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Pais ausentes

Opinião Pública | 23/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Com anos de trabalho em matéria de direito de família, podemos notar uma série de transformações na noção de paternidade, nuances naturais antes pouco valorizadas e agora incorporadas pelas leis e pela mudança do sentido e do alcance da noção de família.

No terreno da educação familiar, a ausência do pai sempre foi uma constante. Hoje, a julgar pela tônica dos processos de família, em muitos casos, a falta do pai virou desterro: ele foi expulso do âmbito familiar e esta carência, que não se resume à ausência meramente física, adentra em outros setores que resultam irrenunciáveis para a formação dos filhos. Muitos dos relatórios psicossociais lidos nos processos são sempre uma desventura e a decisão do juiz acaba por ser uma espécie de assinalação de uma certa prudência judicial familiar de redução de danos ao caso concreto.

Atualmente, na leitura judicial dos casos de família, a falta do pai é, além de física, sobretudo emotiva, cognitiva e espiritual. Tais privações influem em todos os filhos. No entanto, as consequências repercutem mais nos filhos varões. O eclipse da paternidade gera uma relação mais empobrecida entre pai e filho, pois a vida de ambos não mais se compartilha e, logo, não há convivência. A paternidade tem uma dívida de responsabilidade intrafamiliar.

A mãe, até alguns anos atrás, era considerada a principal educadora da prole, por uma série de razões sociológicas, culturais e sociais, mas que, no fundo, levavam em conta certas peculiaridades e características psicológicas diferenciadas em razão de sua identidade sexual. Como efeito, entendia-se que a educação da prole era uma tarefa tipicamente feminina, por ter mais conta o concreto e os detalhes e em virtude de seu instinto maternal, realismo e especial sensibilidade à unidade de vida que se manifesta nos filhos.

Por outro lado, a revelia paterna era explicada pela incapacidade do pai em ter aquelas qualidades maternas, agravado pela exacerbada competitividade profissional e pela natural tendência à abstração. Sua imagem era pouco útil para a educação do filho varão. Para essa lógica monolítica, o filho não precisava integrar ambos os mundos – paterno e materno – para, depois, na maturidade, assumir e responder adequadamente às complexas contradições que estamos expostos socialmente. Pais e mães, nessa mesma lógica, não tinham parecidas habilidades educativas, matizadas por um rico contraste e, ao cabo, acabavam por justificar a exclusão de um ou de outro.

Nessa visão, o filho, sobretudo o varão, não precisava se relacionar com ambos, de maneira isolada e conjunta, pois a mãe substituía o pai completamente, donde sequer se cogitava a necessidade de um equilíbrio quantitativo e qualitativo nas maneiras pelas quais pai e mãe deveriam relacionar-se com os filhos em seus respectivos papéis pedagógicos.

Nos dias atuais, as soluções divergem num sentido ou noutro para a resolução de boa parte dos problemas que os filhos enfrentam em casa, na escola ou na sociedade e que são, em grande parte, reflexo da síndrome do pai ausente, definida a partir de duas perspectivas bem diversas: do filho varão, mortificado pelo efeito dessa falta, e do pai que a causa, ainda que também sofra as consequências dessa privação.

Uma das maiores descobertas antropológicas do século XX foi a de que tanto o homem quanto a mulher devem contribuir conjuntamente na construção familiar e cultural de uma sociedade. Ambos estão chamados a um sadio protagonismo nessas tarefas e a paternidade é a figura familiar que ajuda o filho na descoberta de sua masculinidade e a filha na afirmação de sua feminilidade.

A ausência do pai desemboca na perda de uma importante referência fundacional e, ao cabo, na própria desestabilização familiar. Então, não tem mais sentido dizer que “não basta ser pai, tem que participar”. Hoje, é insuficiente “participar”: em matéria de paternidade, é preciso protagonizar. Com respeito à divergência, é o que penso.

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 22/9/2015, Página A-2, Opinião.

Clube dos corações divididos

Opinião Pública | 24/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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Nos últimos anos, contabilizamos inúmeras decisões judiciais favoráveis à multiparentalidade, sempre tomadas com o intuito de se criar “uma rede de afetos ainda mais diversificada a amparar o desenvolvimento biopsicológico da criança”, como efeito da afirmação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da tutela da família, qualquer que seja sua configuração.

Nos últimos cinquenta anos, parece que a sociedade perdeu o interesse pela família ou, ao menos, relegou-a exclusivamente ao âmbito particular da afetividade e das satisfações íntimas. Giddens observou isso com muita perspicácia e batizou a família de “instituição-casca”. Ou seja, cabe qualquer coisa dentro, desde que todos os envolvidos vivam uma relação recheada de “muito afeto”.

Uma abordagem como essa, que rechaça um standard familiar e adota uma multiplicidade de tipos que são a resultante das diversas onicompreensões existentes sobre sexualidade, relações afetivas e convivência, coloca tudo no mesmo plano de equivalência social e jurídica. Logo, tudo deveria estar sujeito a um regime de direitos e deveres idêntico. Qualquer proposição de um regime ou de uma regulação específicos resultaria em injusta discriminação.

O fruto colhido dessa nova postura judicial tem sido uma modificação do Direito de Família em seus fundamentos epistemológicos. A falta de um conjunto de ideias e valores comuns sobre as relações de caráter familiar cria a sensação de que essas alterações, iluminadas por um certo ativismo judicial, carecem de um sentido claro, detêm pouca funcionalidade social e reduzem o Direito de Família à uma espécie de Direito Notarial de Família, porque focam numa estrita chancela judicial de situações fáticas.

Entretanto, hoje, como nunca, a qualidade das relações parentais é tão decisiva para o bem-estar dos indivíduos e, ao cabo, de uma sociedade que se fez individualista, consumista e relativista, deixando seus membros decidirem sobre o próprio bem e a própria felicidade, mesmo que tais decisões sejam conflitantes umas com as outras no âmbito social.

Essa redução privatizante do ente familiar é fruto de uma ofensiva direta e desencadeada a partir de vários campos do saber, sobretudo de parte da filosofia, linguística, ciência e sociologia, temperada, agora, com uma exótica contribuição judicial. Sem dúvida, certos automatismos e rigidezes nas relações familiares não gozam mais de espaço nos dias atuais, ao mesmo tempo em que a tendência de encolher a família a um mero fato privado, desde que pleno de afetos, deve ser vista com um olhar prudencial, diante da ponderação entre os bens e interesses em jogo no tabuleiro social do bem comum.

A multiparentalidade esquece-se, diante de seu inerente viés privatizante, da vocação socializante da família, tarefa na qual o ente familiar sempre desempenhou um papel chave e único para o bem social e para a perenidade de uma civilização, o que sempre se deu, sociologicamente, segundo Lévi-Strauss, graças à “união mais ou menos durável e socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos”.

Quando a família fica reprimida à uma espécie de célula primária da vida individual e não da vida social, sua vocação socializante fica debilitada, ainda mais numa quadra histórica em que tanto se fala de liberdade, responsabilidade, tolerância e diversidade, atributos que envolvem, necessariamente, uma tradução ética do agir individual. Investir nessa redução privatizante familiar é semear, a longo prazo, uma sociedade atomizada, onde o próximo será um ser anônimo abrigado num universo cinzento de pessoas sem rosto.

Ao mesmo tempo em que se deve procurar entender e acolher os riscos e as oportunidades que nossa época oferece à instituição familiar, também devem ser fomentados critérios axiológicos para a salvaguarda da ontologia do ser familiar, principalmente quando se atenta contra sua vocação socializante. A sabedoria acumulada ao longo de mais de cinquenta séculos sugere que a configuração parental ideal é aquela formada por um homem e uma mulher e, como efeito, deve receber uma tutela jurídica específica, na medida em que essa configuração reforça inúmeras dimensões do vigor teleológico da família.

A multiparentalidade despreza com alguma arrogância semelhante acervo de sensatez. Todavia, não é só. A multiparentalidade tem um olhar compreensivelmente compassivo, mas apenas para os genitores e, com isso, anula a necessidade de que esse olhar deve estar voltado, em primeiro lugar, para o filho, a sair perdendo, face a ausência de perspectiva de concretização de sua socialização. No fundo, na multiparentalidade, a trama da tal ”rede de afetos” é a de uma rede sem tramas.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 24/6/2015, Página A-2, Opinião.

http://correio.rac.com.br/index.php?id=/colunistas/andre_fernandes

Perspectiva de gênero: seu perigo e alcance (por Jutta Burggraf)

Política e Sociologia | 01/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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“O gênero é uma construção cultural; por isso não é nem resultado causal do sexo, nem tão aparentemente fixo como o sexo. Ao teorizar que o gênero é uma construção radicalmente independente do sexo, o próprio gênero chega a ser um artifício livre de ataduras; em consequência, homem e masculino poderiam significar tanto um corpo feminino como um masculino; mulher e feminino tanto um corpo masculino como um feminino.” (1).

Estas palavras, que poderiam parecer saídas de um livro de ficção científica que vaticina uma séria perda do senso comum no ser humano, não são outra coisa senão um extrato do livro “Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity” (“O Problema do Gênero: o Feminismo e a Subversão da Identidade”) da feminista radical Judith Butler, que vem servido há vários anos como livro de texto em diversos programas de estudos femininos em universidades norte americanas de prestígio, onde a perspectiva de gênero vem sendo amplamente promovida.

Enquanto  muitas pessoas poderiam continuar considerando o termo ‘gênero’ como simplesmente uma forma cortês de dizer ‘sexo’ para evitar o sentido secundário que ‘sexo’ tem em inglês. E que, portanto, ‘gênero’ se refira a seres humanos masculinos e femininos, existem outros que há muitos anos decidiram difundir toda uma “nova perspectiva” do termo. Esta perspectiva, para surpresa de muitos, refere-se ao termo gênero como “papéis socialmente construídos”.

A IV Conferencia Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em setembro de 1995 em Pequim (1.2), foi o cenário escolhido pelos promotores da nova perspectiva para lançar uma forte campanha de persuasão e difusão. É por isso que desde esse momento a “perspectiva de gênero” vem se filtrando em diferentes âmbitos não apenas nos países industrializados, como também nos países em vias de desenvolvimento.

Definição do termo gênero

Precisamente na cúpula de Pequim, muitos delegados participantes que ignoravam esta “nova perspectiva” do termo em questão, solicitaram a seus principais promotores uma definição clara que pudesse esclarecer o debate. Deste modo a cúpula da conferência da ONU emitiu a seguinte definição:

“O gênero se refere às relações entre mulheres e homens baseadas em papéis definidos socialmente que se refiram a um ou outro sexo”.

Esta definição criou confusão entre os delegados da Conferência, muitos dos quais solicitaram uma descrição mais explícita do termo, pressentindo que pudesse estar mascarando a promoção de certas ideias sobre as orientações e identidades homossexuais, entre outras coisas. Nessa altura, Bella Abzug, ex-congressista dos Estados Unidos, interveio para completar a nova interpretação do termo
“gênero”:

“O sentido do termo ‘gênero’ evoluiu, diferenciando-se da palavra ‘sexo’ para expressar a realidade de que a situação e os papéis da mulher e do homem são construções sociais sujeitas a mudança”.

topicFicava claro, portanto, que os partidários da perspectiva de gênero propunham algo tão temerário como, por exemplo, que “não existe um homem natural ou uma mulher natural, que não há um conjunto de características ou uma conduta exclusiva de um só sexo, nem sequer na a vida psíquica” (2). Deste modo, “a inexistência de uma essência feminina ou masculina nos permite rejeitar a suposta ‘superioridade’ de um ou outro sexo, e questionar que haja uma forma ‘natural’ de sexualidade humana” (3).

Perante tal situação, muitos delegados questionaram o termo assim como sua inclusão no documento. No entanto, a ex-deputada Abzug argumentou acirradamente em seu favor:

“O conceito de ‘gênero’ está encravado no discurso social, político e legal contemporâneo. Foi integrado à planificação conceitual, à linguagem, aos documentos e programas dos sistemas das Nações Unidas. As atuais tentativas de vários Estados Membro de apagar o termo ‘gênero’ da Plataforma de Ação e substitui-lo por ‘sexo’ é uma tentativa insultante e degradante de revogar as conquistas das mulheres, de intimidar-nos e de bloquear o progresso futuro”.

A obsessão de Bella Abzug por incluir o termo em Pequim chamou a atenção de muitos delegados. No entanto o assombro e desconcerto foram maiores assim que um dos participantes difundiu alguns textos empregados pelas feministas de gênero, professoras de reconhecidos Colleges e Universidades dos Estados Unidos. De acordo com a lista de leituras obtida pelo delegado, as “feministas de gênero” defendem e difundem as seguintes definições:

  • “Hegemonia ou hegemônico”: Ideias ou conceitos aceitos universalmente como naturais, mas que na realidade são construções sociais.
  • “Desconstrução”: a tarefa de denunciar as ideias e a linguagem hegemônicas (isto é, aceitas universalmente como naturais), com o objetivo de convencer as pessoas de que suas percepções da realidade são construções sociais.
  • “Patriarcado”, “Patriarcal”: Institucionalização do controle masculino sobre a mulher, os filhos e a sociedade, que perpetua a posição de subordinada da mulher.
  • “Perversidade polimorfa”, “sexualmente polimorfo”: Os homens e as mulheres não sentem atração por pessoas do sexo oposto por natureza, mas sim por um condicionamento da sociedade. Deste modo, o desejo sexual pode dirigir-se a qualquer um dos sexos.
  • “Heterossexualidade obrigatória”: as pessoas são forçadas a pensar que o mundo está dividido em dois sexos que se atraem sexualmente um ao outro.
  • “Preferência ou orientação sexual”: Existem diversas formas de sexualidade, que incluem homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis – como equivalentes à heterossexualidade.
  • “Homofobia”: Temor a relações com pessoas do mesmo sexo; pessoas com preconceitos contra os homossexuais. O termo se baseia na noção de que o preconceito contra os homossexuais tem suas raízes na exaltação das tendências homossexuais.

Estas definições foram tomadas do material obrigatório do curso “Re-Imagem do Gênero” ministrado num prestigiosa faculdade norte-americana. Do mesmo modo, as afirmações seguintes correspondem à bibliografia obrigatória do citado curso:

“A teoria feminista já não pode permitir-se o luxo de simplesmente proclamar uma tolerância do ‘lesbianismo’ como ‘estilo alternativo de vida’ ou fazer alusão e mostrar as lésbicas. Atrasou-se demais uma crítica feminista da orientação heterossexual obrigatória da mulher” (4).

“Uma estratégia apropriada e viável do direito ao aborto é a de informar toda mulher de que a penetração heterossexual é uma violação, seja qual for sua experiência subjetiva contrária”. (5)

As afirmações citadas poderiam parecer suficientemente reveladoras sobre a perigosa agenda dos promotores desta “perspectiva”. Há, no entanto outros postulados que as “feministas de gênero” propagam cada vez com mais força:

“Cada criança atribui a si mesma uma ou outra categoria baseada na forma e tamanho de seus órgãos genitais. Uma vez feita essa atribuição, nós nos transformamos no que a cultura pensa que cada um é – feminina ou masculino-. Embora muitos acreditem que o homem e a mulher são a expressão natural de um plano genético, o gênero é produto da cultura e o pensamento humano, uma construção social que cria a ‘verdadeira natureza’ de todo indivíduo”. (6)

Deste modo, para as “feministas de gênero”, o conceito “implica pertencer a uma classe, e a classe pressupõe uma desigualdade. A luta por desconstruir o gênero levará muito mais rapidamente à meta”. (7)

O feminismo de gênero

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Mas em que consiste o “feminismo de gênero” e qual é a diferença com o comumente conhecido feminismo? Para entender mais em profundidade o debate em torno do “termo gênero”, vale a pena responder a esta pregunta.

O termo “feministas de gênero” foi cunhado pela primeira vez por Christina Hoff Sommers em seu livro “Who Stole Feminism?” (“Quem roubou o Feminismo?”), com o objetivo de diferenciar o feminismo de ideologia radical surgido no final dos anos 60, do anterior movimento feminista de igualdade. Eis aqui as suas palavras:

“O feminismo de ‘equidade’ é simplesmente a crença na igualdade legal e moral dos sexos. Uma feminista de equidade quer para a mulher o que quer para todos: tratamento justo, ausência de discriminação. Pelo contrário, o feminismo de ‘gênero’ é uma ideologia que pretende abarcar tudo, segundo a qual a mulher está presa num sistema patriarcal opressivo. A feminista de equidade acredita que as coisas melhoraram muito para a mulher; a feminista de ‘gênero’ em geral pensa que pioraram. Com frequência vê sinais de patriarcado e pensa que a situação tende a piorar. O que carece de base na realidade. A situação nunca esteve melhor para a mulher, que hoje compõe 55% dos estudantes universitários, enquanto a diferença salarial continua diminuindo”. (8)

Aparentemente esse “feminismo de gênero” teve forte presença na Cúpula de Pequim. É o que afirma Dale O’Leary, autora de numerosos ensaios sobre a mulher e participante na Conferência de Pequim, garantindo que durante todas as jornadas de trabalho, as mulheres que se identificaram como feministas defendiam persistentemente a inclusão da “perspectiva de gênero” no texto, definindo “gênero” como ‘papéis socialmente construídos’ utilizando essa palavra em lugar de ‘mulher’ ou de masculino e feminino. De fato, todas as pessoas familiarizadas com os objetivos do “feminismo de gênero”, reconheceram imediatamente a conexão entre a mencionada ideologia e o anteprojeto do “Programa Espanhol de Ação” de 27 de fevereiro que incluía propostas aparentemente inocentes e termos particularmente ambíguos (8.1).

