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Mundo, pensamento e linguagem (por Luiz Antônio Lindo)

Filosofia | 25/11/2016 | | IFE BRASIL

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Ilustração que acompanha a edição impressa, por Paulo von Poser.

Ilustração que acompanha o artigo na edição impressa, por Paulo von Poser.

 

A discussão sobre a natureza da linguagem tem um passado tão longo, foi empreendida por tantos homens de ciência e de arte, e de tantos modos diferentes segundo a vontade e as circunstâncias de cada um, que ao examiná-la tem-se a impressão de navegar pelos vastos e vagos horizontes do alto-mar. Nestas circunstâncias, é natural que se escolha algum estudioso em concreto para servir de ponto de referência.

Uma figura fascinante neste sentido é Friedrich Ludwig Gottlob Frege (1848- 1925), considerado um dos fundadores da escola analítica, situado bem na encruzilhada da qual partem a filosofia da linguagem e a lógica modernas, bem como diversas teorias matemáticas. Antes de examinar mais em detalhe algumas das suas idéias, porém, teremos de tentar situá-lo dentro de um esboço de panorama histórico.

Mundo, pensamento e linguagem desde sempre formam um trio; a grande difi culdade encontrada pela filosofia, e que recebeu soluções diversas ao longo da história, consiste em saber como ordenar os vértices desse triângulo na mente, no papel e na realidade.

Com os pensadores do racionalismo iluminista, o “pensamento” reinou soberano na história das idéias, e por um momento pareceu que o mundo cairia no esquecimento, pois o mergulho radical e exclusivo nas nossas potências racionais pretendia fazer dele um mero simulacro. As “idéias claras e distintas” de Descartes foram elevadas ao patamar do conhecimento mais perfeito: formidável era vigiar a minha mente, depurá-la da ganga de obscuridades e lançar-me no infinito da razão especulando e ordenando tudo que penso segundo o critério da melhor idéia.

Era natural, nesse contexto, que a linguagem recebesse pouca atenção e fosse rebaixada a um segundo plano. Era vista como um código, nada mais que expressão do pensamento. A partir do que se conhecia pensando, se falava. A chave da linguagem estaria no conhecimento do que se levava à interlocução, pois se achava que por meio do compartilhamento do código lingüístico seria possível realizar o que a telepatia não conseguia, isto é, a perfeita comunicação do pensamento…

O problema que essa concepção teve de enfrentar mais tarde, e que não passaria despercebido a Frege, foi que distinguia entre a apreensão do conceito e a sua “posterior” expressão na linguagem. Conceito e símbolo codificador eram considerados duas realidades distintas e independentes, que poderiam ser vinculadas arbitrariamente. Era natural, porém, que neste ponto surgisse a dúvida: como seria possível apreender o conceito sem expressá-lo em palavras?

No século XIX, coincidindo mais ou menos com o estudo das línguas orientais na Europa, entre as quais o sânscrito, e o surgimento da filologia, começa a haver uma compreensão por assim dizer mais evolutiva das línguas. “Descobrem-se” o “vernáculo” – para usar essa expressão no sentido de língua mais vulgar ou mais chã -, os dialetos regionais, os contos populares. E passa-se então a entender a linguagem como uma espécie de atividade orgânica, “natural”, que não se explica simplesmente pelos conceitos apreendidos e expressados. A chave do conceito parece já não abrir todas as portas do significado.

O vernáculo é ao mesmo tempo algo mais e algo menos que um mero código conceitual. Algo mais, porque apresenta uma vitalidade e expressividade que faltam ao conceito: por exemplo, mal-entendidos de todo gênero, jogos de palavras, trocadilhos, lapsos, são “rebarbas” significativas ou epistêmicas, e no entanto representam funções lingüísticas legítimas. Algo menos, porém, porque o vernáculo quotidiano, em comparação com o léxico ou a terminologia científica (com a sua correspondência idealmente de “um para um” entre conceito e termo), deixa muito a desejar em precisão expressiva.

No entanto, podia-se ver na língua vulgar o universo mais abrangente da linguagem, dentro do qual a terminologia se elevaria triunfal por estar dotada de uma capacidade semântica superior; considerava-se que o termo científico possuía uma profundidade maior que a do vocábulo trivial por originar-se de um estudo deliberado e detalhado e estar destinado a ser desenvolvido ou validado por meio de comprovações.

