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Reflexões sobre o “Direto Natural” de Aristóteles (por Heloísa Gusmão*)

Filosofia | 08/12/2015 | | IFE CAMPINAS

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I – CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

Ao analisar as formas de poder mais elementares da πόλις, Aristóteles descobre três modos distintos de constituições legais, conforme nos mostra a sua Política. Esta constituição do direito para Aristóteles é considerada pela literatura secundária como a fundamentação do chamado Direito Naturali. Mas, para uma boa construção ou descoberta da História da Filosofia, esta é uma afirmação de pouco significado se não se cultiva um cuidado interpretativo para que não se cometam com isto erros graves, como atribuir a Aristóteles um Direito Natural que não é seu ou mesmo juntá-lo a um grupo de autores “jusnaturalistas” pelo único motivo da semelhança de vocabulário, sem analisar as grandes diferenças no uso deste, não unívoco, para cada um dos filósofos em questão.

Neste artigo, portanto, buscaremos distinguir o que podemos significar por Direito Natural para Aristóteles. Um trabalho de direito natural comparado, apontando semelhanças e disparidades entre suas concepções para vários autores do jusnaturalismo clássico e moderno cumpriria com maior êxito a intenção a que esta pesquisa se propõe. O critério monográfico aqui usado, porém, há de permitir uma maior delicadeza hermenêutica para com o texto aristotélico, bem como que o trabalho seja curto, em conformidade com as normas de publicação do site. A pesquisa se fundará na interpretação de textos gregos antigos com uma grande frequência de reedições (os chamados códices ou, na filologia lusofônica contemporânea, testemunhos), que usaremos comparativamente em grego, inglês e em português, fato que nos leva a atentar para os critérios de edição usados pelos tradutores e comentadores. Este cuidado se faz necessário porque, como assinala o professor César Nardelli Cambraia em sua Introdução à Crítica Textual, tal como numa brincadeira de telefone sem fio, “a cada cópia que se faz de um texto, a constituição deste muda – seja por ato voluntário, seja por ato involuntário de quem o copia” ii.

Assim, o método filológico de crítica textual se nos apresenta como o mais prudente para a análise dos textos com os quais trabalharemos, pois, conforme também salienta Lausberg, “a tarefa básica do filólogo consiste em salvar os textos da destruição material”, enquanto que “a tarefa central [do mesmo] consiste na conservação do sentido que se deve dar ao teor do texto”iii, de modo que com esta técnica buscaremos recuperar nos textos o sentido mais próximo o possível do original. Não obstante o esforço exigido pela técnica adotada, um artigo de Filosofia não se pode esgotar por ela, pois, se assim fosse, seria tão somente um trabalho de Filologia. Sabemos que, apesar de complementares, são trabalhos distintos, sendo a ocupação principal num artigo filosófico a proposta de um problema filosófico, a clarificação dos pressupostos do mesmo nos textos trabalhados e das dificuldades de resolvê-lo, bem como a explicitação do caminho argumentativo que fizeram os filósofos e comentadores, a fim de que se abram novas possibilidades de se pensar a questão ou se confirmem as anteriores.

II – DIREITO NATURAL

Em Das Problem der Naturrechtslehre, Eric Wolf enumera 17 sentidos em que se pode usar o termo “natural” e 15 outros para o termo “direito”, contabilizando o impressionante número de 255 sentidos com os quais se pode dizer “direito natural”. Michel Villey parece pensar nisso quando, no artigo Abrégé Du Droit Naturel, aponta a falta de conhecimento dos juristas contemporâneos acerca do termo e mesmo certa ingenuidade de críticos como Kelsen ao “Direito Natural”iv. Segundo Villey, há uma forma principal e autêntica que deve ser buscada diretamente em seus inventores: Aristóteles, o pai da doutrina, e São Tomás, maravilhoso (sic) intérprete do texto de Aristóteles, para além do fato de tê-lo coroado com a doutrina católicav. Segundo ele, este direito natural autêntico não é conhecido, mesmo da Escola moderna de Direito Natural, pois esta está submergida numa cosmovisão neokantiana incompatível com a forma clássica de se pensar, que deve ser como que propedeuticamente desterritorializadavi para assim se fazer a experiência de compreensão do pensamento clássico.

Esta forma autêntica teria como principal característica a relação de implicação mútua entre a noção de direito a de justiça. Os exemplos dados por Villey são retirados do Livro V da Ética a Nicômaco e da Suma Teológica, IIa IIae qu. 57, nos quais são usados os mesmos termos (δίκαιον e jus) para designar tanto uma quanto outra noção. O termo grego encontra sua origem nos relatos sobre a deusa Δίκη, filha de Zeus e deusa da justiça, que, segundo Hesíodo, perseguia a injustiça por sobre a terra, punia os injustos e impunha equidade entre os homens. Em 943ª das Leis, Platão descreve esta deusa com o atributo da virgindade, pois sua justiça é de natureza incorruptível. Também em outros exemplos do direito clássico encontramos esta relação, não só do uso dos mesmos termos, mas propriamente da necessidade da justiça para a constituição do direito, como ao lermos o final do Livro II da República de Cícero: “sine summa iustitia rem publicam geri nullo modo posse”: sem a suprema justiça, a República não se pode realizar.

A justiça é alma e essência do direito natural e, à atividade dos juristas, a doutrina clássica atribui uma finalidade transcendente, a serviço da justiça. Tanto é assim que os dois exemplos citados por Villey são considerados pelos comentadores tanto como tratados da lei quanto como teorias da justiça. O Livro V da Ética Nicomaqueia nos desperta uma dúvida inicial: qual sentido de justiça equivale à noção de direito? Aristóteles inicia o trecho (1129ª27) mostrando que há vários significados para justiça e injustiça, pois estas podem ser ditas de vários modos. Quando os diferentes significados se dispersam em equívocos, eles não são imediatamente distinguíveis, como são as palavras equívocas de sentidos completamente distintos, por exemplo, a palavra designada para significar clavícula e chave no grego antigo:

ἔοικε δὲ πλεοναχῶς λέγεσθαι  δικαιοσύνη καὶ  ἀδικία,ἀλλὰ διὰ τὸ σύνεγγυς εἶναι τὴν ὁμωνυμίαν αὐτῶνλανθάνει καὶ οὐχ ὥσπερ ἐπὶ τῶν πόρρω δήλη μᾶλλον,(γὰρ διαφορὰ πολλὴ  κατὰ τὴν ἰδέαν) οἷον ὅτι καλεῖταικλεὶς ὁμωνύμως  τε ὑπὸ τὸν αὐχένα τῶν ζῴων καὶ  τὰςθύρας κλείουσιν. (Bywater)

Now ‘justice’ and ‘injustice’ seem to be ambiguous. But because the homonymy is close, it escapes notice and is not obvious as it is, comparatively, when the meaning are far apart, e.g. (for here the difference in outward form is great) as the homonymy in the use of kleis for the collar-bone of an animal and for that with which we lock a door”. (Barnes)

A partir deste alerta, Aristóteles faz uma distinção entre a justiça em sentido amplo (que é a equiparação do justo com o direito) e a justiça em sentido estrito (a equiparação do justo com a virtude do correto e do equitativo). E nossa primeira dúvida, sobre qual tipo de justiça se equipara com a letra da lei, ou seja, com a constituição escrita, à primeira vista parece ser respondida por este sentido primário, segundo o qual as pessoas que infringem as leis do direito, a constituição promulgada de um Estado, são consideradas injustas. O interesse de Aristóteles no livro V é, porém, fazer exame da segunda acepção de justiça, aquela que é uma parte da excelência moral, pois desde o livro IV vinha enumerando as outras virtudes humanas: a liberdade, a magnificência, a magnanimidade, a virtude que é meio termo entre os vícios de ambição e da negligência para com os bens, a jovialidade, a afabilidade, a sinceridade, a espirituosidade e o pudor. Aristóteles enxerga então uma subdivisão neste segundo sentido de justiça, chegando assim à ideia de justiça distributiva e de justiça corretiva. Por fim, passa a analisar os demais sentidos do termo: a justiça como reciprocidade, a justiça política e espécies análogas, justiça natural, justiça legal, além de apresentar uma escala dos graus de injustiça. Dedica o final das investigações do livro a questionar se se pode tratar alguém voluntariamente de modo injusto, se a culpa por injustiça na distribuição cabe a quem distribui ou se a culpa deve ser imputada a quem recebe, se é possível praticar injustiça consigo mesmo. A grande conclusão do tratado é que a prática da justiça é mais difícil do que se apresenta, por não se tratar de uma maneira de agir, mas de uma disposição íntima.

III – O LIVRO I DA POLÍTICA

Para compreendermos qual é a natureza desta justiça que se equipara com o direito em seu sentido mais ligado às constituições, é cabível lembrar que na Política Aristóteles faz um estudo das mesmas e este estudo é resultado da intelecção de uma relação causal entre a própria constituição material de um Estado e a sua constituição formal e escrita em modo de lei. Por isso olhemos com maior atenção o seu livro primeiro, considerado por tantos tão somente como um “tratado de economia doméstica” por quem deixa escapar que nele o Filósofo analisa as formas mais rudimentares da πόλις com o objetivo de depois explicitar esta relação causal entre as células constitutivas da πόλις e o seu todo.

