostinho: “Todos vivem de seu amor, faça-se o bem ou faça-se o mal”.

O amor nasce ordenado ou desordenado, respectivamente, conforme uma ordem ou uma desordem fundamental da pessoa. E é inevitável que assim seja, porque o amor é um ato que depende, por ser ato, da potência, sempre canalizada pela vontade. A ordem fundamental da vontade irá definir a ordem do amor que daí surge.

Não é porque existe amor que uma dada conduta será necessariamente reta. Excluída a ideia de ordem, o amor deteriora-se e, por conseguinte, a conduta humana daí derivada. A espontaneidade do amor, entendida como um agir social segundo a inclinação espontânea que radica em cada um de nós, não é fonte primária da ordem, já que o amor é uma realidade medida por critério distinto. Só quando o amor é ordenado, então é a norma regente do agir humano e o “ama e faze o que quiseres” de Agostinho ganha sentido, alcance e resume os preceitos daquela ordem natural.

E qual é a ordem do amor? Mais uma vez, recorremos a uma clássica citação de Agostinho: virtus ordo est amoris (a virtude é a ordem do amor). Invertendo a ordem da frase sem alterar seu sentido, desponta a resposta – a ordem do amor é a virtude. E quais virtudes? As virtudes morais, que representam fundamentalmente a justaposição da vontade aos ditames da reta razão. Por consequência, a ordem do amor é a lei natural. E os preceitos da lei natural representam as concreções da reta dinâmica desse mesmo amor.

Resta delimitar a ordem do amor conjugal. Evidente que esta ordem é representada pelas mesmas virtudes relativas ao amor propriamente dito, entretanto, impulsionado também por uma virtude específica que ordena o amor matrimonial, em virtude de suas peculiaridades: a virtude da castidade, aquele autodomínio que torna a pessoa capaz de se dar ao outro.

Esta virtude ilumina o amor conjugal, objetivamente, por intermédio dos três bens do matrimônio natural, a saber, a abertura à procriação, a fidelidade e a permanência. Tais bens não se reduzem a uma mera limitação ou repressão ao amor humano, como defendem algumas escolas antropológicas. Muito pelo contrário, são efeitos concretos deste amor e, na medida em que são vividos ordenadamente, superam e excedem em muito o mero exercício estóico de todas as prescrições legais sobre o assunto, mormente no que toca aos deveres.

As relações entre os homens, inclusive as de natureza conjugal, estão assentadas numa série de relações ontológicas objetivas, que portam uma ordem que lhes é inerente. Por exemplo, a relação entre pais e filhos tem nítida coloração ontológica, derivada da procriação, cuja ordem natural obriga os genitores ao dever de criação e educação da prole e esta, por sua vez, ao dever de respeito e obediência aos pais.

É o fato da procriação que dá causa a um rol de direitos e deveres recíprocos e não o amor humano. Este dado empírico não rompe com tais exigências ou as modifica substancialmente, mas, sem que estas se alterem, o amor humano ordenado entende que estes imperativos derivam da dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual as assume e aperfeiçoa.

Esta ordem objetiva funda-se no direito natural, porquanto se revela em deveres de justiça, cuja normatividade é veiculada pela lei natural, prisma ético que definirá se o amor é ordenado ou desordenado, inclusive aquele decorrente do matrimônio, lastreado no interior de uma relação natural e que responde a um anseio da pessoa humana.

Este anseio é guiado em função de umas necessidades e finalidades da espécie, motivo pelo qual entre o homem e a mulher exista uma mútua atração natural, que poderá crescer e ganhar uma nova dimensão: a do amor conjugal que, se for ordenado, conduz o matrimônio à plenitude e, se for desordenado, impede que esta perfeição seja alcançada. Com efeito, a lei natural é a ordem do amor conjugal e, assim, direito e amor, amor e direito, uma vez entrelaçados, demonstram a fecundidade e a transcendência da resultante daí decorrente.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras 

Homossexuais: direito ao matrimônio?*

Direito | 09/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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*Monografia premiada – magna cum laude – no III Prêmio Nacional de Monografias Jurídicas Desembargador Manoel Thomaz Carvalhal, patrocinado pela Associação Paulista de Magistrados, pela banca composta pelos professores Doutores Álvaro Villaça Azevedo, André Ramos Tavares e Paulo Hamilton Siqueira Junior e realizada no ano de 2012. Posteriormente, a monografia compôs um capítulo da obra internacional coletiva “Direito e Dignidade da Família” (ISBN 9788563182302), publicada pela editora Almedina no Brasil e em Portugal no ano de 2013 (pp.113-139).

“O efeito das más leis é tal que outras ainda piores são

necessárias para sustar os infortúnios das primeiras”.

 Montesquieu (Espírito das Leis)

 INTRODUÇÃO

Num lapso temporal exíguo, os grupos homossexuais resolveram conferir uma tônica crescente em suas aspirações. A intensificação, bem orquestrada desde 1970, a partir das publicações do documento Selling homosexuality to America[1] e, em dezembro de 1984, do artigo Waging peace: a gay battle plan to persuade straight America[2], visam difundir a imagem do homossexual como vítima contínua de circunstâncias discriminatórias, como no período nazista, quando gays e lésbicas utilizavam o conhecido uniforme com um triângulo rosa nos campos de concentração.

Hoje, tais pessoas ainda são alvo de abusos intoleráveis por parte de alguns e, não obstante, não é menos certo que os setores intelectualizados do movimento gay têm instrumentalizado ideologicamente tais excessos para, em nome do princípio da dignidade da pessoa humana, obter, pela força, a aceitação geral da normalidade[3] da atividade homossexual e, sem prejuízo, a modificação de leis que, na realidade, não guardam relação com aquele princípio.

Depois da ruptura com a psicanálise, após a Segunda Guerra Mundial, neste exercício de autojustificação, os “direitos da homossexualidade” buscam, cada vez mais, um imperativo de legitimação civil, como no caso da equiparação de suas uniões de fato com o matrimônio, da legislação relativa à adoção de filhos ou da questão da homofobia, que, na verdade, resume-se numa heterofobia[4].

Partindo das propostas de “pactos” ou de “contratos”, já acomodadas em boa parte das legislações civis, sobretudo no âmbito europeu, hoje, clama-se pela institucionalização de um “matrimônio homossexual”, para o qual seriam concedidos os mesmos direitos do “matrimônio tradicional”. Veremos que a ideia de “matrimônio homossexual” é uma mistificação que contradiz a própria essência do matrimônio, ao menos sob o pálio da matriz epistemológica doravante empregada, fundada na Ética Natural, no Realismo Jurídico, na Metafísica e na Antropologia Filosófica[5], tomadas aqui como as bases morais pré-políticas de um Estado que respeite a verdade do ser do matrimônio, uma instituição tão antiga quanto a própria humanidade, cuja gênese se perde imemorialmente.

Num período em que a proteção da instituição familiar deveria estar na ordem do dia do legislador, pressionado pelo inverno demográfico nos países ricos, pela imigração crescente (sobretudo nos eixos Oriente Médio/África – Europa e México – EUA), pela galopante criminalidade dos jovens nascidos de famílias separadas e de “famílias” reconstruídas, a proposta em foco me recorda a advertência de Hamlet a Horácio, seu fiel amigo, a respeito do assassinato de seu pai, protagonizado por seu tio Cláudio, no Castelo de Elsinore: “O mundo está fora dos eixos”.

 

REALISMO JURÍDICO E A DINÂMICA DO AMOR

Por proêmio, para uma salutar compreensão do ensaio proposto, é curial traçar algumas linhas propedêuticas sobre as relações entre o Direito e o amor[6]. Qual é a regra que deve iluminar as relações entre os casados: a lei natural ou a espontaneidade do amor? O tema é muito discutido no Direito, na Psicologia e por pessoas de fora do mundo acadêmico (como talkshows noturnos, jornais, artigos de revistas femininas/masculinas, novela, teatro), donde decorre a atualidade deste ensaio.

É um fato notório que, por trás de algumas posturas atuais em relação ao matrimônio, há uma clara, porém, aparente contraposição entre aquilo que se denomina como exigências do amor e o que, tradicionalmente, é chamado de realismo jurídico. São tendências que defendem a autenticidade como um dos pilares da atuação do homem, inclusive numa relação matrimonial.

A autenticidade estaria na espontaneidade do amor, num livre fluir da relação amorosa, marcada por uma invencível fragilidade intrínseca, algo bem retratado na famosa obra literária de Milan Kundera, “A insustentável leveza do ser” (1984), frente à inautenticidade representada pela lei, sobretudo quando vista sob o prisma do realismo jurídico, reduzida a um produto cultural de uma mentalidade ultrapassada e alienante.

Estas tendências partem do pressuposto de que o homem é considerado um ser autêntico quando segue a inclinação espontânea que radica em si, porque toda inclinação é natural, ou seja, é conforme ao seu ser. Negam, sob outro ângulo, que a pessoa possa ter uma desordem em suas inclinações naturais, como a concupiscência. A desordem não teria espaço, porque, inspirado na concepção rousseauniana de natureza humana, o ser do homem não portaria nem o bem e nem o mal: há simplesmente o seu ser, que deve ser assumido tal como é ontologicamente, em virtude de sua bondade inerente.

Eis a chamada autenticidade: uma tese pertinazmente proclamada e vivida por muitos, os quais, certamente, não acreditam que a antropologia kantiana aproxima-se muito mais da realidade posta acerca da natureza humana, dado que o homem é naturalmente capaz de agir bem, mas, também, de fazer o mal.

Superada a questão a respeito da possibilidade de desordem nas inclinações naturais, a espontaneidade do amor surge como a regra de ouro da ação humana. O mal está em agir sem amor. Migrado este critério ao amor conjugal, infere-se, sem muito esforço intelectual, que esta regra deva pautar as relações entre os cônjuges, já que, onde há amor espontâneo, não pode haver desordem.

Os efeitos desta epistemologia do agir humano ou desta “ética da autenticidade” acabam por produzir uma relação dialética entre as demandas do amor conjugal e a lei natural, positivada nos deveres legais do matrimônio (artigos 1.565 a 1.568 do Código Civil), como se os imperativos do amor fossem dificilmente compatíveis com a lei natural defendida pelo realismo jurídico. A interrogação é inevitável: pode haver tal contraposição entre o amor conjugal e a lei natural (positivada ou não) que origina o matrimônio e regula a vida conjugal?

Dentro do âmbito mais amplo das relações entre o amor e a lei, se o amor é a fonte criadora de toda decisão acerca de uma ação humana, não seria o mesmo amor, proclamado em prosa e verso pela literatura de todos os tempos e de todas as épocas, a mais elevada norma do viver do homem, o princípio supremo de ordenação social, ao invés da lei?

Recordo-me de uma frase de Agostinho – ama et fac quod vis (ama e faze o que quiseres) – que, em tempos idos, quando os intelectuais eram mais cultos, gozava de prestígio, como citação clássica, entre eles. O “ama e faze o que quiseres” não equivaleria a um desprendimento de toda lei imposta, de toda condicionante normativa derivada do exterior do indivíduo? Se mesmo o matrimônio religioso deposita no amor humano sua lei fundamental de valor moral, não seria o amor fonte originária de ordem? Por outro ângulo, existiriam razões que permitem afirmar que tal contraposição seria aparente e que o amor, por ser a regra mais elevada da ação humana, poderia ser exercido fora das balizas da lei natural?