Nessa linha de desenvolvimento da filosofia, passou-se portanto a considerar a linguagem como algo que subsistia por si só, de maneira quase independente do pensamento. À medida que se rejeitava a noção de que fosse simples código, e paralelamente se experimentava um crescimento inaudito das ciências experimentais e matemáticas, chegou-se a considerá-la, a ela e não ao pensamento, veículo essencial para o conhecimento do mundo. Se no racionalismo pensamento e linguagem se opunham a um mundo evanescente, agora mundo e linguagem por assim dizer se opunham ao pensamento, ou ao menos o condicionavam.

Com Frege nasce uma nova tentativa, que será rica em resultados, de integrar o mundo e a ciência através da lógica, mais exatamente de uma linguagem lógica concebida nos moldes da characteristica universalis de Leibniz. Essa tentativa, que seria levada adiante por Bertrand Russell nos Principia mathematica e por Wittgenstein no Tractatus logico-philosophicus, pretendia aprimorar os meios de prova nas ciências e inspirava-se na função organizadora da matemática e no seu poder de unificar o conhecimento. Representou a criação de uma nova lógica, que formulava em linguagem matemática a lógica proposicional de Aristóteles e dos estóicos, levando-a adiante, tornando-a mais precisa e abrindo-lhe alguns campos inteiramente novos.

Como geralmente se dá nessas descobertas que abrem novas perspectivas, Frege não se opôs simplesmente aos conceitos que vigoravam no seu tempo, mas realizou uma nova síntese que integrava tanto a noção da linguagem como código quanto a sua compreensão como entidade por assim dizer “independente” do pensamento. A racionalidade do pensamento, desde os primórdios da invenção grega do pensar por teses, era encarada na filosofia e nas ciências como a base de todo progresso. A partir de Galileu e Newton, encontrou um grande aliado na matemática: a quantificação cada vez mais precisa das medidas e a matematização crescente dos conceitos científicos permitia confirmar ou descartar as hipóteses dedutivas ou intuitivas; ao mesmo tempo, as diversas notações matemáticas constituíam por assim dizer autênticas “línguas”, essas sim conformes com a concepção da linguagem como código.

Frege, que tinha tido uma formação predominantemente matemática, geométrica e científica, como vimos, voltou-se muito cedo para o campo das relações entre a matemática e a lógica. Na sua Begriffsschrift (“Escrito sobre os conceitos”), de 1879, voltou-se para a análise lógica da indução matemática, pois tinha a intenção de provar que a matemática nascia da lógica. Já esta obra de juventude foi considerada o ponto de inflexão na história dessa disciplina.

Nas Grundlagen der Arithmetik (¨Fundações da aritmética”), de 1884/1890, trata do conceito de número. Na Introdução dessa obra, formulou três princípios que se mostrariam fundamentais tanto para o desenvolvimento da filosofia da linguagem como da lógica:

– sempre distinguir claramente o psicológico do lógico, o subjetivo do objetivo;

– nunca perguntar pelo sentido de uma palavra isolada, mas apenas no contexto de uma proposição (é o chamado “princípio do contexto”); e

– nunca perder de vista a distinção entre conceito e objeto (Begriff e Gegenstand).

O primeiro será retomado e trabalhado por Popper, e servirá para refutar o psicologismo de Freud e outros autores, que viam no pensamento unicamente uma função de processos mentais mecânicos ou químicos ocorridos no cérebro ou sistema nervoso, como se não houvesse um conteúdo nesse pensamento. Em essência, se a própria noção de que o pensamento se explica inteiramente por esses processos fosse verdadeira, seria ela mesma resultado desses processos, e o seu conteúdo seria inválido.

Em filosofia da linguagem, a distinção entre psicologia e lógica resguarda uma percepção antiga mas fundamental: que o conceito, aquilo que a linguagem transmite e é objeto ou conteúdo do pensamento, é algo essencialmente distinto de um mero processo psicológico físico-químico; que na linguagem se cruzam, quase se poderia dizer, duas dimensões de ser.