No Capítulo I Aristóteles tem como pressuposto tácito – e, talvez, já demonstrado em suas Éticas ou em aulas precedentes a seus discípulos – que a πόλις é a mais elevada forma de comunidade e visa ao bem maior dos cidadãos. Mas este pressuposto é posto à prova durante o capítulo por seu método analítico, a partir do qual ele analisa a composição da cidade em seus elementos básicos e a finalidade destes elementos, de modo que a abstração das particularidades dos fins menores visados pelas partes leva o leitor a apreender o fim geral a que o todo visa. Por isso Aristóteles inicia um exame da comunidade doméstica, a família. No capítulo segundo ele toma como objeto de estudo a escravidão e questiona se ela é ou não natural, oferecendo objeções à naturalidade da escravidão e termina por mostrar como a arte de comandar escravos difere da arte de comandar pessoas livres. No capítulo terceiro, que é considerado um tratado econômico propriamente dito, Aristóteles investiga as riquezas e o modo de adquiri-las, defendendo que estas não devem ser adquiridas por si mesmas (tese elogiada por Marx no início do Capital), mostra a diferença entre o acúmulo de riquezas natural e o acúmulo de riquezas que é contrário à natureza e conclui com uma análise genética da origem da moeda. No capítulo quarto ele mostra que o acúmulo natural de riquezas é necessário à família e à cidade e mostra a importância das finanças no governo da cidade.

Ao último capítulo deste livro primeiro, Aristóteles analisa as relações entre marido e mulher e entre pais e filhos, e extrai disso prescrições de como deve ser a administração da comunidade doméstica. Examina também as qualidades morais nas pessoas livres e nos escravos, deixando claro que tais exames particulares devem levar à compreensão mais universal de como é e deve ser a disposição moral de um governante, dos súditos, como são e devem ser as constituições etc. Os capítulos que compõem o final do primeiro livro da Política nos permitem compreender a intenção de Aristóteles ao fazer uso de seu método analítico para decompor o Estado em suas partes mínimas e mostrar que a parte elementar do Estado não pode ser o indivíduo isolado, tal como T. Hobbes sugere no Leviatã. Um exemplo para explicar o argumento de Aristóteles é pensar que se eu disponho de um litro de água para analisar este composto em sua parte mais elementar, a decomposição química a ser feita não pode ir para além da fórmula H²O. Se, na análise, chego ao elemento hidrogênio, isolado do composto inicialmente analisado (água), é porque passei do limite da elementariedade do composto. De modo semelhante, Aristóteles quer analisar a πολιτεία grega e chegar às partes que, isoladas, ainda possuam as características essenciais do composto. Para isto, é necessário saber o que é o composto e por este motivo é que ele começa o livro oferecendo a definição de Estado, inserida nos seguintes argumentos:

Argumento 1)

P1: Toda comunidade visa a um bem;

P2: Toda cidade-estado é uma comunidade

.: Logo, toda cidade-estado visa a um bem

Argumento 2)

P1: O mais elevado visa a um bem mais elevado;

P2: A cidade-estado é a mais elevada forma de comunidade

.: Logo, a cidade-estado visa ao bem mais elevado

Nestes dois silogismos, Aristóteles apresenta uma definição preliminar de cidade-estado. Lembremos, das várias passagens da Metafísica, o enunciado “o ser se diz de vários modos”, e as várias outras, como a mais famosa dos Analíticos Posteriores, na qual ele diz que “conhecimento é conhecimento pelas causas”. Os vários modos de se dizer o ser, do ponto de vista da explicação do ser pelas suas causas, são os quatro recortes diferentes da realidade correspondentes às quatro causas: se eu digo que uma escrivaninha é um objeto de madeira, disse o que ela é em termos de causa material, mas várias outras coisas que não são escrivaninha e são também um objeto de madeira e, por isso, não se esgota a ideia de escrivaninha ao se fornecer a causa material. Tampouco se eu fornecer sua causa formal, dizendo que é um objeto de madeira com determinada disposição espacial, pelo mesmo motivo. Digo, então, que a escrivaninha passou por um certo processo de fabricação até chegar à loja e ser por mim adquirida com meu dinheiro, e por isso ela é um pertence meu, de modo que ofereci a causa eficiente (ao menos uma das causas eficientes) disto que eu digo ser uma escrivaninha. Mas também não basta, pois várias outras coisas são fruto do meu trabalho e não são escrivaninhas, de modo que, se quero oferecer uma definição essencial de algo, devo esgotar as causas necessárias e suficientes para que ele seja definido a ponto de não mais poder ser confundindo com outra essência. Dizer de uma escrivaninha qualquer que ela é, portanto, um objeto com uma superfície horizontal fabricada para se apoiar livros, cadernos entre outros objetos relacionados à atividade de leitura e escrita, é fornecer a definição que melhor a esgote. Objetos particulares (esta escrivaninha que tenho à minha frente) podem ser melhor descritos ao se fornecer conjuntamente todas as suas causas. Cabe lembrar aqui o trecho da Física em que Aristóteles define inclusive a própria causalidade:

“Uma coisa será chamada causa numa acepção se for um constituinte a partir do qual alguma coisa vem a existir (por exemplo, o bronze da estátua, a prata do cálice e seus gêneros); em outra acepção, se for a forma e o padrão, isto é, a fórmula de sua essência, e os gêneros desta (por exemplo, 2:1, e em geral o número, da oitava), e as partes presentes no relato; em outra ainda, se for a fonte do primeiro princípio da mudança ou do repouso (por exemplo, o homem que delibera é uma causa, e o pai da criança, e em geral aquele que faz aquilo que está mudando); e em mais uma acepção, se é uma espécie de meta – isto é, aquilo em busca de quê (por exemplo, a saúde da atividade física – Por que ele está se exercitando? – dizemos: “A fim de ser saudável”, e ao assim nos pronunciar julgamos ter enunciado a causa); e também todas as coisas que, quando alguma outra coisa as mudou, se acham entre o agente da mudança e a meta – por exemplo, o emagrecimento ou a purgação ou remédios ou instrumentos de saúde; porque todas essas coisas existem em função da busca da meta, diferindo entre si por serem algumas instrumentos e outras ações”. (Ph 194b23-195ª3)

Quais são, então, as causas da cidade-estado para que possamos decompô-lo em suas partes elementares sem que sua essência nos escape? No capítulo 1 é apresentada “a diferença específica da comunidade política em relação às outras formas de comunidades humanas mais restritas, principalmente a família”. Sabemos, a princípio, que a πόλις é uma comunidade, logo, a decomposição da πόλις que faremos deve chegar à comunidade mínima, ou seja, na relação entre duas pessoas, ou, como será explicado adiante, entre duas pessoas em algum aspecto diferentes. Francis Wolff, na obra “Aristóteles e a Política”, defende que uma das diferenças específicas entre a cidade-estado e as outras comunidades mais elementares é o fato dela possuir uma πολιτεία, ou seja, uma constituição ou regime político. Vejamos:

“[uma] ‘diferença’ da cidade em relação às outras comunidades: o fato de que ela tenha uma ‘constituição’, um ‘regime’ (em grego, πολιτεία). Ora, a πολιτεία de uma cidade é, como diz Aristóteles, ‘uma certa ordem (τάξις) instituída entre as pessoas que habitam a cidade (III 1, 1274b38). Em outros termos, é aquilo que organiza, estrutura e ordena as relações entre as partes da cidade, fazendo destas partes um todo, em suma, dando forma à matéria”vii

A ideia é condizente com o capítulo 1 da Política, no entanto Wolff se esquece de demarcar bem em que o fato da cidade-estado possuir uma πολιτεία difere das comunidades elementares. De fato, estas não possuem uma constituição, não cabe ao chefe da casa ou da aldeia promulgar positivamente leis, como faz o chefe do Estado. No entanto, há, sim, uma forma de organização política nas comunidades mais restritas, que não é uma πολιτεία, mas um ἀρχή, ou seja, um princípio interno ordenador, ou melhor, uma lei natural. Concordamos com Wolff, portanto, em dizer que a causa formal é diferente nas diferentes formas de comunidades que Aristóteles quer investigar, sendo a causa formal da cidade-estado a sua constituição (ou seja, a promulgação positiva de um regime político), enquanto que a causa formal das pequenas comunidades, como a família, é a lei que se baseia na natureza de quem legisla e de quem é legislado (senhor e escravo, homem e mulher, pai e filhos). Obviamente, se há uma promulgação de lei na cidade-estado e esta constitui sua causa formal, então aquele ou aqueles cuja responsabilidade é promulgar a lei se torna a causa eficiente da cidade. E o mesmo se sucede com o chefe da família ou aldeia, responsável por pôr em prática aquilo que a lei natural dispõe como tendência. As causas formal e eficiente, no entanto, não são suficientes para limitar a análise da cidade-estado à comunidade familiar, pois a própria constituição do indivíduo é, para Aristóteles, uma espécie de comunidade, que relaciona faculdades inferiores e superiores da alma.

Aristóteles precisa se valer, portanto, das outras causas para explicar por quê a célula elementar da πόλις é a relação entre dois indivíduos e não a própria constituição anímica individual. Por isto, no capítulo 2 é exposta “a maneira pela qual essa comunidade procede naturalmente das comunidades mais restritas e acaba por lhes atribuir um fim próprio: o bem, para além de uma sobrevivência confortável”viii. E fica claro, na célebre passagem onde Aristóteles define o ser humano como naturalmente um ser político, que uma sobrevivência confortável é causa final desta parte elementar da cidade-estado (que são as famílias e vilarejos, possíveis apenas a partir da associação humana) e que a cidade-estado possui uma característica específica que estas comunidades mais fundamentais não possuem, já exposta no segundo argumento e trabalhada novamente aqui: a cidade-estado visa o bem final, aquele a que todos os bens particulares buscados pelas comunidades restritas visam.