Uma afirmação de Josef Pieper[7], em sua obra “O Amor”, dá bem o tom da natureza do amor que aqui se propõe:“ O amor e somente o amor é o que tem de estar em ordem para que todo o homem o esteja e seja bom”. Assim, segundo o amor esteja ou não ordenado, a vida de um homem será reta ou desordenada.

A ordem aqui mencionada não decorre de uma fonte normativa exterior, como as convenções sociais ou os costumes de um povo, mas daquela ordem intrínseca do amor que é inerente a ele próprio. Filosoficamente, a ordem como transcendental do ser. Explica-se.

Uma roda é tanto mais uma roda quanto mais perfeito é o círculo que a forma. Se deixa de ser uma circunferência e passa a ser uma parábola, deixa de ser roda, ou seja, perde, em parte, seu ser próprio de roda. Pode até servir para outro fim, mas não atenderia sua finalidade natural, a de girar como uma roda. Se, então, sua estrutura ficasse mais desordenada e se transformasse num quadrado ou num triângulo, deixaria ser roda por completo.

Quando um músculo, ao invés de se mover segundo sua ordem natural, move-se desordenadamente, dá causa a um estiramento, ou seja, a uma alteração naquilo que lhe é normal, segundo sua ordem em sentido filosófico, a mesma ordem a que está sujeito o amor.

No âmbito desta ordem, o amor se aperfeiçoa e cresce quanto mais o ser desenvolve-se normalmente e, ao contrário, diminui sua intensidade na medida em que se atrofia a capacidade do ser. Neste sentido, o amor é tanto mais amor quanto mais ordenado for e, por corolário, o amor desordenado é a imperfeição ou degradação do mesmo amor. Uma caricatura do amor. Desta sorte, compreende-se a famosa máxima de Agostinho: “Todos vivem de seu amor, façam o bem ou façam o mal”.

Há um só amor, esse primeiro movimento da vontade que se orienta e adere intencionalmente ao objeto amado. É o primeiro movimento da inclinação natural do homem ao bem. Contudo, o homem tem, dentro de si, um fator de desordem em sua tendência inata ao bem, de maneira que, apesar da lei natural, goza também de uma inclinação para o mal (a concupiscência).

O amor nasce ordenado ou desordenado conforme uma ordem ou uma desordem fundamental da pessoa, individualmente considerada. E é inevitável que assim seja, porque o amor é um ato que depende, por ser ato, da potência, canalizada pela vontade. A ordem fundamental da vontade irá definir a ordem do amor que daí surge.

A inferência é clara. Não é porque existe amor, a conduta será necessariamente reta. Excluída a ideia de ordem, o amor deteriora-se e, por conseguinte, a conduta humana daí derivada. A espontaneidade do amor, dentro deste raciocínio, não é fonte primária da ordem, já que o amor é uma realidade medida por critério distinto. Só quando o amor é ordenado, então é a norma regente do agir humano e o “ama e faze o que quiseres” ganha sentido, proporção e alcance compreensivo.

E qual é a ordem do amor? Mais uma vez, recorremos a uma clássica citação de Agostinho: Virtus ordo est amoris (A virtude é a ordem do amor). Invertendo a ordem da frase sem alterar seu sentido, desponta a resposta – a ordem do amor é a virtude. E quais virtudes? As virtudes morais, que representam fundamentalmente a justaposição da vontade aos ditames da reta razão, a adequação do agir volitivo à lei natural. Por consequência, a ordem do amor é a lei natural. E os preceitos da lei natural representam as concreções da reta dinâmica do amor.

Superada esta longa, mas necessária digressão a respeito do amor e de sua ordem, resta delimitar a ordem do amor conjugal. Evidente que esta ordem é representada pelas mesmas virtudes relativas ao amor propriamente dito, entretanto, impulsionado também por uma virtude específica que ordena o amor matrimonial, em virtude de suas peculiaridades: a virtude da castidade, aquele autodomínio que torna a pessoa capaz de se dar ao outro.

Esta virtude ilumina o amor conjugal, objetivamente, por intermédio dos três bens do matrimônio, a saber, a abertura à procriação, a fidelidade e a perenidade temporal. Tais bens não se reduzem a uma mera limitação ou repressão ao amor humano. Muito pelo contrário, são efeitos concretos deste amor e, na medida em que são vividos ordenadamente, superam e excedem em muito o mero exercício estóico de todas as prescrições legais sobre o assunto, mormente no que toca aos deveres familiares[8].

As relações entre os homens, inclusive as de natureza conjugal, estão assentadas numa série de relações ontológicas objetivas, que portam uma ordem que lhes é inerente. Por exemplo, a relação entre pais e filhos tem nítida coloração ontológica, derivada da procriação, cuja ordem natural obriga os genitores ao dever de criação e educação da prole e esta, por sua vez, ao dever de respeito e obediência aos pais.

É o fato da procriação que dá causa a um rol de direitos e deveres recíprocos e não o amor humano. Este dado empírico não rompe com tais exigências ou as modifica substancialmente, mas, sem que estas se alterem, o amor humano ordenado entende que estes imperativos derivam da dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual as assume e aperfeiçoa.

Esta ordem objetiva funda-se no realismo jurídico, porquanto se revela em deveres de justiça, cuja normatividade é veiculada pela lei natural, prisma ético que definirá se o amor é ordenado ou desordenado, inclusive aquele decorrente do matrimônio, lastreado no interior de uma relação natural e que responde a um anseio da pessoa humana. Este anseio é guiado em função de umas necessidades e finalidades da espécie, motivo pelo qual entre o homem e a mulher exista uma mútua atração natural, que poderá crescer e ganhar uma nova dimensão: a do amor conjugal que, se for ordenado, conduz o matrimônio à plenitude e, se for desordenado, impede que esta perfeição seja alcançada. Com efeito, a lei natural é a ordem do amor conjugal.

 

CONCEITO DE MATRIMÔNIO

Estabelecido o liame entre a lei e o amor conjugal, é igualmente importante se buscar a definição de matrimônio. O conceito antropológico[9] de matrimônio, da maneira como sempre inspirou a legislação dos países da tradição romano-germânica ou do sistema da common law, a saber, um pacto nupcial, pelo qual o homem e a mulher estabelecem uma comunhão plena de vida, ordenado à procriação e educação da prole, continua o mesmo, ainda que o legislador, ultimamente, tenha tentado inovar no assunto. Pensamos que em vão.

O matrimônio é uma instituição comum a todas as culturas de todos os tempos e lugares, não só coexistindo com outras fórmulas, como a poligamia ou a poliandria, mas, sobretudo, constituindo o resultado final da destilação crítica destas fórmulas e ensaios. Trata-se de uma realidade primordialmente vital, anterior à própria organização social, ao Estado e mesmo à qualquer entidade religiosa institucionalmente estabelecida. Não deriva deles e os supera. Logo, o direito deve moldar-se à natureza do matrimônio e não ser manipulado ao bel-prazer do legislador.

É decisivo entender uma consequência do fato de o matrimônio ser, antes de tudo, uma realidade natural: sua essência e sua estrutura básica não são inventadas pelo legislador, mas derivam da própria natureza[10] do ser humano, da distinção dos seres psicológicos (homem e mulher), da complementação recíproca sexual e das exigências inatas de sua condição e dignidade. Com efeito, o matrimônio é fincado na diversidade[11] e na complementaridade dos sexos.

A procriação humana dá-se entre pessoas de sexos diferentes, que contribuem com uma parcela daquilo que será o material genético do novo ser humano. A própria diferenciação sexual tem a sua razão primária e mais radical na procriação, apesar de sua manifestação não se resumir neste espectro.  As estruturas física e psíquica das pessoas estão influenciadas pelo respectivo sexo, surgindo, assim, várias diferenças importantes entre o homem e a mulher. Tais diferenças não se limitam às de caráter biológico, já que a condição de homem ou mulher pertence tanto à biologia, quanto ao espírito, à cultura e à vida social. As diversidades morfológica e anatômica levam consigo diferentes traços psicológicos, afetivos e cognoscitivos.

Desta maneira, a complementariedade de cada um em relação ao outro não se refere somente à união para a preservação da espécie, mas abrange também a seara anímica, com atributos espirituais próprios de cada um dos sexos. Caracteriologicamente, o ser masculino tende para o universal (ou abstrato), tem uma inteligência mais teórica, sofre uma maior influência do sentido comum, prepondera a racionalidade (lógica) com a captação mais discursiva da realidade, maior controle sobre os sentimentos, menor capacidade para o sofrimento, maior grau de calculismo e inconstância e preocupação voltada para o macro.

Por outro lado, o ser feminino tem uma tendência para o singular (ou concreto), possui uma inteligência mais prática, é mais influenciado por uma riqueza de imaginação e pela memória, prepondera a emotividade (ou afetividade) com uma captação mais intuitiva da realidade, com menor controle sobre os sentimentos e maior capacidade para a dor, atua com maior generosidade e fidelidade e seu foco é voltado para os detalhes e trabalhos mais finos ou que requeiram coordenação de recursos humanos.

Por conseguinte, infere-se que, além das características comuns a todos os indivíduos da espécie humana, a diferenciação sexual representa não apenas um dado orgânico de conjugação para a preservação da espécie, mas fator de complementação do ser humano em sua dimensão anímica, cujas características próprias, de cada sexo, devem ser compreendidas para sua melhor concatenação.

Ignorar tal diversidade ou querer forçar que um sexo imite o outro de maneira artificial, além de um verdadeiro embuste intelectual, é uma violência que traz desequilíbrio à pessoa e, em última análise, à sociedade. Evidentemente, o reconhecimento destes distintivos naturais não traduz uma superioridade sexual deste ou daquele sexo. A igual dignidade de todos os seres humanos, inclusive daqueles com tendência homossexual, deriva do fato deles serem pessoas, isto é, seres dotados de racionalidade e vontade livre.

A personalidade é muito anterior ao sexo e, por isso, há uma mesma dignidade entre homem e mulher no âmbito conjugal. Não foi à toa que o legislador estabeleceu a igualdade de direitos e deveres dos cônjuges como fundamento da comunhão de vida decorrente do matrimônio (artigo 1.511 do Código Civil).

 

QUESTÃO SEMÂNTICA

O conceito de matrimônio, da forma acima definida, sempre foi muito evidente historicamente. Mas o legislador ou o ativismo judicial, ao que parece, na confusão teórica sobre o tema, no primeiro caso, ou, pela omissão legislativa, no segundo, criaram um verdadeiro mosaico de definições do assunto que, hoje, tal conceito adquiriu uma natureza ambígua e polissêmica, estranha à sua natureza ou mesmo ao seu desenho historicamente consolidado[12]. Qual a causa desse fenômeno?

Talvez seja a tentativa de esvaziamento de sentido do conceito de matrimônio. Seria interessante que o termo em foco fosse incapaz de significar, por si só, algo em particular e, logo, deveria vir seguido de alguma qualidade. Contudo, isso se dá somente quando uma gama de conteúdos contraditórios é conferida a uma mesma definição, que acaba por não significar nenhuma deles. Aqui está uma saída semântica que justificaria a supressão de expressões como “casamento homossexual”.