O segundo, o princípio do contexto, diz que o significado duma palavra deve ser procurado no contexto duma proposição e não isoladamente. Contrariamente, o sentido completo de uma proposição não é simplesmente a soma dos sentidos dos termos que a compõem. Uma proposição qualquer, como por exemplo “Fulano é um gênio”, significa uma coisa quando usada apenas de maneira afirmativa e praticamente o contrário quando usada de maneira irônica; é preciso levar em conta o contexto lingüístico e extralingüístico, que inclui o tom de voz, as intenções do falante etc.

O terceiro princípio retoma o antigo tema da distinção entre o singular (objeto) e o universal (conceito), que já tinha sido abordado pela filosofia medieval na oposição entre haecceitas (literalmente “istidade”, o fato de ser isto) e quidditas (literalmente “oqueidade”, aquilo que define o que uma coisa é). Frege define o objeto, logicamente, como um nome próprio ou um termo geral acompanhado de artigo definido; e o conceito como um termo geral apenas (com ou sem pronome indefinido). Não deixou, porém, de dar-se conta que isso conduz a “estranhezas” lingüísticas, que exemplifica com a frase “o conceito ‘cavalo’ não é um conceito, ao passo que a cidade de Berlim é uma cidade”: este conceito, individualmente, é segundo a sua definição um objeto singular.

Frege elaborou toda uma notação que reunisse lógica e linguagem, à semelhança das notações matemáticas. Neste campo, porém, o seu código não foi levado para a frente, sendo substituído pela notação mais simples e funcional de Russel e Whitehead.

Em 1892, Frege publicou um artigo que talvez represente o principal marco miliar que lançou: Über Sinn und Bedeutung (“Sobre o sentido e a referência”). A tese central amplia o trabalho iniciado com a distinção entre conceito e objeto, indicando que há dois aspectos diferentes do significado de toda expressão, quer se trate de nomes próprios, de locuções ou sentenças completas. Nesse ensaio, Frege afirma que uma expressão “exprime o seu sentido” e “representa ou designa [aponta para] a sua referência”. Bedeutung, no caso de nomes próprios, indica o portador do nome, o objeto que representa (a pessoa que se chamava, por exemplo, “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac”); Sinn aquilo a que chama o “modo de apresentação” do objeto (no caso, “poeta parnasiano”).

Essa distinção refuta a tese literalista de John Stuart Mill que negava qualquer significado a um nome próprio além do objeto a que se refere (no caso, a pessoa de Olavo Bilac). A principal objeção levantada por Frege reside em que, se fosse assim, as duas expressões “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac” e “poeta parnasiano”, pelo princípio da identidade (a = b), deveriam significar precisamente a mesma coisa, o que claramente não acontece. Como os distintos sentidos podem ser comunicados, o sentido é algo objetivo, não uma mera atribuição subjetiva individual.

Juntamente com a de conceito / objeto, esta distinção funda consistentemente uma ontologia racional que estende o seu alcance sobre o próprio mundo. Os grandes racionalistas como Hegel e Kant tinham absorvido o mundo, realidade extramental, na realidade intramental ou pensamento; depois de Frege, Russel, o último Wittgenstein (não o primeiro, do Tractatus) e, em um plano diferente, Gadamer, tentarão novamente dissolvê-lo no conjunto lógica e linguagem, estabelecendo a concepção da linguagem como mero instrumento da práxis humana. Mas nenhum deles consegue explicar de maneira satisfatória que possa haver diversos sentidos com a mesma referência, isto é, objetos exteriores independentes do nosso conhecimento. Frege recoloca o mundo na ordem das considerações epistemológicas e metafísicas, e além disso o faz relacionando-o diretamente com a linguagem.

Em termos de uma teoria ontológica da verdade, essa análise da linguagem presta serviços inestimáveis. Frege partiu dos números que, como sabia a partir da sua formação científica e matemática, estão plenamente representados na estrutura física do mundo (como o revelam quer os métodos de validar os achados científicos, quer os processos de elaboração das obras tecnológicas, em que o cálculo subjaz fundamentalmente), e chegou à descoberta de que o nome próprio condivide com o número essa relação intrínseca com a realidade, revelada por uma teoria da significação que estabelece um elo entre a língua natural e a lógica.

Com relação às teorias da linguagem como entidade “orgânica” independente do pensamento, Frege mostrou como há uma epistemologia e uma lógica que subjazem à significação, e com isso reintroduziu o pensamento na linguagem, ao menos como pólo da conceitualização. Mundo, pensamento e linguagem revelam-se firmemente unidos, mas cada qual estabelecido por direito próprio num âmbito seu.

