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Tire esse seu piercing do caminho que eu quero passar com a minha dor – por Iura Breyner

Artes | 15/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Foto: Användare:Zelina (Wikimedia Commons)

Foto: Användare:Zelina (Wikimedia Commons)

 

Hoje, não por acaso, escutei a canção “Piercing” de Zeca Baleiro, uma reflexão profunda sobre a vida contemporânea e seus contrastes. A letra começa assim:

“Quando o homem inventou a roda, logo Deus inventou o freio. Um dia, um feio inventou a moda… e toda a roda amou o feio.” – uma provável alusão à inteligência humana, a uma ampliação sempre crescente dos limites de sua liberdade e a conseqüente imprevisibilidade que, por assim dizer, obriga Deus a pôr freio, como forma indireta de controle, ou moderação.  Na continuação, faz referência a “um feio” – indivíduo ou grupo humano – fora do padrão, que, por sua vez despadroniza por contágio a outros indivíduos e ambientes que em algum momento e por razões diversas incorporam ou padronizam o que antes era considerado “contra-padrão”.

Lembrei-me por um instante de como alguns movimentos sócio-políticos de caráter contestatório como o “Hippie e o “Punk[1], surgidos nos EUA e Europa entre os anos 70 e 80, foram rapidamente absorvidos pelas mídias dos grandes centros urbanos dos cinco Continentes, transformando-se em modas febris e passageiras que desfiguraram total ou parcialmente a mensagem-mãe daqueles movimentos. Pensei mesmo nas mais importantes invenções e descobertas do homem, como por exemplo, a roda e o domínio do fogo com seu efeito-dominó, cuja última peça não seja outra que não aquela em que O Próprio Deus resolva pôr – quando queira – o Seu Divino Dedo.

Pergunto-me se a questão seria mesmo a da incontrolável inteligência humana e não a da sua inata liberdade, pela qual cada geração e cada indivíduo tem o poder e a responsabilidade de deliberar seu rumo histórico.  Neste caso, de modo algum teria sido Deus a inventar o freio, mas o próprio Homem, sujeito ativo e passivo de seu  livre arbítrio, como único ser na natureza com capacidade de domínio e controle sobre os demais seres e os de sua própria espécie.

Voltemos à letra da música; desta vez ao refrão que a intitula: “tire o seu piercing do caminho, que eu quero passar, quero passar com a minha dor!”. Demos um salto na história  e nos contextualizamos na chamada pós-modernidade; o período cultural urbano do “pós-guerra”, ou da guerra e da morte institucionalizadas nas culturas urbanas do nosso mundo.

A letra faz referência à velha canção de Nelson Cavaquinho – “Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor…” – a referência na letra é sublinhada pela melódica; uma espécie de “colagem musical” em que uma voz chorada e abafada canta ao fundo a segunda parte do trecho original como resposta à provocação recriada da primeira. Agora já não é mais o sorriso ferino da amada, alheio e até talvez sarcástico ante a dor do poeta desprezado, mas o “piercing” – signo da provocação “punk” à sociedade cuja característica mais marcante é o horror à dor manifestado na hipervalorização do conforto e do prazer e na hipócrita negação da própria realidade com suas imperfeições e cicatrizes indisfarçáveis. Signo desgastado e esvaziado de significação pelo uso excessivo, repetitivo e indiscriminado por esta mesma sociedade que o incorpora, como no evento inicialmente descrito, transformando-o em moda vazia.

O piercing, deslocado de seu contexto inicial e esvaziado de sentido numa sociedade “fast food” deixa de apontar-lhe ironicamente o dedo indicador para trazê-la cuidadosamente no anelar esquerdo. Sim; casou-se com ela e de agora em diante a representa em lugar de acusá-la. É precisamente a este piercing – traidor, representante de uma colorida e atraente bolha de plástico à vácuo – que o poeta Zeca Baleiro impetra que lhe seja tirado da frente para que siga adiante com a sua dor.