O conceito de família também trilhou por pantanoso caminho. Hoje, utiliza-se a expressão “Direito das Famílias”, ao invés do “Direito de Família”. Menciona-se a existência de família “monoparental”, “família reconstituída”, família “substituta”, família “afetiva”, família “multiparental” entre outros exemplos. Todas essas novas versões de família são, a nosso ver, no fundo, fatores que indicam um crescente fenômeno de “redução privatizante” do ente familiar”[13].

O uso coloquial de tais denominações as torna equivalentes, o que obriga o Direito a restaurar o conceito de família natural[14], unívoco e com um significado muito preciso. Pejorativamente, a parte discordante da doutrina do tema substituiu o termo “natural” por “tradicional”, ou seja, a família natural passou a ser vista como uma família arcaica e sem validade social. Em suma, uma peça de museu de história natural.

Parece que os “modelos” de matrimônio olham para os “modelos” de família como o que realmente são: um prolongamento natural e, por conseguinte, aqueles incorporam a definição dada a estes. Assim, com o intuito de evitar os efeitos provenientes do plágio da linguagem, seria de bom tom que não se usasse, na comunicação escrita e oral, alguns termos que traem o natural significado do matrimônio (como o dito “matrimônio homossexual”), reservando-se este apenas para a conceituação daquela situação de fato que coincide com sua real natureza. A união entre pessoas do mesmo sexo poderia ser definida em outros termos como, por exemplo, “parceria homossexual”[15].

 

FUNDAMENTO E SENTIDO DO DIREITO DE FAMÍLIA

Hoje, ante o pluralismo de modelos familiares que brotam na sociedade, propaga-se a ideia de que o Direito não deveria discriminar este em favor daquele, mas tratar a todos à luz do princípio da igualdade, sejam matrimônios ou uniões estáveis, heterossexuais ou homossexuais, no jargão politicamente correto.

É possível que o Direito aja com tal neutralidade, que me parece um tanto ilusória, como se os aludidos modelos tivessem realizado um pacto de não-agressão mútua? As funções da família são favorecidas com esta postura, que desencadeia um novo marco legislativo nesta matéria?

As respostas jurídicas aos novos tipos familiares partem do pressuposto de certa neutralidade do Direito de Família. Como se o Direito se resumisse exclusivamente a chancelar legalmente situações jurídicas de fato, à semelhança de um notário que registra, à margem do assento de nascimento de uma pessoa, todas as alterações de seu estado civil ao longo da vida (emancipação, casamento, separação, divórcio).

A abordagem, que rechaça um único modelo familiar e adota uma multiplicidade de tipos que são a resultante das diversas concepções existentes sobre a sexualidade e as relações afetivas e de convivência, coloca todas as formas no mesmo plano de equivalência social, o que parece torná-las juridicamente equivalentes, logo, sujeitando-as a um regime de direitos e deveres semelhante, quando não idêntico. Qualquer proposição contrária resultaria em discriminação nesta ótica.

O fruto colhido desta nova postura legislativa tem sido uma modificação do Direito de Família em suas linhas mestras. A falta de um conjunto de ideias e valores delimitados sobre as relações de caráter familiar cria uma sensação de que essas alterações carecem de um sentido claro e que as reformas levadas a cabo foram, muitas vezes, incoerentes, contraditórias e de pouca funcionalidade social.

Assim, é adequada a resposta dada pelos ordenamentos jurídicos, inclusive o nosso? Pensamos que uma saída passa pelo questionamento acerca do fundamento do Direito de Família.

A primeira resposta seria a que faz gravitar o Direito de Família ao redor dos critérios de convivência e afetividade. Seria o bastante, pois, que duas pessoas quisessem viver juntas: sob este argumento, ficariam efetivamente igualados os casais homossexuais e heterossexuais e seria também indiferente que estivessem ligados pelo matrimônio, já que o fundamental, a convivência e a relação de afetividade, seria o denominador comum destes modelos familiares. Ao cabo, seria razoável tratá-los de forma semelhante.

A proposição não nos parece convincente. De fato, nem no tratamento clássico da noção de família, nem tampouco nos mais modernos, demonstraram ser suficientes a convivência ou a afetividade ou ambas simultaneamente. Basta lembrar o sistema de impedimentos matrimoniais, regido pelos incisos I a VII do artigo 1.521 do Código Civil, o qual proíbe o casamento daqueles que incorrem em alguma das hipóteses legais, ainda que, empiricamente, queiram-se muito e já vivam juntos.

O Direito, mesmo assim, abstém-se de regular este relacionamento com direitos e deveres. Por exemplo, duas pessoas casadas, mas não entre si, não podem constituir vínculo conjugal estável na ótica legal. O Direito não proclama que não possam vivem juntas e querer-se mutuamente. Apenas salienta que essa convivência e essa afetividade não bastam para lastrear a regulação jurídica da família.

Sob outro ângulo, se a convivência e a afetividade fossem, efetivamente, o fundamento e a razão de ser do Direito de Família, não restaria evidente um critério objetivo que impulsionaria a sociedade e o Direito a se ocupar de tais situações. O problema reside no fato de que há muitas situações de convivência, de afetividade ou de ambas que nunca buscaram a força atrativa do Direito, salvo para efeitos periféricos, a saber, para atribuir algumas consequências jurídicas acidentais, como, por exemplo, no passado recente, em que não se reconhecia a união estável, mas se indenizava o cônjuge do lar pelos serviços domésticos prestados.

Logo, o fato de duas pessoas viverem juntas ou estabelecerem laços de afetividade não nos parece suficiente por si para justificar toda uma regulação jurídica tão densa que possa ser erigida à condição de Direito de Família, cuja finalidade, já ensinava Agostinho, no século IV, é a de regular e proteger uma estrutura antropológica objetiva.

Ainda que se argumente que, concomitantemente, o Direito conceda notável relevância a um desejo psicológico do casal, de fato, a afirmação procede, mas não é, juridicamente, o elemento essencial da hipótese de incidência. Mas não é só. Se a bandeira do afeto é levantada a prumo no território do Direito de Família, convém apreciar sua situação na estrutura do ente humano.

Na Antiguidade, Aristóteles admitia a afetividade com uma potência humana, pareada da inteligência e da vontade, entretanto, à vista de sua parca contribuição para a realização da plenitude humana, na ótica do filósofo, não procurou desenvolver com afinco o estudo desta matéria. Ele entendia que a felicidade (em grego, eudamonia) era conquistada por uma vida virtuosa. O estudo filosófico do campo afetivo só voltou a ganhar força na segunda metade do século XX com a fenomenologia[16].

O desconhecimento e a aversão científica ao tema provocaram um atraso na compreensão de sua importância e de sua ação recíproca com a vontade e a razão humanas. A afetividade é confundida, muitas vezes, com sua versão reducionista, conhecida por sentimentalismo, o qual restringe a dimensão afetiva, esta nobre realidade da natureza humana, a uma mera tendência permanente e, em geral, consciente, que dirige e incita a atividade do indivíduo para um fim (por exemplo, as pulsões do prazer sexual, a libido, e da atração para a morte, o suicídio).

Assim, conhece-se muito da cadeia mecânica das sensações, imprescindível para o estudo da afetividade, mas pouco (ou nada) se sabe sobre sua causa existencial. A depender do caso concreto, o sentido e o alcance dos afetos podem ser maximizados ou minimizados, quando estão desamparados da luz da antropologia filosófica. O excesso ou a falta podem proporcionar prejuízos. No Direito de Família, a louvação desmedida e errônea da afetividade é nociva às estruturas familiares a longo prazo.

A afetividade, na estrutura antropológica do ser humano, sem os arreios das virtudes da temperança e da fortaleza, segundo Aristóteles, provoca, no momento de tomada de decisão, um juízo menos livre e mais suscetível de manipulação, pois tende a justapor a deliberação à satisfação imediata dos prazeres sensíveis[17].  Quando as pessoas se permitem levar pela dimensão dos afetos, elas perdem sua natureza quando os afetos se desnaturam.

A respeito, Lewis[18] afirmava que todo amor humano, em seu apogeu, possui a tendência de reivindicar uma autoridade divina. Sua voz tende a soar como se fosse a vontade do próprio Deus. Ela nos diz para não medir o custo, exige de nós um compromisso total, tenta superar todas as outras reivindicações e insinua que todo ato feito sinceramente” por causa do amor” é, portanto, bom e até meritório. Que o amor erótico e o amor patriótico tentam dessa forma “tornar-se deuses” é geralmente conhecido. Mas afeição familiar pode fazer o mesmo, assim como a amizade, embora de modo diverso[19].

Um exemplo contundente está no movimento consumista que assola nossa sociedade nos dias de hoje. O consumismo provoca, no indivíduo, uma maior dependência de estímulos sensoriais e, depois, busca, na ânsia por prazeres, o apoio para vender mais e mais. A atração pelos prazeres é um movimento elementar da vontade, facilmente manipulável pela via da excitação. Uma vez experimentado o prazer, segundo a imagem projetada na publicidade, a pessoa vai à busca de outro bem consumível que julga apto a lhe satisfazer o desejo, que acaba por “criar” uma necessidade, antes concebida como um simples capricho.

Com efeito, o afeto, se, por um lado, permite a constituição de relações familiares, por outro, é insuficiente para a consolidação de uma estrutura familiar genuína. Se os afetos são cambiantes, como um vento que muda de direção neste ou naquele momento, pretender solidificar uma relação que se pretende duradoura num lastro exclusivamente afetivo é o mesmo que colocar uma lanterna na popa: só iluminará as ondas que deixamos para trás. A navegação até um porto seguro continuará às cegas.

Para isso, é necessário colocar a lanterna na proa: o amor, que não se confunde com o sentir-se bem, mas com o comprometer-se, com o doar-se e, para tanto, para alcançar o outro, para transcender-se, a pessoa precisa agir, harmoniosamente, com a inteligência (imagem do ideal), a vontade (ação livre na causa) e a afetividade (pulsão ordenada pela dimensão ética do ser).

A união conjugal decorrente do matrimônio, conforme já visto, tem uma antropologia implícita: diversidade sexual, igual dignidade dos cônjuges, complementaridade e abertura à procriação, alimentada pela natural atração entre homem e mulher e sobre a qual se articula a livre vontade de ambos, fundada pelo amor, e não pela simples afetividade, à doação e aceitação mútua. Por consequência, o amor verdadeiro e livre entre um homem e uma mulher, se, antes do matrimônio, era um amor eletivo, depois da realização deste, transforma-se em um amor devido por justiça.

O compromisso então nascente entre os cônjuges, além de moral, é jurídico e consiste na manifestação de um amor responsável, porquanto zela pela própria duração em benefício de ambos os consortes, dos eventuais filhos e da sociedade. O amor sustentado sobre o matrimônio não se limita a uma mera expressão de afetividade ou à volatilidade e o tumulto das emoções.

Aliás, o amor humano pleno, em quaisquer de suas formas, não somente no amor esponsal, é oblativo. Não nos parece possível que a justaposição de dois egoísmos possa necessariamente engendrar algum tipo de amor, ao menos digno de tal nome. O amor matrimonial demanda o compromisso aberto à transmissão da vida, donde decorre que a sexualidade, neste âmbito, não é singelamente um dado fortuito, nem somente uma maneira alternativa pela qual os esposos podem canalizar seu apetite sexual com exclusividade.