No capítulo 3, Aristóteles investiga, na célula elementar que serve de base para a cidade, a relação do senhor com sua domesticidade servil. Os capítulos de 4 a 6 são dedicados a demonstrar “o caráter, ora natural, ora convencional, da condição servil” para, no capítulo 7, afastar “das preocupações nobres do cidadão a tarefa de dirigir esse tipo de mão de obra”. Dos capítulos de 8 a 11, Aristóteles distingue um modo natural e limitado de adquirir riquezas (ligados à agricultura), de um modo não natural e ilimitado, favorecido pelo uso da moeda (ligado ao comércio). Richard Bodéus, na obra “Aristóteles, a Justiça e a Cidade”, reforça a ideia de que a principal preocupação de Aristóteles parece ser a de indicar até onde a riqueza, que não é um fim em si, é necessária para a cidade. Vamos investigar aqui qual é o valor filosófico dos capítulos 12 e 13 para a compreensão desta lei que se baseia na natureza dos legisladores e dos legislados, nos quais Aristóteles analisa, os outros membros da família, mulher e filhos, confiados à autoridade do senhor da casa.

III – ANÁLISE DE 1259a – 1260b

O precedente resumo do livro I teve um importante objetivo neste artigo, pois com ele vimos que o primeiro livro não se trata de apenas uma descrição especulativa das formas elementares de comunidade, ou seja, Aristóteles não se resume, nestas passagens, a tão somente descrever os fundamentos das comunidades familiares e das relações de poder entre senhor e servo, homem e mulher, pais e filhos. Vem de encontro ao nosso objetivo a advertência que Richard Bodéus faz, com a intenção de justamente propor uma visão geral do texto aqui trabalhado. Ele, após enumerar resumidamente todas as exposições presentes no livro I, adverte:

“O grau de detalhamento dessas exposições, mais ricas e desconcertantes do que parece aqui em seu resumo, fez com que o livro I fosse apresentado de bom grado como um ‘tratado de economia doméstica’. Esse tipo de apresentação é abusivo e mascara as preocupações de Aristóteles que sustentam, do início ao fim, as investigações efetuadas nesse livro. Essas preocupações estão ligadas a uma convicção global e muito profunda segundo a qual a economia, tão necessária para a política, no fundo não é objeto da própria política. Essa convicção é uma das mais significativas do pensamento aristotélico. Ela possui um alcance decisivo para apreciar os princípios mais fundamentais desse pensamento”. (BODÉUS, Richard. Aristóteles, a Justiça e a cidade).

Os capítulos 12 e 13 são um resumo do livro 1 e uma forma bastante didática do Filósofo apresentar exemplos concretos de uma realidade política que poderia parecer um pouco ideal, descolada da realidade, dado que havia no começo do livro aquela questão, em diálogo com As Leis de Platão, sobre a natureza do poder e se existiam ou não diferenças entre o poder que um patriarca exerce sobre sua família e o poder que um rei exerce sobre o reino e assim sucessivamente com cada forma de poder. Aristóteles o inicia, de fato, dizendo que a economia doméstica é composta de três partes: a ordem do senhor ao escravo; a ordem do marido à esposa e a ordem do pai aos filhos:

ἐπεὶ δὲ τρία μέρη τῆς οἰκονομικῆς ἦνἓν μὲν δεσποτικήπερὶ ἧς εἴρηται πρότερονἓν δὲ πατρική,τρίτον δὲ γαμική (καὶ γὰρ γυναικὸς ἄρχει καὶ τέκνωνὡς ἐλευθέρων [40] μὲν ἀμφοῖνοὐ τὸναὐτὸν δὲ τρόπον τῆς ἀρχῆςἀλλὰ γυναικὸς μὲν πολιτικῶς τέκνων δὲ βασιλικῶς:

“Acerca da economia doméstica nós vimos que nela há três partes – uma é a ordem do senhor para os servos, que já foi discutida, outra é a do pai e uma terceira a do marido. Um marido e pai, como vimos, ordena a mulher e as crianças, ambos livres, mas os ordenamentos são diferentes, sendo monárquica a ordem sobre as crianças e, sobre a esposa, uma ordem constitucional”.

Oἰκονομικῆς é um termo importante nos textos gregos e designa não somente o que nós compreendemos por administração de nossos bens de uso e consumo. É mais acertada a aproximação feita com o termo, um pouco já fora de uso, de “economia doméstica”, mas para compreendermos este nosso termo, é necessária à compreensão deste primeiro em grego. Ele aparece no Alcebíades, no Fedro, no Memorabilia do Xenofontes entre outros, e não se refere a um domínio privado que nada tem que ver com a vida pública e, por isso, política, Oἰκονομικῆς é sempre aplicado neste sentido de ser a atividade de cunho político exercida pelo homem grego livre nos domínios de suas propriedades.

[1259β] τό τε γὰρἄρρεν φύσει τοῦ θήλεος ἡγεμονικώτερονεἰ μή που συνέστηκε παρὰ φύσινκαὶ τὸ πρεσβύτερονκαὶ τέλειον τοῦ νεωτέρου καὶ ἀτελοῦς, ἐν  μὲν  οὖν  ταῖς  πολιτικαῖς  ἀρχαῖς ταῖς [5] πλείσταιςμεταβάλλει τὸ ἄρχον καὶ τὸ ἀρχόμενον (ἐξ ἴσου γὰρ εἶναι βούλεται τὴν φύσιν καὶ διαφέρεινμηδέν), ὅμως δέὅταν τὸ μὲν ἄρχῃ τὸ δ᾽ ἄρχηταιζητεῖ διαφορὰν εἶναι καὶ σχήμασι καὶ λόγοιςκαὶ τιμαῖςὥσπερ καὶ Ἄμασις εἶπε τὸν περὶ τοῦ ποδανιπτῆρος λόγοντὸ δ᾽ ἄρρεν ἀεὶ πρὸς [10] τὸθῆλυ τοῦτον ἔχει τὸν τρόπον δὲ τῶν τέκνων ἀρχὴ βασιλικήτὸ γὰρ γεννῆσαν καὶ κατὰ φιλίανἄρχον καὶ κατὰ πρεσβείαν ἐστίνὅπερ ἐστὶ βασιλικῆς εἶδος ἀρχῆςδιὸ καλῶς Ὅμηρος τὸν Δίαπροσηγόρευσεν εἰπὼνπατὴρ  ἀνδρῶν  τε  θεῶν τεHom. Il. 1.544

τὸν  βασιλέα  τούτων  ἁπάντων.  φύσει  γὰρ  [15]  τὸν  βασιλέα  διαφέρειν  μὲν  δεῖ,  τῷ  γένει  δ᾽ εἶναι  τὸναὐτόνὅπερ  πέπονθε  τὸ πρεσβύτερον  πρὸς  τὸ νεώτερον  καὶ   γεννήσας πρὸς τὸ τέκνον.

“A menos que haja exceções na ordem da natureza, o homem é naturalmente mais capacitado para ordenar que a mulher, assim como o idoso e experiente é superior ao jovem e imaturo. [5] Mas na maioria dos Estados constitucionais os cidadãos governam e são governados por turnos, pois as ideia de Estado Constitucional implica que a natureza dos cidadãos é igual e não difere em aspecto algum. No entanto, quando um governa e outros são governados, nós somos levados a criar uma diferença de apresentações, nomes e títulos de honra, o que pode ser ilustrado pelo dito de Amasis sobre sua bacia de lava-pés. A relação do homem com a mulher é sempre deste gênero. O ordenamento de um pai sobre suas crianças é monárquico, pois ele ordena em virtude do amor e do respeito à idade, exercendo o poder de um rei. Por este motivo Homero apropriadamente chamou a Zeus de “pai dos deuses e dos homens”, pois ele é rei de todos e porque um rei é por natureza superior aos seus súditos, mas ele deve ter o mesmo sangue ou etnia que eles, e assim é a relação do mais velho para com o mais jovem e do pai para com os filhos”.

Onde há uma πολιτεία, a igualdade política está implicada. Todas as diferenças, como os títulos de honra, são temporais e puramente oficiais. A referência feita aqui é à História de Heródoto, na qual o rei Amasis, vindo de origem não nobre, transformou uma bacia de lavar pés em uma estatua de um deus. “Assim como esta bacia se transformou em deus, eu me transformei em rei!”. A conexão é a seguinte: entre dois iguais, onde um legisla e outro é legislado, nós criamos uma distinção artificial em nomes e em títulos. Mas este não é o caso do marido e da esposa, pois a distinção entre eles existe e é permanente, ou seja, é segundo a natureza. O homem, por uma lei natural, é superior à mulher para ordenar, dada a hierarquia dos seres e o quanto que a mulher pode realizar da potência anímica humana em relação ao quanto que o homem o pode. Aristóteles lembra ainda que a menos que haja um acidente (no exemplo de São Tomás de Aquino no comentário à Política, aquilo que ocorre a homens efeminados, mas também poderíamos lembrar-nos de um acidente que ocorresse à mulher que optasse ou fosse fadada a não realizar a plenitude de sua natureza feminina e, portanto, não fosse naturalmente legislada por suas obrigações domésticas de procriação e cuidado com os filhos e com a casa), a relação entre um homem e uma mulher permanecerá a mesma, marido e esposa não mudarão de funções por turnos.