E o que é precisamente, esta “dor” do poeta? Voltemos à letra: 

“Pra elevar minhas idéias não preciso de incenso
Eu existo porque penso
tenso, por isso existo
São sete as chagas de cristo
São muitos os meus pecados
Satanás condecorado
na tv
tem um programa
Nunca mais a velha chama
Nunca mais o céu do lado
Disneylândia eldorado
Vamos nós dançar na lama

Bye bye adeus Gene Kelly
Como santo me revele
como sinto como passo
Carne viva atrás da pele

aqui vive-se à míngua
Não tenho papas na língua
Não trago padres na alma
Minha pátria é minha íngua
Me conheço como a palma
da platéia calorosa

Eu vi o calo na rosa
eu vi a ferida aberta

Eu tenho a palavra certa
pra doutor não reclamar
Mas a minha mente boquiaberta
Precisa mesmo deserta
Aprender aprender a soletrar

Tire o seu piercing do caminho,
Que eu quero passar, quero passar com a minha dor…”

Em que pode consistir a dor de um poeta? A sua dor é a dor da vida; a dor do mundo que grande parte do mundo não sente; a dor de um homem com o pé na terra e o desejo no infinito; um homem inteiramente sozinho no sentir e sorver o paradoxo e o mistério da própria existência. A muitos outros homens, a máquina do “panis et circencis” mundial consegue acalmar com suas belas promessas de fogos de artifício, mas não a uma alma de poeta. Ela passa por entre as mesas e os espetáculos que aos demais delicia – ela mesma tantas vezes pão e circo entre outros, para os outros – alimentando-se apenas das migalhas pobres do prazer alheio, qual peregrino no deserto em busca do Paraíso perdido.

A alma de um poeta passa, vê, aponta e vai-se embora mambembe. Pode até ficar no mesmo lugar anos a fio, mas não permanecem os mesmos, nem o poeta, nem os que por ele passam, nem o terreno à volta de seu passo. Adentrando as inóspitas terras de si mesmo, ele faz andar o mundo que o cerca. Neste passar por entre outros, a alma de um poeta deixa rastros de si mesma, de sua insatisfação com este mundo e também da direção para a qual seu caminhar – mesmo que incerto – aponta: a do Absoluto.

Por isso o passo de um poeta nunca passa despercebido e na maioria das vezes incomoda e muito. Os pesados homens do “não pense” atiram-se sobre ele; tentam comprá-lo, moldá-lo ou anulá-lo a todo custo: “a modernidade é uma matilha de cães raivosos e assustados…” diz a letra; e é assim mesmo. Uma alma de poeta conhece o vale por onde passa; sabe seus perigos e encantos, mas não se detém a considerar estes ou aqueles; leva em conta apenas a necessidade imperiosa do seguir em frente até a morte – cortina divisória entre o faz de conta e o real.

A alma do poeta não teme a morte – quase a deseja – mas teme sim o tornar-se zumbi – um morto-vivo – em seu próprio mundo. A alma de um poeta deseja atravessar as noites com os olhos, os ouvidos e a boca abertos; deseja olhar, ouvir e dizer. Despreza a palavra macia e falsificada – o falso “belo” dos homens políticos e da mídia comum – ; ama toda palavra, fonte de comunicação entre os homens de bem. Deixo Baleiro cantar:

Não me diga que me ama
Não me queira não me afague
Sentimento pegue e pague
emoção compre em tablete
Mastigue como chiclete
jogue fora na sarjeta
Compre um lote do futuro
cheque para trinta dias
Nosso plano de seguro
cobre a sua carência

Eu perdi o paraíso
mas ganhei inteligência
Demência, felicidade,
propriedade privada
Não se prive não se prove
Dont’t tell me peace and love
Tome logo um engov
pra curar sua ressaca
Da modernidade essa armadilha
Matilha de cães raivosos e assustados&
O presente não devolve o troco do passado
Sofrimento não é amargura
Tristeza não é pecado
Lugar de ser feliz não é supermercado
 

Tire o seu piercing do caminho…”

O que é a felicidade? – pergunta o autor – Em que consiste o ser feliz neste mundo? No conforto? Na ausência de dor? Na posse de uma série de bugigangas que dão status a quem as exibe? Quem sabe num certo grau de demência que faz o homem material e socialmente bem colocado no seu mundo ignorar quase por completo as sub-humanas condições em que vivem outros homens, tão dignos de felicidade quanto ele? Quem sabe, talvez então, não estaria a felicidade na supressão tecnológica e comportamental de toda privação ou provação, na construção artificial de uma espécie de sociedade perfeita na qual palavras como sofrimento, amargura e tristeza sejam definitivamente banidas como “ilegais, imorais ou engordativas”?