Neo Marxismo

Com palavras de Dale O’Leary, a teoria do “feminismo de gênero” se baseia numa interpretação neomarxista da história. Começa com a afirmação de Marx de que toda a história é uma luta de classes, de opressor contra oprimido, numa batalha que se resolverá só quando os oprimidos se conscientizem de sua situação, unam-se em revolução e imponham uma ditadura dos oprimidos. A sociedade será totalmente reconstruída e emergirá a sociedade sem classes, livre de conflitos, que garantirá a paz e prosperidade utópicas para todos.

O’Leary diz ainda que foi Frederick Engels quem assentou as bases da união entre o marxismo e o feminismo. Para comprovar, cita o livro “Origem da Família, Propriedade e Estado”, escrito pelo pensador alemão em 1884 onde afirma:

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“O primeiro antagonismo de classes da história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher unidos em matrimônio monogâmico, e a primeira opressão de uma classe por outra, com a do sexo feminino pelo masculino”. (9)

Segundo O’Leary, os marxistas clássicos acreditavam que o sistema de classes desapareceria uma vez que se eliminasse a propriedade privada, se facilitasse o divórcio, se aceitasse a ilegitimidade, se forçasse a entrada da mulher no mercado de trabalho laboral, se colocasse as crianças em instituições de cuidado diário e se eliminasse a religião. No entanto, para as “feministas de gênero”, os marxistas fracassaram por concentrar-se em soluções econômicas sem atacar diretamente a família, que era a verdadeira causa das classes.

Nesse sentido, a feminista Shulamith Firestone afirma a necessidade de destruir a diferença de classes, mais ainda, a diferença de sexos:

“Assegurar a eliminação das classes sexuais requer que a classe subjugada (as mulheres) una-se em revolução e se aposse do controle da reprodução; se restitua à mulher a propriedade sobre sus próprios corpos, como também o controle feminino da fertilidade humana, incluindo tanto as novas tecnologias como todas as instituições sociais de nascimento e cuidado de crianças. Assim como a meta final da revolução socialista era não apenas acabar com o privilégio da classe econômica, mas também com a própria distinção entre classes econômicas, a meta definitiva da revolução feminista deve ser igualmente – ao contrário do primeiro movimento feminista – não apenas acabar com o privilégio masculino, mas também com a própria diferença de sexos: as diferenças genitais entre os seres humanos já não importariam culturalmente”. (10)

Quando a natureza atrapalha

Está claro, então, que nesta nova “perspectiva de gênero”, a realidade da natureza incomoda, atrapalha e, portanto, deve desaparecer. A este respeito, a própria Shulamith Firestone disse:

O ‘natural’ não é necessariamente um valor ‘humano’ . A humanidade começou a superar a natureza; já não podemos mais justificar a continuação de um sistema discriminatório de classes por sexos em razão das suas origens na natureza. Com efeito, pela simples razão de pragmatismo começa a parecer que devemos nos livrar dele “. (11)

adão e eva2Para os defensores apaixonados da “nova perspectiva”, não se devem fazer distinções porque qualquer diferença é suspeita, má, ofensiva. Eles dizem ainda que toda diferença entre o homem e a mulher é construção social e, portanto, tem que ser mudada. Procuram estabelecer a plena igualdade entre homens e mulheres, independentemente das diferenças naturais entre os dois, especialmente diferenças sexuais; ainda mais, relativizam a noção de sexo de modo que, segundo eles, não haveria dois sexos, mas sim muitas “orientações sexuais”.

Assim, os mencionados promotores do “gênero” não viram melhor opção que declarar guerra à natureza e às opções da mulher. De acordo com O’Leary, as “feministas de gênero” frequentemente denigrem o respeito pela mulher com a mesma veemência com que atacam a falta de respeito, porque para elas o “inimigo” é a diferença.

No entanto, é evidente que nem toda diferença é má nem muito menos irreal. Tanto o homem como a mulher têm suas próprias particularidades naturais que devem ser postas ao serviço do outro, para se chegar a um enriquecimento mútuo. Claro que isto não significa que os recursos pessoais da feminilidade sejam menores que os da  masculinidade; significa simplesmente que são diferentes. Neste sentido, se aceitamos o fato de que homem e mulher são diferentes, uma diferença estatística entre homens e mulheres que participem em uma atividade concreta poderia ser mais que uma demonstração de discriminação, o simples reflexo dessas diferenças naturais entre homem e mulher.

Apesar disso, perante a evidência de que estas diferenças são naturais, os propagandistas da “nova perspectiva” não questionam suas colocações, antes atacam o conceito de natureza.

Além disso, consideram que as diferenças de “gênero”, que segundo eles existem por construção social, forçam a mulher a ser dependente do homem e, portanto, a liberdade para as mulheres consistirá, não em atuar sem restrições injustas, mas em libertar-se de “papéis de gênero socialmente construídos.” Nesse sentido, Ann Ferguson e Nancy Folbre afirmam:

“As feministas devem encontrar formas de apoio para que a mulher identifique seus interesses com a mulher, mais do que com os seus deveres pessoais para com o homem no contexto da família. Isso requer o estabelecimento de uma cultura feminista revolucionária, auto definida da mulher, que possa sustentá-la, ideológica e materialmente “fora do patriarcado.” As redes de suporte contra-hegemônicas cultural e material podem fornecer substitutos mulher-identificados da produção sexo-afetiva patriarcal que proporcionem às mulheres maior controle sobre seus corpos, seu tempo de trabalho e seu senso de si mesmas “. (12)

Para esta finalidade, Ferguson e Folbre projetaram quatro áreas-chave de “ataque”:

  1. Solicitar apoio financeiro oficial para cuidar das crianças e dos direitos reprodutivos.
  2. Exigir a liberdade sexual, incluindo o direito de preferência sexual (direitos dos homossexuais).
  3. O controle feminista da produção ideológica e cultural. É importante porque a produção cultural afeta faz finalidades pessoais, o sentido de si mesma, as redes sociais e a produção de redes de criação e afeto, amizade e parentesco social.
  4. Estabelecer ajuda mútua: sistemas de apoio econômico para a mulher, a partir de redes de identificação única com a mulher, até juntas de mulheres nos sindicatos que lutem pelos interesses femininos no trabalho assalariado. (13)
Uma boa desculpa: A mulher

200px-Womanpower_logo Depois de rever a peculiar “agenda feminista”, Dale O’Leary evidencia que a finalidade de cada ponto da mesma não é melhorar a situação da mulher, mas separar a mulher do homem e destruir a identificação de seus interesses com os de suas famílias. Além disso, acrescenta a especialista, o interesse primordial do feminismo radical nunca foi diretamente melhorar a situação das mulheres nem aumentar a sua liberdade. Pelo contrário, para as feministas radicais ativas, pequenas melhorias podem dificultar a revolução de classe sexo/gênero.

Esta afirmação é confirmada pela feminista Heidi Hartmann que radicalmente afirma:

“A questão da mulher nunca foi a ‘questão feminista’. Esta se dirige às causas da desigualdade sexual entre homens e mulheres, da dominação masculina sobre as mulheres.” (14)

Não surpreendentemente, durante a Conferência de Pequim, a delegada canadense Valerie Raymond expressou seu compromisso em que a cúpula da mulher fosse abordada paradoxalmente “não como uma ‘conferência da mulher’, mas uma conferência na qual todos os temas fossem enfocados sob uma ‘ótica de gênero ‘.”

É o que diz O’Leary, a “nova perspectiva” visa impulsionar a agenda homossexual/lesbiana/bissexual/transexual, e não os interesses das mulheres comuns e correntes.

Papéis socialmente construídos

Para tratar este ponto, tomemos a definição de “gênero” registrada em um folheto que as partidárias desta opinião distribuíram na Reunião do PrepCom (Comitê Preparatório de Pequim).

Gênero se refere aos papéis e responsabilidades da mulher e do homens que são determinados socialmente. O gênero está relacionado à forma como somos vistos e se espera que pensemos e atuemos como mulheres e homens pela forma como a sociedade está organizada, não por nossas diferenças biológicas.

Vale explicitar que o termo “papel” distorce a discussão. Na sequência do estudo O’Leary, o “papel” é definido principalmente como: parte de uma produção teatral em que uma pessoa especialmente vestida e maquiada, desempenha um papel de acordo com um roteiro escrito. O uso do termo “papel” ou da frase: ‘papeis desempenhados’ transmite necessariamente a sensação de algo artificial que se impõe à pessoa.

Quando “papel” é substituído por outro termo – como vocação – , torna-se claro como o termo “papel” afeta nossa percepção de identidade. Vocação envolve algo autêntico, não artificial, uma chamada para ser o que somos. Nós respondemos ao nosso chamado para realizar a nossa natureza ou desenvolver nossos talentos e habilidades inatos. Nesse sentido, por exemplo, O’Leary destaca a vocação feminina para a maternidade, pois a maternidade não é um ‘papel’. Quando uma mãe concebe uma criança, esta começou um relacionamento de vida com outro ser humano. Esta relação define a mulher, atribui a ela certas responsabilidades e afeta quase todos os aspectos de sua vida. Ela não está representando o papel de mãe; ela é uma mãe. Cultura e tradição certamente influenciam a maneira pela qual as mulheres cumprem as responsabilidades da maternidade, mas não criam mães, esclarece O’Leary.

No entanto, os promotores da “perspectiva de gênero” insistem que qualquer relação ou atividade dos seres humanos é o resultado de uma “construção social” que dá ao homem uma posição superior na sociedade e à mulher uma inferior. Neste ponto de vista, a promoção da mulher exige que se liberte toda a sociedade desta “construção social”, de modo que o homem e a mulher sejam iguais.

Para isso, as “feministas de gênero” apontam para a necessidade urgente de “desconstruir estes papéis socialmente construídos”, que, segundo eles, podem ser divididos em três categorias principais:

  1. Masculinidade e Feminilidade. Consideram que os homens e mulheres adultos são construções sociais; que na verdade o ser humano nasce sexualmente neutro e, em seguida, é socializado em homem ou mulher. Essa socialização, dizem eles, afeta negativamente e de forma injusta as mulheres. Por isso, as feministas propõem depurar a educação e os meios de comunicação de todo estereótipo ou imagem específica de gênero, para que as crianças possam crescer sem serem expostas a trabalhos “ sexo–específicos”.
  2. As relações de família: pai, mãe, marido e mulher. As feministas não só pretendem que se substituam estes termos “gêneros-específicos” por palavras “gênero neutro”, mas ainda aspiram que não haja diferenças no comportamento ou responsabilidade entre homem e a mulher na família. Segundo Dale O’Lary, esta é a categoria de “papéis socialmente construídos” a que as feministas atribuem maior importância, porque elas acreditam que a experiência das relações “sexo-específicas” na família são a principal causa do sistema de classes “sexo / gênero”.
  3. Ocupações ou profissões. O terceiro tipo de “papéis socialmente construídos” inclui as ocupações que uma sociedade atribui a um ou outro sexo.

Embora as três categorias de “construção social” já poderiam ser suficientes, o repertório das “feministas do gênero” inclui mais uma: a reprodução humana, dizem elas, também é determinada socialmente. A este respeito, Heidi Hartmann diz:

“A maneira como se propaga a espécie é determinada socialmente. Se as pessoas são biologicamente sexualmente polimorfas e a sociedade estivesse organizada de forma a permitir igualmente todas as formas de expressão sexual, a reprodução seria resultado só de alguns encontros sexuais: os heterossexuais. A estrita divisão de trabalho por sexos, uma invenção social comum a toda a sociedade conhecida, cria dois gêneros muito separados e a necessidade de que o homem e a mulher se unam por razões econômicas. Contribui assim a direcionar suas exigências sexuais em direção à conduta heterossexual garantindo assim a reprodução biológica. Em sociedades mais imaginativas a reprodução biológica poderia ser assegurada com outras técnicas. (15)

O objetivo: desconstruir a sociedade

Fica claro, portanto, que o objetivo dos promotores da “perspectiva de gênero”, fortemente presente em Pequim, é chegar a uma sociedade sem classes de sexo. Para fazer isso, eles propõem desconstruir a linguagem, as relações familiares, a reprodução, a sexualidade, a educação, a  religião, a cultura, entre outras coisas. A este respeito, o material de trabalho do curso Re-Imagem do  Gênero, tem a seguinte redação:

revolucion_libertaria2“O gênero implica classe, e a classe pressupõe desigualdade. Lutar para desconstruir o gênero levará muito mais rapidamente para a meta. Bem, é uma cultura patriarcal e o gênero parece ser básico para o patriarcado. Afinal, os homens não gozariam do privilégio masculino se não houvesse homens. E as mulheres não seriam oprimidas, se não existisse uma coisa como ‘a mulher’. Acabar com o gênero é acabar com o patriarcado, como também com as muitas injustiças perpetradas em nome da desigualdade entre os gêneros”. (16)

Nesse sentido, Susan Moller Okin escreve um artigo no qual se lança a prognosticar o que para ela seria o “sonhado futuro sem gêneros”.

“Não haveria suposições sobre papéis masculinos e femininos; dar à luz seria conceitualmente tão distante da criação dos filhos, que seria motivo de surpresa que homens e mulheres não fossem igualmente responsáveis por áreas domésticas, ou que as crianças passassem mais tempo com um dos pais do que com outro. Seria um futuro em que homens e mulheres participariam em número aproximadamente igual em todas as esferas da vida, desde o cuidado das crianças até o cargo político de mais alto nível, incluindo os mais variados tipos de trabalho assalariado. Se quisermos salvar a menor lealdade para com nossos ideais democráticos, é essencial distanciar-nos do gênero. Parece inegável que a dissolução dos papéis de gênero contribuirá para promover a justiça em toda a nossa sociedade, fazer da família um lugar muito mais apto para que as crianças desenvolvam um senso de justiça”. (17)

 Para este fim, elas também propõem a “desconstrução da educação”, tal como se lê no discurso da Presidente da Islândia, Vigdis Finnbogadóttir, em uma conferência preparatória para a Conferência de Pequim, organizado pelo Conselho Europeu em Fevereiro de 1995. Para ela, assim como para todos os outros defensores da “perspectiva de gênero”, urge desconstruir não só a família, mas também a educação. As meninas devem ser orientadas para áreas não tradicionais, sem expô-las a imagem da mulher como esposa ou mãe, ou envolvê-las em atividades femininas tradicionais.

“A educação é uma estratégia importante para mudar os preconceitos sobre os papéis de homens e mulheres na sociedade. A perspectiva do ‘gênero’ deve ser integrada nos programas. Devem ser removidos os estereótipos em livros didáticos e sensibilizar os professores nesta matéria, a fim de assegurar que as crianças façam uma escolha profissional informada, e não com base em tradições cheias de preconceitos sobre ‘gênero’ (18).

Primeiro alvo: a família

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“O fim da família biológica também irá eliminar a necessidade de repressão sexual. A homossexualidade masculina, lesbianismo e sexo extraconjugal já não se verão mais na forma liberal como opções alternativas fora do âmbito da regulação estatal. Em vez disso, até as categorias de homossexualidade e heterossexualidade serão abandonadas: a própria ‘instituição das relações sexuais’ em que homens e mulheres desempenham um papel bem definido desaparecerá. A humanidade poderia finalmente voltar à sua sexualidade polimorficamente natural”. (19)

Estas palavras de Alison Jagger, autora de vários livros usados em programas de estudos sobre a mulher em universidades norte-americanas mostram claramente a hostilidade das “feministas de gênero” com relação a família.

“A igualdade feminista radical significa não apenas a igualdade perante a lei e nem mesmo igual satisfação das necessidades básicas, mas sim que as mulheres como os homens não tenham que dar à luz. A destruição da família biológica que Freud nunca imaginou, permitirá o surgimento de novos homens e mulheres, diferentes de todos que  que já existiram “. (20)

Aparentemente, a principal razão para a rejeição feminista da família é que, para elas, esta instituição básica da sociedade “cria e apoia o sistema de classes sexo/gênero”. Assim explica Christine Riddiough, colaborador da revista publicada pela instituição internacional anti-vida “Catholics for a Free Choice” (“Católicas pelo Direito de Decidir”):

“A família nos dá as primeiras lições de ideologia de classe dominante e também fornece legitimidade às outras instituições da sociedade civil. Nossas famílias são as  que nos ensinam primeiro a religião, a ser bons cidadãos. Tão completa é a hegemonia da classe dominante na família, que somos ensinados que esta encarna a ordem natural das coisas. Baseia-se nomeadamente, em uma relação entre o homem e a mulher que reprime a sexualidade, especialmente a sexualidade feminina”. (21)

Para aqueles com uma visão marxista das diferenças de classes como a causa dos problemas, diz O’Leary, “diferente” é sempre ‘desigual’ e ‘desigual’ é sempre “opressor”. Neste sentido, as “feministas de gênero” consideram que, quando a mulher cuida de seus filhos em casa e o marido trabalha fora de casa, as responsabilidades são diferentes e, portanto, não igualitárias. Em seguida, veem esta “desigualdade” no lar como causa de “desigualdade” na vida pública, já que a mulher, cujo principal interesse seria o lar, nem sempre teria o tempo e energia para se dedicar à vida pública. Por isso afirmam:

“Nós acreditamos que nenhuma mulher deve ter esta opção. Nenhuma mulher deveria ser autorizada a ficar em casa para cuidar de seus filhos. A sociedade deve ser totalmente diferente. As mulheres não devem ter essa escolha, porque se essa opção existe, demasiadas mulheres decidirão por ela”. (22)

Além disso, as “feministas de gênero” insistem na desconstrução da família não só porque segundo elas escraviza as mulheres, mas porque condiciona socialmente as crianças para aceitar a família, o casamento e a maternidade como algo natural. A este respeito, Nancy Chodorow diz:

“Se nosso objetivo é acabar com a divisão sexual do trabalho em que a mulher se faz maternal, devemos em primeiro lugar compreender os mecanismos que a causam. Este é o ponto no qual se deve intervir. Qualquer estratégia para a mudança, cujo objetivo abarque a liberação das restrições impostas por uma desigual organização social por gêneros, deve levar em conta a necessidade de uma reorganização fundamental do cuidado dos filhos, que deve ser compartilhado igualmente entre homens e mulheres”. (23)

Fica claro que para os defensores do “gênero” as responsabilidades das mulheres na família são supostamente inimigas da realização da mulher. O ambiente privado é considerado secundário e menos importante; família e trabalho doméstico são vistos como “carga” que afeta negativamente o “projeto profissional” das mulheres.