φανερὸν τοίνυν ὅτι πλείων  σπουδὴ τῆς οἰκονομίας περὶ τοὺς ἀνθρώπους  περὶ τὴν τῶν ἀψύχωνκτῆσινκαὶ [20] περὶ τὴν ἀρετὴν τούτων  περὶ τὴν τῆς κτήσεωςὃν καλοῦμεν πλοῦτονκαὶ τῶνἐλευθέρων μᾶλλον  δούλωνπρῶτον μὲν οὖν περὶ δούλων ἀπορήσειεν ἄν τιςπότερον ἔστινἀρετή τις δούλου παρὰ τὰς ὀργανικὰς καὶ διακονικὰς ἄλλη τιμιωτέρα τούτωνοἷον σωφροσύνηκαὶ ἀνδρεία καὶ δικαιοσύνη καὶ [25] τῶν ἄλλων τῶν τοιούτων ἕξεων οὐκ ἔστιν οὐδεμία παρὰτὰς σωματικὰς ὑπηρεσίας (ἔχει γὰρ ἀπορίαν ἀμφοτέρωςεἴτε γὰρ ἔστιντί διοίσουσι τῶνἐλευθέρωνεἴτε μὴ ἔστινὄντων ἀνθρώπων καὶ λόγου κοινωνούντων ἄτοπον). σχεδὸν δὲ ταὐτόνἐστι τὸ ζητούμενον καὶ περὶ γυναικὸς καὶ παιδός[30] πότερα καὶ τούτων εἰσὶν ἀρεταίκαὶ δεῖ τὴνγυναῖκα εἶναι σώφρονα καὶ ἀνδρείαν καὶ δικαίανκαὶ παῖς ἔστι καὶ ἀκόλαστος καὶ σώφρων οὔ;καθόλου δὴ τοῦτ᾽ ἐστὶν ἐπισκεπτέον περὶ ἀρχομένου φύσει καὶ ἄρχοντοςπότερον  αὐτὴ ἀρετὴ ἑτέραεἰ μὲν γὰρ δεῖ ἀμφοτέρους μετέχειν καλοκαγαθίας[35] διὰ τί τὸν μὲν ἄρχειν δέοι ἂν τὸν δὲἄρχεσθαι καθάπαξοὐδὲ γὰρ τῷ μᾶλλον καὶ ἧττον οἷόν τε διαφέρειντὸ μὲν γὰρ ἄρχεσθαι καὶἄρχειν εἴδει διαφέρειτὸ δὲ μᾶλλον καὶ ἧττον οὐδένεἰ δὲ τὸν μὲν δεῖ τὸν δὲ μήθαυμαστόνεἴτεγὰρ  ἄρχων μὴ ἔσται σώφρων καὶ δίκαιος[40] πῶς ἄρξει καλῶςεἴθ᾽  ἀρχόμενοςπῶςἀρχθήσεται καλῶς;ix

Por isto está claro que a economia doméstica visa mais aos homens do que à aquisição de coisas inanimadas; mais à excelência moral [virtude] que a excelência na prática de adquirir propriedade, quais chamamos de bens. Mais à excelência dos homens livres que dos servos. Uma questão precisa ser adicionada: se há alguma excelência qualquer num servo para além da excelência como instrumento e servo – se pode ter excelência moral [virtude] da temperança, coragem, justiça, e outras do gênero, ou servos possuem apenas a excelência dos serviços corporais. E, qualquer que seja a forma como respondamos a esta pergunta, uma dificuldade surge. Pois, se eles possuem excelência moral, em quê eles diferem do homem livre? Por outro lado, parece absurdo dizer que eles não possuem excelência moral, uma vez que são seres humanos e, por isso, dotados de um princípio racional. Uma questão semelhante surge acerca das mulheres e crianças, porque ambos são dotados de virtudes morais. Pode uma mulher ser temperante, ou corajosa ou justa e uma criança ser chamada de temperante ou intemperante ou não? Mas em geral nós podemos perguntar sobre o naturalmente governantes e sobre os naturalmente governados, se eles possuem o mesmo ou não no que diz respeito à excelência moral [virtude]. Pois, se sim, se uma alta excelência moral é requerida a ambos, por que um sempre deve sempre ordenar e outro sempre ser ordenado? Nós não podemos nem ao menos dizer que é uma questão de grau, pois a diferença entre quem ordena e quem é ordenado é de qualidade, não uma diferença de mais ou menos. Além do mais, quão estranha é a suposição de que um tenha e o outro não, pois e se o que ordena for intemperante e injusto, como poderá ordenar bem? E se o ordenado não possuir tais virtudes, como poderá obedecer bem?

A principal intenção da economia doméstica não é o acúmulo de propriedade, mas a educação moral dos participantes da família. O motivo disto é a hierarquia das finalidades: a propriedade é visada para o bem do homem e o homem visa à εὐδαιμονία.

 [1260α] ἀκόλαστος γὰρ ὢν καὶ δειλὸς οὐδὲν ποιήσει τῶν προσηκόντων.φανερὸν τοίνυν ὅτι ἀνάγκη μὲν μετέχειν ἀμφοτέρους ἀρετῆςταύτης δ᾽ εἶναι διαφοράς,(ὥσπερκαὶ  τῶν  φύσει  ἀρχομένων.  καὶ  τοῦτο  εὐθὺς  ὑφήγηται  τὰ περὶ τὴν  [5] ψυχήνἐν ταύτῃ  γάρ  ἐστιφύσει τὸ μὲν ἄρχον τὸ δ᾽ ἀρχόμενονὧν ἑτέραν φαμὲν εἶναι ἀρετήνοἷον τοῦ λόγον ἔχοντος καὶτοῦ ἀλόγουδῆλον τοίνυν ὅτι τὸν αὐτὸν τρόπον ἔχει καὶ ἐπὶ τῶν ἄλλωνὥστε φύσει πλείω τὰἄρχοντα καὶ ἀρχόμεναἄλλον γὰρ τρόπον τὸ ἐλεύθερον τοῦ δούλου [10] ἄρχει καὶ τὸ ἄρρεν τοῦθήλεος καὶ ἀνὴρ παιδόςκαὶ πᾶσιν ἐνυπάρχει μὲν τὰ μόρια τῆς ψυχῆςἀλλ᾽ ἐνυπάρχειδιαφερόντως μὲν γὰρ δοῦλος ὅλως οὐκ ἔχει τὸ βουλευτικόντὸ δὲ θῆλυ ἔχει μένἀλλ᾽ ἄκυρονδὲ παῖς ἔχει μένἀλλ᾽ ἀτελές[15] διὸ τὸν μὲν ἄρχοντα τελέαν ἔχειν δεῖ τὴν διανοητικὴν ἀρετήντὸ γὰρ ἔργον ἐστὶν ἁπλῶς τοῦ ἀρχιτέκτονος δὲ λόγος ἀρχιτέκτων), τῶν δ᾽ ἄλλων ἕκαστονὅσον ἐπιβάλλει αὐτοῖςὁμοίως τοίνυν ἀναγκαίως ἔχειν καὶ περὶ τὰς ἠθικὰς ἀρετὰς ὑποληπτέον,δεῖν μὲν μετέχειν πάνταςἀλλ᾽ οὐ τὸν αὐτὸν

“Se ele for libidinoso ou covarde, ele certamente não fará o que lhe foi estabelecido. Fica claro, portanto, que ambos têm de ter uma cota de virtudes, mas variando acerca dos objetos assim como varia entre eles mesmos. Aqui, a própria constituição da alma nos mostra o caminho. Nela, uma parte naturalmente ordena e outra naturalmente é ordenada – a primeira sendo a potência racional e a outra sendo a parte irracional. Agora é óbvio que o mesmo princípio se aplica genericamente, e, portanto, todas as coisas ordenam e são ordenadas de acordo com a natureza. Mas o tipo de leis difere: o senhor ordena o servo de modo diferente que o marido ordena a esposa e o pai ordena o filho. E, mesmo que as partes da alma estejam presentes em todos eles, elas estão presentes em graus diferentes. O servo não dispõem de sua faculdade deliberativa. A mulher dispõe, mas sem autoridade. E a criança dispõe, mas de maneira ainda prematura. Então é necessário supor o mesmo para as excelências morais, todas [as virtudes] participam deles, mas apenas do modo e grau que forem necessárias para o cumprimento de suas funções. Disto, o que ordena deve ter excelência moral em grau de perfeição, pois sua função, tomada em absoluto, demanda uma liderança máxima e a razão é esta liderança. Aos ordenados por outro lado, requer-se apenas a medida da excelência moral própria de cada um”.

A passagem que diz “a própria constituição da alma nos mostra o caminho” é uma passagem famosa por ser causa de muita contradição entre os tradutores e comentadores de Aristóteles. A leitura de comum acordo remete a São Tomás, com a ideia de que há uma regra, uma normatividade em relação a superioridade e inferioridade, não apenas nos estados, mas na própria constituição anímica. O verbo ὑφήγηται  nesta passagem é traduzido por Bonitz assim: “e esta diferença é indicada na alma”. A discussão aqui é para saber se a diferença está na alma ou se, o que se quer dizer no texto é que a alma indica esta diferença. Mas, se for este segundo caso, temos que submetê-lo à teoria da causalidade e nos questionar o que, na alma, tem a potência de indicar esta diferença, senão uma própria diferença na constituição da alma. Comenta São Tomás que é necessário que tanto o que governa quando o que é governado participem da virtude. De outro modo, nem o primeiro ordenaria corretamente, nem o outro obedeceria. A diferença na virtude de ambos está manifesta nas coisas que, por natureza, submetem-se a outras. Como é o caso da alma, onde a parte racional governa o apetite irascível e concupiscível. Cada uma destas partes da alma tem sua própria virtude, diferente uma da outra. “A virtude da parte racional é a prudência, enquanto que a virtude da parte irracional é a temperança, a fortaleza e outras virtudes semelhantes”