Entretanto, se não é possível extirpar da sociedade tais termos, por conta de uns tantos extra-terrestres humanóides que parecem vindos a este mundo só para incomodar com suas deficiências, pobreza e sofrimento, ao menos se pode empurrá-los para o mais longe possível da nossa convivência; seja jogando-os para as periferias de nossas cidades, seja pela construção de muralhas como meios de distinção e segurança para as nossas confortáveis e belas moradias. 

“O inferno é escuro
não tem água encanada
Não tem porta não tem muro
Não tem porteiro na entrada
E o céu será divino
confortável condomínio

Com anjos cantando hosanas
nas alturas nas alturas
Onde tudo é nobre
e tudo tem nome
Onde os cães só latem
Pra enxotar a fome
Todo mundo quer quer
Quer subir na vida
Se subir ladeira espere a descida
Se na hora “h” o elevador parar
No vigésimo quinto andar
e der aquele enguiço
Sempre vai haver uma escada de serviço
 

Tire o seu piercing do caminho
Que eu quero passar, Quero passar com a minha dor”
 

Haverá uma ponte possível entre estes dois universos paralelos da pobreza e da riqueza? O que se entende hoje por “caridade”? Dar presentes, roupas, ou comida ao pobre? Onde poríamos a linha que distingue estes dois termos – caridade e justiça?

Bento XVI afirmava magistralmente em sua Encíclica Spe Salvi, que a “Caridade chega onde a Justiça não alcança”. Não que a Justiça não possa ser perfeitamente cumprida neste mundo, o que em sentido estrito é bem verdade, mas não por isso. Ainda que uma sociedade possa alcançar um avançado grau de justiça legal e moral neste nosso mundo contemporâneo, haveria sempre nele a carência desta outra virtude, a da Caridade, que não consiste propriamente em dar o que nos sobra – quando não o que nos estorva mesmo – mas sim em dar-nos a nós mesmos até a última gota do coração com toda a sua capacidade de amar, de querer, de desculpar, perdoar e compreender. A Caridade – o Amor Fraterno – situa-se num nível ligeiramente superior ao da Justiça; anda lado a lado com ela e não a prescinde, mas situa-se em outro patamar moral, o da liberalidade.

Em tal patamar, não busca o homem tal virtude por si mesmo, mas para chegar ao outro. A Justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido. A Caridade consiste num abrir-se total e ilimitadamente ao outro, porque descobre nele a diversidade de dons e valores, ao mesmo tempo que a similaridade da espécie, que nos faz todos iguais em termos de valor e dignidade. A Justiça, como a Caridade e todas as demais virtudes, como tais, consistem em hábitos; predisposições da pessoa para o bem através da repetição de atos morais bons. A virtude, enquanto hábito adquirido e/ou por se adquirir, custa trabalho e persistência.

Todo mundo sabe tudo todo mundo fala”, diz a letra – fácil é falar… “Mas a língua do mudo ninguém quer estudá-la!” : uma claríssima referência à pouca ou nenhuma disposição natural das pessoas a moverem-se no sentido de verdadeiramente escutar; interessar-se sincera e retamente pelos outros. Pergunto-me a respeito deste verso, o quão disposta estaria eu – estaríamos nós – a dar espaço ao outro no meu pensamento e na minha vontade, de forma que o “eu” se ponha voluntariamente em segundo plano em favor do “outro”. Sim, é preciso estar disposta e treinar diariamente:Quem não quer suar camisa não carrega mala; revólver que ninguém usa não dispara bala.”

