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A lição de Balzac

Opinião Pública | 09/08/2017 | | IFE CAMPINAS

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Um hábito salutar há muito tempo esquecido – especialmente numa era de redes sociais – é o compartilhamento de impressões ocasionadas pela leitura de um romance. Contrariamente às tendências que buscam transformar o comentário de obras literárias em uma atividade exclusivamente acadêmica e que, forçosamente, exclui os simples mortais, penso que a finalidade principal da leitura e do comentário dos clássicos da literatura seja esclarecer, para o indivíduo comum, experiências que ele já viveu, ou que poderá viver, mas que não tem condições de verbalizar. Talvez nunca isso tenha ficado tão claro para mim quanto ao terminar de ler o romance Memórias de duas jovens esposas, de Honoré de Balzac, um retrato vivo e tocante dos motivos que podem levar um casamento à felicidade ou à infelicidade.

A história se passa na França, alguns anos depois da queda de Napoleão Bonaparte, no período conhecido como “restauração”, época em que a antiga monarquia e a antiga nobreza tentaram, sem sucesso, restaurar as instituições que vigoravam antes da revolução francesa. Nesse cenário, Renée e Louise, duas amigas de infância, membros de famílias aristocratas, trocam cartas durante vários anos abrindo seus corações a respeito de suas vidas amorosas. Enquanto Louise, após sair de um convento de irmãs carmelitas, deseja encontrar um príncipe encantado que a ela se dedique como num conto de fadas, Renée, que também havia estado no mesmo convento, aceita um casamento arranjado – por motivos financeiros — com um homem mais velho, a quem ela não ama.

Não sendo eu pessoa isenta das influências que um ambiente impregnado de sentimentalismo barato como o nosso infunde sobre as pessoas, imaginei, em um primeiro momento, que Renée seria profundamente infeliz, ao passo que Louise – que seguia seu coração – estava no caminho certo em busca da felicidade. No entanto, com toque de gênio, Balzac nos surpreende com uma profunda lição no desenrolar da trama: Renée não se rebela contra o seu destino, mas decide amar o homem com quem se casou quase sem ser consultada e, com o passar dos anos, descobre na dedicação ao esposo e na maternidade um conjunto de alegrias que vão enchendo a vida de sentido e tornando-a não uma pessoa amarga, mas uma mulher verdadeiramente sábia.

Louise, de outra parte, logo encontra o príncipe encantado que desejava, Felipe Henárez, o Barão de Macumer, um nobre espanhol refugiado na França após participar de uma revolução frustrada contra o rei Fernando da Espanha. O amor de Macumer por Louise nada deixa a desejar se comparado aos sacrifícios dos príncipes dos contos de fadas: para ele, a amada adquire feições de verdadeira divindade e, ao se casarem, ela o trata como verdadeiro escravo que satisfaz todos os seus mínimos caprichos. Não seria de bom tom em um convite à leitura contar o final de uma obra que eu gostaria de ver lida e divulgada entre os jovens de hoje, mas adianto que a vida amorosa de Louise passará por grandes tragédias, todas antevistas e alertadas por sua amiga Renée.

Quando examino os relacionamentos amorosos de hoje em dia, vejo muitas pessoas, que tiveram sua sensibilidade corrompida buscando príncipes ou princesas encantados e esquecendo-se que o casamento é uma relação que envolve grandes sacrifícios de ambas as partes, mas que, conforme já dizia Aristóteles, raízes amargas podem produzir frutos doces. Como muitos temem esse tipo de sacrifício, não é de se admirar que hoje em dia tantas pessoas substituam o casamento pela mera união estável – facilmente desmanchada quando terminar a “química” – e a geração de filhos pela adoção de animais. Também nunca vimos os consultórios psicanalíticos e psiquiátricos tão cheios. Reflitamos, portanto, sobre a lição de Balzac.

Fabio Florence, 32 anos, é professor de filosofia, sociologia e idiomas e membro do IFE Campinas (florenceunicamp@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 09/08/2017, Página A-2, Opinião.

Honore de Balzac: “Eugenia Grandet” (por Pablo González Blasco)

Literatura | 27/06/2016 | | IFE CAMPINAS

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Honore de Balzac: “Eugenia Grandet”. Abril Cultural. São Paulo, 1971.  230 pgs.

eugenie-grandetA tertúlia literária mensal oferece a possibilidade de poder reler os clássicos, desfrutar com eles, continuar aprendendo. Desta vez o convocado foi Balzac, o que significa um mergulho vital nas paixões humanas. Todas, descritas com minúcia, encontram-se em Balzac –dizia-me certa vez um amigo. E assim é, independentemente de onde o escritor francês situe a ação. Na corte, entre os aristocratas ou, como o caso que nos ocupa, nas províncias, lá onde encontramos “existências tranquilas na superfície, e devastadas secretamente por tumultuosas paixões”, e onde “uma moça não põe a cabeça à janela sem ser vista por todos os grupos desocupados”.