Luiz Antônio Lindo é Doutor em Letras Clássicas pela USP. Leciona Filologia Românica e História Social na FFLCH-USP.

Publicado originalmente na revista-livro do IFE, Dicta&Contradicta, Edição 1, Junho/2008.

"Estado da Arte": Pascal

Filosofia | 05/09/2016 | | IFE CAMPINAS

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O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 16 de outubro de 2014.

Pascal

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“Quando considero a pequena duração da minha vida, absorvida na eternidade precedente e seguinte, o pequeno espaço que eu preencho, e mesmo que eu vejo, abismado na infinita imensidade dos espaços que me ignoram e que eu ignoro, eu me apavoro e me espanto”. Em 1662, o autor dessas palavras morria, aos 39 anos, já completamente debilitado para o trabalho, sem que, conforme o seu depoimento, desde os 20 anos tivesse vivido um único dia sem sofrimento. Mais conhecido à época por suas contribuições para a engenharia, tecnologia e urbanismo, sua obra prima permaneceria para sempre uma miscelânea inacabada de rascunhos e anotações.

Hoje, Blaise Pascal é um pensador canônico não só para a história da ciência, como também da filosofia e da teologia. Menino prodígio, místico e um dos maiores polímatas de todos os tempos, seusPensamentos reúnem, por vezes em um único fragmento, intuições ainda hoje fecundas para os campos da matemática, física, psicologia, pedagogia e sociologia, comunicadas no estilo caracteristicamente conciso e límpido que elevaria esse rematado frasista a uma posição única no panteão da literatura francesa.

Mas quem é o homem por trás de fórmulas lapidares como “o coração tem razões que a razão desconhece”, “o homem é um caniço pensante”, um “monstro incompreensível”, “juiz de todas as coisas, verme imbecil, depositário da verdade, cloaca de incertezas e erros, glória e escória do universo” ou ainda “o homem ultrapassa infinitamente o homem”? Seria ele um cético ou um fundamentalista? E como buscou conciliar suas duas grandes paixões pela precisão científica e pela ascese religiosa?

Convidados

– Andrei Venturini, doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor do Instituto Maria Mater Ecclasiae e da Casa do Saber, e autor de O Reino Nefasto do Amor Próprio em Pascal (no prelo).

– Ricardo Mantovani, doutorando e Mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo com a dissertação Limites Epistemológicos da Apologética de Blaise Pascal, tradutor e professor da rede pública de ensino.

– João Cortese, doutorando em filosofia pela Universidade de São Paulo, Mestre pela Universidade Paris VII com a dissertação Formas da Analogia em Pascal.

Referências
  • Blaise Pascal de Gérard Lebrun (Brasiliense).
  • Pascal et la Philosophie de V. Carraud (Presses universitaires de France).
  • O Pensamento Vivo de Pascal de François Mauriac (Martins Fontes).
  • O Homem Insuficiente. Comentários de Psicologia Pascaliana e Conhecimento na Desgraça. Ensaio da Epistemologia Pascaliana de Luiz Felipe Pondé (Edusp).
  • Christiches Bewustssein. Versuche uber Pascal de Romano Guardini (Jacob Hegner).
  • “Pascal” em In Our Time – BBC 4.
  • As Marcas do Sacrifício. A Possibilidade da História em Pascal de Luís César Oliva (Humanitas-USP).
  • “Pascal” em La Foi Prise au Mot.
  • Pascal et Leibniz. Étude sur Deux Types de Penseurs de Jean Guitton (Ed. Montaigne).
  • Do Reino Nefasto do Amor Próprio em Blaise Pascal de Andrei Venturini Martins (É Realizações – no prelo).
  • “Pascal” em Herrlichkeit. V. III: Laikale stile de Hans urs von Balthasar (Johannes Verlag).
  • “Blaise Pascal” na Stanford Encyclopedia of Philosophy.
  • “Blaise Pascal” na Enciclopedia Filosofica Bompiani.Blaise Pascal: Mathematician, Physicist, and Thinker about God de Donald Adamson (Macmillan).