Este ataque declarado contra a família, no entanto, contrasta fortemente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela ONU em 1948. No artigo 16 desta, as Nações Unidas defendem com ênfase a família e o casamento:

       1- Homens e mulheres, a partir da idade de casar têm o direito, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião, de casar e constituir família; e desfrutarão direitos iguais quanto ao casamento, durante o casamento e em caso de dissolução do casamento.

      2- Somente com o livre e pleno consentimento dos futuros esposos se poderá contrair o matrimônio.

        3- A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.

No entanto, os arquitetos da nova “perspectiva de gênero” presente na cúpula da mulher colocaram à margem todas essas premissas e, em vez disso apontaram para a necessidade de “desconstrução” da família, do casamento, da maternidade, e da própria feminilidade para que o mundo possa ser livre.

admiravel mundo novoEm contrapartida, os representantes das principais nações comprometidas com a defesa da vida e dos valores familiares que participaram em Pequim, levantaram suas vozes contra esse tipo de propostas, especialmente ao descobrir que o documento da cúpula eliminava arbitrariamente do vocabulário do programa as palavras “esposa”, “marido”, “mãe”, “pai”. Ante tal fato, Barbara Ledeen, diretora do Fórum de Mulheres Independentes, uma organização de defesa da mulher amplamente reconhecida nos Estados Unidos, disse:

“O documento é inspirado pelas teorias feministas ultrarradicais, de velho cunho conflitivo, e representa um ataque direto aos valores da família, casamento e feminilidade “.

O Papa João Paulo II, por sua vez, pouco antes da Conferência de Pequim, já tinha insistido em apontar a estreita relação entre a mulher e a família. Durante a sua reunião com Gertrude Mongella, Secretária Geral da Conferência das Mulheres antes da Cúpula Mundial, disse:

“Não há resposta aos temas sobre a mulher, que possa ignorar o papel da mulher na família. A fim de respeitar esta ordem natural, é necessário opor-se à ideia errada de que a função da maternidade é opressiva para a mulher “.

Infelizmente, a proposta do Conselho Europeu para a Plataforma de Ação de Pequim foi completamente alheia a essas diretrizes.

 É tempo de deixar claro que os estereótipos de gênero estão desatualizados: os homens não são apenas os machos que sustentam a família nem as mulheres apenas esposas e mães. Não se deve subestimar a influência psicológica negativa de mostrar estereótipos femininos”. (24)

Dada essa postura, O’Leary escreve no seu relatório que, embora seja verdade que as mulheres não devem mostrar-se somente como esposas e mães, muitas sim são esposas e mães, e, portanto, uma imagem positiva das mulheres que se dedicam apenas ao trabalho no lar não tem nada de errado. No entanto, o objetivo da perspectiva de ‘gênero’ não é representar autenticamente a vida da mulher, mas criar um estereótipo inverso, segundo o qual as mulheres que sejam “apenas” esposas e mães nunca apareceriam sob uma luz favorável.

Saúde e direitos sexuais reprodutivos

Na mesma linha, as “feministas de gênero” incluem como parte essencial de sua agenda a promoção da “livre escolha” ou “direito de decidir” em matéria de reprodução e estilo de vida. De acordo com O’Leary, “livre escolha reprodutiva” é a expressão chave para se referir ao aborto a pedido; ao passo que “estilo de vida” tem o objetivo de promover a homossexualidade, o lesbianismo, outras formas de sexualidade, dentro ou fora do casamento. Por exemplo, os representantes do Conselho Europeu, em Pequim lançaram a seguinte proposta:

“As vozes dasinsatisfeitos_com_dilma mulheres jovens devem ser ouvidas, uma vez que a vida sexual não gira apenas ao redor do casamento. Isso leva ao aspecto  do direito de ser diferente, seja em termos de estilo de vida: a escolha de viver com a família ou sozinha com ou sem filhos ou de preferências sexuais. Devem se reconhecer os direitos reprodutivos da mulher lésbica”. (25)

Estes “direitos” das lésbicas, também incluem o “direito” de casais lésbicas conceberem filhos através de inseminação artificial, e para adotar legalmente os filhos de suas parceiras.

Mas os defensores do “gênero” têm não apenas essas propostas, mas também defendem o “direito à saúde”, que com toda a honestidade, afasta-se completamente da verdadeira saúde dos seres humanos. Na verdade, ignorando o direito de todo ser humano à vida, propõe um direito à saúde, que inclui o direito à saúde sexual e reprodutiva. Paradoxalmente, essa “saúde reprodutiva” inclui o aborto e, portanto, a “morte” de seres humanos ainda não nascidos.

Não surpreendentemente, as “feministas do gênero” são fortes aliadas dos Ambientalistas e “Populacionistas” (ou defensores do controle da natalidade). De acordo com O’Leary, embora as três ideologias não coincidam em todos os seus aspectos, têm em comum o projeto do aborto. Por um lado, os ambientalistas e “populacionistas” consideram essencial para o sucesso de suas agendas, o rigoroso controle de fertilidade e para isso estão dispostos a usar a “perspectiva de gênero”. A seguinte citação da Division for the  Advance of Women (Divisão para o Avanço das Mulheres) proposta numa reunião organizada em consulta com o Fundo de População das Nações Unidas revela o pensamento daqueles interessados primariamente em que haja cada vez menos gente que veja o “gênero”:aborto_i

Para serem eficazes a longo prazo, os programas de planejamento familiar devem procurar não só reduzir a fertilidade dentro dos papéis de gênero existentes, mas também alterando os papéis de gênero, a fim de reduzir a fertilidade”. (26)

Assim, os “novos direitos” propostos pelas “feministas do gênero” não se reduzem simplesmente aos direitos de “saúde reprodutiva” que, como já mencionamos, mas promovem o aborto de ser humano por nascer, mas além disso exigem o “direito” a determinar a própria identidade sexual. Num folheto distribuído durante a Conferência de Pequim, a ONG “International Gay and Lesbian Human Rights Comision” (Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas) exigiu este direito nos seguintes termos:

“Nós, abaixo assinados, convidamos os Estados-Membros a reconhecer o direito de determinar a própria identidade sexual, o direito de controlar o próprio corpo, particularmente no estabelecimento de relações íntimas, e o direito de escolher, se necessário, quando e com quem gerar e criar filhos, como elementos fundamentais de todos os direitos humanos de toda mulher, independentemente da sua orientação sexual”.

 Isto é ainda mais preocupante se levarmos em conta que para as “feministas de gênero” existem cinco sexos. Rebecca J. Cook, professora de Direito na Universidade de Toronto e editora do relatório oficial da ONU em Pequim, aponta na mesma linha de seus companheiros de batalha, que os gêneros masculino e feminino, seriam uma “construção da realidade social” e devem ser abolidos. Embora pareça incrível, o documento produzido pela feminista canadense afirma que “os sexos não são mais dois, mas são cinco”, e, portanto, não deveria falar sobre homens e mulheres, mas “as mulheres heterossexuais, mulheres homossexuais, homens heterossexuais, gays e bissexuais”.

A “liberdade” dos proponentes do “gênero” para afirmar a existência de cinco sexos, contrasta com todas as provas científicas existentes segundo as quais só há duas opções a partir do ponto de vista genético: ou se é um homem ou uma mulher, e não há absolutamente nada, cientificamente falando, que esteja no meio.

Ataque à religião

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Enquanto as “feministas de gênero” promovem a “desconstrução” da família, da educação e da cultura como solução para todos os problemas, põem especial ênfase na “desconstrução” da religião, que, segundo dizem, é a principal causa da opressão da mulher. Muitas ONGs credenciadas junto à ONU tem-se empenhado em criticar aqueles que eles chamam de “fundamentalistas” (cristãos católicos, evangélicos e ortodoxos, judeus e muçulmanos, ou qualquer um que se recuse a ajustar as doutrinas de sua religião com a agenda do “feminismo de gênero “). Um vídeo promovendo o Fórum das ONGs sobre a Conferência de Pequim, produzido por Judith Lasch diz:

 “Nada tem feito mais para constranger a mulher que os credos e ensinamentos religiosos.”

Da mesma forma, o relatório da Reunião de Estratégias Globais para a Mulher contém numerosas referências ao fundamentalismo e à necessidade de contrariar os seus alegados ataques sobre os direitos das mulheres.

“Todas as formas de fundamentalismo, seja ele político, religioso ou cultural, exclui a mulher das normas de direitos humanos internacionalmente aceitos, e a transformam em alvos de extrema violência. A eliminação destas práticas é preocupação da comunidade internacional.”

Por outro lado, o relatório da reunião preparatória para a Conferência de Pequim, organizado pelo Conselho Europeu em Fevereiro de 1995, inclui numerosos ataques à religião.

“O surgimento de todas as formas de fundamentalismo religioso é visto como uma ameaça particular para o gozo pelas mulheres de seus direitos humanos e sua plena participação na tomada de decisões em todos os níveis da sociedade”. (27)

“Deve-se capacitar as próprias mulheres, e dar-lhes a oportunidade de determinar o que as suas culturas, religiões e costumes significam para elas”. (28)

Vale ressaltar que para o “feminismo de gênero”, a religião é uma invenção humana e as principais religiões foram inventadas por homens para oprimir as mulheres. Por isso, as feministas radicais postulam a re-imagem de Deus como Sophia: A sabedoria feminina. Nesse sentido, as “teólogas do feminismo de gênero” propõem descobrir e adorar não a Deus, mas a Deusa. Por exemplo, Carol Christ, que se autodenomina “teóloga feminista de gênero” afirma o seguinte:

“Uma mulher que se faça eco à declaração dramática de Ntosake Shange:” ‘. Encontrei a Deus em mim mesma e o amei ferozmente está dizendo:  O poder feminino é forte e criativo. Está dizendo que o princípio divino, o poder salvador e sustentador, está nela mesma e já não mais verá o homem ou a figura masculina como um salvador”. (29)

Igualmente estranhas são as palavras de Elisabeth Schussler Fiorenza, outra “teóloga feminista de gênero” que nega radicalmente a possibilidade da Revelação, como lemos na seguinte citação:

“Os textos bíblicos não são a revelação de inspiração verbal nem de princípios doutrinais, mas formulações históricas. Da mesma forma, a teoria feminista insiste em que todos os textos são produto de uma cultura e historia patriarcal e androcêntrica”. (30)

Além disso, Joanne Carlson Brown e Carole R. Bohn, também teólogas autointituladas “escola feminista de gênero” atacam diretamente o Cristianismo como propulsor do abuso infantil:

“O cristianismo é uma teologia abusiva que glorifica o sofrimento. É possível assombrar-se que haja muito abuso na sociedade moderna, quando a imagem teológica dominante da cultura é ‘abuso divino do filho’ de Deus Pai que exige e efetua o sofrimento e a morte de seu próprio filho? Se o Cristianismo é para ser libertador dos oprimidos, deve primeiro livrar-se dessa teologia”. (31)

Portanto, os proprietários da “nova perspectiva” promovem o ataque frontal ao cristianismo e toda figura que o represente. Em 1994, Rhonde Copelon e Berta Esperanza Hernandez elaboraram um panfleto para uma série de sessões de trabalho da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento no Cairo. O folheto atacava diretamente o Vaticano por opor-se à sua agenda que, entre outras coisas, inclui o “direito à saúde reprodutiva” e, consequentemente, o aborto.

“Este reclamar dos direitos humanos elementares está enfrentando a oposição de todos os tipos de fundamentalistas religiosos, com o Vaticano como um líder na organização de oposição religiosa à saúde e direitos reprodutivos, incluindo até os serviços de planejamento familiar”. (32)

Em contraste com todas essas posturas de ataque e agressão à religião, à Igreja, particularmente ao Vaticano, são os pontos de vista da maioria das mulheres do mundo que, conforme relatado por O’Leary defendem suas tradições religiosas como a melhor proteção dos direitos e a dignidade das mulheres. Mulheres católicas, evangélicas, ortodoxas e mulheres judias agradecem, em particular, os ensinamentos de suas crenças sobre casamento, família, sexualidade e respeito pela vida humana.

O Vaticano, por sua vez, afirmou nos meses anteriores a Pequim o perigo da tendência do texto proposto pela ONU (33), de que se deixe de lado  o direito das mulheres à liberdade de consciência e de religião nas instituições de ensino.

Conclusão

Nas palavras de Dale O’Leary, o “feminismo de gênero” é um sistema fechado contra o qual não há nenhuma maneira de discutir. Você não pode apelar para a natureza, ou a razão, à experiência ou às opiniões e desejos de mulheres reais, porque de acordo com as “feministas do gênero” tudo isso é “socialmente construído”. Não importa quanta evidência se acumule contra suas ideias; elas vão continuar a insistir que é simplesmente mais uma prova da conspiração patriarcal massiva contra as mulheres.

No entanto, existem muitas pessoas que talvez por falta de informação, ainda não estão conscientes da nova proposta e dos perigosos alcances da mesma. Vale a pena, pois conhecer esta “perspectiva de gênero” que, segundo informações fidedignas, está atualmente não só ganhando força nos países desenvolvidos, mas, aparentemente, também começou a infiltrar-se em outras mídias. Basta rever alguns materiais educativos, veiculados não só nas escolas, mas também em universidades de prestígio.

No entanto, nos Estados Unidos o “feminismo de gênero” conseguiu colocar-se no centro da corrente cultural norte-americana. Prestigiadas universidades e faculdades difundem abertamente essa perspectiva. Além disso, muitas séries de televisão americanas fazem a sua parte para espalhar a seguinte mensagem: identidade sexual pode “desconstruir-se” e masculinidade e feminilidade não são mais que “papéis de gênero construídos socialmente”.

Considerando-se que o avanço das tecnologias conseguiu que estes programas com toda a nova “perspectiva de gênero” cheguem diariamente aos países em vias de desenvolvimento, principalmente através da televisão por cabo, sem excluir as muitas outras formas de mídia em nosso tempo, isto nos coloca ante um novo desafio que temos de enfrentar o mais cedo possível para evitar as consequências graves que já está ocasionando no Primeiro Mundo. Especialmente quando, nas palavras de O’Leary, a “desconstrução” da família e o ataque à religião, à tradição e aos valores culturais que as “feministas de gênero” promovem nos países em desenvolvimento, afeta o mundo inteiro.

Notas

[1] Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, Routledge, New York, 1990, p. 6.

[1.2] Veja-se, no texto final desta conferência (http://www.unfpa.org.br/Arquivos/declaracao_beijing.pdf), a título de exemplo, o ponto 24 da ”pauta de compromisso” e o ponto 96 da ”plataforma de ação”.  Acesso em 03.06.15.

[2] veja-se o trabalho de Cristina Delgado, Reporte sobre la Conferencia Regional de Mar de Plata, Argentina, onde recolhe diversas citações de “feministas de gênero”.

[3] Ibidem

[4] Adrienne Rich, “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence”, Blood, Bread and Poetry, p. 27.

[5] Ibidem, p. 70.

[6] Lucy Gilber y Paula Wesbster, “The Dangers of Feminity”, Gender Differences: Sociology of Biology?, p. 41.

[7] Gender Outlaw, p. 115.

[8] Entrevista a Christina Hoff Sommers en Faith and Freedom, 1994, p. 2.

[8.1] A propósito: http://www.acidigital.com/noticias/ideologia-de-genero-prejudica-educacao-espanhola-adverte-perito-60361/. Acesso em 03.06.15.

[9] Frederick Engels, The Origin of the Family, Property and the State, International Publishers, New York, 1972, pp. 65-66.

[10] Shulamith Firestone, The Dialectic of Sex, Bantam Books, New York, 1970, p. 12.

[11] Ibidem, p. 10.

[12] Ann Ferguson & Nancy Folbre, “The Unhappy Marriage of Patriarch and Capitalism”, Women and Revolution, p. 80.

[13] Ibidem

[14] Heidi Harmann, “The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism”, Women and Revolution, South End Press, Boston, 1981, p. 5.

[15] Ibidem, p. 16.

[16] Gender Outlaw, p. 115.

[17] Susan Moller Okin, “Change the Family, Change the World”, Utne Reader, Marzo/Abril, 1990, p. 75.

[18] Council of Europe, “Equality and Democracy: Utopia or Challenge?”, Palais de l’Europe, Strausbourg, Febrero 9-11, 1995, p. 38.

[19] Alison Jagger, “Political Philosophies of Womens Liberation”, Feminism and Philosophy, Littlefield, Adams & Co., Totowa, New Jersey, 1977, p. 13.

[20] Idem ibidem, p. 14.

[21] Christine Riddiough, “Socialism, Feminism and Gay/Lesbian Liberation”, Women and Revolution, p. 80.