O matrimônio, na forma aqui preconizada, reclama, do Direito de Família, uma postura juridicamente prudencial, bem ao contrário da neutralidade reinante e sob pena de contrariar sua própria razão de ser, porque se trata da instituição social por antonomásia, já que a sociedade surge e desenvolve-se a partir da família fundada pelo matrimônio. O afeto avizinha as pessoas e desencadeia a constituição de uma relação familiar entre homem e mulher. Porém, por si só, não confere solidez ou mesmo perenidade a esta estrutura.

 

 A QUESTÃO SOB A ÓTICA LEGAL

Por proêmio, o Direito não considera o afeto como vis attrativa das relações familiares, mas o compromisso de abertura à descendência, com a assunção dos deveres daí decorrentes. Este comprometimento com a dimensão procriadora é um fato jurídico, ou seja, um evento que produz efeitos no campo jurídico, porquanto vincula os sujeitos da relação jurídica, proporcionando-lhes uma gama de direitos e deveres recíprocos.

Se o Direito concedeu um trato legal para algumas relações afetivas, não foi em virtude de tal atributo, mas porque tais relações são de extrema importância para a organicidade da própria sociedade. Por exemplo, a solidariedade, um nobre afeto que nos inclina a pensar nos outros, sobretudo nos que mais precisam.

A despeito de sua enorme importância para o tecido social, não se cuida de um fato jurídico que possa ser alçado à qualidade de relação familiar. O fato de alguém ajudar o outro que está privado do mínimo necessário à sobrevivência não acarreta o estabelecimento de um vínculo jurídico que o autorize a ser incluído no regime legal de parentesco: a solidariedade não se confunde com a base da sociedade e não a potencializa. Não gera novas pessoas.

O matrimônio (além da união estável e da família monoparental, segundo o artigo 226, §§ 3º e 4º, da Constituição Federal) gozam de especial proteção estatal, pois as modalidades de entidade familiar daí derivadas traduzem, objetivamente, a dimensão procriadora da sociedade, uma potencialidade motriz, fincada na antropologia e na ética social, que deve ser reconhecida e preservada pela lei[20].

Sem prejuízo de outros modos de relação humana, este dever legal de tutela específica limita-se aos modelos constitucionais, os quais, ontologicamente, conservam e perpetuam a sociedade. As outras, incluso as parcerias homossexuais, não são suficientes e necessárias para tal fim. Não pertencem à base de uma sociedade que se pretenda duradoura.

Contudo, tal constatação empírica não permite concluir que as outras categorias de convivência não devam merecer atenção do Direito. Pelo contrário, estas categorias devem buscar formas próprias para sua configuração jurídica, dado que a especial proteção constitucional é exclusiva das situações acima delineadas.

As parcerias homossexuais não gozam de uma dimensão procriadora naturalmente. Tampouco as normas constitucionais e infraconstitucionais atinentes às modalidades de entidade familiar tomam a afetividade, um dado subjetivo, como elemento de alicerce de uma relação humana. O Direito prefere aspectos objetivos: a) a dimensão procriadora, conforme já salientado; b) desimpedimentos legais para a constituição dos vínculos familiares, segundo a ordem social (artigo 1.521 do Código Civil); c) exterioridade da relação, como as declarações expressas de vontade e a filiação biológica.

Tais atributos correspondem o imprescindível para a constituição de um fato jurídico de ordem social. A hipótese de incidência da norma não se vincula à conferência da existência ou inexistência da afetividade para a concessão de direitos e deveres, sem que isso signifique pouco caso com os afetos em si. Apenas se confere ao afeto o devido lugar nas relações humanas, o lugar da subjetividade. Em todos os sentidos, não se pode exigir dos afetos mais do que eles podem dar.

Do contrário, restaria esvaziado o conceito de especial proteção constitucional dado às entidades familiares discriminadas pela Carta Magna[21] de 1988. Qualquer um que convivesse com outro e com o ânimo (aspecto subjetivo) de configurar um ente familiar poderia exigir uma série de deveres que são restritos ao matrimônio na forma aqui preconizada (por exemplo, o dever de sustento).

As outras categorias de convivência, aquelas que não formam a base da sociedade, têm a liberdade contratual de constituir e regular juridicamente a mútua relação pela via do negócio jurídico, instituto desenhado pela parte geral do Código Civil. Se reputado insuficiente, os interessados podem se valer da norma regente dos contratos atípicos (artigo 425 do Código Civil).

Por derradeiro, ainda que se pretenda a mais absoluta informalidade no relacionamento, os princípios gerais de direito da proibição de enriquecimento ilícito e da boa-fé objetiva poderão nortear a justa aplicação do direito no caso concreto, sobretudo no que toca à partilha do patrimônio comum na hipótese de cisão ou de falecimento de uma das partes[22].

Com a devida vênia, a ficção de que uma parceria homossexual constitua um matrimônio é tão contraditória como pretender que forme, por exemplo, uma holding, um leasing ou mesmo uma fundação. São institutos jurídicos que, à semelhança do matrimônio, movem-se em outra órbita. O modelo matrimonial da tradição romano-germânica e do sistema da common law não têm a pretensão de dar proteção a simples relações de amizade, tratos assistenciais ou vínculos sexuais. Buscam efetivar um estilo de vida que assegure a estabilidade social e o recâmbio e a educação das gerações vindouras.

Nesse debate, algumas perguntas devem ser respondidas antes de se chegar a uma conclusão. O que é mais importante para a gênese do tecido social: os matrimônios ou as parcerias homossexuais? Em qual deles reside o princípio autoconstitutivo e “genético” da sociedade? Em qual deles, fundados nas peculiaridades intrínsecas, os valores podem ser melhor transmitidos à geração sucessiva?

Em qual deles, os novos cidadãos crescerão melhor, de modo a estruturar-se e ampliar, de modo natural, as próprias personalidades? Que obrigações a sociedade deve assumir em relação a um e outro? Em que medida cada um deles contribui para o incremento do bem comum? A equiparação da parceria homossexual à condição matrimonial não seria um privilégio? A manutenção do status quo do matrimônio não seria uma discriminação para a parceria homossexual?[23]

Nesta hipótese, não nos parece que as atuais proibições dos homossexuais em contrair matrimônio impliquem numa discriminação estritamente falando ou mesmo numa negação de direitos a uma minoria. O ponderado fator de discrímen reside justamente nos elementos objetivos que o Direito exige para que um fato da vida (a relação afetiva entre duas pessoas) seja dotado de juridicidade familiar. Ademais, a expressão “discriminação” serve justamente para manipular a opinião pública.

Discriminar é separar, distinguir. Continuamente separamos e distinguimos. Diferenciamos entre pessoas boas e ruins, livros agradáveis e desagradáveis, comidas palatáveis e não palatáveis. Cada vez que elegemos algo, discriminamos inconscientemente, pois, ao optar por este, descartamos aqueles. Discriminar é necessário[24] e inevitável. Apenas é reprovável a discriminação injusta ou arbitrária, aquela que carece de qualquer fundamento. Assim, chamar cada coisa pelo devido nome é uma justa discriminação.

Tributando o devido respeito aos que professam o contrário, a utilização pejorativa do vocábulo “discriminação” pelo movimento ideológico homossexual tem o fim evidente de contornar a falta de um discurso racional para a defesa de certas posturas, como a do matrimônio. É um mero argumento ad hominem e, como tal, facilmente perceptível. Acrescente-se que a única semelhança da parceria homossexual com o matrimônio repousa no fato de que, em ambos os casos, existe uma prosaica cama de casal, ainda que utilizada de maneira substancialmente diferente em cada caso.

Sob ângulo diverso, o pretenso direito de matrimônio dos homossexuais traz consigo uma injusta discriminação com o restante da sociedade, pois ao se optar por um exercício genital naturalmente estéril, por corolário, abdicou-se voluntariamente da finalidade de propagação da espécie humana. Se a maioria das pessoas resolvesse trilhar por esta senda, a espécie humana minguaria em algumas décadas. Com efeito, a assunção matrimonial da parceria homossexual é contrária ao bem comum.

Também não pode ser olvidado que o fator de discrímen atende ao princípio constitucional da proporcionalidade. Veja-se. O princípio da proporcionalidade é formado por três subprincípios: o juízo de adequação, o juízo de necessidade e o juízo de proporcionalidade em sentido estrito.

O primeiro juízo estabelece que a norma reguladora de um direito fundamental seja adequada ou idônea para alcançar o fim colimado. O segundo juízo estatui que a restrição imposta pela norma seja necessária, se não há outra que resulte menos gravosa sobre os direitos afetados e que seja concomitantemente suscetível de alcançar a finalidade perseguida com igual eficácia. O último juízo consiste em aquilatar se a medida guarda uma relação de razoável equilíbrio entre as vantagens obtidas e as restrições provocadas pela espécie normativa.

Pode-se, logo, verificar a existência de uma relação de adequação ou idoneidade na distinção de tratamento hoje feita pelo Direito de Família entre o matrimônio e a parceria homossexual e o objetivo que se almeja, qual seja, o de conferir uma especial tutela jurídica para aqueles que se unem com o propósito de abertura à fecundidade (e, indiretamente, de perpetuação da espécie), finalidade que resulta impossível numa parceria homossexual obviamente.

O objetivo assinalado não somente é legítimo ou constitucionalmente admissível, como se constitui num interesse substancial do Estado em se vincular diretamente com a preservação de um de seus elementos constitutivos, isto é, a população, entendida como o conjunto dos cidadãos. Por conseguinte, a distinção de trato não resulta em uma injusta discriminação, não priva os homossexuais de qualquer direito humano, já que são portadores de uma dignidade inviolável e merecedores de um respeito incondicionado em razão de sua humanidade, concretamente considerada.

Outrossim, a diferenciação ainda guarda razoável relação de proporcionalidade com os fins que se busca tutelar, à luz de toda argumentação até aqui delineada, sem que as restrições afetem a prática da afetividade homossexual a tal ponto de inviabilizá-la.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É necessário refletir sobre a diferença entre o comportamento homossexual, como fenômeno privado, e, como comportamento público, legalmente previsto, aprovado e convertido em uma das instituições do ordenamento jurídico. As leis civis são os princípios que estruturam a vida do homem em sociedade, para o bem ou para o mal[25].

As formas de vida e os modelos nelas traçados não somente configuram a vida social exteriormente, mas tendem a modificar, nas novas gerações, a correta compreensão e valoração dos comportamentos empiricamente vividos no seio social. A extensão do matrimônio para os homossexuais pela via legal estaria destinada a provocar o obscurecimento da percepção de valores fundamentais e caros para a sociedade, dado que atrelados à sua própria subsistência.

Ao cabo, haveria a desvalorização da instituição do matrimônio, expressão que deriva do latim matri munus, vale dizer, ofício da mãe. Dito de outro modo, o matrimônio é a instituição que tutela, com uma beleza ontológica ímpar, a tarefa insubstituível da mãe: conceber, gerar e criar os seres humanos que prolongarão a espécie humana, com a colaboração do varão, igualmente necessária para o alcance da maturidade e da plena humanização dos filhos.

Voltemos, pois, para o tresloucado príncipe da Dinamarca, mencionado no início deste trabalho. Polônio, o conselheiro-chefe do rei Cláudio e símbolo da prudência naquela tragédia, certa feita, ao fim de um dos delírios de Hamlet, pronuncia que “though this be madness, yet there is method in’t”[26]. É loucura, mas há método nela, em tradução livre. E quem é a primeira vítima, ainda que acidental, do príncipe adoidado, que produz um banho de sangue? Justamente Polônio, justamente a ponderação!