Produção e apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Ariel Henrique e Julian Ludwig

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/pascal/

Lançamento do 5º vol. de "História das Idéias Políticas" (Eric Voegelin)

Filosofia | 19/08/2016 | | IFE CAMPINAS

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É Realizações Editora lança Religião e a Ascensão da Modernidadede Eric Voegelin

Chega às livrarias o quinto volume da série História das Ideias Políticas.

Religião e a Ascensão da Modernidade é uma obra de suma importância, não apenas por seu tratamento a pensadores e doutrinas influentes no século XVI, mas também pelo exame pormenorizado dessas experiências que formaram o panorama moderno.

Ao examinar a emergência da modernidade no âmbito dos debates filosóficos e políticos do século XVI, Religião e a Ascensão da Modernidade, volume V de História das Ideias Políticas, retoma a análise da “grande confusão” apresentada no volume IV da mesma coleção. Trata-se de um período controverso e revolucionário, que abrange uma gama de acontecimentos desencadeados pelas Noventa e Cinco Teses de Lutero.

Dos pensadores mais conhecidos aos menos estudados, esse volume apresenta figuras como Calvino, Althusius, Hooker, Bracciolini, Savonarola, Copérnico, Tycho de Brahe e Giordano Bruno. O autor dedica atenção considerável a Jean Bodin, apresentando-o como profeta de uma nova religião, em meio a desordem civilizacional da era pós-cristã. O presente volume foca em temas tradicionais como a monarquia, a teoria da guerra justa e a filosofia do direito, mas também investiga questões da astrologia, cosmologia e matemática.

Apesar da complexidade da época, a análise luminosa de Voegelin esclarece sua importância e sugere linhas de mudanças que convergem num ponto no futuro: a compreensão cristã medieval, de um cosmos fechado, criado divinamente, estava sendo substituída por uma nova forma de consciência humana moderna, que pressupunha o homem como a origem inerente do sentido do universo.

Sobre o autor

Eric Voegelin (1901-1985) foi um dos filósofos mais originais e influentes de nosso tempo. Nascido em Colônia, Alemanha, estudou na Universidade de Viena, onde depois tornou-se professor de Ciência Política na Faculdade de Direito. Em 1938, ele e sua esposa, fugindo de Hitler, emigraram para os Estados Unidos. Tornaram-se cidadãos americanos em 1944. Voegelin passou a maior parte de sua carreira na Universidade do Estado da Louisiana, na Universidade de Munique e no Instituto Hoover, na Universidade Stanford. Publicou muitos livros e mais de cem artigos.

Título: Religião e a Ascensão da Modernidade – História das Ideias Políticas V

Autor: Eric Voegelin

Tradução: Elpídio Mário Dantas Fonseca

Editora: É Realizações Editora

Preço: R$ 79,90

Nº de páginas: 368

 Para adquirir clique aqui.

Fonte: imprensa@erealizacoes.com.br

Ética e visão sobrenatural (por Gustavo França)

Filosofia | 21/07/2016 | | IFE RIO

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Trecho de “Choruses From the Rock”, de T.S. Eliot

Trecho de “Choruses From the Rock”, de T.S. Eliot

 

No mundo atual, em que pluralismo religioso e secularização estão na ordem do dia, talvez a mais tormentosa das questões morais que se apresentam para o debate filosófico seja a relação entre ética e religião. Afinal, seria a moral dependente de uma cosmovisão religiosa? A resposta do mainstream contemporâneo parece tender a um unânime e aparentemente óbvio “não”. Trata-se, porém, de uma resposta calcada na irreal ideia de que a religião é uma simples preferência privada, fruto de algum “sentimento espiritual”, inteiramente desvinculado de nossa atividade racional e de nossa vida no mundo. Se, entretanto, usamos nossa capacidade reflexiva de maneira mais cuidadosa, percebemos sem dificuldade que as questões teológicas são os pressupostos que informam toda a nossa visão de mundo nos campos da razão (por exemplo, a existência de Deus e o modo como concebemos Seus atributos nos leva a entender que o universo é ordenado ou que é caótico, e só a partir daí construímos a Ciência, ou nos põe como dados inescapáveis, para concebermos a disciplina histórica, a providência e o sentido teológico da História), o que nos mostra que o problema é mais complexo do que estamos acostumados a admitir.