[20] τρόπονἀλλ᾽ ὅσον ἑκάστῳ πρὸς τὸ αὑτοῦ ἔργον.ὥστε φανερὸν ὅτι ἔστιν ἠθικὴ ἀρετὴ τῶν εἰρημένων πάντωνκαὶ οὐχ  αὐτὴ σωφροσύνη γυναικὸςκαὶ ἀνδρόςοὐδ᾽ ἀνδρεία καὶ δικαιοσύνηκαθάπερ ᾤετο Σωκράτηςἀλλ᾽  μὲν ἀρχικὴ ἀνδρεία δ᾽ ὑπηρετικήὁμοίως δ᾽ ἔχει καὶ περὶ τὰς ἄλλας. δῆλον  δὲ  τοῦτο  καὶ  κατὰ  μέρος  μᾶλλον  [25] ἐπισκοποῦσιν:  καθόλου  γὰρ  οἱ λέγοντες  ἐξαπατῶσινἑαυτοὺς  ὅτι τὸ εὖ ἔχειν τὴν ψυχὴν  ἀρετή τὸ  ὀρθοπραγεῖν τι τῶν τοιούτωνπολὺ γὰρ ἄμεινονλέγουσιν οἱ ἐξαριθμοῦντες τὰς ἀρετάςὥσπερ Γοργίαςτῶν οὕτως ὁριζομένωνδιὸ δεῖὥσπερ ποιητὴς εἴρηκε περὶ γυναικόςοὕτω νομίζειν ἔχειν [30] περὶ πάντων: “γυναικὶ κόσμον  σιγὴ φέρει,” Soph. Aj. 293

ἀλλ᾽ ἀνδρὶ οὐκέτι τοῦτοἐπεὶ δ᾽  παῖς ἀτελήςδῆλον ὅτι τούτου μὲν καὶ [32]  ἀρετὴ  οὐκ  αὐτοῦπρὸς αὑτόν ἐστινἀλλὰ πρὸς τὸ τέλος καὶ τὸν ἡγούμενονὁμοίως δὲ καὶ δούλου πρὸς δεσπότην.

Fica claro, então, que a excelência moral pertence a todos, mas a temperança de um homem e de uma mulher, ou a coragem e justiça, não são, como Sócrates julgava, as mesmas. A coragem de uma homem é manifestada no comando, enquanto que a de uma mulher, na obediência. E isto ampara todas as outras virtudes, como fica mais evidente se olharmos para cada uma em detalhes, pois aqueles que dizem genericamente que a virtude consiste em uma boa disposição da alma, ou em fazer o correto, ou coisa que o valha, apenas iludem a si mesmos. Melhor que estas definições foi o modo de falar daquele que, como Górgias, enumerou as diferentes virtudes. Todas as classes demandam seus atributos especiais, bem como disse o poeta sobre as mulheres: “O silêncio é a glória da mulher”, mas não é, igualmente, a glória do homem. A criança é imperfeita, e portanto é óbvio que sua virtude não é relativa a si mesma sozinha, mas sim a um homem perfeito e ao seu preceptor. E de modo semelhante é o servo em relação ao seu senhor.

No Menon de Platão, Sócrates defende a necessidade de alguma definição geral de virtude contra Górgias que, incapaz de apreender as ideias gerais, confunde o todo das virtudes com suas partes. (O Teeteto no começo do diálogo também não consegue abstrair o desenho que faz diante de Sócrates para fornecer uma explicação genérica da geometria). O Sócrates de Platão faz algo que Aristóteles está buscando a permissão lógica de fazer: defender que há uma ideia comum de virtude. Este Górgias, sofista e na infância da filosofia, é incapaz de compreender esta ideia geral e consegue apenas a enumeração avulsa de cada virtude. A tendência do texto aristotélico de se referir a Platão, pois a citação de Górgias e a oposição entre a ideia geral de virtudes e as virtudes particulares são prova suficientes de que o texto aqui se refere ao Menon.

ἔθεμεν δὲ πρὸς τἀναγκαῖα χρήσιμον εἶναι τὸν δοῦλονὥστε δῆλον ὅτι καὶ ἀρετῆς δεῖται μικρᾶς,καὶ τοσαύτης ὅπως μήτε δι᾽ ἀκολασίαν μήτε διὰ δειλίαν ἐλλείψῃ τῶν ἔργωνἀπορήσειε δ᾽ ἄν τις,τὸ νῦν εἰρημένον εἰ ἀληθέςἆρα καὶ τοὺς τεχνίτας δεήσει ἔχειν ἀρετήνπολλάκις γὰρ δι᾽ἀκολασίαν ἐλλείπουσι τῶν ἔργων διαφέρει τοῦτο πλεῖστον μὲν γὰρ [40] δοῦλος κοινωνὸςζωῆς δὲ πορρώτερονκαὶ τοσοῦτον ἐπιβάλλει ἀρετῆς ὅσον περ καὶ δουλείας:

Nós determinamos que o servo age em vistas da preservação da vida e, por isso, ele obviamente há de requerer o tanto de virtude que o preserve de cair na preguiça ou de perder o autocontrole. Alguém haverá de questionar se, se o que estamos dizendo é verdade, a virtude será também requerida nos trabalhadores livres, para que também não se distraiam de suas ocupações pela perda de autocontrole. Mas não há uma grande diferença nos dois casos? Pois o servo participa da vida de seu senhor, enquanto que o trabalhador livre é menos achegado a ele e apenas adquire virtude à medida em que se torna um servo.

 [1260β]  γὰρβάναυσος τεχνίτης ἀφωρισμένην τινὰ ἔχει δουλείανκαὶ  μὲν δοῦλος τῶν φύσεισκυτοτόμος δ᾽οὐθείςοὐδὲ τῶν ἄλλων τεχνιτῶνφανερὸν τοίνυν ὅτι τῆς τοιαύτης ἀρετῆς αἴτιον εἶναι δεῖ τῷδούλῳ τὸν δεσπότηνἀλλ᾽ οὐ τὴν διδασκαλικὴν ἔχοντα τῶν [5] ἔργων δεσποτικήνδιὸ λέγουσινοὐ καλῶς οἱ λόγου τοὺς δούλους ἀποστεροῦντες καὶ φάσκοντες ἐπιτάξει χρῆσθαι μόνον:νουθετητέον γὰρ μᾶλλον τοὺς δούλους  τοὺς παῖδας. ἀλλὰ  περὶ  μὲν τούτων διωρίσθω τὸν τρόπον τοῦτονπερὶ δ᾽ ἀνδρὸς καὶ γυναικόςκαὶ τέκνων καὶπατρόςτῆς τε περὶ

Um servo o é por natureza, e o mesmo não se pode dizer de um sapateiro ou de outro trabalhador livre. Está claro, portanto, que o senhor é a origem da virtude do servo, e não apenas um mero possuidor da técnica de como treinar servos em suas funções. Por isso é que estão enganados os que se esquecem de conversar com os servos e dizem que devemos apenas lhes dar ordens, pois os servos precisam de mais admoestações que as crianças.

Não se pode dizer o mesmo de um sapateiro ou de qualquer outro trabalhador livre (que é artesão), pois toda arte, toda τεχνῆ, foi descoberta pela razão, enquanto que o trabalho servil foi colocado pela natureza. O argumento que opera aqui se relaciona com a passagem da Ética que mostra que nós possuímos uma inclinação natural à virtude. Sendo o trabalho servil um trabalho natural, requer-se virtude moral para bem executá-lo.

[10] ἕκαστον αὐτῶν ἀρετῆς καὶ τῆς πρὸς σφᾶς αὐτοὺς ὁμιλίαςτί τὸ καλῶς καὶμὴ καλῶς ἐστικαὶ πῶς δεῖ τὸ μὲν εὖ διώκειν τὸ δὲ κακῶς φεύγεινἐν τοῖς περὶ τὰς πολιτείαςἀναγκαῖον ἐπελθεῖνἐπεὶ γὰρ οἰκία μὲν πᾶσα μέρος πόλεωςταῦτα δ᾽ οἰκίαςτὴν δὲ τοῦ μέρουςπρὸς τὴν τοῦ ὅλου δεῖ βλέπειν [15] ἀρετήνἀναγκαῖον πρὸς τὴν πολιτείαν βλέποντας παιδεύεινκαὶ τοὺς παῖδας καὶ τὰς γυναῖκαςεἴπερ τι διαφέρει πρὸς τὸ τὴν πόλιν εἶναι σπουδαίαν καὶ τὸτοὺς παῖδας εἶναι σπουδαίους καὶ τὰς γυναῖκας σπουδαίαςἀναγκαῖον δὲ διαφέρειναἱ μὲν γὰργυναῖκες ἥμισυ μέρος τῶν ἐλευθέρωνἐκ δὲ τῶν παίδων οἱ [20] κοινωνοὶ γίνονται τῆς πολιτείας.ὥστ᾽ἐπεὶ περὶ μὲν τούτων διώρισταιπερὶ δὲ τῶν λοιπῶν ἐν ἄλλοις λεκτέονἀφέντες ὡς τέλοςἔχοντας τοὺς νῦν λόγουςἄλλην ἀρχὴν ποιησάμενοι λέγωμενκαὶ πρῶτον ἐπισκεψώμεθα περὶτῶν ἀποφηναμένων περὶ τῆς πολιτείας τῆς ἀρίστης.

Dizemos muito para este assunto. As relações entre marido e esposa, pai e filhos, suas virtudes próprias, o que em seu intercâmbio com os outros é bom e o que é mal, e como nós podemos perseguir o bem e evitar o mal, nós iremos discutir quando nós falarmos das diferentes formas de governo. Pois, na medida em que cada família é uma parte do estado, e estas relações são parte da família, e a excelência da parte deve conduzir à excelência do todo, mulheres e crianças devem ser treinadas, por meio da educação, com um olho na constituição, se a virtude deles supostamente faz alguma diferença na virtude do Estado. E necessariamente faz: porque as crianças crescerão e se tornarão cidadãos, e metade das pessoas livres em um estado são mulheres. Sobre este assunto, já dizemos o bastante. Sobre o que falta, falaremos em outra hora. Considero, portanto, nossa investigação presente concluída. Nós faremos um novo começo. E, em primeiro lugar, vamos examinar as várias teorias de um estado perfeito.

