Direito e Amor


Curioso notar que o direito dispõe sobre muitas normas em diversas dimensões da vida humana, mas nada trata sobre o amor humano. Alguém poderia arguir que o amor é uma realidade própria da psicologia e não do direito, porque, afinal, o amor não goza de uma juridicidade natural e, assim, não tem condições de lhe ser atribuído um status de bem jurídico. Enfim, direito e amor seriam como água e azeite.

O revogado artigo 1.338 do Código Civil de 1916 era o único dispositivo legal em que a expressão “amor” foi empregada pelo legislador: “O gestor responde pelo caso fortuito, quando fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesse deste por amor dos seus”.

O ordenamento civil em vigor não manteve a palavra. Inclusive, consegue a rara façanha de tratar dos deveres do casamento, sem mencionar expressamente a expressão “amor”. Nesse ponto, será que existe uma relação entre o direito e o amor? E, caso positivo, no âmbito da relação conjugal, qual regra deveria iluminar as relações entre os casados: uma normatividade perene ou a simples espontaneidade do amor?

É um fato notório que, por trás de algumas posturas atuais em relação ao matrimônio, há uma clara, porém, aparente contraposição entre aquilo que se denomina como “exigências do amor” e o que é tido como disposição estável para uma fecunda conjugalidade, ou seja, uma certa lei natural. É uma tendência que defende a autenticidade como um dos pilares da atuação da mulher e do homem no seio de uma relação conjugal.

A dita autenticidade estaria justamente na espontaneidade do amor, num livre fluir da relação amorosa, marcada por uma invencível fragilidade intrínseca, algo bem retratado na famosa obra literária de Milan Kundera, “A insustentável leveza do ser” (1984), frente à inautenticidade representada por aquela lei normativa natural, reduzida a um produto cultural de uma mentalidade ultrapassada e alienante. Bauman, nesta virada de século, sintetizou tudo isso com a expressão “amor líquido”.

Esta autenticidade parte do pressuposto de que o homem é considerado um ser autêntico quando segue a inclinação espontânea que radica em si, porque toda inclinação é natural, ou seja, é conforme ao seu ser. Negam, sob outro ângulo, que a pessoa possa ter uma desordem em suas inclinações naturais, como a concupiscência.

A desordem não teria espaço, porque, inspirado na concepção rousseauniana de natureza humana, o ser do homem não portaria nem o bem e nem o mal: há simplesmente o seu ser, que deve ser assumido tal como é ontologicamente, em virtude de sua bondade inerente.

Eis a chamada autenticidade: uma tese pertinazmente proclamada e vivida por muitos, os quais, certamente, não acreditam que a antropologia kantiana aproxima-se muito mais da realidade que nos cerca: o homem é naturalmente capaz de agir mal. E sem necessidade de sociedade, de qualquer estrutura ou mesmo instituição, as quais fazem apenas potencializar o mal praticado individualmente.

Sem qualquer possibilidade de desordem nas inclinações naturais, a espontaneidade do amor surge, assim, como a regra de ouro da ação humana. O mal está em agir sem amor. Migrado este critério ao amor conjugal, infere-se, sem muito esforço intelectual, que esta regra deva pautar as relações entre os cônjuges, já que, onde há amor espontâneo, não pode haver qualquer tipo de desordem.

Mas aí reside o engano antropológico. Há um só amor, esse primeiro movimento da vontade que se orienta e adere intencionalmente ao objeto amado. É o primeiro movimento da inclinação natural do homem ao bem. Contudo, o homem tem, dentro de si, um fator de desordem em sua tendência inata ao bem, de maneira que, apesar daquela lei natural, goza também de uma inclinação para o mal, a chamada concupiscência. Uma vez domado por seus efeitos, o amor fica cego. E se o amor é cego, nunca acerta o alvo, como já dizia Shakespeare.

Os efeitos desta ética da autenticidade, entendida como um agir social segundo a inclinação espontânea que radica em cada um de nós (afinal, toda inclinação é natural, ou seja, é conforme ao nosso ser), acabam por produzir uma relação dialética entre as demandas do amor conjugal e sua lei natural, positivada nos deveres legais do matrimônio (artigos 1.565 a 1.568 do Código Civil), como se os imperativos do amor fossem dificilmente compatíveis com sua lei natural.

A interrogação é inevitável: pode haver tal contraposição entre o amor conjugal e a lei natural (positivada ou não) que origina o matrimônio e regula a vida conjugal? Dentro do âmbito mais amplo das relações entre o amor e a lei, se o amor é a fonte criadora de toda decisão acerca de uma ação humana, não seria o mesmo amor, proclamado em prosa e verso pela literatura de todos os tempos e de todas as épocas, a mais elevada norma do viver do homem, o princípio supremo de ordenação social, ao invés da lei?

Recordo-me de uma frase de Agostinho – ama et fac quod vis (ama e faze o que quiseres) – que, em tempos idos, quando os intelectuais eram mais cultos, gozava de prestígio, como citação clássica, entre eles. O “ama e faze o que quiseres” não equivaleria a um desprendimento de toda lei imposta, de toda condicionante normativa derivada do exterior do indivíduo e, muitas vezes, posta pelo direito?

Se mesmo qualquer matrimônio religioso deposita no amor humano sua lei fundamental de valor moral, não seria o amor fonte originária de ordem? Por outro ângulo, existiriam razões que permitem afirmar que tal contraposição seria aparente e que o amor, por ser a regra mais elevada da ação humana, poderia ser exercido dentro das balizas daquela lei natural?