Penso que uma boa maneira de conduzir essa investigação seja analisar dois notáveis pensamentos morais alheios ao que poderíamos considerar um esquema “teológico”, típico da filosofia escolástica: a ética de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), arquétipo da ética pagã da Antiguidade, e a de Immanuel Kant (1724-1804), arquétipo da ética racionalista liberal.

Aristóteles, no livro X de sua “Ética a Nicômaco”, nos recorda que a vida mais excelente para o homem é a vida do filósofo, isto é, a vida contemplativa. Isso porque a contemplação é a única atividade boa por si mesmo, que não está, como as ações instrumentais, vinculada a uma finalidade contingente e externa, mas é a sua própria finalidade. Quando nos dedicamos ao puro pensamento acerca das verdades eternas que regem a realidade, transcendemos as materialidades rasteiras da condição humana e atingimos uma vida divina (os deuses, em seu estado de perfeição, realizam unicamente a perene contemplação). O objetivo último da vida humana é superar sua realidade terrena e buscar o que há em si de sobrenatural. A vida virtuosa não é outra coisa senão a vida ordenada àquilo que é bom por si e não às coisas meramente úteis (boas para algum objetivo material).

Já para Kant, embora a ética se fundamente na razão pura, para que ela possa adquirir um sentido real como mais do que mera fantasia, é preciso que o ser humano não esteja definitivamente preso às suas limitações materiais. Se a existência humana se esgota neste mundo, uma lei eterna e universal absolutamente independente de tudo o que é empírico é um ideal quimérico, e, consequentemente, todo o esforço de autonegação para viver não segundo os impulsos, mas buscando um bem superior é vão. Por isso, torna-se necessário postular a existência de Deus e a imortalidade da alma, para que o homem possa cumprir sua vocação à eternidade, e a dignidade alcançada pela vida moral seja justamente honrada, de acordo com a natureza.

Como se vê, a percepção do sobrenatural é inexoravelmente necessária para a integridade última de qualquer pensamento moral sólido. É verdade que os preceitos morais estão ao alcance da razão natural. Entretanto, a vida moral exige que (ainda que inconscientemente) – se aderíssemos a uma linguagem kantiana – se pressuponha a existência de Deus: não é preciso acreditar em Deus, mas, pelo menos, agir como se Deus existisse.

Explico melhor: sendo a Ética o estudo do bem, e este um padrão eterno de normatividade, assim como a verdade e a beleza, ela (e toda a Filosofia, na verdade) se dirige às coisas cujo valor é superior ao dos objetos contingentes do mundo e cujo conhecimento é um bem maior do que as satisfações empíricas. Se a vida humana se esgotasse neste mundo, nenhum sentido haveria em buscar um bem que transcende a existência natural. Quando vislumbramos a grandeza da submissão aos ditames da nossa consciência como superior aos instintos e ao amor-próprio e concebemos uma responsabilidade que vai além das consequências imediatas de nossas ações, pressupomos implicitamente que nossa consciência não é passageira como as contingências mundanas.

Como bem nos mostra, por exemplo, a poética filosófica de T. S. Eliot (1888-1965), o sentido da vida humana não pode ser dado pelo empirismo. Se a materialidade encerrasse toda a nossa existência, seríamos os mais patéticos entre os seres. Ostentaríamos uma razão que, em sua sede de metafísica e de infinito, seria apenas uma máquina de delírios. Os animais, ao menos, são dotados apenas de instintos. Nós, munidos da razão, estaríamos condenados a reconhecer a inutilidade de nossa natureza e a agir igualmente segundo o instituto e a sucessão mecânica de necessidades.

A vida só pode encontrar sentido quando unida num trinômio à morte e à ressurreição. Se tiramos a ressurreição de cena, a morte perde qualquer lógica e se torna simplesmente um martelo indestrutível que arbitrariamente faz das mais poderosas obras humanas formiguinhas a serem fatalmente pisoteadas. Consequentemente, a vida se vê desprovida de qualquer valor. Somente a esperança na vida eterna justifica que nos direcionemos para os bens morais[1].

Conclui-se, assim, que a razão, por si só, é capaz de enxergar que a visão sobrenatural é pressuposto necessário para que se possa tratar da Ética. Mesmo um ateu é capaz de compreender que ao raciocínio moral subjaz a concepção da eternidade como nosso lugar próprio. Quando um descrente vive com retidão moral, mesmo sem o perceber, age como se Deus existisse. Creio que tenha ficado claro que não nego que a moralidade seja acessível à razão, mas a própria razão, mesmo sem buscar as luzes da revelação, mostra que a existência humana aponta para aquilo que lhe transcende. Quem não tiver os olhos postos no que é eterno jamais compreenderá a vida simplesmente boa e não útil ou confortável.