Esta passagem literária tem uma carga simbólica muito grande neste caso. Ao se preconizar o alegado direito ao matrimônio homossexual de forma lancinante, o Direito pode ser a primeira vítima da insensatez desta proposta. Justamente o Direito, justamente a ponderação! E, inserindo esta idéia no âmbito do movimento homossexual, seguramente, pode-se dizer: é loucura, mas há método nela.

Uma casa não é necessariamente um lar. Equiparar uma parceria homossexual ao status matrimonial, com todos os direitos e deveres daí inerentes, não atenderá aos anseios que tanto se anunciam pelo movimento homônimo, pois, por mais paradoxal que pareça, provocará a própria autodiscriminação da homossexualidade, ao se pretender desconhecer a realidade desta condição. Em suma, misturar tudo para alegar o novo apenas serve para revelar os contornos do velho.

 

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NOTAS

[1] Jokin de Irala explica que, nesse documento, se detallan los pormenores de la campaña iniciada por los grupos de presión de gays e lesbianas em aquellos años. Se pone en funcionamento, entonces, la aplicación de las cuatro ‘p’ del marketing para vender la idea de la normalidad de la homosexualidad: “product” (conceptualizar bien el produto o, em este caso, la idea que se desea vender), “price” (centrándose en el precio de exacción; el precio que se paga si no se consume o si no se está de acuerdo com la idea em eventa); “promotion” (mecanismos que se utilizarán para promocionar la idea al público) y finalmente “place” (lugar o clientes que serán objeto de la campana), significando que no es necesario convencer a todo el mundo sobre el producto o la idea em venta, a condición de que se escojan bien ciertos destinatários de la publicidad.  (in Irala, Jokin de; Comprendiendo la homosexualidad; Eunsa; 2006; Pamplona; páginas 44 e 45). Tais técnicas de persuasão de massas, a julgar por seus resultados, foram e seguem sendo muito eficazes.

[2]  Eis os princípios básicos para persuadir os heterossexuais: En primer lugar, insensibilizar y normalizar para que perciban la homosexualidad com indiferencia porque casi cualquier comportamiento empieza a parecer normal si se satura al público… se entumece la sensibilidad especial hacia la homosexualidad habiendo mucha gente que hable mucho sobre el tema em términos neutrales o favorables; em segundo lugar, insistir en que los gays son víctimas y, em tercer lugar, satanizar a los defensores de la família. Este plan habla por si mismo. ( in op. Cit.; p.46). Veja-se que qualquer semelhança com a realidade atual não é mera coincidência.

[3] Sobre a questão, Tony Anatrella, citado por Jorge Scala em seu artigo sobre o assunto em epígrafe, diz que ahora bien, si la homosexualidad es uma patologia – como realmente lo es – el vocablo “heterosexualidad” resulta cientificamente inadmisible. En efecto, heterosexual se utiliza como oposto de homosexual; por tanto, ambos términos están em perfecta igualdad de condiciones, simplesmente serían dos opciones para el ejercicio de la sexualidad. Y esto no es cierto.  Homosexual se opone a varón, y lesbiana se opone a mujer. Dicho de outro modo, la normalidad – es decir adecuación com la natulareza humana – es ser mujer o varón. Lo patológico – y por ende está en outro plano – son el lesbianismo y la homosexualidad. Así como no se caracteriza a uma persona sana, como “no canceroso” – aunque obviamente lo sea – del mismo modo no podemos llamar a um varón “heterosexual”; porque la masculinidad incluye – necessariamente – la heterosexualidad. Dicho de outro modo, decir mujer – o varón – heterosexual es uma inútil redundancia y, lo que es peor, induce a la grave confusión de poner en un plano de igualdad la adecuación a la naturaleza, con um estilo vital contra natura. En cambio se dice “homosexual” o “lesbiana”, se indica uma patologia padecida por um varón o uma mujer, respectivamente (in El Derecho – Diario de Doctrina e Jurisprudencia ; Ed. 235; 02 de diciembre de 2009; Buenos Aires, p. 24).

[4] Escrevi, na coluna que assino no Correio Popular de Campinas, em debate sobre o tema, que ao longo das últimas décadas, na medida em que toda resistência da moral e dos costumes à conduta homossexual foi sendo afrouxada por uma compreensão desgarrada de preconceitos e pelo respeito às liberdades públicas das pessoas homossexuais (porque são pessoas humanas e não em razão do atributo sexual que as diferencia dos demais), as reivindicações do movimento homossexual, no Ocidente, vieram num plano inclinado, exigindo, primeiro, a equiparação moral de suas práticas com o casamento heterossexual, depois, o ensino do homossexualismo nas escolas infantis e, por fim, as duras penas da lei para filósofos, médicos, políticos, legisladores, sacerdotes, pastores e rabinos que tragam fundamentos científicos ou citem os versículos da Bíblia contrários ao homossexualismo, como se todos fossem membros de uma sociedade secreta, formada por heterossexuais (obviamente), orgulhosos de sua “superioridade” sexual (porque vivido pela maioria das pessoas), cujo objetivo principal seria o de promover, como no regime nazista, a opressão ou o genocídio dos gays, lésbicas e travestis. O contraste entre discurso e realidade é patente: o movimento homossexual cresce em virulência e pretensões autoritárias na medida em que a sociedade se torna mais simpática às legítimas exigências da comunidade homossexual (in Correio, 28.06.07, p.03).

[5] A Ética Natural, segundo o primeiro tratado de ética da tradição filosófica ocidental, Ética a Nicômaco, de Aristóteles, é o estudo sistemático sobre as normas e os princípios que regem a ação humana, com base nos quais essa ação é avaliada em relação a seus fins. Alguns séculos depois, Tomás de Aquino apresenta a mesma linha de entendimento, mas alargando o conteúdo das noções de virtude dos gregos (ligada eminentemente aos valores da polis) e de felicidade (eudaimonia). Em ambos os casos, os postulados da Ética Natural, de matriz aristotélico-tomista, na arena jurídica, estão afetos a uma dimensão eminentemente prática e traduzem-se na perspectiva de realização da plenitude de justiça a que o homem, enquanto sujeito de direitos e deveres, está chamado por sua natureza. O Realismo Jurídico (ou Direito Natural) é fundado na ideia de um direito inspirado pela lei natural, norma inscrita na própria natureza humana e que corresponde ao modo de ser próprio do homem e a uma ordem natural das coisas, acessível pelo uso da razão. Durante dezoito séculos de nossa era, até o advento do Positivismo Jurídico, que provocou a separação do ser e do dever-ser, foi o portador da reserva ética no conhecimento do Direito, fato que, por si só, demonstra a vitalidade deste enfoque, reforçado ainda pela rica interação gnosiológica, formada a partir de diferentes e valiosas contribuições filosóficas, prudenciais e jurídicas de seus três marcos históricos fundamentais: Aristóteles, os juristas romanos e Tomás de Aquino. Nessa visão do direito, o momento culminante da ordenação jurídica está na determinação e realização do justo concreto, em que compete um papel central ao jurista, apoiado no saber prático jurisprudencial, definido por Ulpiano, magistralmente, como a ciência do justo e do injusto.  A prudência (phrónesis ou prudentia) e a equidade (epiqueia ou equitas) são recursos fundamentais do ofício do jurista na apuração do obiectum iustitiae. O realismo jurídico responde, outrossim, pelo suporte teorético do núcleo básico dos direitos humanos fundamentais e dos princípios gerais de direito. A Metafísica, ou Filosofia Primeira (Aristóteles: 384-322 a.C.), é o ramo da filosofia que estuda a causa última e os princípios universais da realidade. O enfoque metafísico, segundo Aristóteles, é o enfoque próprio de toda a filosofia: estudar cada realidade concreta segundo sua causa última, ou seja, aquela causa que estende seus efeitos a toda a realidade. Difere das causas próximas, que produzem determinados efeitos limitados, de modo imediato e são estudadas pelas ciência particulares. A Antropologia Filosófica é o estudo do homem sob o prisma filosófico, isto é, sob a consideração de sua natureza própria, distinta dos demais seres: a de animal racional, que lhe proporciona uma vida intelectual, forjada a partir de duas faculdades: a inteligência e a vontade.

[6] Apenas a título de curiosidade, o revogado artigo 1.338 do Código Civil de 1916 era o único dispositivo legal em que a expressão amor foi empregada pelo legislador (“O gestor responde pelo caso fortuito, quando fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesse deste por amor dos seus”). O novo Código não manteve a palavra.

[7] Citado por Javier Hervada (in Diálogos sobre el amor y el matrimonio; Eunsa; 4ª Ed.; 2007; Pamplona; p. 122).

[8] Segundo a etnografia ou etnologia estruturalista, a família, em suas diversas manifestações históricas, nada mais seria que um produto do pensamento inconsciente coletivo e jamais poderia haver um conceito natural dessa instituição, diante dos resultados das pesquisas de Lévi-Strauss, nos quais convivem a poligamia e a poliandria, entre outros, como superestruturas da estrutura familiar, tomadas sempre à vista do contexto de relações humanas desenvolvidas nas mais diferentes sociedades. A família não é uma “resposta estrutural” que comporta infinitas superestruturas, moldadas no seio de relações sociais axiologicamente indiferentes. É, muito antes, uma “resposta antropológica”, porque, como ente multissingular, a família obedece à antropologia do homem, tanto que se cuida de um ente fundamental e insubstituível para qualquer sociedade de todas as eras e de todos os tempos. O próprio Lévi-Strauss (1967:134) afirma que “a união mais ou menos durável, socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos é um fenômeno universal, presente em todo e qualquer tipo de sociedade”. De fato, como seres humanos que somos, nossa própria maneira de ser nos revela, sem muita dificuldade, como diz Spaemann (1996:38), que somos “gerados e não acabados”. Isso significa que, para que comecemos a existir (desde a fecundação, segundo entendemos), precisamos ser concebidos por outros seres humanos, pois nada pode dar o que não tem e o efeito não pode ser desproporcional à sua causa. Para que a concepção se verifique, é indispensável a complementariedade biológica, sexual e psicológica entre uma mulher e um homem e isso é apenas o começo: a tarefa não se encerra com a geração do filho, mas se requerem décadas para que esses filhos cresçam, amadureçam e se desenvolvam, fases da vida em que os pais são indispensáveis, porque cada faz um aporte existencial e espiritual, desde sua particular perspectiva sexual e, ao mesmo tempo, de maneira conjunta e complementar. A família, assim entendida, não foi inventada, porque é uma instituição natural e isso explica seu caráter universal e perene. Essa assertiva é capaz de conduzir qualquer investigação sobre a família (e, indiretamente, sobre o matrimônio) ao reenvio de uma série elementar de atributos que constituem o ente familiar (e, indiretamente, o matrimonial). Tais atributos, por consequência, devem ter os toques da universalidade e da perenidade e, em sua essência, devem ser insuscetíveis de sofrer os efeitos da usura do tempo, salvo em suas formas de concretização, evidentemente condicionadas aos matizes históricos e materiais, mas sem que haja perda de sua identidade. Em suma, continuam, ontologicamente, referindo-se ao passado, mas, formalmente, agem diversamente do passado.