[22] Christina Hoff Sommers, Who Stole Feminism?, Simon & Shuster, New York, 1994, p. 257.

[23] Nancy Chodorow, The Reproduction of Mothering, U. of CA Press, Berkeley, 1978, p. 215.

[24] Council of Europe, “Equality and Democracy: Utopia of Challenge?”, Palais delEurope, Strausbourg, Febrero 9-11, 1995.

[25] Ibidem, p. 25.

[26] “Gender Perspective in Family Planning Programs”, Division for the Advancement of Women.

[27] Council of Europe, “Equality and Democracy: Utopia of Challenge?”, Palais delEurope, Strausbourg, Febrero 9-11, 1995, p. 13.

[28] Ibidem, p. 16.

[29] Carol Christ, Womanspirit Rising, p. 277.

[30] Elisabeth Schussler Fiorenza, In Memory of Her, Crossroad, New York, 1987, p. 15.

[31] Joanne Carlson Brown and Carole R. Bohn, Christianity, Patriarchy, and Abuse: A Feminist Critique, p. 26.

[32] Rondhe Copelon y Berta Esperanza Hernández, Sexual and Reproductive Rights and Health as Human Rights: Concepts and Strategies; An Introduction for Activitists, Human

[33] Recentemente, o papa Francisco reafirmou que a ideologia de gênero é uma “colonização ideológica, um erro da mente humana”. Veja em: http://www.acidigital.com/noticias/ideologia-de-genero-e-um-erro-da-mente-humana-assinala-o-papa-88036/ e http://www.acidigital.com/noticias/papa-francisco-a-ideologia-de-genero-e-contraria-ao-plano-de-deus-10716/. Acesso em 03.06.15.

 

Jutta Burggraf  é Doutora em Filosofia pela Universidade de Navarra

Tradução: Cristina Murano

Revisão final: André Gonçalves Fernandes

 

Fonte: http://www.notivida.com.ar/Articulos/Genero/Perspectiva%20de%20Genero,%20peligros%20y%20alcances.html

Família partida, guarda compartilhada

Opinião Pública | 25/05/2015 | | IFE CAMPINAS

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Desde o final do ano passado, após a aprovação da Lei 13.058/14 que alterou o Código Civil para trazer novos parâmetros para fixação da guarda de filhos entre pais que não convivem sob o mesmo teto, iniciou-se um debate sobre a chamada “guarda compartilhada”. Embora já prevista no ordenamento brasileiro antes da edição da nova lei, a forma como foi proposta e os argumentos suscitados para fundamentar a sua aprovação trouxeram à tona uma discussão mais profunda, a respeito das relações familiares e do papel do direito de família em nosso tempo.

Ao regulamentar a guarda compartilhada tornando-a a regra do sistema, almeja a nova lei promover um maior envolvimento de ambos os pais na educação e desenvolvimento dos filhos, evitando que aquele que não detém a guarda fique com um papel coadjuvante. A lei propõe objetivos louváveis: convivência harmônica e equilibrada, tomada de decisões conjuntas, participação dos pais na vida dos filhos, entre outros, mas tem a pretensão de promovê-los entre casais separados, com vidas distintas, tendo os filhos como único elo.

De fato, a experiência demonstra ser possível construir um ambiente de relativa paz e maturidade nas relações entre casais separados, muitas vezes demandando regras claras e a intervenção de um juiz. No entanto, a nova lei pretende ir adiante e trazer para as relações desfeitas aquilo que é a virtude das famílias íntegras, sob a promessa de eliminar os prejuízos da separação nas relações entre pais e filhos. Como se pudesse alcançar o bem da vida familiar, sem a necessidade de constituí-la ou mantê-la.

Assim, a guarda compartilhada surge com a expectativa de ser um novo remédio capaz de curar as feridas de uma estrutura familiar desfigurada, que já não cumpre bem o seu papel. Mais que isso, tem a pretensão de lhe conferir os atributos que são a essência do modelo de família que garantiu, por gerações, uma razoável estabilidade nas relações humanas: o modelo natural, baseado na união duradoura entre homem e mulher, fundada no amor fiel, capaz de gerar filhos, de protegê-los e formá-los nos valores.

Sem dúvida a aprovação da lei reflete a preocupação da sociedade com as consequências que o desfazimento do vínculo entre pai e mãe provoca na estrutura familiar, especialmente, os seus efeitos sobre crianças e adolescentes. Todavia, paradoxalmente, surge em um contexto recente de transformações do direito de família que têm conduzido a uma fragilização cada vez maior das famílias, com a facilitação do rompimento dos vínculos, o desprestígio do casamento face às uniões informais e a legitimação de meras relações afetivas como constituintes de famílias. Estas mudanças, somadas a uma cultura de volatilização das relações pessoais, irresponsabilidade social e banalização dos valores, têm causado uma crise sem precedentes da instituição familiar.

Neste sentido, é preciso retomar o papel primordial do direito de família de promotor daquele modelo natural de família, verdadeiro patrimônio da civilização, criando meios de fomentá-lo e protegê-lo como um precioso valor social. Este é o caminho que melhor assegura a maternidade e paternidade responsáveis, possibilitando a convivência harmoniosa entre pais e filhos e o desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes.

Porém, o que temos visto neste e em outros debates, é uma mal disfarçada desistência deste modelo, como se ele estivesse ultrapassado e ao direito de família moderno restasse, meramente, chancelar os mais diversos e originais agrupamentos humanos como se família fossem. Infelizmente, soluções jurídicas como a “guarda compartilhada” continuarão a nos iludir com suas promessas de “admirável mundo novo”, enquanto não tivermos a coragem de enfrentar as verdadeiras causas da crise atual da família.

 

João Marcelo Sarkis, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), analista jurídico do Ministério Público de São Paulo, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 22 de maio de 2015, Página A2 – Opinião.

Homossexuais: direito ao matrimônio?*

Direito | 09/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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*Monografia premiada – magna cum laude – no III Prêmio Nacional de Monografias Jurídicas Desembargador Manoel Thomaz Carvalhal, patrocinado pela Associação Paulista de Magistrados, pela banca composta pelos professores Doutores Álvaro Villaça Azevedo, André Ramos Tavares e Paulo Hamilton Siqueira Junior e realizada no ano de 2012. Posteriormente, a monografia compôs um capítulo da obra internacional coletiva “Direito e Dignidade da Família” (ISBN 9788563182302), publicada pela editora Almedina no Brasil e em Portugal no ano de 2013 (pp.113-139).

“O efeito das más leis é tal que outras ainda piores são

necessárias para sustar os infortúnios das primeiras”.

 Montesquieu (Espírito das Leis)

 INTRODUÇÃO

Num lapso temporal exíguo, os grupos homossexuais resolveram conferir uma tônica crescente em suas aspirações. A intensificação, bem orquestrada desde 1970, a partir das publicações do documento Selling homosexuality to America[1] e, em dezembro de 1984, do artigo Waging peace: a gay battle plan to persuade straight America[2], visam difundir a imagem do homossexual como vítima contínua de circunstâncias discriminatórias, como no período nazista, quando gays e lésbicas utilizavam o conhecido uniforme com um triângulo rosa nos campos de concentração.

Hoje, tais pessoas ainda são alvo de abusos intoleráveis por parte de alguns e, não obstante, não é menos certo que os setores intelectualizados do movimento gay têm instrumentalizado ideologicamente tais excessos para, em nome do princípio da dignidade da pessoa humana, obter, pela força, a aceitação geral da normalidade[3] da atividade homossexual e, sem prejuízo, a modificação de leis que, na realidade, não guardam relação com aquele princípio.

Depois da ruptura com a psicanálise, após a Segunda Guerra Mundial, neste exercício de autojustificação, os “direitos da homossexualidade” buscam, cada vez mais, um imperativo de legitimação civil, como no caso da equiparação de suas uniões de fato com o matrimônio, da legislação relativa à adoção de filhos ou da questão da homofobia, que, na verdade, resume-se numa heterofobia[4].

Partindo das propostas de “pactos” ou de “contratos”, já acomodadas em boa parte das legislações civis, sobretudo no âmbito europeu, hoje, clama-se pela institucionalização de um “matrimônio homossexual”, para o qual seriam concedidos os mesmos direitos do “matrimônio tradicional”. Veremos que a ideia de “matrimônio homossexual” é uma mistificação que contradiz a própria essência do matrimônio, ao menos sob o pálio da matriz epistemológica doravante empregada, fundada na Ética Natural, no Realismo Jurídico, na Metafísica e na Antropologia Filosófica[5], tomadas aqui como as bases morais pré-políticas de um Estado que respeite a verdade do ser do matrimônio, uma instituição tão antiga quanto a própria humanidade, cuja gênese se perde imemorialmente.

Num período em que a proteção da instituição familiar deveria estar na ordem do dia do legislador, pressionado pelo inverno demográfico nos países ricos, pela imigração crescente (sobretudo nos eixos Oriente Médio/África – Europa e México – EUA), pela galopante criminalidade dos jovens nascidos de famílias separadas e de “famílias” reconstruídas, a proposta em foco me recorda a advertência de Hamlet a Horácio, seu fiel amigo, a respeito do assassinato de seu pai, protagonizado por seu tio Cláudio, no Castelo de Elsinore: “O mundo está fora dos eixos”.

 

REALISMO JURÍDICO E A DINÂMICA DO AMOR

Por proêmio, para uma salutar compreensão do ensaio proposto, é curial traçar algumas linhas propedêuticas sobre as relações entre o Direito e o amor[6]. Qual é a regra que deve iluminar as relações entre os casados: a lei natural ou a espontaneidade do amor? O tema é muito discutido no Direito, na Psicologia e por pessoas de fora do mundo acadêmico (como talkshows noturnos, jornais, artigos de revistas femininas/masculinas, novela, teatro), donde decorre a atualidade deste ensaio.

É um fato notório que, por trás de algumas posturas atuais em relação ao matrimônio, há uma clara, porém, aparente contraposição entre aquilo que se denomina como exigências do amor e o que, tradicionalmente, é chamado de realismo jurídico. São tendências que defendem a autenticidade como um dos pilares da atuação do homem, inclusive numa relação matrimonial.

A autenticidade estaria na espontaneidade do amor, num livre fluir da relação amorosa, marcada por uma invencível fragilidade intrínseca, algo bem retratado na famosa obra literária de Milan Kundera, “A insustentável leveza do ser” (1984), frente à inautenticidade representada pela lei, sobretudo quando vista sob o prisma do realismo jurídico, reduzida a um produto cultural de uma mentalidade ultrapassada e alienante.

Estas tendências partem do pressuposto de que o homem é considerado um ser autêntico quando segue a inclinação espontânea que radica em si, porque toda inclinação é natural, ou seja, é conforme ao seu ser. Negam, sob outro ângulo, que a pessoa possa ter uma desordem em suas inclinações naturais, como a concupiscência. A desordem não teria espaço, porque, inspirado na concepção rousseauniana de natureza humana, o ser do homem não portaria nem o bem e nem o mal: há simplesmente o seu ser, que deve ser assumido tal como é ontologicamente, em virtude de sua bondade inerente.

Eis a chamada autenticidade: uma tese pertinazmente proclamada e vivida por muitos, os quais, certamente, não acreditam que a antropologia kantiana aproxima-se muito mais da realidade posta acerca da natureza humana, dado que o homem é naturalmente capaz de agir bem, mas, também, de fazer o mal.

Superada a questão a respeito da possibilidade de desordem nas inclinações naturais, a espontaneidade do amor surge como a regra de ouro da ação humana. O mal está em agir sem amor. Migrado este critério ao amor conjugal, infere-se, sem muito esforço intelectual, que esta regra deva pautar as relações entre os cônjuges, já que, onde há amor espontâneo, não pode haver desordem.

Os efeitos desta epistemologia do agir humano ou desta “ética da autenticidade” acabam por produzir uma relação dialética entre as demandas do amor conjugal e a lei natural, positivada nos deveres legais do matrimônio (artigos 1.565 a 1.568 do Código Civil), como se os imperativos do amor fossem dificilmente compatíveis com a lei natural defendida pelo realismo jurídico. A interrogação é inevitável: pode haver tal contraposição entre o amor conjugal e a lei natural (positivada ou não) que origina o matrimônio e regula a vida conjugal?

Dentro do âmbito mais amplo das relações entre o amor e a lei, se o amor é a fonte criadora de toda decisão acerca de uma ação humana, não seria o mesmo amor, proclamado em prosa e verso pela literatura de todos os tempos e de todas as épocas, a mais elevada norma do viver do homem, o princípio supremo de ordenação social, ao invés da lei?

Recordo-me de uma frase de Agostinho – ama et fac quod vis (ama e faze o que quiseres) – que, em tempos idos, quando os intelectuais eram mais cultos, gozava de prestígio, como citação clássica, entre eles. O “ama e faze o que quiseres” não equivaleria a um desprendimento de toda lei imposta, de toda condicionante normativa derivada do exterior do indivíduo? Se mesmo o matrimônio religioso deposita no amor humano sua lei fundamental de valor moral, não seria o amor fonte originária de ordem? Por outro ângulo, existiriam razões que permitem afirmar que tal contraposição seria aparente e que o amor, por ser a regra mais elevada da ação humana, poderia ser exercido fora das balizas da lei natural?

Uma afirmação de Josef Pieper[7], em sua obra “O Amor”, dá bem o tom da natureza do amor que aqui se propõe:“ O amor e somente o amor é o que tem de estar em ordem para que todo o homem o esteja e seja bom”. Assim, segundo o amor esteja ou não ordenado, a vida de um homem será reta ou desordenada.

A ordem aqui mencionada não decorre de uma fonte normativa exterior, como as convenções sociais ou os costumes de um povo, mas daquela ordem intrínseca do amor que é inerente a ele próprio. Filosoficamente, a ordem como transcendental do ser. Explica-se.

Uma roda é tanto mais uma roda quanto mais perfeito é o círculo que a forma. Se deixa de ser uma circunferência e passa a ser uma parábola, deixa de ser roda, ou seja, perde, em parte, seu ser próprio de roda. Pode até servir para outro fim, mas não atenderia sua finalidade natural, a de girar como uma roda. Se, então, sua estrutura ficasse mais desordenada e se transformasse num quadrado ou num triângulo, deixaria ser roda por completo.

Quando um músculo, ao invés de se mover segundo sua ordem natural, move-se desordenadamente, dá causa a um estiramento, ou seja, a uma alteração naquilo que lhe é normal, segundo sua ordem em sentido filosófico, a mesma ordem a que está sujeito o amor.

No âmbito desta ordem, o amor se aperfeiçoa e cresce quanto mais o ser desenvolve-se normalmente e, ao contrário, diminui sua intensidade na medida em que se atrofia a capacidade do ser. Neste sentido, o amor é tanto mais amor quanto mais ordenado for e, por corolário, o amor desordenado é a imperfeição ou degradação do mesmo amor. Uma caricatura do amor. Desta sorte, compreende-se a famosa máxima de Agostinho: “Todos vivem de seu amor, façam o bem ou façam o mal”.

Há um só amor, esse primeiro movimento da vontade que se orienta e adere intencionalmente ao objeto amado. É o primeiro movimento da inclinação natural do homem ao bem. Contudo, o homem tem, dentro de si, um fator de desordem em sua tendência inata ao bem, de maneira que, apesar da lei natural, goza também de uma inclinação para o mal (a concupiscência).

O amor nasce ordenado ou desordenado conforme uma ordem ou uma desordem fundamental da pessoa, individualmente considerada. E é inevitável que assim seja, porque o amor é um ato que depende, por ser ato, da potência, canalizada pela vontade. A ordem fundamental da vontade irá definir a ordem do amor que daí surge.

A inferência é clara. Não é porque existe amor, a conduta será necessariamente reta. Excluída a ideia de ordem, o amor deteriora-se e, por conseguinte, a conduta humana daí derivada. A espontaneidade do amor, dentro deste raciocínio, não é fonte primária da ordem, já que o amor é uma realidade medida por critério distinto. Só quando o amor é ordenado, então é a norma regente do agir humano e o “ama e faze o que quiseres” ganha sentido, proporção e alcance compreensivo.

E qual é a ordem do amor? Mais uma vez, recorremos a uma clássica citação de Agostinho: Virtus ordo est amoris (A virtude é a ordem do amor). Invertendo a ordem da frase sem alterar seu sentido, desponta a resposta – a ordem do amor é a virtude. E quais virtudes? As virtudes morais, que representam fundamentalmente a justaposição da vontade aos ditames da reta razão, a adequação do agir volitivo à lei natural. Por consequência, a ordem do amor é a lei natural. E os preceitos da lei natural representam as concreções da reta dinâmica do amor.

Superada esta longa, mas necessária digressão a respeito do amor e de sua ordem, resta delimitar a ordem do amor conjugal. Evidente que esta ordem é representada pelas mesmas virtudes relativas ao amor propriamente dito, entretanto, impulsionado também por uma virtude específica que ordena o amor matrimonial, em virtude de suas peculiaridades: a virtude da castidade, aquele autodomínio que torna a pessoa capaz de se dar ao outro.

Esta virtude ilumina o amor conjugal, objetivamente, por intermédio dos três bens do matrimônio, a saber, a abertura à procriação, a fidelidade e a perenidade temporal. Tais bens não se reduzem a uma mera limitação ou repressão ao amor humano. Muito pelo contrário, são efeitos concretos deste amor e, na medida em que são vividos ordenadamente, superam e excedem em muito o mero exercício estóico de todas as prescrições legais sobre o assunto, mormente no que toca aos deveres familiares[8].

As relações entre os homens, inclusive as de natureza conjugal, estão assentadas numa série de relações ontológicas objetivas, que portam uma ordem que lhes é inerente. Por exemplo, a relação entre pais e filhos tem nítida coloração ontológica, derivada da procriação, cuja ordem natural obriga os genitores ao dever de criação e educação da prole e esta, por sua vez, ao dever de respeito e obediência aos pais.

É o fato da procriação que dá causa a um rol de direitos e deveres recíprocos e não o amor humano. Este dado empírico não rompe com tais exigências ou as modifica substancialmente, mas, sem que estas se alterem, o amor humano ordenado entende que estes imperativos derivam da dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual as assume e aperfeiçoa.

Esta ordem objetiva funda-se no realismo jurídico, porquanto se revela em deveres de justiça, cuja normatividade é veiculada pela lei natural, prisma ético que definirá se o amor é ordenado ou desordenado, inclusive aquele decorrente do matrimônio, lastreado no interior de uma relação natural e que responde a um anseio da pessoa humana. Este anseio é guiado em função de umas necessidades e finalidades da espécie, motivo pelo qual entre o homem e a mulher exista uma mútua atração natural, que poderá crescer e ganhar uma nova dimensão: a do amor conjugal que, se for ordenado, conduz o matrimônio à plenitude e, se for desordenado, impede que esta perfeição seja alcançada. Com efeito, a lei natural é a ordem do amor conjugal.

 

CONCEITO DE MATRIMÔNIO

Estabelecido o liame entre a lei e o amor conjugal, é igualmente importante se buscar a definição de matrimônio. O conceito antropológico[9] de matrimônio, da maneira como sempre inspirou a legislação dos países da tradição romano-germânica ou do sistema da common law, a saber, um pacto nupcial, pelo qual o homem e a mulher estabelecem uma comunhão plena de vida, ordenado à procriação e educação da prole, continua o mesmo, ainda que o legislador, ultimamente, tenha tentado inovar no assunto. Pensamos que em vão.

O matrimônio é uma instituição comum a todas as culturas de todos os tempos e lugares, não só coexistindo com outras fórmulas, como a poligamia ou a poliandria, mas, sobretudo, constituindo o resultado final da destilação crítica destas fórmulas e ensaios. Trata-se de uma realidade primordialmente vital, anterior à própria organização social, ao Estado e mesmo à qualquer entidade religiosa institucionalmente estabelecida. Não deriva deles e os supera. Logo, o direito deve moldar-se à natureza do matrimônio e não ser manipulado ao bel-prazer do legislador.

É decisivo entender uma consequência do fato de o matrimônio ser, antes de tudo, uma realidade natural: sua essência e sua estrutura básica não são inventadas pelo legislador, mas derivam da própria natureza[10] do ser humano, da distinção dos seres psicológicos (homem e mulher), da complementação recíproca sexual e das exigências inatas de sua condição e dignidade. Com efeito, o matrimônio é fincado na diversidade[11] e na complementaridade dos sexos.

A procriação humana dá-se entre pessoas de sexos diferentes, que contribuem com uma parcela daquilo que será o material genético do novo ser humano. A própria diferenciação sexual tem a sua razão primária e mais radical na procriação, apesar de sua manifestação não se resumir neste espectro.  As estruturas física e psíquica das pessoas estão influenciadas pelo respectivo sexo, surgindo, assim, várias diferenças importantes entre o homem e a mulher. Tais diferenças não se limitam às de caráter biológico, já que a condição de homem ou mulher pertence tanto à biologia, quanto ao espírito, à cultura e à vida social. As diversidades morfológica e anatômica levam consigo diferentes traços psicológicos, afetivos e cognoscitivos.

Desta maneira, a complementariedade de cada um em relação ao outro não se refere somente à união para a preservação da espécie, mas abrange também a seara anímica, com atributos espirituais próprios de cada um dos sexos. Caracteriologicamente, o ser masculino tende para o universal (ou abstrato), tem uma inteligência mais teórica, sofre uma maior influência do sentido comum, prepondera a racionalidade (lógica) com a captação mais discursiva da realidade, maior controle sobre os sentimentos, menor capacidade para o sofrimento, maior grau de calculismo e inconstância e preocupação voltada para o macro.

Por outro lado, o ser feminino tem uma tendência para o singular (ou concreto), possui uma inteligência mais prática, é mais influenciado por uma riqueza de imaginação e pela memória, prepondera a emotividade (ou afetividade) com uma captação mais intuitiva da realidade, com menor controle sobre os sentimentos e maior capacidade para a dor, atua com maior generosidade e fidelidade e seu foco é voltado para os detalhes e trabalhos mais finos ou que requeiram coordenação de recursos humanos.

Por conseguinte, infere-se que, além das características comuns a todos os indivíduos da espécie humana, a diferenciação sexual representa não apenas um dado orgânico de conjugação para a preservação da espécie, mas fator de complementação do ser humano em sua dimensão anímica, cujas características próprias, de cada sexo, devem ser compreendidas para sua melhor concatenação.

Ignorar tal diversidade ou querer forçar que um sexo imite o outro de maneira artificial, além de um verdadeiro embuste intelectual, é uma violência que traz desequilíbrio à pessoa e, em última análise, à sociedade. Evidentemente, o reconhecimento destes distintivos naturais não traduz uma superioridade sexual deste ou daquele sexo. A igual dignidade de todos os seres humanos, inclusive daqueles com tendência homossexual, deriva do fato deles serem pessoas, isto é, seres dotados de racionalidade e vontade livre.

A personalidade é muito anterior ao sexo e, por isso, há uma mesma dignidade entre homem e mulher no âmbito conjugal. Não foi à toa que o legislador estabeleceu a igualdade de direitos e deveres dos cônjuges como fundamento da comunhão de vida decorrente do matrimônio (artigo 1.511 do Código Civil).

 

QUESTÃO SEMÂNTICA

O conceito de matrimônio, da forma acima definida, sempre foi muito evidente historicamente. Mas o legislador ou o ativismo judicial, ao que parece, na confusão teórica sobre o tema, no primeiro caso, ou, pela omissão legislativa, no segundo, criaram um verdadeiro mosaico de definições do assunto que, hoje, tal conceito adquiriu uma natureza ambígua e polissêmica, estranha à sua natureza ou mesmo ao seu desenho historicamente consolidado[12]. Qual a causa desse fenômeno?

Talvez seja a tentativa de esvaziamento de sentido do conceito de matrimônio. Seria interessante que o termo em foco fosse incapaz de significar, por si só, algo em particular e, logo, deveria vir seguido de alguma qualidade. Contudo, isso se dá somente quando uma gama de conteúdos contraditórios é conferida a uma mesma definição, que acaba por não significar nenhuma deles. Aqui está uma saída semântica que justificaria a supressão de expressões como “casamento homossexual”.

O conceito de família também trilhou por pantanoso caminho. Hoje, utiliza-se a expressão “Direito das Famílias”, ao invés do “Direito de Família”. Menciona-se a existência de família “monoparental”, “família reconstituída”, família “substituta”, família “afetiva”, família “multiparental” entre outros exemplos. Todas essas novas versões de família são, a nosso ver, no fundo, fatores que indicam um crescente fenômeno de “redução privatizante” do ente familiar”[13].

O uso coloquial de tais denominações as torna equivalentes, o que obriga o Direito a restaurar o conceito de família natural[14], unívoco e com um significado muito preciso. Pejorativamente, a parte discordante da doutrina do tema substituiu o termo “natural” por “tradicional”, ou seja, a família natural passou a ser vista como uma família arcaica e sem validade social. Em suma, uma peça de museu de história natural.

Parece que os “modelos” de matrimônio olham para os “modelos” de família como o que realmente são: um prolongamento natural e, por conseguinte, aqueles incorporam a definição dada a estes. Assim, com o intuito de evitar os efeitos provenientes do plágio da linguagem, seria de bom tom que não se usasse, na comunicação escrita e oral, alguns termos que traem o natural significado do matrimônio (como o dito “matrimônio homossexual”), reservando-se este apenas para a conceituação daquela situação de fato que coincide com sua real natureza. A união entre pessoas do mesmo sexo poderia ser definida em outros termos como, por exemplo, “parceria homossexual”[15].

 

FUNDAMENTO E SENTIDO DO DIREITO DE FAMÍLIA

Hoje, ante o pluralismo de modelos familiares que brotam na sociedade, propaga-se a ideia de que o Direito não deveria discriminar este em favor daquele, mas tratar a todos à luz do princípio da igualdade, sejam matrimônios ou uniões estáveis, heterossexuais ou homossexuais, no jargão politicamente correto.

É possível que o Direito aja com tal neutralidade, que me parece um tanto ilusória, como se os aludidos modelos tivessem realizado um pacto de não-agressão mútua? As funções da família são favorecidas com esta postura, que desencadeia um novo marco legislativo nesta matéria?

As respostas jurídicas aos novos tipos familiares partem do pressuposto de certa neutralidade do Direito de Família. Como se o Direito se resumisse exclusivamente a chancelar legalmente situações jurídicas de fato, à semelhança de um notário que registra, à margem do assento de nascimento de uma pessoa, todas as alterações de seu estado civil ao longo da vida (emancipação, casamento, separação, divórcio).

A abordagem, que rechaça um único modelo familiar e adota uma multiplicidade de tipos que são a resultante das diversas concepções existentes sobre a sexualidade e as relações afetivas e de convivência, coloca todas as formas no mesmo plano de equivalência social, o que parece torná-las juridicamente equivalentes, logo, sujeitando-as a um regime de direitos e deveres semelhante, quando não idêntico. Qualquer proposição contrária resultaria em discriminação nesta ótica.

O fruto colhido desta nova postura legislativa tem sido uma modificação do Direito de Família em suas linhas mestras. A falta de um conjunto de ideias e valores delimitados sobre as relações de caráter familiar cria uma sensação de que essas alterações carecem de um sentido claro e que as reformas levadas a cabo foram, muitas vezes, incoerentes, contraditórias e de pouca funcionalidade social.

Assim, é adequada a resposta dada pelos ordenamentos jurídicos, inclusive o nosso? Pensamos que uma saída passa pelo questionamento acerca do fundamento do Direito de Família.

A primeira resposta seria a que faz gravitar o Direito de Família ao redor dos critérios de convivência e afetividade. Seria o bastante, pois, que duas pessoas quisessem viver juntas: sob este argumento, ficariam efetivamente igualados os casais homossexuais e heterossexuais e seria também indiferente que estivessem ligados pelo matrimônio, já que o fundamental, a convivência e a relação de afetividade, seria o denominador comum destes modelos familiares. Ao cabo, seria razoável tratá-los de forma semelhante.

A proposição não nos parece convincente. De fato, nem no tratamento clássico da noção de família, nem tampouco nos mais modernos, demonstraram ser suficientes a convivência ou a afetividade ou ambas simultaneamente. Basta lembrar o sistema de impedimentos matrimoniais, regido pelos incisos I a VII do artigo 1.521 do Código Civil, o qual proíbe o casamento daqueles que incorrem em alguma das hipóteses legais, ainda que, empiricamente, queiram-se muito e já vivam juntos.

O Direito, mesmo assim, abstém-se de regular este relacionamento com direitos e deveres. Por exemplo, duas pessoas casadas, mas não entre si, não podem constituir vínculo conjugal estável na ótica legal. O Direito não proclama que não possam vivem juntas e querer-se mutuamente. Apenas salienta que essa convivência e essa afetividade não bastam para lastrear a regulação jurídica da família.

Sob outro ângulo, se a convivência e a afetividade fossem, efetivamente, o fundamento e a razão de ser do Direito de Família, não restaria evidente um critério objetivo que impulsionaria a sociedade e o Direito a se ocupar de tais situações. O problema reside no fato de que há muitas situações de convivência, de afetividade ou de ambas que nunca buscaram a força atrativa do Direito, salvo para efeitos periféricos, a saber, para atribuir algumas consequências jurídicas acidentais, como, por exemplo, no passado recente, em que não se reconhecia a união estável, mas se indenizava o cônjuge do lar pelos serviços domésticos prestados.

Logo, o fato de duas pessoas viverem juntas ou estabelecerem laços de afetividade não nos parece suficiente por si para justificar toda uma regulação jurídica tão densa que possa ser erigida à condição de Direito de Família, cuja finalidade, já ensinava Agostinho, no século IV, é a de regular e proteger uma estrutura antropológica objetiva.

Ainda que se argumente que, concomitantemente, o Direito conceda notável relevância a um desejo psicológico do casal, de fato, a afirmação procede, mas não é, juridicamente, o elemento essencial da hipótese de incidência. Mas não é só. Se a bandeira do afeto é levantada a prumo no território do Direito de Família, convém apreciar sua situação na estrutura do ente humano.

Na Antiguidade, Aristóteles admitia a afetividade com uma potência humana, pareada da inteligência e da vontade, entretanto, à vista de sua parca contribuição para a realização da plenitude humana, na ótica do filósofo, não procurou desenvolver com afinco o estudo desta matéria. Ele entendia que a felicidade (em grego, eudamonia) era conquistada por uma vida virtuosa. O estudo filosófico do campo afetivo só voltou a ganhar força na segunda metade do século XX com a fenomenologia[16].

O desconhecimento e a aversão científica ao tema provocaram um atraso na compreensão de sua importância e de sua ação recíproca com a vontade e a razão humanas. A afetividade é confundida, muitas vezes, com sua versão reducionista, conhecida por sentimentalismo, o qual restringe a dimensão afetiva, esta nobre realidade da natureza humana, a uma mera tendência permanente e, em geral, consciente, que dirige e incita a atividade do indivíduo para um fim (por exemplo, as pulsões do prazer sexual, a libido, e da atração para a morte, o suicídio).

Assim, conhece-se muito da cadeia mecânica das sensações, imprescindível para o estudo da afetividade, mas pouco (ou nada) se sabe sobre sua causa existencial. A depender do caso concreto, o sentido e o alcance dos afetos podem ser maximizados ou minimizados, quando estão desamparados da luz da antropologia filosófica. O excesso ou a falta podem proporcionar prejuízos. No Direito de Família, a louvação desmedida e errônea da afetividade é nociva às estruturas familiares a longo prazo.

A afetividade, na estrutura antropológica do ser humano, sem os arreios das virtudes da temperança e da fortaleza, segundo Aristóteles, provoca, no momento de tomada de decisão, um juízo menos livre e mais suscetível de manipulação, pois tende a justapor a deliberação à satisfação imediata dos prazeres sensíveis[17].  Quando as pessoas se permitem levar pela dimensão dos afetos, elas perdem sua natureza quando os afetos se desnaturam.

A respeito, Lewis[18] afirmava que todo amor humano, em seu apogeu, possui a tendência de reivindicar uma autoridade divina. Sua voz tende a soar como se fosse a vontade do próprio Deus. Ela nos diz para não medir o custo, exige de nós um compromisso total, tenta superar todas as outras reivindicações e insinua que todo ato feito sinceramente” por causa do amor” é, portanto, bom e até meritório. Que o amor erótico e o amor patriótico tentam dessa forma “tornar-se deuses” é geralmente conhecido. Mas afeição familiar pode fazer o mesmo, assim como a amizade, embora de modo diverso[19].

Um exemplo contundente está no movimento consumista que assola nossa sociedade nos dias de hoje. O consumismo provoca, no indivíduo, uma maior dependência de estímulos sensoriais e, depois, busca, na ânsia por prazeres, o apoio para vender mais e mais. A atração pelos prazeres é um movimento elementar da vontade, facilmente manipulável pela via da excitação. Uma vez experimentado o prazer, segundo a imagem projetada na publicidade, a pessoa vai à busca de outro bem consumível que julga apto a lhe satisfazer o desejo, que acaba por “criar” uma necessidade, antes concebida como um simples capricho.

Com efeito, o afeto, se, por um lado, permite a constituição de relações familiares, por outro, é insuficiente para a consolidação de uma estrutura familiar genuína. Se os afetos são cambiantes, como um vento que muda de direção neste ou naquele momento, pretender solidificar uma relação que se pretende duradoura num lastro exclusivamente afetivo é o mesmo que colocar uma lanterna na popa: só iluminará as ondas que deixamos para trás. A navegação até um porto seguro continuará às cegas.

Para isso, é necessário colocar a lanterna na proa: o amor, que não se confunde com o sentir-se bem, mas com o comprometer-se, com o doar-se e, para tanto, para alcançar o outro, para transcender-se, a pessoa precisa agir, harmoniosamente, com a inteligência (imagem do ideal), a vontade (ação livre na causa) e a afetividade (pulsão ordenada pela dimensão ética do ser).

A união conjugal decorrente do matrimônio, conforme já visto, tem uma antropologia implícita: diversidade sexual, igual dignidade dos cônjuges, complementaridade e abertura à procriação, alimentada pela natural atração entre homem e mulher e sobre a qual se articula a livre vontade de ambos, fundada pelo amor, e não pela simples afetividade, à doação e aceitação mútua. Por consequência, o amor verdadeiro e livre entre um homem e uma mulher, se, antes do matrimônio, era um amor eletivo, depois da realização deste, transforma-se em um amor devido por justiça.

O compromisso então nascente entre os cônjuges, além de moral, é jurídico e consiste na manifestação de um amor responsável, porquanto zela pela própria duração em benefício de ambos os consortes, dos eventuais filhos e da sociedade. O amor sustentado sobre o matrimônio não se limita a uma mera expressão de afetividade ou à volatilidade e o tumulto das emoções.