Há de se tomar muito cuidado, por fim, ao se atribuir um “direito natural” a Aristóteles, pois este direito natural não é uma ideia criada para se contrapor à ideia de um direito positivo como convenção, assim como é feito em seguimentos do jusnaturalismo moderno. Para Aristóteles, toda lei, promulgada em forma de πολιτεία ou conduzida no interior de uma aldeia ou família, é natural desde que vise o bem a que visam aqueles que a ela estão submetidos, pois o conceito de natureza aqui usado refere-se a finalidade, ou, usando um equivalente agostiniano, a bem. Não haveria outro direito que não fosse natural e tudo o que atenta contra a natureza é injusto. Para Aristóteles, a justiça possui uma anterioridade ontológica ao direito e, correlativamente, a noção de justiça uma anterioridade lógica à noção de direito.

NOTAS:

i Optamos pelo termo “direito natural” como uso amplo, não determinado, deixando a expressão “lei natural” para usos mais específicos no interior das análises das obras, prevendo que, por exemplo, nas traduções para o português de São Tomás o uso de “lei natural” restringe-se à parte do direito natural destinada à participação do homem naquilo que se chama lei Eterna (cf. Tratado da Lei, edições Loyola). Outras precauções foram tomadas tendo em vista a concordância com os termos técnicos mais usados pelos comentadores aqui citados.

ii CAMBRAIA, C. N.  Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 1.

iii LAUSBERG, H. Linguística Românica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981. PP. 21-22.

iv A crítica de Villey a Kelsen é desenvolvida na obra “Questões de Tomás de Aquino Sobre o Direito e Política”, numa parte dedicada a expor os três argumentos mais usados por Kelsen: a falácia naturalista, a ausência de concordância sobre direito natural e a necessidade da existência do direito positivo. A tese de Villey é que, entre os tantos direitos naturais, o verdadeiro não é atingido por estes argumentos. Agradeço ao amigo Bruno Zampier pela referência.

v “La form premiére et authentique du droit naturel doit être directement cherchèe chez ses inventeurs; Aritote, pére de la douctrine, ou Saint-Thomas, qui le couronne d’une théologie, mais pour le reste est son merveilleux interprète”. VILLEY, M. “Abrégé Du Droit Naturel Classique”, in Archives de Philosophie Du Droit.

vi Aproprio-me aqui de um termo técnico muito usado nos cursos de História da Filosofia do grande professor Rodrigo Brandão.

vii WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. Discurso Editorial. São Paulo, 1999.

viii BODÉUS, idem. P. 22.

ix Aristotle. ed. W. D. Ross, Aristotle’s Politica. Oxford, Clarendon Press. 1957. A tradução que segue o texto é própria, feita com base no dicionário Perseus e comparada com a versão americana de Barnes, 1985.

BIBLIOGRAFIA:

ARISTOTLE. The Complete Works. Org. Barnes. Princeton University Press.

_________ Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1997.

_________ Ética a Nicômacos. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1992.

_________Ética a Nicômaco. Trad. António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009.

_________ ed. J. Bywater, Aristotle’s Ethica Nicomachea. Oxford, Clarendon Press. 1894.

BODÉUS, Richard. Aristóteles, a Justiça e a Cidade. Edições Loyola. São Paulo, 2007.

AQUINO, São Tomás. Org. O.P. Condensado de Santo Tomás de Aquino e Pedro de Alvérnia à Política de Aristóteles. Disponível em: http://www.documenta-catholica.eu/

WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. Discurso Editorial. São Paulo, 1999.

Heloísa Gusmão é graduanda em Filosofia pela UFPR e é membro do Instituto de Formação e Educação do Paraná (IFE-PR).

Texto publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, em 24 de Outubro de 2015, disponível [online] em <http://www.dicta.com.br/reflexoes-sobre-o-direto-natural-de-aristoteles/> Acesso em 08/12/2015.

Direito e Amor

Direito | 04/05/2015 | | IFE CAMPINAS

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Curioso notar que o direito dispõe sobre muitas normas em diversas dimensões da vida humana, mas nada trata sobre o amor humano. Alguém poderia arguir que o amor é uma realidade própria da psicologia e não do direito, porque, afinal, o amor não goza de uma juridicidade natural e, assim, não tem condições de lhe ser atribuído um status de bem jurídico. Enfim, direito e amor seriam como água e azeite.

O revogado artigo 1.338 do Código Civil de 1916 era o único dispositivo legal em que a expressão “amor” foi empregada pelo legislador: “O gestor responde pelo caso fortuito, quando fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesse deste por amor dos seus”.

O ordenamento civil em vigor não manteve a palavra. Inclusive, consegue a rara façanha de tratar dos deveres do casamento, sem mencionar expressamente a expressão “amor”. Nesse ponto, será que existe uma relação entre o direito e o amor? E, caso positivo, no âmbito da relação conjugal, qual regra deveria iluminar as relações entre os casados: uma normatividade perene ou a simples espontaneidade do amor?

É um fato notório que, por trás de algumas posturas atuais em relação ao matrimônio, há uma clara, porém, aparente contraposição entre aquilo que se denomina como “exigências do amor” e o que é tido como disposição estável para uma fecunda conjugalidade, ou seja, uma certa lei natural. É uma tendência que defende a autenticidade como um dos pilares da atuação da mulher e do homem no seio de uma relação conjugal.

A dita autenticidade estaria justamente na espontaneidade do amor, num livre fluir da relação amorosa, marcada por uma invencível fragilidade intrínseca, algo bem retratado na famosa obra literária de Milan Kundera, “A insustentável leveza do ser” (1984), frente à inautenticidade representada por aquela lei normativa natural, reduzida a um produto cultural de uma mentalidade ultrapassada e alienante. Bauman, nesta virada de século, sintetizou tudo isso com a expressão “amor líquido”.

Esta autenticidade parte do pressuposto de que o homem é considerado um ser autêntico quando segue a inclinação espontânea que radica em si, porque toda inclinação é natural, ou seja, é conforme ao seu ser. Negam, sob outro ângulo, que a pessoa possa ter uma desordem em suas inclinações naturais, como a concupiscência.

A desordem não teria espaço, porque, inspirado na concepção rousseauniana de natureza humana, o ser do homem não portaria nem o bem e nem o mal: há simplesmente o seu ser, que deve ser assumido tal como é ontologicamente, em virtude de sua bondade inerente.

Eis a chamada autenticidade: uma tese pertinazmente proclamada e vivida por muitos, os quais, certamente, não acreditam que a antropologia kantiana aproxima-se muito mais da realidade que nos cerca: o homem é naturalmente capaz de agir mal. E sem necessidade de sociedade, de qualquer estrutura ou mesmo instituição, as quais fazem apenas potencializar o mal praticado individualmente.

Sem qualquer possibilidade de desordem nas inclinações naturais, a espontaneidade do amor surge, assim, como a regra de ouro da ação humana. O mal está em agir sem amor. Migrado este critério ao amor conjugal, infere-se, sem muito esforço intelectual, que esta regra deva pautar as relações entre os cônjuges, já que, onde há amor espontâneo, não pode haver qualquer tipo de desordem.

Mas aí reside o engano antropológico. Há um só amor, esse primeiro movimento da vontade que se orienta e adere intencionalmente ao objeto amado. É o primeiro movimento da inclinação natural do homem ao bem. Contudo, o homem tem, dentro de si, um fator de desordem em sua tendência inata ao bem, de maneira que, apesar daquela lei natural, goza também de uma inclinação para o mal, a chamada concupiscência. Uma vez domado por seus efeitos, o amor fica cego. E se o amor é cego, nunca acerta o alvo, como já dizia Shakespeare.

Os efeitos desta ética da autenticidade, entendida como um agir social segundo a inclinação espontânea que radica em cada um de nós (afinal, toda inclinação é natural, ou seja, é conforme ao nosso ser), acabam por produzir uma relação dialética entre as demandas do amor conjugal e sua lei natural, positivada nos deveres legais do matrimônio (artigos 1.565 a 1.568 do Código Civil), como se os imperativos do amor fossem dificilmente compatíveis com sua lei natural.

A interrogação é inevitável: pode haver tal contraposição entre o amor conjugal e a lei natural (positivada ou não) que origina o matrimônio e regula a vida conjugal? Dentro do âmbito mais amplo das relações entre o amor e a lei, se o amor é a fonte criadora de toda decisão acerca de uma ação humana, não seria o mesmo amor, proclamado em prosa e verso pela literatura de todos os tempos e de todas as épocas, a mais elevada norma do viver do homem, o princípio supremo de ordenação social, ao invés da lei?

Recordo-me de uma frase de Agostinho – ama et fac quod vis (ama e faze o que quiseres) – que, em tempos idos, quando os intelectuais eram mais cultos, gozava de prestígio, como citação clássica, entre eles. O “ama e faze o que quiseres” não equivaleria a um desprendimento de toda lei imposta, de toda condicionante normativa derivada do exterior do indivíduo e, muitas vezes, posta pelo direito?

Se mesmo qualquer matrimônio religioso deposita no amor humano sua lei fundamental de valor moral, não seria o amor fonte originária de ordem? Por outro ângulo, existiriam razões que permitem afirmar que tal contraposição seria aparente e que o amor, por ser a regra mais elevada da ação humana, poderia ser exercido dentro das balizas daquela lei natural?

Certa vez, li uma afirmação do filósofo alemão Josef Pieper, em sua obra Amor, que dá bem o tom da natureza do amor que aqui se propõe: “O amor e somente o amor é o que tem de estar em ordem para que todo o homem o esteja e seja bom”. Assim, segundo o amor esteja ou não ordenado, a vida de um homem será reta ou desordenada.