[9] De acordo com a Antropologia Filosófica, que encontra respaldo empírico na Etnografia-Estruturalista, auto-erigida à condição de antropologia, cujo maior expoente foi Claude Lévi-Strauss (1909-2009), antropólogo e filósofo francês, remetendo o leitor, nesse ponto, à sua afirmação transcrita na nota de rodapé anterior.

[10] João Pereira Coutinho, com o raro senso de humor que caracteriza suas crônicas quinzenais, disse que ”(…) li o suficiente para procurar um rasgo de racionalidade na exigência do “casamento gay”, que o Parlamento português aprovou hoje entre lágrimas e suspiros. Nunca a encontrei. Uma coisa é garantir formas de “união civil”, como em Inglaterra, capazes de proteger direitos vários para quem deseja viver em comum. Sejam homens, ou mulheres, ou homens e mulheres. Outra, bem diferente, é desmantelar a singularidade tradicional de uma instituição, dotada de natureza e reconhecimento próprios, para acomodar os desejos “simbólicos” de uma minoria. Aliás, não apenas de uma minoria, mas de qualquer minoria: se o casamento é tudo aquilo que quisermos fazer dele, não há nenhum motivo para recusar a benesse a comunidades imigrantes ou meras seitas religiosas que olham para a poligamia, ou para a poliandria, como formas legítimas de conjugalidade. Quem disse que os “afetos” são samba de duas notas só? Ou tudo, ou nada (in Folha On Line; 18.01.2010; Coluna Pensata).” O texto ilustra bem o relativismo reinante: de cunho ontológico, próprio do materialismo histórico elaborado por Marx e Engels, que nega a existência de qualquer critério supremo de moralidade (com exceção de Lênin, para quem o critério seria a “consciência proletária”). Logo, qualquer discurso ético é reputado arbitrário ou de fundo religioso e, em última análise, destituído de sentido racional ou secular.

[11] Diversidade, neste trabalho, é entendido como diferença. Não se confunde com o sentido empregado por Herbert Marcuse (1898-1979), sociólogo e filósofo alemão, pertencente à Escola de Frankfurt, o qual, transplantando os conceitos marxistas para a sexualidade e para a psicanálise, preconizou uma sociedade “polimorficamente diversa”, como resposta à uma suposta opressão sexual da civilização judaico-cristã.

[12] A propósito da multiparentalidade conjugal, formada a partir de um casal homossexual que pediu ajuda a um amigo para gerar um filho, há um precedente judicial disponível em: http://oglobo.globo.com/sociedade/justica-autoriza-registro-de-nascimento-com-duas-maes-um-pai-seis-avos-13925839. Acesso em 31.10.14. Também, na mesma toada: o projeto de lei que dispõe sobre o estatuto das famílias (PLS 470/13), formulado segundo a moderna tendência dos microssistemas jurídicos, é um bom exemplo disso. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=115242. Acesso em 05.02.14. A exposição de motivos deste documento legislativo dá bem o tom daquilo que combatemos no presente trabalho. Transcrevo alguns trechos: “O conceito de família é cada vez mais plural. Os arranjos familiares da sociedade moderna não mais decorrem apenas do matrimônio. A união estável, entre pessoas do mesmo sexo ou não, famílias monoparentais, adoções e a comprovação de paternidade via testes de DNA atestam que as mais diversas formas de relação familiar tornam a vinculação afetiva mais importante na abrangência e nas novas definições do conceito de família. No entanto, o atual sistema jurídico rege as questões familiares com base no Código Civil que data de 2002, e que foi concebido no final dos anos 1960. Com a tramitação e aprovação de centenas de leis sobre o tema, o mesmo se encontra defasado”. (…) “a legislação atual está ultrapassada e defasada em relação à realidade da família que, hoje, deixou de ser essencialmente um núcleo econômico para dar lugar à livre manifestação do afeto. As fontes do Direito de Família como a doutrina e os princípios são avançados, mas as regras jurídicas ficaram ultrapassadas. Embora o Código Civil seja de 2002, ele traduz concepções morais da década de 1960. Daí a necessidade de adequar essas regras às novas formatações de família que não são protegidas pela legislação atual. Um dos principais argumentos para a apresentação do projeto é o de que não é mais possível tratar questões da vida familiar, que envolvem emoções e sentimentos, tendo como referência normas que regulam questões meramente patrimoniais”. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/noticias/5182/Projeto+de+Estatuto+das+Fam%C3%ADlias+%C3%A9+apresentado+no+Senado+#.Uv3trr1TuM8. Acesso em 31.10.14.

[13] A propósito, escrevi (FERNANDES, 2014:2): ”Assistimos, recentemente, à notícia de que uma criança recém-nascida foi registrada, por força de uma decisão judicial, com os nomes de duas mulheres, um homem e seis avós. O macho da espécie deu uma força na concepção da criança, a qual será cuidada pelos três, com o detalhe de que a gestante já convive há algum tempo com a outra mulher, formando, conforme assinalado na sentença, “um ninho multicomposto e pleno de afeto”. No último século, parece que a sociedade perdeu o interesse pela família ou, ao menos, relegou-a exclusivamente ao âmbito particular da afetividade e das satisfações íntimas. Giddens observou isso com muita perspicácia e batizou a família de “instituição-casca”: cabe qualquer coisa dentro. Entretanto, nunca, como hoje, a qualidade das relações familiares é tão decisiva para o bem-estar dos indivíduos e, ao cabo, de uma sociedade que se fez individualista, consumista, relativista e indiferentista, deixando seus próprios membros decidirem sobre o próprio bem e a própria felicidade, mesmo que tais decisões sejam conflitantes umas com as outras no âmbito social. Essa redução privatizante do ente familiar é fruto de uma ofensiva direta e desencadeada a partir de vários campos do saber, mas, sobretudo, da filosofia, da linguística, da lei, da ciência e da ideologia, temperados, agora, com uma inovadora contribuição judicial. Sem dúvida, certas rigidezes e automatismos nas relações familiares não têm mais espaço nos dias atuais, ao passo que a tendência em reduzir a família a um mero fato privado deve ser vista com reservas, diante da ponderação entre os bens e interesses em jogo no tabuleiro social do bem comum. Por isso, urge que seja preservado um local onde as relações humanas sejam caracterizadas pela gratuidade, pela entrega e pela doação, isto é, por um amor que, de fato, comprometa a totalidade da pessoa, o que dificilmente se dá num “ninho multicomposto” contratualmente e baseado exclusivamente por umas veleidades comungadas a três ou mesmo em outros redesenhos atuais da noção de família. Em outras palavras, é preciso reconsiderar seriamente a vocação socializante da família, tarefa na qual ela sempre desempenhou um papel chave e único para o bem comum e para a perenidade de uma civilização, o que, historicamente, sempre se deu, segundo Lévi-Strauss, graças à “união mais ou menos durável e socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos”.  Quando o ente familiar fica reduzido à uma espécie de célula primária da vida individual (e não social), aquela vocação socializante fica debilitada, ainda mais numa quadra histórica em que tanto se fala de liberdade, responsabilidade, tolerância e diversidade, atributos que envolvem, necessariamente, uma interação ética de uns com os outros. Investir nessa redução privatizante da família é semear, a longo prazo, uma sociedade atomizada, onde o próximo será um ser anônimo e com o qual me relacionarei sobretudo contratualmente, já que apenas os interesses individuais falarão mais alto. Ao contrário do admirável mundo novo pintado na sentença que determinou o registro da criança, convém agirmos com uma certa prudência social, antes de endossarmos sumariamente “novos ninhos”. Assim, ao mesmo tempo em que se procura entender e, se for preciso, acolher os riscos e as oportunidades que nossa época oferece à instituição familiar, também se fornecem critérios seguros para a salvaguarda da essência do ente familiar, principalmente quando se atenta contra sua vocação socializante.”.

[14] A propósito, escrevi, sob o título “Como repensar a família hoje?”, sobre os fundamentos antropológico e etnológico da expressão “família natural”, a fim de evidenciar que esta é muito mais que uma mera e ultrapassada “família tradicional” e que corresponde à uma estrutura existencial veritativa do ser familiar. In: Direito e Família. Gandra Martins, Ives (Org.). São Paulo: Noeses, 2014, pp.171-244.

[15] Jorge Scala traz uma solução interessante: “Denomino ex professo ‘homomonio’ a las uniones homossexuales, puesto que al ser uma realidad diferente – e incluso contradictoria – del matrimonio; necessariamente deben tener um nombre diferente (in El Derecho – Diario de Doctrina e Jurisprudencia ; Ed. 235; 02 de diciembre de 2009; Buenos Aires, p. 23).

[16] A fenomenologia trata de descrever, compreender e interpretar os fenômenos que se apresentam à percepção, cujo objetivo é o de alcançar a intuição das essências, isto é, o conteúdo inteligível e ideal dos fenômenos, captado de forma imediata. Defende a extinção da dicotomia “sujeito/objeto”, ao contrário do pensamento positivista do século XIX, e examina a realidade à luz da perspectiva da primeira pessoa. O método fenomenológico se define como uma volta às coisas mesmas, isto é, aos fenômenos, aquilo que aparece à consciência e que se dá como objeto intencional. Os principais luminares desta corrente filosófica foram Edmund Husserl, Edith Stein e Martin Heidegger.

[17] A propósito da análise da afetividade na estrutura antropológica do ser humano, com raro senso de equilíbrio e sem resvalar no politicamente correto, destaco o trabalho do professor Antonio Jorge Pereira Junior. In: Afeto e Estruturas Familiares; Berenice Dias, Maria (Org.). Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2010.

[18] Clive Staples Lewis, escritor irlandês, conhecido como C. S. Lewis (18981963), destacou-se por seu trabalho acadêmico sobre literatura medieval e pela apologia humanista que desenvolveu por meio de várias obras e palestras. É conhecido por ser o autor da série de livros infantis de nome As Crônicas de Nárnia.

[19]  In: Os Quatro Amores. São Paulo:  Martins Fontes, 2006.

[20] Apesar disso, o Supremo Tribunal Federal, na decisão das ADI 4.277 e ADPF 132, ocorrida em 05.05.11, equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, de sorte que a parceria homossexual foi reconhecida como um núcleo familiar como qualquer outro. O reconhecimento de direitos de casais gays foi unânime. Os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso divergiram em alguns aspectos da fundamentação da maioria dos colegas, mas também os acompanharam no ponto central. A condenação da discriminação e de atos violentos contra homossexuais também foi unânime. Os ministros Marco Aurélio e Celso de Mello ressaltaram que o caráter laico do Estado impede que a moral religiosa sirva de parâmetro para limitar a liberdade das pessoas.

A interpretação do Supremo sobre a união homoafetiva, na prática, reconheceu a quarta família brasileira. A Constituição previa, até então, três enquadramentos de família. A decorrente do casamento, a família formada com a união estável e a entidade familiar monoparental (quando acontece de apenas um dos cônjuges ficar com os filhos). E, agora, a decorrente da união homoafetiva. Ao julgar procedentes as duas ações que pediam o reconhecimento da relação entre pessoas do mesmo sexo, os ministros decidiram que a união homoafetiva deve ser considerada como uma autêntica família, com todos os seus efeitos jurídicos. Os ministros destacaram ser importante que o Congresso Nacional deixe de ser omisso em relação ao tema e regule as relações que surgirão a partir da decisão do Supremo.