Aliás, o amor humano pleno, em quaisquer de suas formas, não somente no amor esponsal, é oblativo. Não nos parece possível que a justaposição de dois egoísmos possa necessariamente engendrar algum tipo de amor, ao menos digno de tal nome. O amor matrimonial demanda o compromisso aberto à transmissão da vida, donde decorre que a sexualidade, neste âmbito, não é singelamente um dado fortuito, nem somente uma maneira alternativa pela qual os esposos podem canalizar seu apetite sexual com exclusividade.

O matrimônio, na forma aqui preconizada, reclama, do Direito de Família, uma postura juridicamente prudencial, bem ao contrário da neutralidade reinante e sob pena de contrariar sua própria razão de ser, porque se trata da instituição social por antonomásia, já que a sociedade surge e desenvolve-se a partir da família fundada pelo matrimônio. O afeto avizinha as pessoas e desencadeia a constituição de uma relação familiar entre homem e mulher. Porém, por si só, não confere solidez ou mesmo perenidade a esta estrutura.

 

 A QUESTÃO SOB A ÓTICA LEGAL

Por proêmio, o Direito não considera o afeto como vis attrativa das relações familiares, mas o compromisso de abertura à descendência, com a assunção dos deveres daí decorrentes. Este comprometimento com a dimensão procriadora é um fato jurídico, ou seja, um evento que produz efeitos no campo jurídico, porquanto vincula os sujeitos da relação jurídica, proporcionando-lhes uma gama de direitos e deveres recíprocos.

Se o Direito concedeu um trato legal para algumas relações afetivas, não foi em virtude de tal atributo, mas porque tais relações são de extrema importância para a organicidade da própria sociedade. Por exemplo, a solidariedade, um nobre afeto que nos inclina a pensar nos outros, sobretudo nos que mais precisam.

A despeito de sua enorme importância para o tecido social, não se cuida de um fato jurídico que possa ser alçado à qualidade de relação familiar. O fato de alguém ajudar o outro que está privado do mínimo necessário à sobrevivência não acarreta o estabelecimento de um vínculo jurídico que o autorize a ser incluído no regime legal de parentesco: a solidariedade não se confunde com a base da sociedade e não a potencializa. Não gera novas pessoas.

O matrimônio (além da união estável e da família monoparental, segundo o artigo 226, §§ 3º e 4º, da Constituição Federal) gozam de especial proteção estatal, pois as modalidades de entidade familiar daí derivadas traduzem, objetivamente, a dimensão procriadora da sociedade, uma potencialidade motriz, fincada na antropologia e na ética social, que deve ser reconhecida e preservada pela lei[20].

Sem prejuízo de outros modos de relação humana, este dever legal de tutela específica limita-se aos modelos constitucionais, os quais, ontologicamente, conservam e perpetuam a sociedade. As outras, incluso as parcerias homossexuais, não são suficientes e necessárias para tal fim. Não pertencem à base de uma sociedade que se pretenda duradoura.

Contudo, tal constatação empírica não permite concluir que as outras categorias de convivência não devam merecer atenção do Direito. Pelo contrário, estas categorias devem buscar formas próprias para sua configuração jurídica, dado que a especial proteção constitucional é exclusiva das situações acima delineadas.

As parcerias homossexuais não gozam de uma dimensão procriadora naturalmente. Tampouco as normas constitucionais e infraconstitucionais atinentes às modalidades de entidade familiar tomam a afetividade, um dado subjetivo, como elemento de alicerce de uma relação humana. O Direito prefere aspectos objetivos: a) a dimensão procriadora, conforme já salientado; b) desimpedimentos legais para a constituição dos vínculos familiares, segundo a ordem social (artigo 1.521 do Código Civil); c) exterioridade da relação, como as declarações expressas de vontade e a filiação biológica.

Tais atributos correspondem o imprescindível para a constituição de um fato jurídico de ordem social. A hipótese de incidência da norma não se vincula à conferência da existência ou inexistência da afetividade para a concessão de direitos e deveres, sem que isso signifique pouco caso com os afetos em si. Apenas se confere ao afeto o devido lugar nas relações humanas, o lugar da subjetividade. Em todos os sentidos, não se pode exigir dos afetos mais do que eles podem dar.

Do contrário, restaria esvaziado o conceito de especial proteção constitucional dado às entidades familiares discriminadas pela Carta Magna[21] de 1988. Qualquer um que convivesse com outro e com o ânimo (aspecto subjetivo) de configurar um ente familiar poderia exigir uma série de deveres que são restritos ao matrimônio na forma aqui preconizada (por exemplo, o dever de sustento).

As outras categorias de convivência, aquelas que não formam a base da sociedade, têm a liberdade contratual de constituir e regular juridicamente a mútua relação pela via do negócio jurídico, instituto desenhado pela parte geral do Código Civil. Se reputado insuficiente, os interessados podem se valer da norma regente dos contratos atípicos (artigo 425 do Código Civil).

Por derradeiro, ainda que se pretenda a mais absoluta informalidade no relacionamento, os princípios gerais de direito da proibição de enriquecimento ilícito e da boa-fé objetiva poderão nortear a justa aplicação do direito no caso concreto, sobretudo no que toca à partilha do patrimônio comum na hipótese de cisão ou de falecimento de uma das partes[22].

Com a devida vênia, a ficção de que uma parceria homossexual constitua um matrimônio é tão contraditória como pretender que forme, por exemplo, uma holding, um leasing ou mesmo uma fundação. São institutos jurídicos que, à semelhança do matrimônio, movem-se em outra órbita. O modelo matrimonial da tradição romano-germânica e do sistema da common law não têm a pretensão de dar proteção a simples relações de amizade, tratos assistenciais ou vínculos sexuais. Buscam efetivar um estilo de vida que assegure a estabilidade social e o recâmbio e a educação das gerações vindouras.

Nesse debate, algumas perguntas devem ser respondidas antes de se chegar a uma conclusão. O que é mais importante para a gênese do tecido social: os matrimônios ou as parcerias homossexuais? Em qual deles reside o princípio autoconstitutivo e “genético” da sociedade? Em qual deles, fundados nas peculiaridades intrínsecas, os valores podem ser melhor transmitidos à geração sucessiva?

Em qual deles, os novos cidadãos crescerão melhor, de modo a estruturar-se e ampliar, de modo natural, as próprias personalidades? Que obrigações a sociedade deve assumir em relação a um e outro? Em que medida cada um deles contribui para o incremento do bem comum? A equiparação da parceria homossexual à condição matrimonial não seria um privilégio? A manutenção do status quo do matrimônio não seria uma discriminação para a parceria homossexual?[23]

Nesta hipótese, não nos parece que as atuais proibições dos homossexuais em contrair matrimônio impliquem numa discriminação estritamente falando ou mesmo numa negação de direitos a uma minoria. O ponderado fator de discrímen reside justamente nos elementos objetivos que o Direito exige para que um fato da vida (a relação afetiva entre duas pessoas) seja dotado de juridicidade familiar. Ademais, a expressão “discriminação” serve justamente para manipular a opinião pública.

Discriminar é separar, distinguir. Continuamente separamos e distinguimos. Diferenciamos entre pessoas boas e ruins, livros agradáveis e desagradáveis, comidas palatáveis e não palatáveis. Cada vez que elegemos algo, discriminamos inconscientemente, pois, ao optar por este, descartamos aqueles. Discriminar é necessário[24] e inevitável. Apenas é reprovável a discriminação injusta ou arbitrária, aquela que carece de qualquer fundamento. Assim, chamar cada coisa pelo devido nome é uma justa discriminação.

Tributando o devido respeito aos que professam o contrário, a utilização pejorativa do vocábulo “discriminação” pelo movimento ideológico homossexual tem o fim evidente de contornar a falta de um discurso racional para a defesa de certas posturas, como a do matrimônio. É um mero argumento ad hominem e, como tal, facilmente perceptível. Acrescente-se que a única semelhança da parceria homossexual com o matrimônio repousa no fato de que, em ambos os casos, existe uma prosaica cama de casal, ainda que utilizada de maneira substancialmente diferente em cada caso.

Sob ângulo diverso, o pretenso direito de matrimônio dos homossexuais traz consigo uma injusta discriminação com o restante da sociedade, pois ao se optar por um exercício genital naturalmente estéril, por corolário, abdicou-se voluntariamente da finalidade de propagação da espécie humana. Se a maioria das pessoas resolvesse trilhar por esta senda, a espécie humana minguaria em algumas décadas. Com efeito, a assunção matrimonial da parceria homossexual é contrária ao bem comum.

Também não pode ser olvidado que o fator de discrímen atende ao princípio constitucional da proporcionalidade. Veja-se. O princípio da proporcionalidade é formado por três subprincípios: o juízo de adequação, o juízo de necessidade e o juízo de proporcionalidade em sentido estrito.

O primeiro juízo estabelece que a norma reguladora de um direito fundamental seja adequada ou idônea para alcançar o fim colimado. O segundo juízo estatui que a restrição imposta pela norma seja necessária, se não há outra que resulte menos gravosa sobre os direitos afetados e que seja concomitantemente suscetível de alcançar a finalidade perseguida com igual eficácia. O último juízo consiste em aquilatar se a medida guarda uma relação de razoável equilíbrio entre as vantagens obtidas e as restrições provocadas pela espécie normativa.

Pode-se, logo, verificar a existência de uma relação de adequação ou idoneidade na distinção de tratamento hoje feita pelo Direito de Família entre o matrimônio e a parceria homossexual e o objetivo que se almeja, qual seja, o de conferir uma especial tutela jurídica para aqueles que se unem com o propósito de abertura à fecundidade (e, indiretamente, de perpetuação da espécie), finalidade que resulta impossível numa parceria homossexual obviamente.

O objetivo assinalado não somente é legítimo ou constitucionalmente admissível, como se constitui num interesse substancial do Estado em se vincular diretamente com a preservação de um de seus elementos constitutivos, isto é, a população, entendida como o conjunto dos cidadãos. Por conseguinte, a distinção de trato não resulta em uma injusta discriminação, não priva os homossexuais de qualquer direito humano, já que são portadores de uma dignidade inviolável e merecedores de um respeito incondicionado em razão de sua humanidade, concretamente considerada.

Outrossim, a diferenciação ainda guarda razoável relação de proporcionalidade com os fins que se busca tutelar, à luz de toda argumentação até aqui delineada, sem que as restrições afetem a prática da afetividade homossexual a tal ponto de inviabilizá-la.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É necessário refletir sobre a diferença entre o comportamento homossexual, como fenômeno privado, e, como comportamento público, legalmente previsto, aprovado e convertido em uma das instituições do ordenamento jurídico. As leis civis são os princípios que estruturam a vida do homem em sociedade, para o bem ou para o mal[25].

As formas de vida e os modelos nelas traçados não somente configuram a vida social exteriormente, mas tendem a modificar, nas novas gerações, a correta compreensão e valoração dos comportamentos empiricamente vividos no seio social. A extensão do matrimônio para os homossexuais pela via legal estaria destinada a provocar o obscurecimento da percepção de valores fundamentais e caros para a sociedade, dado que atrelados à sua própria subsistência.

Ao cabo, haveria a desvalorização da instituição do matrimônio, expressão que deriva do latim matri munus, vale dizer, ofício da mãe. Dito de outro modo, o matrimônio é a instituição que tutela, com uma beleza ontológica ímpar, a tarefa insubstituível da mãe: conceber, gerar e criar os seres humanos que prolongarão a espécie humana, com a colaboração do varão, igualmente necessária para o alcance da maturidade e da plena humanização dos filhos.

Voltemos, pois, para o tresloucado príncipe da Dinamarca, mencionado no início deste trabalho. Polônio, o conselheiro-chefe do rei Cláudio e símbolo da prudência naquela tragédia, certa feita, ao fim de um dos delírios de Hamlet, pronuncia que “though this be madness, yet there is method in’t”[26]. É loucura, mas há método nela, em tradução livre. E quem é a primeira vítima, ainda que acidental, do príncipe adoidado, que produz um banho de sangue? Justamente Polônio, justamente a ponderação!

Esta passagem literária tem uma carga simbólica muito grande neste caso. Ao se preconizar o alegado direito ao matrimônio homossexual de forma lancinante, o Direito pode ser a primeira vítima da insensatez desta proposta. Justamente o Direito, justamente a ponderação! E, inserindo esta idéia no âmbito do movimento homossexual, seguramente, pode-se dizer: é loucura, mas há método nela.

Uma casa não é necessariamente um lar. Equiparar uma parceria homossexual ao status matrimonial, com todos os direitos e deveres daí inerentes, não atenderá aos anseios que tanto se anunciam pelo movimento homônimo, pois, por mais paradoxal que pareça, provocará a própria autodiscriminação da homossexualidade, ao se pretender desconhecer a realidade desta condição. Em suma, misturar tudo para alegar o novo apenas serve para revelar os contornos do velho.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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NOTAS

[1] Jokin de Irala explica que, nesse documento, se detallan los pormenores de la campaña iniciada por los grupos de presión de gays e lesbianas em aquellos años. Se pone en funcionamento, entonces, la aplicación de las cuatro ‘p’ del marketing para vender la idea de la normalidad de la homosexualidad: “product” (conceptualizar bien el produto o, em este caso, la idea que se desea vender), “price” (centrándose en el precio de exacción; el precio que se paga si no se consume o si no se está de acuerdo com la idea em eventa); “promotion” (mecanismos que se utilizarán para promocionar la idea al público) y finalmente “place” (lugar o clientes que serán objeto de la campana), significando que no es necesario convencer a todo el mundo sobre el producto o la idea em venta, a condición de que se escojan bien ciertos destinatários de la publicidad.  (in Irala, Jokin de; Comprendiendo la homosexualidad; Eunsa; 2006; Pamplona; páginas 44 e 45). Tais técnicas de persuasão de massas, a julgar por seus resultados, foram e seguem sendo muito eficazes.

[2]  Eis os princípios básicos para persuadir os heterossexuais: En primer lugar, insensibilizar y normalizar para que perciban la homosexualidad com indiferencia porque casi cualquier comportamiento empieza a parecer normal si se satura al público… se entumece la sensibilidad especial hacia la homosexualidad habiendo mucha gente que hable mucho sobre el tema em términos neutrales o favorables; em segundo lugar, insistir en que los gays son víctimas y, em tercer lugar, satanizar a los defensores de la família. Este plan habla por si mismo. ( in op. Cit.; p.46). Veja-se que qualquer semelhança com a realidade atual não é mera coincidência.

[3] Sobre a questão, Tony Anatrella, citado por Jorge Scala em seu artigo sobre o assunto em epígrafe, diz que ahora bien, si la homosexualidad es uma patologia – como realmente lo es – el vocablo “heterosexualidad” resulta cientificamente inadmisible. En efecto, heterosexual se utiliza como oposto de homosexual; por tanto, ambos términos están em perfecta igualdad de condiciones, simplesmente serían dos opciones para el ejercicio de la sexualidad. Y esto no es cierto.  Homosexual se opone a varón, y lesbiana se opone a mujer. Dicho de outro modo, la normalidad – es decir adecuación com la natulareza humana – es ser mujer o varón. Lo patológico – y por ende está en outro plano – son el lesbianismo y la homosexualidad. Así como no se caracteriza a uma persona sana, como “no canceroso” – aunque obviamente lo sea – del mismo modo no podemos llamar a um varón “heterosexual”; porque la masculinidad incluye – necessariamente – la heterosexualidad. Dicho de outro modo, decir mujer – o varón – heterosexual es uma inútil redundancia y, lo que es peor, induce a la grave confusión de poner en un plano de igualdad la adecuación a la naturaleza, con um estilo vital contra natura. En cambio se dice “homosexual” o “lesbiana”, se indica uma patologia padecida por um varón o uma mujer, respectivamente (in El Derecho – Diario de Doctrina e Jurisprudencia ; Ed. 235; 02 de diciembre de 2009; Buenos Aires, p. 24).

[4] Escrevi, na coluna que assino no Correio Popular de Campinas, em debate sobre o tema, que ao longo das últimas décadas, na medida em que toda resistência da moral e dos costumes à conduta homossexual foi sendo afrouxada por uma compreensão desgarrada de preconceitos e pelo respeito às liberdades públicas das pessoas homossexuais (porque são pessoas humanas e não em razão do atributo sexual que as diferencia dos demais), as reivindicações do movimento homossexual, no Ocidente, vieram num plano inclinado, exigindo, primeiro, a equiparação moral de suas práticas com o casamento heterossexual, depois, o ensino do homossexualismo nas escolas infantis e, por fim, as duras penas da lei para filósofos, médicos, políticos, legisladores, sacerdotes, pastores e rabinos que tragam fundamentos científicos ou citem os versículos da Bíblia contrários ao homossexualismo, como se todos fossem membros de uma sociedade secreta, formada por heterossexuais (obviamente), orgulhosos de sua “superioridade” sexual (porque vivido pela maioria das pessoas), cujo objetivo principal seria o de promover, como no regime nazista, a opressão ou o genocídio dos gays, lésbicas e travestis. O contraste entre discurso e realidade é patente: o movimento homossexual cresce em virulência e pretensões autoritárias na medida em que a sociedade se torna mais simpática às legítimas exigências da comunidade homossexual (in Correio, 28.06.07, p.03).