[1] Cf. Russell Kirk, “A era de T. S. Eliot”, pp. 477-478.

Gustavo França é graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e editor da revista Dicta & Contradicta.

Artigo publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradica, em 22 de janeiro de 2016.

“Estado da Arte”: A Poética de Aristóteles

Filosofia | 15/07/2016 | | IFE CAMPINAS

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O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 5 de dezembro de 2014.

A Poética de Aristóteles

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“Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”? Talvez. Mas entre as não sonhadas jamais houve uma que não tenha atraído o olhar e o tato de Aristóteles. Primeiro e maior sistematizador da história do pensamento, seu Corpus enciclopédico definiu a epistemologia que está na base dos currículos de ensino superior ao redor do mundo. E, como se não bastasse a teoria, nos deixou também a chave para a prática do saber. No comando de algumas das cabeças mais competentes da Grécia, formaria em seu Liceu o primeiro centro de pesquisa científica aplicada, antecipando o aparato de produção de dados das academias contemporâneas.

Curiosamente, dentre suas numerosas obras, poucas, ou talvez nenhuma, teria uma repercussão comparável à de sua pequena apostila de teoria literária. Desafiando o lugar comum de que gosto não se discute, a Poética apresenta uma análise criteriosa não só dos elementos que compõem a poesia, mas das qualidades que brilham na boa poesia. Para o historiador da literatura grega Albin Lesky, “uma história da Poética e dos seus influxos deveria representar uma parte importante da vida cultural do Ocidente e ser, ao mesmo tempo, a história de erros grandiosos”. Após um período de hibernação milenar, o opúsculo renasceria incompleto ao olhar dos humanistas modernos. Popularizado como um “manual” de composição dramática, se revelou crucial para a formação da ópera italiana e do teatro barroco e neoclássico, suscitando mais de uma polêmica literária literalmente “homérica”. E mesmo hoje, não poucos roteiristas de Hollywood recorrem às lições da Poética para aprimorar a sua arte. Assim – quer saibamos quer não – Aristóteles segue exercendo uma influência decisiva sobre o modo como concebemos nossas histórias, vivemos nossos dramas e experimentamos o horror e a beleza do mundo.

Convidados

– André Malta, professor de língua e literatura grega da Universidade de São Paulo.

– Vicente Sampaio, tradutor da Poética e pesquisador do departamento de filosofia da Universidade Estadual de Campinas.

– Fernando Gazoni, tradutor da Poética e professor de língua e literatura grega na Universidade Federal de São Paulo.

Referências
  • A Poética de Aristóteles, tradução e comentários de Fernando Gazoni (http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-08012008-101252/pt-br.php).
  • Aristotle’s Poetics e The Aesthethics of Mimesis de Stephen Halliwell (Princenton).
  • “Aristotle’s Poetics” em In our time (http://www.bbc.co.uk/programmes/b00xw210).
  • A Poética de Aristóteles, tradução e comentários de Vicente Sampaio (Bamboo Editorial – no prelo).
  • “O método analítico e o método dialético na Poética de Aristóteles” de Fernando Gazoni nos Anais de Filosofia Clássica v. 2, 2008 (http://www.ifcs.ufrj.br/~afc/).
  • Principes de la tragédie: En marge de la poétique d’Aristote de Jean Racine (Nizet)
  • A Poética de Aristóteles. Mímese e Verossimilhança de Ligia Militz da Costa (Atica).
  • “Aristotle: Poetics” na Internet Encyclopedia of Philosophy (http://www.iep.utm.edu/aris-poe/).
  • Aristóteles em Nova Perspectiva de Olavo de Carvalho (Vide Editorial).
  • La Poétique d’Aristote com prefácio de T. Todorov e tradução e comentários de R. Dupont-Roc e J. Lallot (Seuil).
  • Aristotle’s Theory of Poetry and Fine Art de Samuel Butcher (https://archive.org/details/aristotlestheor00butcgoog).

Apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Echo’s Studio

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/a-poetica-de-aristoteles/