O voto do relator das duas ações, ministro Ayres Britto, conferiu interpretação conforme a Constituição para o artigo 1.723 do Código Civil. A norma define a união estável como aquela “entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Pelo voto do ministro, que foi acompanhado integralmente por seis de seus colegas, deve ser excluída da interpretação da regra qualquer significado que impeça o reconhecimento de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Em voto de cerca de duas horas, o ministro frisou que a união homoafetiva não pode ser classificada como mera sociedade de fato, como se fosse um negócio mercantil.

Além de uma longa análise biológica sobre o sexo, Britto registrou que o silêncio da Constituição sobre o tema é intencional. “Tudo que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido. A ausência de lei não é ausência de direito, até porque o direito é maior do que a lei”, afirmou. Britto ainda assentou que se não há lei que proíba, a conduta é lícita. De acordo com o ministro, a Constituição entrega o “empírico emprego das funções sexuais ao arbítrio das pessoas”. E o Estado brasileiro veda o preconceito por orientação sexual. “As normas constitucionais não distinguem o gênero masculino e feminino”, frisou Britto. Ou seja, não fazem distinção em relação a sexo. Logo, não fazem também sobre orientação sexual. Britto frisou que união homoafetiva só seria vedada se a Constituição fosse expressa nesse sentido. “O que seria obscurantista e inútil”, emendou. Segundo o ministro, a família, em sua concepção, é o núcleo doméstico, tanto faz se integrada por um casal heterossexual ou homossexual. O ministro também ressaltou que não se pode alegar que os heterossexuais perdem se os casais homoafetivos ganham o direito ao reconhecimento jurídico de suas relações. Só se restringe um direito para garantir outro. “Quem perde com o reconhecimento da união homoafetiva? Ninguém”, disse ele. Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio destacou o papel contramajoritário do Supremo — citou a decisão tomada em relação à Lei da Ficha Limpa — ao lembrar que as normas constitucionais de nada valeriam se fossem lidas em conformidade com a opinião pública dominante. O Ministro Celso de Mello, em seu voto, argumentou que “a extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade.” consagrou como direito constitucional a formação de família por casais homossexuais. Segundo o Ministro, a legislação é dura contra as relações homossexuais por influências religiosas históricas, como as Ordenações portuguesas que puniam com a morte os praticantes dos assim chamados “atos de sodomia”. Mais tarde, a inquisição católica no Brasil perseguiu severamente os homossexuais, instalando os preceitos inclusive no poder público, “como resulta claro da punição (pena de prisão) imposta, ainda hoje, por legislação especial, que tipifica, como crime militar, a prática de relações homossexuais no âmbito das organizações castrenses”, diz o ministro em seu voto. De acordo com ele, “ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual”. Segundo ele, o Estado sequer pode criar normas que desigualem indivíduos ao excluí-los de proteções jurídicas, como os benefícios reservados legalmente a casais heterossexuais. A decisão pelo reconhecimento da união homoafetiva como família, segundo o Ministro “não é nem pode ser qualificada como decisão proferida contra alguém, da mesma forma que não pode ser considerada um julgamento a favor de apenas alguns”. Em seu entendimento, o Congresso Nacional reluta em legitimar os direitos gays por refletir o sentimento da maioria da população. Mas o Legislativo, segundo ele, “não pode legitimar, na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional, a supressão, a frustração e a aniquilação de direitos fundamentais”. E resumiu: “ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da República”. Para ele, o silêncio constitucional quanto às uniões homossexuais não foi “voluntário ou consciente” do legislador constituinte. O artigo 226 da Constituição Federal, em seu parágrafo 3º, diz ser “reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”. Citando doutrina do constitucionalista Luís Roberto Barroso, o ministro afirmou que o dispositivo, ao reconhecer uniões estáveis sem casamento como família, teve objetivo de inclusão e, por isso, não poderia ser interpretado como norma excludente dos homossexuais. “A qualificação da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, desde que presentes, quanto a ela, os mesmos requisitos inerentes à união estável constituída por pessoas de gêneros distintos, representará o reconhecimento de que as conjugalidades homoafetivas, por repousarem a sua existência nos vínculos de solidariedade, de amor e de projetos de vida em comum, hão de merecer o integral amparo do Estado, que lhes deve dispensar, por tal razão, o mesmo tratamento atribuído às uniões estáveis heterossexuais”, explicou Celso de Mello. Ele também rebateu as críticas de que, ao preencher lacunas da Constituição, a Corte adota postura ativista e avança sobre atribuições do Legislativo. “O Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constituição violada pela inércia dos poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão constitucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República”, disse. “Práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas pela Corte Suprema em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos”. O Ministro Luiz Fux ressaltou que, se a homossexualidade é um traço da personalidade, caracteriza a humanidade de determinadas pessoas. “Homossexualidade não é crime. Então porque o homossexual não pode constituir uma família?”, questionou Fux. O próprio ministro respondeu a pergunta: “Por força de duas questões abominadas pela Constituição Federal, que são a intolerância e o preconceito”. Segundo Fux, todos os homens são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Assim, “nada justifica que não se possa equiparar a união homoafetiva à união estável entre homem e mulher”. O ministro ainda ressaltou que “se o legislador não o fez, compete ao tribunal suprir essa lacuna”. O Ministro Luis Fux disse que “assim como companheiros heterossexuais, companheiros homossexuais ligam-se e apoiam-se emocional e financeiramente; vivem juntos as alegrias e dificuldades do dia-a-dia; projetam um futuro comum”. Em seu voto, ele escreveu que “o direito segue a evolução social, estabelecendo normas para a disciplina dos fenômenos já postos” e que uma família é constituída por três elementos: amor, comunhão e identidade. “O que faz uma família é, sobretudo, o amor – não a mera afeição entre os indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar, que estabelece relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre os integrantes do grupo. O que faz uma família é a comunhão, a existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum. O que faz uma família é a identidade, a certeza de seus integrantes quanto à existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade. Presentes esses três requisitos, tem-se uma família, incidindo, com isso, a respectiva proteção Constitucional”, escreveu. Ele ainda explicou que os direitos fundamentais positivam valores tidos por uma comunidade como nucleares, “de maneira a balizar a atuação do poder político e até mesmo dos particulares, irradiando-se por todo o ordenamento jurídico”. Nesse sentido, explicou o Ministro, “o Estado não fica apenas obrigado a abster-se da violação dos direitos fundamentais, como também a atuar positivamente na proteção de seus titulares diante de lesões e ameaças provindas de terceiros, seja no exercício de sua atividade legislativa, administrativa ou jurisdicional”. De acordo com ele, impedir que um casal homossexual tenha os mesmos direitos que um casal heterossexual é violar a Constituição Federal. “Quando o processo resulta em flagrante e disseminada violação dos direitos fundamentais — sobretudo aqueles que dizem com os direitos da personalidade, como os de que ora se cuida —, o Estado tem o dever de operar os instrumentos de fiscalização de constitucionalidade aptos a derrotar o abuso”, explica. “Não pode haver compreensão constitucionalmente adequada do conceito de família que aceite o amesquinhamento de direitos fundamentais”. Ainda em seu voto, o Ministro indica cinco premissas: “a homossexualidade é um fato da vida”; “a homossexualidade é uma orientação e não uma opção sexual”; “a homossexualidade não é uma ideologia ou uma crença”; “os homossexuais constituem entre si relações contínuas e duradouras de afeto e assistência recíprocos, com o propósito de compartilhar meios e projetos de vida” e “não há qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade no estabelecimento de uniões homoafetivas. Não existe, no direito brasileiro, vedação às uniões homoafetivas”. Em suas palavras, “a proteção constitucional da família não se deu com o fito de se preservar, por si só, o tradicional modelo biparental, com pai, mãe e filhos. Prova disso é a expressa guarida, no § 4.º do art. 226, das famílias monoparentais, constituídas apenas pelo pai ou pela mãe e pelos descendentes; também não se questiona o reconhecimento, como entidade familiar inteira, dos casais que, por opção ou circunstâncias da vida, não têm filhos”. Ao final do voto, o Ministro citou Ernst Benda que, em seu Manual de Derecho Constitucional, escreveu: “Está vedado ao Estado distinguir os indivíduos em função de seu presumido valor moral. O Estado não se deve arrogar o direito de pronunciar um juízo absoluto sobre os indivíduos submetidos a seu império. O Estado respeitará o ser humano cuja dignidade se mostra no fato de tratar de realizar-se na medida de suas possibilidades”. O Ministro Joaquim Barbosa ressaltou que cabe ao Supremo “impedir o sufocamento, o desprezo e discriminação dura e pura de grupos minoritários pela maioria estabelecida”. De acordo com ele, o princípio da dignidade humana pressupõe a “noção de que todos, sem exceção, têm direito a igual consideração”.  A Ministra Carmen Lúcia salientou que “pode-se tocar a vida sem se entender; pode-se não adotar a mesma escolha do outro; só não se pode deixar de aceitar essa escolha, especialmente porque a vida é do outro e a forma escolhida para se viver não esbarra nos limites do Direito. Principalmente, porque o Direito existe para a vida, não a vida para o Direito”. Com esse entendimento em seu voto, a Ministra entendeu ser “admissível como entidade familiar a união de pessoas do mesmo sexo e os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis serem reconhecidos àqueles que optam pela relação homoafetiva”. Segundo ela, a referência expressa a homem e mulher não significa que, se não for um homem e uma mulher, a união não possa ser também fonte de iguais direitos. Para explicar que a escolha de uma união homoafetiva é individual, íntima, manifestação da liberdade individual, e muitas vezes incompreensível, a ministra citou Guimarães Rosa, na descrição de Riobaldo, ao encontrar Reinaldo/Diadorim: “enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo…o real roda e põe diante. Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos…amor desse, cresce primeiro; brota é depois. … a vida não é entendível (Grande Sertão: veredas).” A ministra deixou claro que “o que é indigno leva ao sofrimento socialmente imposto. E sofrimento que o Estado abriga é antidemocrático. E a nossa é uma Constituição democrática”. Mesmo os ministros que divergiram do voto do Ministro Ayres Britto, fizeram-no por questões pontuais. O Ministro Ricardo Lewandowski, primeiro a não acompanhar integralmente o relator, reconheceu os direitos dos casais homossexuais, mas de forma um pouco mais restrita. Conforme o voto do Ministro, os homossexuais têm os mesmos direitos dos casais convencionais que vivem em união estável, exceto aqueles típicos das relações entre um homem e uma mulher, mas sem tê-los explicitado, o que poderia fazer supor a impossibilidade de extensão do casamento civil às pessoas do mesmo sexo. O Ministro Lewandowski também registrou que a decisão deveria valer até que o Congresso Nacional regulasse o tema, resgatando as discussões da Assembleia Nacional Constituinte em torno do parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição, as quais deixaram evidente a clara opção do legislador da união estável entre homem e mulher. Por fim, segundo o Ministro, a decisão do STF ocupa o espaço do Congresso Nacional, de maneira que o preenchimento da lacuna teria de ser provisório. Para o ministro Gilmar Mendes, o tema em julgamento diz respeito à dignidade dos indivíduos. “A pretensão que se formula tem base nos direitos fundamentais a partir dos princípios da igualdade e da liberdade”, disse. De acordo com o ministro, é necessário reconhecer os direitos de casais formados por pessoas do mesmo sexo por uma questão de dignidade humana. O Ministro fez observações sobre os fundamentos da decisão do STF. Para ele, pretender regular a união homoafetiva como faria o legislador é exacerbar o papel do Supremo. “Fazermos simplesmente a equiparação pode fazer com que estejamos a equiparar situações que vão revelar diversidades”, disse o Ministro. Por isso, o Ministro Gilmar Mendes acompanhou Britto no mérito, mas se limitou a reconhecer a existência da união homoafetiva sem se pronunciar sobre outros desdobramentos possíveis.