[5] A Ética Natural, segundo o primeiro tratado de ética da tradição filosófica ocidental, Ética a Nicômaco, de Aristóteles, é o estudo sistemático sobre as normas e os princípios que regem a ação humana, com base nos quais essa ação é avaliada em relação a seus fins. Alguns séculos depois, Tomás de Aquino apresenta a mesma linha de entendimento, mas alargando o conteúdo das noções de virtude dos gregos (ligada eminentemente aos valores da polis) e de felicidade (eudaimonia). Em ambos os casos, os postulados da Ética Natural, de matriz aristotélico-tomista, na arena jurídica, estão afetos a uma dimensão eminentemente prática e traduzem-se na perspectiva de realização da plenitude de justiça a que o homem, enquanto sujeito de direitos e deveres, está chamado por sua natureza. O Realismo Jurídico (ou Direito Natural) é fundado na ideia de um direito inspirado pela lei natural, norma inscrita na própria natureza humana e que corresponde ao modo de ser próprio do homem e a uma ordem natural das coisas, acessível pelo uso da razão. Durante dezoito séculos de nossa era, até o advento do Positivismo Jurídico, que provocou a separação do ser e do dever-ser, foi o portador da reserva ética no conhecimento do Direito, fato que, por si só, demonstra a vitalidade deste enfoque, reforçado ainda pela rica interação gnosiológica, formada a partir de diferentes e valiosas contribuições filosóficas, prudenciais e jurídicas de seus três marcos históricos fundamentais: Aristóteles, os juristas romanos e Tomás de Aquino. Nessa visão do direito, o momento culminante da ordenação jurídica está na determinação e realização do justo concreto, em que compete um papel central ao jurista, apoiado no saber prático jurisprudencial, definido por Ulpiano, magistralmente, como a ciência do justo e do injusto.  A prudência (phrónesis ou prudentia) e a equidade (epiqueia ou equitas) são recursos fundamentais do ofício do jurista na apuração do obiectum iustitiae. O realismo jurídico responde, outrossim, pelo suporte teorético do núcleo básico dos direitos humanos fundamentais e dos princípios gerais de direito. A Metafísica, ou Filosofia Primeira (Aristóteles: 384-322 a.C.), é o ramo da filosofia que estuda a causa última e os princípios universais da realidade. O enfoque metafísico, segundo Aristóteles, é o enfoque próprio de toda a filosofia: estudar cada realidade concreta segundo sua causa última, ou seja, aquela causa que estende seus efeitos a toda a realidade. Difere das causas próximas, que produzem determinados efeitos limitados, de modo imediato e são estudadas pelas ciência particulares. A Antropologia Filosófica é o estudo do homem sob o prisma filosófico, isto é, sob a consideração de sua natureza própria, distinta dos demais seres: a de animal racional, que lhe proporciona uma vida intelectual, forjada a partir de duas faculdades: a inteligência e a vontade.

[6] Apenas a título de curiosidade, o revogado artigo 1.338 do Código Civil de 1916 era o único dispositivo legal em que a expressão amor foi empregada pelo legislador (“O gestor responde pelo caso fortuito, quando fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesse deste por amor dos seus”). O novo Código não manteve a palavra.

[7] Citado por Javier Hervada (in Diálogos sobre el amor y el matrimonio; Eunsa; 4ª Ed.; 2007; Pamplona; p. 122).

[8] Segundo a etnografia ou etnologia estruturalista, a família, em suas diversas manifestações históricas, nada mais seria que um produto do pensamento inconsciente coletivo e jamais poderia haver um conceito natural dessa instituição, diante dos resultados das pesquisas de Lévi-Strauss, nos quais convivem a poligamia e a poliandria, entre outros, como superestruturas da estrutura familiar, tomadas sempre à vista do contexto de relações humanas desenvolvidas nas mais diferentes sociedades. A família não é uma “resposta estrutural” que comporta infinitas superestruturas, moldadas no seio de relações sociais axiologicamente indiferentes. É, muito antes, uma “resposta antropológica”, porque, como ente multissingular, a família obedece à antropologia do homem, tanto que se cuida de um ente fundamental e insubstituível para qualquer sociedade de todas as eras e de todos os tempos. O próprio Lévi-Strauss (1967:134) afirma que “a união mais ou menos durável, socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos é um fenômeno universal, presente em todo e qualquer tipo de sociedade”. De fato, como seres humanos que somos, nossa própria maneira de ser nos revela, sem muita dificuldade, como diz Spaemann (1996:38), que somos “gerados e não acabados”. Isso significa que, para que comecemos a existir (desde a fecundação, segundo entendemos), precisamos ser concebidos por outros seres humanos, pois nada pode dar o que não tem e o efeito não pode ser desproporcional à sua causa. Para que a concepção se verifique, é indispensável a complementariedade biológica, sexual e psicológica entre uma mulher e um homem e isso é apenas o começo: a tarefa não se encerra com a geração do filho, mas se requerem décadas para que esses filhos cresçam, amadureçam e se desenvolvam, fases da vida em que os pais são indispensáveis, porque cada faz um aporte existencial e espiritual, desde sua particular perspectiva sexual e, ao mesmo tempo, de maneira conjunta e complementar. A família, assim entendida, não foi inventada, porque é uma instituição natural e isso explica seu caráter universal e perene. Essa assertiva é capaz de conduzir qualquer investigação sobre a família (e, indiretamente, sobre o matrimônio) ao reenvio de uma série elementar de atributos que constituem o ente familiar (e, indiretamente, o matrimonial). Tais atributos, por consequência, devem ter os toques da universalidade e da perenidade e, em sua essência, devem ser insuscetíveis de sofrer os efeitos da usura do tempo, salvo em suas formas de concretização, evidentemente condicionadas aos matizes históricos e materiais, mas sem que haja perda de sua identidade. Em suma, continuam, ontologicamente, referindo-se ao passado, mas, formalmente, agem diversamente do passado.

[9] De acordo com a Antropologia Filosófica, que encontra respaldo empírico na Etnografia-Estruturalista, auto-erigida à condição de antropologia, cujo maior expoente foi Claude Lévi-Strauss (1909-2009), antropólogo e filósofo francês, remetendo o leitor, nesse ponto, à sua afirmação transcrita na nota de rodapé anterior.

[10] João Pereira Coutinho, com o raro senso de humor que caracteriza suas crônicas quinzenais, disse que ”(…) li o suficiente para procurar um rasgo de racionalidade na exigência do “casamento gay”, que o Parlamento português aprovou hoje entre lágrimas e suspiros. Nunca a encontrei. Uma coisa é garantir formas de “união civil”, como em Inglaterra, capazes de proteger direitos vários para quem deseja viver em comum. Sejam homens, ou mulheres, ou homens e mulheres. Outra, bem diferente, é desmantelar a singularidade tradicional de uma instituição, dotada de natureza e reconhecimento próprios, para acomodar os desejos “simbólicos” de uma minoria. Aliás, não apenas de uma minoria, mas de qualquer minoria: se o casamento é tudo aquilo que quisermos fazer dele, não há nenhum motivo para recusar a benesse a comunidades imigrantes ou meras seitas religiosas que olham para a poligamia, ou para a poliandria, como formas legítimas de conjugalidade. Quem disse que os “afetos” são samba de duas notas só? Ou tudo, ou nada (in Folha On Line; 18.01.2010; Coluna Pensata).” O texto ilustra bem o relativismo reinante: de cunho ontológico, próprio do materialismo histórico elaborado por Marx e Engels, que nega a existência de qualquer critério supremo de moralidade (com exceção de Lênin, para quem o critério seria a “consciência proletária”). Logo, qualquer discurso ético é reputado arbitrário ou de fundo religioso e, em última análise, destituído de sentido racional ou secular.

[11] Diversidade, neste trabalho, é entendido como diferença. Não se confunde com o sentido empregado por Herbert Marcuse (1898-1979), sociólogo e filósofo alemão, pertencente à Escola de Frankfurt, o qual, transplantando os conceitos marxistas para a sexualidade e para a psicanálise, preconizou uma sociedade “polimorficamente diversa”, como resposta à uma suposta opressão sexual da civilização judaico-cristã.

[12] A propósito da multiparentalidade conjugal, formada a partir de um casal homossexual que pediu ajuda a um amigo para gerar um filho, há um precedente judicial disponível em: http://oglobo.globo.com/sociedade/justica-autoriza-registro-de-nascimento-com-duas-maes-um-pai-seis-avos-13925839. Acesso em 31.10.14. Também, na mesma toada: o projeto de lei que dispõe sobre o estatuto das famílias (PLS 470/13), formulado segundo a moderna tendência dos microssistemas jurídicos, é um bom exemplo disso. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=115242. Acesso em 05.02.14. A exposição de motivos deste documento legislativo dá bem o tom daquilo que combatemos no presente trabalho. Transcrevo alguns trechos: “O conceito de família é cada vez mais plural. Os arranjos familiares da sociedade moderna não mais decorrem apenas do matrimônio. A união estável, entre pessoas do mesmo sexo ou não, famílias monoparentais, adoções e a comprovação de paternidade via testes de DNA atestam que as mais diversas formas de relação familiar tornam a vinculação afetiva mais importante na abrangência e nas novas definições do conceito de família. No entanto, o atual sistema jurídico rege as questões familiares com base no Código Civil que data de 2002, e que foi concebido no final dos anos 1960. Com a tramitação e aprovação de centenas de leis sobre o tema, o mesmo se encontra defasado”. (…) “a legislação atual está ultrapassada e defasada em relação à realidade da família que, hoje, deixou de ser essencialmente um núcleo econômico para dar lugar à livre manifestação do afeto. As fontes do Direito de Família como a doutrina e os princípios são avançados, mas as regras jurídicas ficaram ultrapassadas. Embora o Código Civil seja de 2002, ele traduz concepções morais da década de 1960. Daí a necessidade de adequar essas regras às novas formatações de família que não são protegidas pela legislação atual. Um dos principais argumentos para a apresentação do projeto é o de que não é mais possível tratar questões da vida familiar, que envolvem emoções e sentimentos, tendo como referência normas que regulam questões meramente patrimoniais”. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/noticias/5182/Projeto+de+Estatuto+das+Fam%C3%ADlias+%C3%A9+apresentado+no+Senado+#.Uv3trr1TuM8. Acesso em 31.10.14.

[13] A propósito, escrevi (FERNANDES, 2014:2): ”Assistimos, recentemente, à notícia de que uma criança recém-nascida foi registrada, por força de uma decisão judicial, com os nomes de duas mulheres, um homem e seis avós. O macho da espécie deu uma força na concepção da criança, a qual será cuidada pelos três, com o detalhe de que a gestante já convive há algum tempo com a outra mulher, formando, conforme assinalado na sentença, “um ninho multicomposto e pleno de afeto”. No último século, parece que a sociedade perdeu o interesse pela família ou, ao menos, relegou-a exclusivamente ao âmbito particular da afetividade e das satisfações íntimas. Giddens observou isso com muita perspicácia e batizou a família de “instituição-casca”: cabe qualquer coisa dentro. Entretanto, nunca, como hoje, a qualidade das relações familiares é tão decisiva para o bem-estar dos indivíduos e, ao cabo, de uma sociedade que se fez individualista, consumista, relativista e indiferentista, deixando seus próprios membros decidirem sobre o próprio bem e a própria felicidade, mesmo que tais decisões sejam conflitantes umas com as outras no âmbito social. Essa redução privatizante do ente familiar é fruto de uma ofensiva direta e desencadeada a partir de vários campos do saber, mas, sobretudo, da filosofia, da linguística, da lei, da ciência e da ideologia, temperados, agora, com uma inovadora contribuição judicial. Sem dúvida, certas rigidezes e automatismos nas relações familiares não têm mais espaço nos dias atuais, ao passo que a tendência em reduzir a família a um mero fato privado deve ser vista com reservas, diante da ponderação entre os bens e interesses em jogo no tabuleiro social do bem comum. Por isso, urge que seja preservado um local onde as relações humanas sejam caracterizadas pela gratuidade, pela entrega e pela doação, isto é, por um amor que, de fato, comprometa a totalidade da pessoa, o que dificilmente se dá num “ninho multicomposto” contratualmente e baseado exclusivamente por umas veleidades comungadas a três ou mesmo em outros redesenhos atuais da noção de família. Em outras palavras, é preciso reconsiderar seriamente a vocação socializante da família, tarefa na qual ela sempre desempenhou um papel chave e único para o bem comum e para a perenidade de uma civilização, o que, historicamente, sempre se deu, segundo Lévi-Strauss, graças à “união mais ou menos durável e socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos”.  Quando o ente familiar fica reduzido à uma espécie de célula primária da vida individual (e não social), aquela vocação socializante fica debilitada, ainda mais numa quadra histórica em que tanto se fala de liberdade, responsabilidade, tolerância e diversidade, atributos que envolvem, necessariamente, uma interação ética de uns com os outros. Investir nessa redução privatizante da família é semear, a longo prazo, uma sociedade atomizada, onde o próximo será um ser anônimo e com o qual me relacionarei sobretudo contratualmente, já que apenas os interesses individuais falarão mais alto. Ao contrário do admirável mundo novo pintado na sentença que determinou o registro da criança, convém agirmos com uma certa prudência social, antes de endossarmos sumariamente “novos ninhos”. Assim, ao mesmo tempo em que se procura entender e, se for preciso, acolher os riscos e as oportunidades que nossa época oferece à instituição familiar, também se fornecem critérios seguros para a salvaguarda da essência do ente familiar, principalmente quando se atenta contra sua vocação socializante.”.

[14] A propósito, escrevi, sob o título “Como repensar a família hoje?”, sobre os fundamentos antropológico e etnológico da expressão “família natural”, a fim de evidenciar que esta é muito mais que uma mera e ultrapassada “família tradicional” e que corresponde à uma estrutura existencial veritativa do ser familiar. In: Direito e Família. Gandra Martins, Ives (Org.). São Paulo: Noeses, 2014, pp.171-244.

[15] Jorge Scala traz uma solução interessante: “Denomino ex professo ‘homomonio’ a las uniones homossexuales, puesto que al ser uma realidad diferente – e incluso contradictoria – del matrimonio; necessariamente deben tener um nombre diferente (in El Derecho – Diario de Doctrina e Jurisprudencia ; Ed. 235; 02 de diciembre de 2009; Buenos Aires, p. 23).

[16] A fenomenologia trata de descrever, compreender e interpretar os fenômenos que se apresentam à percepção, cujo objetivo é o de alcançar a intuição das essências, isto é, o conteúdo inteligível e ideal dos fenômenos, captado de forma imediata. Defende a extinção da dicotomia “sujeito/objeto”, ao contrário do pensamento positivista do século XIX, e examina a realidade à luz da perspectiva da primeira pessoa. O método fenomenológico se define como uma volta às coisas mesmas, isto é, aos fenômenos, aquilo que aparece à consciência e que se dá como objeto intencional. Os principais luminares desta corrente filosófica foram Edmund Husserl, Edith Stein e Martin Heidegger.

[17] A propósito da análise da afetividade na estrutura antropológica do ser humano, com raro senso de equilíbrio e sem resvalar no politicamente correto, destaco o trabalho do professor Antonio Jorge Pereira Junior. In: Afeto e Estruturas Familiares; Berenice Dias, Maria (Org.). Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2010.

[18] Clive Staples Lewis, escritor irlandês, conhecido como C. S. Lewis (18981963), destacou-se por seu trabalho acadêmico sobre literatura medieval e pela apologia humanista que desenvolveu por meio de várias obras e palestras. É conhecido por ser o autor da série de livros infantis de nome As Crônicas de Nárnia.

[19]  In: Os Quatro Amores. São Paulo:  Martins Fontes, 2006.

[20] Apesar disso, o Supremo Tribunal Federal, na decisão das ADI 4.277 e ADPF 132, ocorrida em 05.05.11, equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, de sorte que a parceria homossexual foi reconhecida como um núcleo familiar como qualquer outro. O reconhecimento de direitos de casais gays foi unânime. Os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso divergiram em alguns aspectos da fundamentação da maioria dos colegas, mas também os acompanharam no ponto central. A condenação da discriminação e de atos violentos contra homossexuais também foi unânime. Os ministros Marco Aurélio e Celso de Mello ressaltaram que o caráter laico do Estado impede que a moral religiosa sirva de parâmetro para limitar a liberdade das pessoas.

A interpretação do Supremo sobre a união homoafetiva, na prática, reconheceu a quarta família brasileira. A Constituição previa, até então, três enquadramentos de família. A decorrente do casamento, a família formada com a união estável e a entidade familiar monoparental (quando acontece de apenas um dos cônjuges ficar com os filhos). E, agora, a decorrente da união homoafetiva. Ao julgar procedentes as duas ações que pediam o reconhecimento da relação entre pessoas do mesmo sexo, os ministros decidiram que a união homoafetiva deve ser considerada como uma autêntica família, com todos os seus efeitos jurídicos. Os ministros destacaram ser importante que o Congresso Nacional deixe de ser omisso em relação ao tema e regule as relações que surgirão a partir da decisão do Supremo.

O voto do relator das duas ações, ministro Ayres Britto, conferiu interpretação conforme a Constituição para o artigo 1.723 do Código Civil. A norma define a união estável como aquela “entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Pelo voto do ministro, que foi acompanhado integralmente por seis de seus colegas, deve ser excluída da interpretação da regra qualquer significado que impeça o reconhecimento de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Em voto de cerca de duas horas, o ministro frisou que a união homoafetiva não pode ser classificada como mera sociedade de fato, como se fosse um negócio mercantil.