Mas a viagem ao interior do homem e o encontro com as paixões, não possuiriam a força que Balzac proporciona, não fossem as primorosas descrições que perfilam as personagens. Os comentários surgidos na nossa tertúlia ilustram essa característica. “Não prestei muita atenção ao argumento porque dediquei-me a saborear as descrições, a degusta-las” –dizia alguém. E outra: “Na verdade Eugenia é um papel secundário, porque o protagonista é o velho avarento, o pai dela. Talvez porque está muito bem desenhado”.

Sim, as descrições são precisas; a do Grandet é definitiva. “Os olhos do velho Grandet, aos quais o metal amarelo parecia ter comunicado o seu matiz. O olhar de um homem acostumado a tirar de seus capitais um juro enorme adquire necessariamente, como o do libertino, o do jogador ou o do cortesão, certos hábitos indefiníveis, movimentos furtivos, ávidos, misteriosos, que não escapam aos correligionários. Essa linguagem secreta constitui de certo modo a maçonaria das paixões”. Li essa frase há muitos anos e a guardei, porque explica de modo categórico como se encontram e entendem os que padecem as mesmas paixões, as limitações, enfim, os “correligionários” em baixezas e servilismos.

Grandet personifica a avareza até incorporá-la na sua essência. “Não frequentava a casa de ninguém, não recebia nem oferecia um jantar; nunca fazia barulho e parecia economizar tudo, até o movimento”.  Destila avareza, porque é o que hoje denominaríamos seu sistema operacional. Pede para a fiel empregada preparar uma sopa barata, não com aves caras, mas com corvos. A empregada replica que os corvos comem defuntos. E Grandet fecha a questão: “eles comem, como todo mundo o que encontram. Nós não vivemos de defuntos? Que são as heranças?” Não há outro modo possível de pensar porque como bem afirma Balzac, em mais uma da suas frases contundentes, os avarentos não creem numa vida futura, o presente é tudo para eles.

A esposa de Grandet é uma coadjuvante que aumenta o contraste do quadro, ficando nas sombras para destacar a claridade do sovina egoísta. “A Sra. Grandet era uma mulher seca e magra amarela como um marmelo, desajeitada, lerda; uma dessa mulheres que parecem feitas para ser tiranizadas. Tinha ossos grandes, um nariz grande, testa grande, olhos grandes e oferecia, ao primeiro aspecto, uma vaga semelhança com essas frutas fiapentas que não tem sabor nem suco(…) Uma doçura angélica, uma resignação de inseto judiado pelas crianças, uma piedade rara, um inalterável equilíbrio de gênio, um bom coração, faziam-na universalmente lastimada e respeitada”.

Circulam outros personagens, muito bem desenhados. Espíritos interesseiros, que buscam a própria vantagem e adulam o cada vez mais poderoso Grandet. Balzac não os poupa, e condena a atitude de forma lapidária.  “A lisonja nunca emana das grandes almas; é o apanágio dos espíritos pequenos, que conseguem diminuir-se ainda mais para entrara na esfera vital da pessoa em torno da quem gravitam”.

Eugênia que da nome ao livro mas exerce um protagonismo discretíssimo é a jovem mulher que, enclaustrada pelo pai, anulada pelo sistema, faz brotar a generosidade, a delicadeza, a ingenuidade do amor simples e puro “Ocupados em se dizerem grandes nadas, ou recolhidos os dois na calma que reinava entre a muralha e a casa”.

Ler Balzac é mergulhar nos perfis humanos, deparar-se com as paixões, apalpar vícios e virtudes, enfim, contemplar o amplo espectro de possibilidades humanas que desfilam na nossa frente. Podem, às vezes, parecer exagerados. Mas é um recurso pedagógico para que aquilo que é apresentado em estado puro, quase caricaturesco, nos lembre que vícios e virtudes não vem de fábrica, respondem à liberdade de cada um de nós. Todos podemos nos envolver na avareza de Grandet, na ingratidão interesseira do primo dândi, ou responder com grandeza de coração, com generosidade alegre, como Eugênia.

E citando palavras de outra das assistentes à tertúlia literária, Eugênia é sim uma mulher especial, que supera com sua virtude as baixezas que a rodeiam. Uma mulher de classe. Balzac sem dúvida concorda quando no final do romance traça o panegírico definitivo da protagonista: “Entre as mulheres, Eugênia Grandet será talvez um tipo que simboliza as dedicações;  lançada através das tempestades do mundo e que ali a afundam, como uma nobre estátua roubada à Grécia que, durante o transporte, cai no mar, onde permanecerá para sempre ignorada”. Ignorada, mas presente, como um modelo que estimula e promove os mais atrativos predicados femininos.

 

González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/06/02/honore-de-balzac-eugenia-grandet/#more-2647