O Ministro Cesar Peluso afirmou que “na solução da questão posta, só podem ser aplicadas as normas correspondentes que no Direito de Família se aplicam à união estável entre homem e mulher”. Mas nem todas, disse o presidente do Supremo, porque não se tratam de relações idênticas, mas de equiparação. “A partir deste julgamento, o Legislativo tem de se expor e regulamentar situações que irão surgir a partir do pronunciamento da Corte. É necessário regulamentar a equiparação. Aqui se faz uma convocação para que o Congresso Nacional atue”, concluiu o Ministro. Nas sustentações orais, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, afirmou que a ação visava reconhecer que todas as pessoas têm os mesmos direitos de formular e perseguir seus planos de vida desde que não firam direitos de terceiros. E, para ele, o reconhecimento da união homoafetiva fortalece a família. Segundo ele, a discriminação em relação aos casais formados por pessoas do mesmo sexo compromete a capacidade dos homossexuais de viver a plenitude de sua opção sexual. “Embaraça o exercício da liberdade e o desenvolvimento da identidade de um número expressivo de pessoas”, disse. Ele também citou dados do IBGE, de acordo com o qual há 60 mil casais homossexuais no país. “E o número é certamente maior do que o dos dados oficiais. A união entre pessoas do mesmo sexo enquadra-se no plano dos fatos”, afirmou. O advogado Luís Roberto Barroso, representando o governo do Estado do Rio de Janeiro, subiu à tribuna para falar que a história da civilização é a história da superação do preconceito. E lembrou de casos em que homossexuais foram punidos apenas por declarar sua opção sexual. De acordo com o advogado, o STF deveria impor o mesmo regime jurídico das uniões estáveis convencionais às relações homoafetivas. Entender diferente, sustentou, significa depreciar e dizer que o afeto delas vale menos. “Duas pessoas que unem seu afeto não estão numa sociedade de fato, como uma barraca na feira. A analogia que se faz hoje está equivocada. Só o preconceito mais inconfessável deixará de reconhecer que a analogia é com a união estável”, afirmou Barroso. O advogado também frisou que o direito das minorias não deve ser tratado necessariamente pelo processo político majoritário. Ou seja, pelo Congresso Nacional. “Mas sim por tribunais, por juízes corajosos”, disse. O Advogado-Geral da União, Luís Inácio Adams, também defendeu o reconhecimento das uniões homoafetivas. “O reconhecimento dessas relações é um fenômeno que extrapola a realidade brasileira e o primeiro movimento de combate à discriminação que sofrem esses casais vem do Estado, com o reconhecimento de benefícios previdenciários”, afirmou. Outros seis amici curiae defenderam as uniões homoafetivas. Contra o reconhecimento, falaram dois amici. Uma delas, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), representada pelo advogado Hugo José Cysneiros, argumentou que “poligâmicos e incestuosos, alegrai-vos! Afinal, vocês também procuram afeto”, em contraponto às sustentações que pregaram que o afeto não pode ter distinção entre homossexuais e heterossexuais. “A pluralidade tem limites”, também afirmou o advogado, para quem “uma lacuna constitucional não pode ser confundida com não encontrar na Constituição aquilo que eu quero ler”. Segundo ele, a CNBB não tomou parte nas ações para “trazer seu catecismo, nem citar textos bíblicos”, mas para pedir “o raciocínio, a análise, tendo como referência o texto constitucional”. Ele ainda salientou que, com o texto legal claro no sentido de que a “união estável se dá entre o homem e a mulher”, não havia espaço para interpretações. Deve ser ressaltado que o julgamento do STF foi feito com base em duas ações: uma Ação Direta de Inconstitucionalidade e uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A ADPF foi transformada em ADI depois que se verificou que um de seus pedidos, o reconhecimento de benefícios previdenciários para servidores do Estado do Rio de Janeiro, já havia sido reconhecido em lei. A ADI foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República com dois objetivos: declarar de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e estender os mesmos direitos dos companheiros de uniões estáveis aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. O argumento principal da ADPF transformada em ADI, proposta pelo Estado do Rio de Janeiro, foi o de que o não reconhecimento da união homoafetiva contrariaria preceitos fundamentais constitucionais como igualdade e liberdade e o princípio da dignidade da pessoa humana. Os dois pedidos foram julgados procedentes.

[21] Não existe qualquer referência à homossexualidade na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), na Convenção Européia dos Direitos do Homem (Roma, 1950), nos pactos internacionais relativos aos direitos humanos (ONU, 1966), na Convenção Americana dos Direitos do Homem (0EA, 1969) ou na Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (OUA, 1981). Ainda que o elenco dos direitos do homem tenha se ampliado, como no caso da Convenção de Roma, a ausência ainda permanece.

[22]  A 4ª Turma do STJ reconheceu a possibilidade do casamento civil entre homossexuais. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2011-out-25/stj-reconhece-casamento-civil-entre-pessoas-mesmo-sexo, Acesso em 31.10.14.

[23] São perguntas que correspondem a argumentos de razões públicas, equacionáveis dentro da ética dialógica que conduz o fio do debate jurídico no seio social, cujas raízes são alimentadas pela teoria do agir comunicativo do filósofo alemão Jürgen Habermas e pelos postulados do liberalismo político do filósofo americano John Rawls.

[24]  A propósito, sugere-se a leitura da obra “In Praise of Prejudice: The Necessity of Preconceived Ideas; Theodore Darylmple; Encounter Books; New York; 2006; First Edition”.

[25] Atualmente, como consequência da ditadura do relativismo (assunto muito bem abordado por Roberto de Mattei, na obra “La Dictature du Relativisme”), o ser é posto em causa ou condenado ao esquecimento por tendências antimetafísicas alimentadas pelo chamado “pensamento débil”. Ignora-se a realidade antropológica e a natureza humana é sacrificada, em sua dimensão ontológica e axiológica, pelo nominalismo ou pelo empirismo ou é negada, na linha do existencialismo sartreano, puisqu’il n’y a pas de Dieu pour la concevoir. O bem moral fica eclipsado à falta de um fundamento natural. A verdade do direito não resiste à perda do sentido da justiça, nem a verdade política sobrevive à crise do bem comum. Mário Bigotte Chorão arremata dizendo que “por tudo isso tende a prevalecer, no reino do agir humano, o subjetivismo voluntarista e decisionista. O relativismo ético e o positivismo jurídico, conjugados com o democratismo formalista ou processualista (observante da técnica majoritária, mas eticamente deficitário), parece arrastarem perigosamente nossas sociedades para o abismo de um novo totalitarismo, destrutivo da pessoa humana” (In: Pessoa Humana, Direito e Política. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006).

[26] In: Shakespeare, William. The Complete Works. New York: Gramercy Books, 1998.

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

Fidelidade intransigente

Opinião Pública | 01/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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O que um dia foi um casal entrou pela porta da sala de audiências. Ele, o autor de uma ação de conversão de separação judicial em divórcio, acompanhado de seu advogado. Ela, sozinha nessa primeira tentativa de conciliação. Os dois aparentando estar perto dos 70 anos. Documentos conferidos, na tela do computador o termo de acordo quase pronto. Todos os bens já divididos, todos os filhos já maiores, mais de um ano desde a separação. Requisitos presentes, caso fácil, acordo certo. Só homologar e “jogar” para a estatística.

Havia, porém, qualquer coisa no ar. Talvez algum resquício de remorso ou as lembranças inevitáveis de uma vida passada juntos. O arrependimento insinuando- se entre culpas, o rancor entre as feridas. Quando, então, coube-me perguntar: “há possibilidade de reconciliação?”. Artificial e legalista. Mais de trinta anos… Sob olhares quase mudos, concluí em voz alta dirigindo-me ao escrevente: “reconciliação infrutífera”. A lei estava cumprida. A pior parte resolvida. Rumo ao acordo.

Acordo? Impossível. A senhora se negava a assinar, não queria o divórcio. Instante inesperado. Expliquei-lhe a norma, o protocolo, o processo. Ante a presença dos requisitos, a lei é a lei. Quando percebi que tremia, tremia muito ao falar e mover os braços. Estava aflita e sofria. Estranhei que, até aquele momento, ignorava completamente esse fato. Realmente eu ainda não os havia notado.

Pela primeira vez li os nomes na capa do processo. E os vi, os dois, o casal e a sua tragédia. Li nos seus rostos a crise, as brigas, a dor da separação, o desespero dos filhos. Pela primeira vez desde o início da audiência, que parecia tão certa, tão óbvia. Qualquer coisa foi dita sobre traição, outra mulher. A senhora tremia, insistindo que não queria o acordo. Pouco importava a demora, pouco importava o que fizesse o juiz depois de alguns meses. “Eu não assinarei”.

Perguntei-lhe, então, o porquê. Ela levou as mãos trêmulas à bolsa e retirou uma Bíblia. Levantando-a em punho disse com firmeza: “Por isso!”. O advogado da parte contrária disfarçou um riso sádico (talvez mais tarde, na roda dos amigos…). O escrevente percebeu e também riu, demonstrando certa impaciência ante a atitude tão descabida. O marido tinha os olhos atentos e calados. Por um instante me surpreendi com a sua coragem. A sensação de estar diante de um milagre ou, pelo menos, de uma manifestação do Espírito. Agradeci.

Mas, em seguida, uma grande angústia atropelou a surpresa. A obrigação de ofício me levou a explicar a divisão das competências, a diferenciar o civil do religioso. Em minha mente, pensava na laicidade do Estado e na constituição laica clamando a proteção de Deus. Pensava na doutrina social da Igreja, no reinado social de Cristo. Lembrava os crucifixos retirados das repartições públicas. Ela sorriu para mim, com a Bíblia nas mãos (como um mártir?). O livro todo num único versículo: “dai a César…”.

Então, calei-me e ela suspeitou que lhe dava razão. Compreendeu a explicação, mas insistiu em não assinar. O juiz que o fizesse. Ela não, não podia. “O senhor compreende, eu não posso, mesmo assim, não posso, minha consciência”. Guardou o livro sagrado novamente na bolsa e teve a sua vontade atendida. O acordo infrutífero, a audiência encerrada. Colhemos as assinaturas em silêncio e a ata foi afixada aos autos. Estávamos livres do rito.

No entanto, o diploma, o bacharelado parecia pesar- me sobre as costas. Minha assinatura no papel, as minhas roupas, a faculdade, os livros jurídicos, o prédio do Fórum. Sentiame culpado, como um cúmplice. Por fim, despedi- me das partes, interrompendo a divagação. Era necessário me recompor e prosseguir com o restante das audiências do dia.

■■ João Marcelo Sarkis é advogado, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.

Publicado no jornal Correio Popular, dia 29 de Agosto de 2014, Página A2 – Opinião.