Além de uma longa análise biológica sobre o sexo, Britto registrou que o silêncio da Constituição sobre o tema é intencional. “Tudo que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido. A ausência de lei não é ausência de direito, até porque o direito é maior do que a lei”, afirmou. Britto ainda assentou que se não há lei que proíba, a conduta é lícita. De acordo com o ministro, a Constituição entrega o “empírico emprego das funções sexuais ao arbítrio das pessoas”. E o Estado brasileiro veda o preconceito por orientação sexual. “As normas constitucionais não distinguem o gênero masculino e feminino”, frisou Britto. Ou seja, não fazem distinção em relação a sexo. Logo, não fazem também sobre orientação sexual. Britto frisou que união homoafetiva só seria vedada se a Constituição fosse expressa nesse sentido. “O que seria obscurantista e inútil”, emendou. Segundo o ministro, a família, em sua concepção, é o núcleo doméstico, tanto faz se integrada por um casal heterossexual ou homossexual. O ministro também ressaltou que não se pode alegar que os heterossexuais perdem se os casais homoafetivos ganham o direito ao reconhecimento jurídico de suas relações. Só se restringe um direito para garantir outro. “Quem perde com o reconhecimento da união homoafetiva? Ninguém”, disse ele. Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio destacou o papel contramajoritário do Supremo — citou a decisão tomada em relação à Lei da Ficha Limpa — ao lembrar que as normas constitucionais de nada valeriam se fossem lidas em conformidade com a opinião pública dominante. O Ministro Celso de Mello, em seu voto, argumentou que “a extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade.” consagrou como direito constitucional a formação de família por casais homossexuais. Segundo o Ministro, a legislação é dura contra as relações homossexuais por influências religiosas históricas, como as Ordenações portuguesas que puniam com a morte os praticantes dos assim chamados “atos de sodomia”. Mais tarde, a inquisição católica no Brasil perseguiu severamente os homossexuais, instalando os preceitos inclusive no poder público, “como resulta claro da punição (pena de prisão) imposta, ainda hoje, por legislação especial, que tipifica, como crime militar, a prática de relações homossexuais no âmbito das organizações castrenses”, diz o ministro em seu voto. De acordo com ele, “ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual”. Segundo ele, o Estado sequer pode criar normas que desigualem indivíduos ao excluí-los de proteções jurídicas, como os benefícios reservados legalmente a casais heterossexuais. A decisão pelo reconhecimento da união homoafetiva como família, segundo o Ministro “não é nem pode ser qualificada como decisão proferida contra alguém, da mesma forma que não pode ser considerada um julgamento a favor de apenas alguns”. Em seu entendimento, o Congresso Nacional reluta em legitimar os direitos gays por refletir o sentimento da maioria da população. Mas o Legislativo, segundo ele, “não pode legitimar, na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional, a supressão, a frustração e a aniquilação de direitos fundamentais”. E resumiu: “ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da República”. Para ele, o silêncio constitucional quanto às uniões homossexuais não foi “voluntário ou consciente” do legislador constituinte. O artigo 226 da Constituição Federal, em seu parágrafo 3º, diz ser “reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”. Citando doutrina do constitucionalista Luís Roberto Barroso, o ministro afirmou que o dispositivo, ao reconhecer uniões estáveis sem casamento como família, teve objetivo de inclusão e, por isso, não poderia ser interpretado como norma excludente dos homossexuais. “A qualificação da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, desde que presentes, quanto a ela, os mesmos requisitos inerentes à união estável constituída por pessoas de gêneros distintos, representará o reconhecimento de que as conjugalidades homoafetivas, por repousarem a sua existência nos vínculos de solidariedade, de amor e de projetos de vida em comum, hão de merecer o integral amparo do Estado, que lhes deve dispensar, por tal razão, o mesmo tratamento atribuído às uniões estáveis heterossexuais”, explicou Celso de Mello. Ele também rebateu as críticas de que, ao preencher lacunas da Constituição, a Corte adota postura ativista e avança sobre atribuições do Legislativo. “O Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constituição violada pela inércia dos poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão constitucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República”, disse. “Práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas pela Corte Suprema em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos”. O Ministro Luiz Fux ressaltou que, se a homossexualidade é um traço da personalidade, caracteriza a humanidade de determinadas pessoas. “Homossexualidade não é crime. Então porque o homossexual não pode constituir uma família?”, questionou Fux. O próprio ministro respondeu a pergunta: “Por força de duas questões abominadas pela Constituição Federal, que são a intolerância e o preconceito”. Segundo Fux, todos os homens são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Assim, “nada justifica que não se possa equiparar a união homoafetiva à união estável entre homem e mulher”. O ministro ainda ressaltou que “se o legislador não o fez, compete ao tribunal suprir essa lacuna”. O Ministro Luis Fux disse que “assim como companheiros heterossexuais, companheiros homossexuais ligam-se e apoiam-se emocional e financeiramente; vivem juntos as alegrias e dificuldades do dia-a-dia; projetam um futuro comum”. Em seu voto, ele escreveu que “o direito segue a evolução social, estabelecendo normas para a disciplina dos fenômenos já postos” e que uma família é constituída por três elementos: amor, comunhão e identidade. “O que faz uma família é, sobretudo, o amor – não a mera afeição entre os indivíduos, mas o verdadeiro amor familiar, que estabelece relações de afeto, assistência e suporte recíprocos entre os integrantes do grupo. O que faz uma família é a comunhão, a existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum. O que faz uma família é a identidade, a certeza de seus integrantes quanto à existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade. Presentes esses três requisitos, tem-se uma família, incidindo, com isso, a respectiva proteção Constitucional”, escreveu. Ele ainda explicou que os direitos fundamentais positivam valores tidos por uma comunidade como nucleares, “de maneira a balizar a atuação do poder político e até mesmo dos particulares, irradiando-se por todo o ordenamento jurídico”. Nesse sentido, explicou o Ministro, “o Estado não fica apenas obrigado a abster-se da violação dos direitos fundamentais, como também a atuar positivamente na proteção de seus titulares diante de lesões e ameaças provindas de terceiros, seja no exercício de sua atividade legislativa, administrativa ou jurisdicional”. De acordo com ele, impedir que um casal homossexual tenha os mesmos direitos que um casal heterossexual é violar a Constituição Federal. “Quando o processo resulta em flagrante e disseminada violação dos direitos fundamentais — sobretudo aqueles que dizem com os direitos da personalidade, como os de que ora se cuida —, o Estado tem o dever de operar os instrumentos de fiscalização de constitucionalidade aptos a derrotar o abuso”, explica. “Não pode haver compreensão constitucionalmente adequada do conceito de família que aceite o amesquinhamento de direitos fundamentais”. Ainda em seu voto, o Ministro indica cinco premissas: “a homossexualidade é um fato da vida”; “a homossexualidade é uma orientação e não uma opção sexual”; “a homossexualidade não é uma ideologia ou uma crença”; “os homossexuais constituem entre si relações contínuas e duradouras de afeto e assistência recíprocos, com o propósito de compartilhar meios e projetos de vida” e “não há qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade no estabelecimento de uniões homoafetivas. Não existe, no direito brasileiro, vedação às uniões homoafetivas”. Em suas palavras, “a proteção constitucional da família não se deu com o fito de se preservar, por si só, o tradicional modelo biparental, com pai, mãe e filhos. Prova disso é a expressa guarida, no § 4.º do art. 226, das famílias monoparentais, constituídas apenas pelo pai ou pela mãe e pelos descendentes; também não se questiona o reconhecimento, como entidade familiar inteira, dos casais que, por opção ou circunstâncias da vida, não têm filhos”. Ao final do voto, o Ministro citou Ernst Benda que, em seu Manual de Derecho Constitucional, escreveu: “Está vedado ao Estado distinguir os indivíduos em função de seu presumido valor moral. O Estado não se deve arrogar o direito de pronunciar um juízo absoluto sobre os indivíduos submetidos a seu império. O Estado respeitará o ser humano cuja dignidade se mostra no fato de tratar de realizar-se na medida de suas possibilidades”. O Ministro Joaquim Barbosa ressaltou que cabe ao Supremo “impedir o sufocamento, o desprezo e discriminação dura e pura de grupos minoritários pela maioria estabelecida”. De acordo com ele, o princípio da dignidade humana pressupõe a “noção de que todos, sem exceção, têm direito a igual consideração”.  A Ministra Carmen Lúcia salientou que “pode-se tocar a vida sem se entender; pode-se não adotar a mesma escolha do outro; só não se pode deixar de aceitar essa escolha, especialmente porque a vida é do outro e a forma escolhida para se viver não esbarra nos limites do Direito. Principalmente, porque o Direito existe para a vida, não a vida para o Direito”. Com esse entendimento em seu voto, a Ministra entendeu ser “admissível como entidade familiar a união de pessoas do mesmo sexo e os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis serem reconhecidos àqueles que optam pela relação homoafetiva”. Segundo ela, a referência expressa a homem e mulher não significa que, se não for um homem e uma mulher, a união não possa ser também fonte de iguais direitos. Para explicar que a escolha de uma união homoafetiva é individual, íntima, manifestação da liberdade individual, e muitas vezes incompreensível, a ministra citou Guimarães Rosa, na descrição de Riobaldo, ao encontrar Reinaldo/Diadorim: “enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo…o real roda e põe diante. Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos…amor desse, cresce primeiro; brota é depois. … a vida não é entendível (Grande Sertão: veredas).” A ministra deixou claro que “o que é indigno leva ao sofrimento socialmente imposto. E sofrimento que o Estado abriga é antidemocrático. E a nossa é uma Constituição democrática”. Mesmo os ministros que divergiram do voto do Ministro Ayres Britto, fizeram-no por questões pontuais. O Ministro Ricardo Lewandowski, primeiro a não acompanhar integralmente o relator, reconheceu os direitos dos casais homossexuais, mas de forma um pouco mais restrita. Conforme o voto do Ministro, os homossexuais têm os mesmos direitos dos casais convencionais que vivem em união estável, exceto aqueles típicos das relações entre um homem e uma mulher, mas sem tê-los explicitado, o que poderia fazer supor a impossibilidade de extensão do casamento civil às pessoas do mesmo sexo. O Ministro Lewandowski também registrou que a decisão deveria valer até que o Congresso Nacional regulasse o tema, resgatando as discussões da Assembleia Nacional Constituinte em torno do parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição, as quais deixaram evidente a clara opção do legislador da união estável entre homem e mulher. Por fim, segundo o Ministro, a decisão do STF ocupa o espaço do Congresso Nacional, de maneira que o preenchimento da lacuna teria de ser provisório. Para o ministro Gilmar Mendes, o tema em julgamento diz respeito à dignidade dos indivíduos. “A pretensão que se formula tem base nos direitos fundamentais a partir dos princípios da igualdade e da liberdade”, disse. De acordo com o ministro, é necessário reconhecer os direitos de casais formados por pessoas do mesmo sexo por uma questão de dignidade humana. O Ministro fez observações sobre os fundamentos da decisão do STF. Para ele, pretender regular a união homoafetiva como faria o legislador é exacerbar o papel do Supremo. “Fazermos simplesmente a equiparação pode fazer com que estejamos a equiparar situações que vão revelar diversidades”, disse o Ministro. Por isso, o Ministro Gilmar Mendes acompanhou Britto no mérito, mas se limitou a reconhecer a existência da união homoafetiva sem se pronunciar sobre outros desdobramentos possíveis.

O Ministro Cesar Peluso afirmou que “na solução da questão posta, só podem ser aplicadas as normas correspondentes que no Direito de Família se aplicam à união estável entre homem e mulher”. Mas nem todas, disse o presidente do Supremo, porque não se tratam de relações idênticas, mas de equiparação. “A partir deste julgamento, o Legislativo tem de se expor e regulamentar situações que irão surgir a partir do pronunciamento da Corte. É necessário regulamentar a equiparação. Aqui se faz uma convocação para que o Congresso Nacional atue”, concluiu o Ministro. Nas sustentações orais, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, afirmou que a ação visava reconhecer que todas as pessoas têm os mesmos direitos de formular e perseguir seus planos de vida desde que não firam direitos de terceiros. E, para ele, o reconhecimento da união homoafetiva fortalece a família. Segundo ele, a discriminação em relação aos casais formados por pessoas do mesmo sexo compromete a capacidade dos homossexuais de viver a plenitude de sua opção sexual. “Embaraça o exercício da liberdade e o desenvolvimento da identidade de um número expressivo de pessoas”, disse. Ele também citou dados do IBGE, de acordo com o qual há 60 mil casais homossexuais no país. “E o número é certamente maior do que o dos dados oficiais. A união entre pessoas do mesmo sexo enquadra-se no plano dos fatos”, afirmou. O advogado Luís Roberto Barroso, representando o governo do Estado do Rio de Janeiro, subiu à tribuna para falar que a história da civilização é a história da superação do preconceito. E lembrou de casos em que homossexuais foram punidos apenas por declarar sua opção sexual. De acordo com o advogado, o STF deveria impor o mesmo regime jurídico das uniões estáveis convencionais às relações homoafetivas. Entender diferente, sustentou, significa depreciar e dizer que o afeto delas vale menos. “Duas pessoas que unem seu afeto não estão numa sociedade de fato, como uma barraca na feira. A analogia que se faz hoje está equivocada. Só o preconceito mais inconfessável deixará de reconhecer que a analogia é com a união estável”, afirmou Barroso. O advogado também frisou que o direito das minorias não deve ser tratado necessariamente pelo processo político majoritário. Ou seja, pelo Congresso Nacional. “Mas sim por tribunais, por juízes corajosos”, disse. O Advogado-Geral da União, Luís Inácio Adams, também defendeu o reconhecimento das uniões homoafetivas. “O reconhecimento dessas relações é um fenômeno que extrapola a realidade brasileira e o primeiro movimento de combate à discriminação que sofrem esses casais vem do Estado, com o reconhecimento de benefícios previdenciários”, afirmou. Outros seis amici curiae defenderam as uniões homoafetivas. Contra o reconhecimento, falaram dois amici. Uma delas, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), representada pelo advogado Hugo José Cysneiros, argumentou que “poligâmicos e incestuosos, alegrai-vos! Afinal, vocês também procuram afeto”, em contraponto às sustentações que pregaram que o afeto não pode ter distinção entre homossexuais e heterossexuais. “A pluralidade tem limites”, também afirmou o advogado, para quem “uma lacuna constitucional não pode ser confundida com não encontrar na Constituição aquilo que eu quero ler”. Segundo ele, a CNBB não tomou parte nas ações para “trazer seu catecismo, nem citar textos bíblicos”, mas para pedir “o raciocínio, a análise, tendo como referência o texto constitucional”. Ele ainda salientou que, com o texto legal claro no sentido de que a “união estável se dá entre o homem e a mulher”, não havia espaço para interpretações. Deve ser ressaltado que o julgamento do STF foi feito com base em duas ações: uma Ação Direta de Inconstitucionalidade e uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A ADPF foi transformada em ADI depois que se verificou que um de seus pedidos, o reconhecimento de benefícios previdenciários para servidores do Estado do Rio de Janeiro, já havia sido reconhecido em lei. A ADI foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República com dois objetivos: declarar de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e estender os mesmos direitos dos companheiros de uniões estáveis aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. O argumento principal da ADPF transformada em ADI, proposta pelo Estado do Rio de Janeiro, foi o de que o não reconhecimento da união homoafetiva contrariaria preceitos fundamentais constitucionais como igualdade e liberdade e o princípio da dignidade da pessoa humana. Os dois pedidos foram julgados procedentes.

[21] Não existe qualquer referência à homossexualidade na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), na Convenção Européia dos Direitos do Homem (Roma, 1950), nos pactos internacionais relativos aos direitos humanos (ONU, 1966), na Convenção Americana dos Direitos do Homem (0EA, 1969) ou na Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (OUA, 1981). Ainda que o elenco dos direitos do homem tenha se ampliado, como no caso da Convenção de Roma, a ausência ainda permanece.

[22]  A 4ª Turma do STJ reconheceu a possibilidade do casamento civil entre homossexuais. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2011-out-25/stj-reconhece-casamento-civil-entre-pessoas-mesmo-sexo, Acesso em 31.10.14.

[23] São perguntas que correspondem a argumentos de razões públicas, equacionáveis dentro da ética dialógica que conduz o fio do debate jurídico no seio social, cujas raízes são alimentadas pela teoria do agir comunicativo do filósofo alemão Jürgen Habermas e pelos postulados do liberalismo político do filósofo americano John Rawls.

[24]  A propósito, sugere-se a leitura da obra “In Praise of Prejudice: The Necessity of Preconceived Ideas; Theodore Darylmple; Encounter Books; New York; 2006; First Edition”.

[25] Atualmente, como consequência da ditadura do relativismo (assunto muito bem abordado por Roberto de Mattei, na obra “La Dictature du Relativisme”), o ser é posto em causa ou condenado ao esquecimento por tendências antimetafísicas alimentadas pelo chamado “pensamento débil”. Ignora-se a realidade antropológica e a natureza humana é sacrificada, em sua dimensão ontológica e axiológica, pelo nominalismo ou pelo empirismo ou é negada, na linha do existencialismo sartreano, puisqu’il n’y a pas de Dieu pour la concevoir. O bem moral fica eclipsado à falta de um fundamento natural. A verdade do direito não resiste à perda do sentido da justiça, nem a verdade política sobrevive à crise do bem comum. Mário Bigotte Chorão arremata dizendo que “por tudo isso tende a prevalecer, no reino do agir humano, o subjetivismo voluntarista e decisionista. O relativismo ético e o positivismo jurídico, conjugados com o democratismo formalista ou processualista (observante da técnica majoritária, mas eticamente deficitário), parece arrastarem perigosamente nossas sociedades para o abismo de um novo totalitarismo, destrutivo da pessoa humana” (In: Pessoa Humana, Direito e Política. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006).

[26] In: Shakespeare, William. The Complete Works. New York: Gramercy Books, 1998.

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.