Certa vez, li uma afirmação do filósofo alemão Josef Pieper, em sua obra Amor, que dá bem o tom da natureza do amor que aqui se propõe: “O amor e somente o amor é o que tem de estar em ordem para que todo o homem o esteja e seja bom”. Assim, segundo o amor esteja ou não ordenado, a vida de um homem será reta ou desordenada.

A ordem aqui mencionada não decorre de uma fonte normativa exterior, como as convenções sociais ou os costumes de um povo, mas daquela ordem intrínseca do amor que lhe é inerente. Filosoficamente, a ordem como transcendental do ser: uma roda é tanto mais uma roda, quanto mais perfeito é o círculo que a forma.

Se deixa de ser uma circunferência e passa a ser uma parábola, deixa de ser roda, ou seja, perde, em parte, seu ser próprio de roda. Pode até servir para outro fim, mas não atenderia sua finalidade natural, a de girar como uma roda. Se, então, sua estrutura ficasse mais desordenada e se transformasse num quadrado ou num triângulo, deixaria ser roda por completo.

Quando um músculo, ao invés de se mover segundo sua lei biológica, move-se desordenadamente, dá causa a um estiramento, ou seja, a uma alteração naquilo que lhe é normal, segundo sua ordem em sentido filosófico, a mesma ordem a que está sujeito o amor.

No âmbito desta ordem, o amor aperfeiçoa-se e cresce quanto mais o ser desenvolve-se normalmente e, ao contrário, o amor diminui sua intensidade na medida em que se atrofia a capacidade de ser. Basta comparar o amor de uma mãe pelo filho com o amor de um avaro pelo dinheiro: as diferenças são tão gritantes que é melhor não comparar…

Neste sentido, o amor é tanto mais amor quanto mais ordenado for e, por consequência, o amor desordenado é a imperfeição ou degradação do mesmo amor. Uma caricatura do amor. Desta sorte, compreende-se a outra famosa máxima de Agostinho: “Todos vivem de seu amor, faça-se o bem ou faça-se o mal”.

O amor nasce ordenado ou desordenado, respectivamente, conforme uma ordem ou uma desordem fundamental da pessoa. E é inevitável que assim seja, porque o amor é um ato que depende, por ser ato, da potência, sempre canalizada pela vontade. A ordem fundamental da vontade irá definir a ordem do amor que daí surge.

Não é porque existe amor que uma dada conduta será necessariamente reta. Excluída a ideia de ordem, o amor deteriora-se e, por conseguinte, a conduta humana daí derivada. A espontaneidade do amor, entendida como um agir social segundo a inclinação espontânea que radica em cada um de nós, não é fonte primária da ordem, já que o amor é uma realidade medida por critério distinto. Só quando o amor é ordenado, então é a norma regente do agir humano e o “ama e faze o que quiseres” de Agostinho ganha sentido, alcance e resume os preceitos daquela ordem natural.

E qual é a ordem do amor? Mais uma vez, recorremos a uma clássica citação de Agostinho: virtus ordo est amoris (a virtude é a ordem do amor). Invertendo a ordem da frase sem alterar seu sentido, desponta a resposta – a ordem do amor é a virtude. E quais virtudes? As virtudes morais, que representam fundamentalmente a justaposição da vontade aos ditames da reta razão. Por consequência, a ordem do amor é a lei natural. E os preceitos da lei natural representam as concreções da reta dinâmica desse mesmo amor.

Resta delimitar a ordem do amor conjugal. Evidente que esta ordem é representada pelas mesmas virtudes relativas ao amor propriamente dito, entretanto, impulsionado também por uma virtude específica que ordena o amor matrimonial, em virtude de suas peculiaridades: a virtude da castidade, aquele autodomínio que torna a pessoa capaz de se dar ao outro.

Esta virtude ilumina o amor conjugal, objetivamente, por intermédio dos três bens do matrimônio natural, a saber, a abertura à procriação, a fidelidade e a permanência. Tais bens não se reduzem a uma mera limitação ou repressão ao amor humano, como defendem algumas escolas antropológicas. Muito pelo contrário, são efeitos concretos deste amor e, na medida em que são vividos ordenadamente, superam e excedem em muito o mero exercício estóico de todas as prescrições legais sobre o assunto, mormente no que toca aos deveres.

As relações entre os homens, inclusive as de natureza conjugal, estão assentadas numa série de relações ontológicas objetivas, que portam uma ordem que lhes é inerente. Por exemplo, a relação entre pais e filhos tem nítida coloração ontológica, derivada da procriação, cuja ordem natural obriga os genitores ao dever de criação e educação da prole e esta, por sua vez, ao dever de respeito e obediência aos pais.

É o fato da procriação que dá causa a um rol de direitos e deveres recíprocos e não o amor humano. Este dado empírico não rompe com tais exigências ou as modifica substancialmente, mas, sem que estas se alterem, o amor humano ordenado entende que estes imperativos derivam da dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual as assume e aperfeiçoa.

Esta ordem objetiva funda-se no direito natural, porquanto se revela em deveres de justiça, cuja normatividade é veiculada pela lei natural, prisma ético que definirá se o amor é ordenado ou desordenado, inclusive aquele decorrente do matrimônio, lastreado no interior de uma relação natural e que responde a um anseio da pessoa humana.

Este anseio é guiado em função de umas necessidades e finalidades da espécie, motivo pelo qual entre o homem e a mulher exista uma mútua atração natural, que poderá crescer e ganhar uma nova dimensão: a do amor conjugal que, se for ordenado, conduz o matrimônio à plenitude e, se for desordenado, impede que esta perfeição seja alcançada. Com efeito, a lei natural é a ordem do amor conjugal e, assim, direito e amor, amor e direito, uma vez entrelaçados, demonstram a fecundidade e a transcendência da resultante daí decorrente.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras