Fidelidade intransigente

Opinião Pública | 01/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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O que um dia foi um casal entrou pela porta da sala de audiências. Ele, o autor de uma ação de conversão de separação judicial em divórcio, acompanhado de seu advogado. Ela, sozinha nessa primeira tentativa de conciliação. Os dois aparentando estar perto dos 70 anos. Documentos conferidos, na tela do computador o termo de acordo quase pronto. Todos os bens já divididos, todos os filhos já maiores, mais de um ano desde a separação. Requisitos presentes, caso fácil, acordo certo. Só homologar e “jogar” para a estatística.

Havia, porém, qualquer coisa no ar. Talvez algum resquício de remorso ou as lembranças inevitáveis de uma vida passada juntos. O arrependimento insinuando- se entre culpas, o rancor entre as feridas. Quando, então, coube-me perguntar: “há possibilidade de reconciliação?”. Artificial e legalista. Mais de trinta anos… Sob olhares quase mudos, concluí em voz alta dirigindo-me ao escrevente: “reconciliação infrutífera”. A lei estava cumprida. A pior parte resolvida. Rumo ao acordo.

Acordo? Impossível. A senhora se negava a assinar, não queria o divórcio. Instante inesperado. Expliquei-lhe a norma, o protocolo, o processo. Ante a presença dos requisitos, a lei é a lei. Quando percebi que tremia, tremia muito ao falar e mover os braços. Estava aflita e sofria. Estranhei que, até aquele momento, ignorava completamente esse fato. Realmente eu ainda não os havia notado.

Pela primeira vez li os nomes na capa do processo. E os vi, os dois, o casal e a sua tragédia. Li nos seus rostos a crise, as brigas, a dor da separação, o desespero dos filhos. Pela primeira vez desde o início da audiência, que parecia tão certa, tão óbvia. Qualquer coisa foi dita sobre traição, outra mulher. A senhora tremia, insistindo que não queria o acordo. Pouco importava a demora, pouco importava o que fizesse o juiz depois de alguns meses. “Eu não assinarei”.

Perguntei-lhe, então, o porquê. Ela levou as mãos trêmulas à bolsa e retirou uma Bíblia. Levantando-a em punho disse com firmeza: “Por isso!”. O advogado da parte contrária disfarçou um riso sádico (talvez mais tarde, na roda dos amigos…). O escrevente percebeu e também riu, demonstrando certa impaciência ante a atitude tão descabida. O marido tinha os olhos atentos e calados. Por um instante me surpreendi com a sua coragem. A sensação de estar diante de um milagre ou, pelo menos, de uma manifestação do Espírito. Agradeci.

Mas, em seguida, uma grande angústia atropelou a surpresa. A obrigação de ofício me levou a explicar a divisão das competências, a diferenciar o civil do religioso. Em minha mente, pensava na laicidade do Estado e na constituição laica clamando a proteção de Deus. Pensava na doutrina social da Igreja, no reinado social de Cristo. Lembrava os crucifixos retirados das repartições públicas. Ela sorriu para mim, com a Bíblia nas mãos (como um mártir?). O livro todo num único versículo: “dai a César…”.

Então, calei-me e ela suspeitou que lhe dava razão. Compreendeu a explicação, mas insistiu em não assinar. O juiz que o fizesse. Ela não, não podia. “O senhor compreende, eu não posso, mesmo assim, não posso, minha consciência”. Guardou o livro sagrado novamente na bolsa e teve a sua vontade atendida. O acordo infrutífero, a audiência encerrada. Colhemos as assinaturas em silêncio e a ata foi afixada aos autos. Estávamos livres do rito.

No entanto, o diploma, o bacharelado parecia pesar- me sobre as costas. Minha assinatura no papel, as minhas roupas, a faculdade, os livros jurídicos, o prédio do Fórum. Sentiame culpado, como um cúmplice. Por fim, despedi- me das partes, interrompendo a divagação. Era necessário me recompor e prosseguir com o restante das audiências do dia.

■■ João Marcelo Sarkis é advogado, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.

Publicado no jornal Correio Popular, dia 29 de Agosto de 2014, Página A2 – Opinião.