A ordem aqui mencionada não decorre de uma fonte normativa exterior, como as convenções sociais ou os costumes de um povo, mas daquela ordem intrínseca do amor que lhe é inerente. Filosoficamente, a ordem como transcendental do ser: uma roda é tanto mais uma roda, quanto mais perfeito é o círculo que a forma.

Se deixa de ser uma circunferência e passa a ser uma parábola, deixa de ser roda, ou seja, perde, em parte, seu ser próprio de roda. Pode até servir para outro fim, mas não atenderia sua finalidade natural, a de girar como uma roda. Se, então, sua estrutura ficasse mais desordenada e se transformasse num quadrado ou num triângulo, deixaria ser roda por completo.

Quando um músculo, ao invés de se mover segundo sua lei biológica, move-se desordenadamente, dá causa a um estiramento, ou seja, a uma alteração naquilo que lhe é normal, segundo sua ordem em sentido filosófico, a mesma ordem a que está sujeito o amor.

No âmbito desta ordem, o amor aperfeiçoa-se e cresce quanto mais o ser desenvolve-se normalmente e, ao contrário, o amor diminui sua intensidade na medida em que se atrofia a capacidade de ser. Basta comparar o amor de uma mãe pelo filho com o amor de um avaro pelo dinheiro: as diferenças são tão gritantes que é melhor não comparar…

Neste sentido, o amor é tanto mais amor quanto mais ordenado for e, por consequência, o amor desordenado é a imperfeição ou degradação do mesmo amor. Uma caricatura do amor. Desta sorte, compreende-se a outra famosa máxima de Agostinho: “Todos vivem de seu amor, faça-se o bem ou faça-se o mal”.

O amor nasce ordenado ou desordenado, respectivamente, conforme uma ordem ou uma desordem fundamental da pessoa. E é inevitável que assim seja, porque o amor é um ato que depende, por ser ato, da potência, sempre canalizada pela vontade. A ordem fundamental da vontade irá definir a ordem do amor que daí surge.

Não é porque existe amor que uma dada conduta será necessariamente reta. Excluída a ideia de ordem, o amor deteriora-se e, por conseguinte, a conduta humana daí derivada. A espontaneidade do amor, entendida como um agir social segundo a inclinação espontânea que radica em cada um de nós, não é fonte primária da ordem, já que o amor é uma realidade medida por critério distinto. Só quando o amor é ordenado, então é a norma regente do agir humano e o “ama e faze o que quiseres” de Agostinho ganha sentido, alcance e resume os preceitos daquela ordem natural.

E qual é a ordem do amor? Mais uma vez, recorremos a uma clássica citação de Agostinho: virtus ordo est amoris (a virtude é a ordem do amor). Invertendo a ordem da frase sem alterar seu sentido, desponta a resposta – a ordem do amor é a virtude. E quais virtudes? As virtudes morais, que representam fundamentalmente a justaposição da vontade aos ditames da reta razão. Por consequência, a ordem do amor é a lei natural. E os preceitos da lei natural representam as concreções da reta dinâmica desse mesmo amor.

Resta delimitar a ordem do amor conjugal. Evidente que esta ordem é representada pelas mesmas virtudes relativas ao amor propriamente dito, entretanto, impulsionado também por uma virtude específica que ordena o amor matrimonial, em virtude de suas peculiaridades: a virtude da castidade, aquele autodomínio que torna a pessoa capaz de se dar ao outro.

Esta virtude ilumina o amor conjugal, objetivamente, por intermédio dos três bens do matrimônio natural, a saber, a abertura à procriação, a fidelidade e a permanência. Tais bens não se reduzem a uma mera limitação ou repressão ao amor humano, como defendem algumas escolas antropológicas. Muito pelo contrário, são efeitos concretos deste amor e, na medida em que são vividos ordenadamente, superam e excedem em muito o mero exercício estóico de todas as prescrições legais sobre o assunto, mormente no que toca aos deveres.

As relações entre os homens, inclusive as de natureza conjugal, estão assentadas numa série de relações ontológicas objetivas, que portam uma ordem que lhes é inerente. Por exemplo, a relação entre pais e filhos tem nítida coloração ontológica, derivada da procriação, cuja ordem natural obriga os genitores ao dever de criação e educação da prole e esta, por sua vez, ao dever de respeito e obediência aos pais.

É o fato da procriação que dá causa a um rol de direitos e deveres recíprocos e não o amor humano. Este dado empírico não rompe com tais exigências ou as modifica substancialmente, mas, sem que estas se alterem, o amor humano ordenado entende que estes imperativos derivam da dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual as assume e aperfeiçoa.

Esta ordem objetiva funda-se no direito natural, porquanto se revela em deveres de justiça, cuja normatividade é veiculada pela lei natural, prisma ético que definirá se o amor é ordenado ou desordenado, inclusive aquele decorrente do matrimônio, lastreado no interior de uma relação natural e que responde a um anseio da pessoa humana.

Este anseio é guiado em função de umas necessidades e finalidades da espécie, motivo pelo qual entre o homem e a mulher exista uma mútua atração natural, que poderá crescer e ganhar uma nova dimensão: a do amor conjugal que, se for ordenado, conduz o matrimônio à plenitude e, se for desordenado, impede que esta perfeição seja alcançada. Com efeito, a lei natural é a ordem do amor conjugal e, assim, direito e amor, amor e direito, uma vez entrelaçados, demonstram a fecundidade e a transcendência da resultante daí decorrente.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras 

Pensar o Direito (Parte IV de VI): “Resgate da essência do Direito”

Direito | 23/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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IV – RESGATE DA ESSÊNCIA DO DIREITO

Há vários modos de se pensar o direito. Uns pensam que o direito resume-se às decisões do Estado ou do burocrata de plantão. Outros pretendem que o direito seja extraído exclusivamente daquilo que é usual fazer-se ou não fazer-se em sociedade, reduzindo-o a uma espécie de chancelador formal e obrigatório.

Outros veem o direito apenas como uma ciência de deduções: se a união estável homossexual foi admitida, vamos estendê-la para o casamento e, depois, permitir o divórcio, a separação e a possibilidade de adoção. Afinal, a premissa deve ser vista de maneira neutra e todas as consequências dela nada mais são que o resultado de um desdobramento lógico.

Mas todos eles partilham da ideia fundamental de que o direito não é regido por princípios fundamentais que decorrem da natureza das coisas. Só reconhecem o direito dos códigos e das leis escritas. E recomendo-lhes especial atenção com os parlamentares, porque, de um dia para o outro, mudam os códigos e eles ficam sem saber mais nada. Com uma penada do legislador, bibliotecas inteiras vão parar no sebo.

Mas o direito não se esgota no papel escrito. O direito dos códigos deve refletir o direito da ordem natural das coisas, concretizando seus princípios segundo as circunstâncias sociais e históricas. Devem caminhar de mãos juntas e não em direções opostas.

E o leitor mais cético poderia perguntar quais seriam os tais princípios. São numerosos, motivo pelo qual eles estão também escritos nas leis, reforçando sua extrema importância, mas seu reconhecimento não dependeria necessariamente disso, pois o estudo do direito, ao longo dos tempos, vai incorporando-os sob o nome de princípios gerais de direito.

Eis alguns deles: não faça aos outros aquilo que não quer para si; ninguém pode ser condenado sem prévio processo;  na dúvida, o réu deve ser inocentado; todo homem é capaz de assumir direitos e obrigações; os contratos são obrigatórios e a vontade dos contratantes deve ser pautada pela boa-fé e pelo equilíbrio contratual; a família é a célula social elementar e o excesso de exercício do direito consiste em seu abuso.

Este fenômeno de empobrecimento do direito, uma realidade tão rica e que o povo romano soube captar de maneira tão exemplar, a ponto de, junto com a filosofia grega, sustentar as bases da civilização ocidental até hoje, é fruto da somatória de muitas linhas de pensamento – nominalismo, empirismo, racionalismo, subjetivismo, relativismo, voluntarismo, imanentismo – que impregnam profundamente a cultura de nossa sociedade.

Não cabe aqui analisar o significado de cada um daqueles fatores nem o complexo processo histórico de formação e consolidação daquela forma míope de se ver o direito. Contudo, na base desse processo, estão causas de ordem religiosa (imanentismo, secularismo e ateísmo), de natureza moral (ligada a uma falsa ideia de liberdade e a consequente crise de valores) e deficiências sérias no ensino de filosofia e de direito.

A superação desta corrosiva doença não será feita por complexos expedientes de reengenharia político-jurídica, porque essa patologia é radical e, como uma metástase, atinge a essência, os fins e os fundamentos do ordenamento jurídico e se dissemina por todo o corpo da sociedade.

A depuração dessa forma deturpada de direito demanda um resgate das noções de justiça, de equidade e de prudência, elementos essenciais da ordem jurídica. Esta tem uma vinculação elementar à justiça, é ordem de justiça dirigida à realização objetiva do justo concreto.

A equidade, por sua vez, opera como critério corretivo de adequação da solução justa ao caso concreto ou mesmo de moderação dos rigores da justiça. O direito romano já reconhecia que o máximo do direito é o máximo da injustiça.

A prudência, a virtude por excelência do jurista, é a sabedoria prática que o capacita para a decisão justa, segundo os princípios e normas que regem uma dada situação e em respeito às suas circunstâncias. A prudência também envolve o reto agir do legislador, na escolha das medidas legislativas e normativas mais convenientes.

Estes elementos, quando conjugados, produzem decisões que atendem aos princípios gerais de direito, à letra fria dos códigos e às peculiaridades do caso concreto. O direito romano foi um acabado exemplo disso: por intermédio do trabalho dos jurisconsultos, que talhavam suas sentenças com os instrumentos da justiça, equidade e prudência, criou uma série de soluções jurídicas de surpreendente perenidade. Porque, antes de aplicar o direito, eles o pensavam com a cabeça inteira.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

*Próximos artigos da série “Pensar o Direito”:

Parte V : “Direito e Filosofia: Cara e Coroa”

Parte VI: “Justiça, Filosofia e Virtude”

*Já publicados:

Parte I: “Pensando o Direito”  – para ler clique AQUI

Parte II: “Direito e Ordem Natural” – para ler clique AQUI

Parte III: “A crise do Direito” – para ler clique AQUI

Pensar o Direito (Parte IV de VI): "Resgate da essência do Direito"

Direito | 23/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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IV – RESGATE DA ESSÊNCIA DO DIREITO

Há vários modos de se pensar o direito. Uns pensam que o direito resume-se às decisões do Estado ou do burocrata de plantão. Outros pretendem que o direito seja extraído exclusivamente daquilo que é usual fazer-se ou não fazer-se em sociedade, reduzindo-o a uma espécie de chancelador formal e obrigatório.

Outros veem o direito apenas como uma ciência de deduções: se a união estável homossexual foi admitida, vamos estendê-la para o casamento e, depois, permitir o divórcio, a separação e a possibilidade de adoção. Afinal, a premissa deve ser vista de maneira neutra e todas as consequências dela nada mais são que o resultado de um desdobramento lógico.

Mas todos eles partilham da ideia fundamental de que o direito não é regido por princípios fundamentais que decorrem da natureza das coisas. Só reconhecem o direito dos códigos e das leis escritas. E recomendo-lhes especial atenção com os parlamentares, porque, de um dia para o outro, mudam os códigos e eles ficam sem saber mais nada. Com uma penada do legislador, bibliotecas inteiras vão parar no sebo.

Mas o direito não se esgota no papel escrito. O direito dos códigos deve refletir o direito da ordem natural das coisas, concretizando seus princípios segundo as circunstâncias sociais e históricas. Devem caminhar de mãos juntas e não em direções opostas.

E o leitor mais cético poderia perguntar quais seriam os tais princípios. São numerosos, motivo pelo qual eles estão também escritos nas leis, reforçando sua extrema importância, mas seu reconhecimento não dependeria necessariamente disso, pois o estudo do direito, ao longo dos tempos, vai incorporando-os sob o nome de princípios gerais de direito.

Eis alguns deles: não faça aos outros aquilo que não quer para si; ninguém pode ser condenado sem prévio processo;  na dúvida, o réu deve ser inocentado; todo homem é capaz de assumir direitos e obrigações; os contratos são obrigatórios e a vontade dos contratantes deve ser pautada pela boa-fé e pelo equilíbrio contratual; a família é a célula social elementar e o excesso de exercício do direito consiste em seu abuso.

Este fenômeno de empobrecimento do direito, uma realidade tão rica e que o povo romano soube captar de maneira tão exemplar, a ponto de, junto com a filosofia grega, sustentar as bases da civilização ocidental até hoje, é fruto da somatória de muitas linhas de pensamento – nominalismo, empirismo, racionalismo, subjetivismo, relativismo, voluntarismo, imanentismo – que impregnam profundamente a cultura de nossa sociedade.

Não cabe aqui analisar o significado de cada um daqueles fatores nem o complexo processo histórico de formação e consolidação daquela forma míope de se ver o direito. Contudo, na base desse processo, estão causas de ordem religiosa (imanentismo, secularismo e ateísmo), de natureza moral (ligada a uma falsa ideia de liberdade e a consequente crise de valores) e deficiências sérias no ensino de filosofia e de direito.

A superação desta corrosiva doença não será feita por complexos expedientes de reengenharia político-jurídica, porque essa patologia é radical e, como uma metástase, atinge a essência, os fins e os fundamentos do ordenamento jurídico e se dissemina por todo o corpo da sociedade.

A depuração dessa forma deturpada de direito demanda um resgate das noções de justiça, de equidade e de prudência, elementos essenciais da ordem jurídica. Esta tem uma vinculação elementar à justiça, é ordem de justiça dirigida à realização objetiva do justo concreto.

A equidade, por sua vez, opera como critério corretivo de adequação da solução justa ao caso concreto ou mesmo de moderação dos rigores da justiça. O direito romano já reconhecia que o máximo do direito é o máximo da injustiça.

A prudência, a virtude por excelência do jurista, é a sabedoria prática que o capacita para a decisão justa, segundo os princípios e normas que regem uma dada situação e em respeito às suas circunstâncias. A prudência também envolve o reto agir do legislador, na escolha das medidas legislativas e normativas mais convenientes.

Estes elementos, quando conjugados, produzem decisões que atendem aos princípios gerais de direito, à letra fria dos códigos e às peculiaridades do caso concreto. O direito romano foi um acabado exemplo disso: por intermédio do trabalho dos jurisconsultos, que talhavam suas sentenças com os instrumentos da justiça, equidade e prudência, criou uma série de soluções jurídicas de surpreendente perenidade. Porque, antes de aplicar o direito, eles o pensavam com a cabeça inteira.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

*Próximos artigos da série “Pensar o Direito”:

Parte V : “Direito e Filosofia: Cara e Coroa”

Parte VI: “Justiça, Filosofia e Virtude”

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Parte II: “Direito e Ordem Natural” – para ler clique AQUI

Parte III: “A crise do Direito” – para ler clique AQUI

Pensar o Direito (Parte II de VI): “Direito e Ordem Natural”

Direito | 09/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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II – DIREITO E ORDEM NATURAL

A realidade histórica aponta que não há sociedade sem direito, nem direito sem sociedade. A existência de normas jurídicas, mais do que fundada numa obra da consciente vontade dos homens, resulta de uma necessidade natural: a vida em comunidade gera naturalmente uma ordem social, fato que pode ser observado mesmo nas sociedades de malfeitores. Não há sociedade humana sem uma ordem.

Como a política, a realidade e a disciplina que trata dos problemas do poder, a existência de normas jurídicas não foi fruto de um contrato social, mas decorre da natureza social do homem. E ele, como ser racional e transcendente, precisa de uma ordem, porém, não de uma ordem instintiva, como numa colmeia ou numa colônia de formigas, mas de uma ordem justa, aspiração esta inscrita no coração do homem e atestada por expoentes diversos como São Paulo e Rousseau.

A busca de uma ordem justa, que se dá por meio das leis, é fruto de uma construção humana voluntária no seio da interação social. Mas essa tarefa não é imune ao erro e, logo, o direito pode até tornar-se injusto, principalmente hoje, em que a noção de direito está, a nosso ver, na prática, concretizada pela ideia, cada vez mais cativante, de que a singela declaração de uma norma pelo poder estatal bastaria para a solução de um caso específico, o que, às vezes, pode não atender os ditames de justiça ali exigidos.

A ordem social, da qual o direito faz parte, ergue-se, também, sobre os alicerces de uma ordem natural, baseada na constante e perpétua vontade de justiça existente na natureza humana. Basta visitar a entrada de um fórum durante o período de sessão de júri de algum homicida mais cruel que a média: é só o que se lê nas faixas e cartazes. De todos os tipos e com todos os erros de português. Mas com o mesmo sentimento.

Aristóteles já observou que há um direito justo por natureza, de valor universal e imutável. É justo como o fogo “que queima do mesmo modo na Grécia e na Pérsia”. Assim como nas leis da física, onde a vontade do homem é irrelevante (se eu tentar voar, vou cair pela ação da lei da gravidade), também tomam parte, na ordem natural do universo, alguns princípios imutáveis de ordem social e jurídica.

O respeito pela vida, pela integridade física e moral das pessoas, pela liberdade e pela propriedade, o direito à legítima defesa e à restituição do estado anterior no caso de dano, enfim, estes e outros que não precisariam de um código escrito para ter vigência.

É bem verdade que nem sempre foram reconhecidos ou respeitados por muitos povos durante a história da humanidade. Mesmo Roma, no auge de seu esplendor imperial e de sua riqueza jurídica, mantinha a instituição da escravidão regulada por leis, como se fosse algo trivial. Mas a trivialidade, verdadeira transgressão à ordem natural, cobrou seu preço: quando ela cessou e a economia descambou, foi o começo do fim.

No século XX, não foi diferente. Um regime que se baseava no purismo de sua raça e que, por isso, matava os “impuros” indiscriminadamente, só podia terminar no mal absoluto que Hannah Arendt bem descreveu e, ao cabo, na própria ruína.

O outro regime, que almejava virar a mesa da natureza intrínseca das relações econômicas, da natureza imperfeita do homem e da própria dinâmica natural das relações em sociedade, constituindo-se num projeto insano de reengenharia social, seguiu o mesmo fim. Não adianta: toda sociedade que insiste em desrespeitar àquela ordem natural não resta imune à sua queda.

E, à medida que a história ensina os acertos e desacertos nesse assunto, o direito vai incorporando novos princípios ao patrimônio jurídico da humanidade e demonstrando a vitalidade e a perenidade de sua ordem natural. Como, de resto, nas leis físicas: até que Copérnico apresentasse o sistema heliocêntrico, passaram-se séculos e mais séculos. Mas, nem por isso, a astronomia caiu em descrédito depois.

Hoje, divulga-se a ideia de direito como sinônimo exclusivo de segurança jurídica. A segurança jurídica é como um guarda-chuva: protege, mas obriga. Abriga, mas é um incômodo. No limite, o mundo dos chapéus-de-chuva é um universo cinzento de pessoas sem rosto. Abrigadas, seguras, mas, como a sociedade da qual fazem parte, desprovidas de vitalidade e de personalidade.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

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