Tenho que aprender a me enxergar e enxergar o outro, pensando que a fraqueza dele é também a minha. Tenho que entender que todos somos passíveis de engano e erro. Tenho que sair da minha zona de conforto e aprender a me comunicar com aqueles que não são da minha rua ou que não pensam como eu. Tenho que aceitar ser uma estranha para o outro e sentar-me formalmente em sua “sala de visitas” para chegar à intimidade de seu quarto, onde só ele, além de Deus, sabe das dores e alegrias de se ser o que mais íntima e verdadeiramente se é.

“Pra chegar na minha cama tem que passar pela sala
Quem não sabe dá bandeira quem sabe; sabiá cala
Liga aí; porta-bandeira não é mestre-sala
E não se fala mais nisso!
– Mas nisso não se fala!
E não se fala mais nisso

Mas nisso não se fala

Tire este seu piercing do caminho que eu quero passar,
Quero passar com a minha dor!”

NOTAS:

[1] O Movimento hippie surgiu nos EUA nos anos 70, questionando a utilização de homens jovens como “bucha de canhão” pelo Estado em seus jogos de guerra, bem como a hipervalorização das regras morais da sociedade, não na sua essência, mas apenas no seu aspecto formal, e o segundo a exaltação da frivolidade e do luxo da sociedade de consumo ocidental capitalista dos anos 80, especialmente pelas mídias televisivas e cinema americano desta época.

Por Iura Breyner Botelho, especialista em História da Arte e Crítica de Arte.

Coordenador do IFE Campinas entra para a Academia Campinense de Letras

Sem Categoria | 12/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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O Coordenador do IFE Campinas, André Fernandes, é o novo membro da Academia Campinense de Letras. Confira a seguir a matéria publicada pelo Jornal Correio Popular e, na sequência, o seu discurso de posse, proferido na solenidade ocorrida na noite de ontem (11/12/2014).

O novo acadêmico, de 40 anos, chega com a missão de atrair o público jovem para a ACL

Foto: Carlos de Souza Ramos/AAN

André Fernandes: "É preciso utilizar os instrumentos que os jovens usam"

Aos 40 anos, o juiz André Gonçalves Fernandes, colunista do Correio Popular, torna-se o mais jovem membro da Academia Campinense de Letras (ACL) em cerimônia fechada de posse que será realizada nesta quinta-feira (11), às 20h, na instituição. Mais do que a honraria, o novo acadêmico entra com a missão de atrair o público jovem, desejo explicitado pelo presidente da ACL, Agostinho Toffoli Tavolaro. Tendo em vista esta tarefa, Fernandes pensa em renovar a linguagem da academia, bem como o acesso a ela.

Diferentemente da maioria dos 22 candidatos às quatro vagas, anunciadas em setembro, Fernandes foi convidado por Tavolaro a participar da seleção. “Ele manifestou seu interesse em fazer com que a academia deixasse de ser um clube de senhores e senhoras amantes da literatura para ser um local onde jovens discutem a cultura. E eu unia os elementos do perfil que queriam: bacharel em Direito e jovem”, conta o juiz.

Amadurecimento

Fernandes afirma que levou seis meses para amadurecer a ideia e aceitar o convite. “Se por um lado eu me sinto honrado, fico muito feliz com a oportunidade, por outro me preocupo com o desafio que me foi dado para jovialização do espaço”, afirma. Para tanto, pensa em trabalhar com a linguagem a maneira de levá-la aos jovens.

“É um desafio atraí-los a assuntos um tanto teóricos e acadêmicos. Não basta escrever, é preciso usar o instrumento que eles usam, como as redes sociais. Isso aproxima. E também usar a linguagem mais da emoção e não apenas a racional. A emotividade rumo à racionalidade”.

Parceria

O fato de ser coordenador — e membro mais velho — do Instituto de Formação e Educação (IFE) de Campinas, é visto pelo juiz como vantagem para essa missão. “Os outros membros estão na faixa dos 30 anos e acredito que possam me ajudar nessa tarefa. Temos, inclusive, uma parceria com ACL e nesse ano fizemos dois seminários sobre imaginação que tiveram boa procura. A parceria é benéfica tanto para a academia como para o IFE”, diz.

Fernandes sucede Maria Conceição Arruda Toledo na cadeira 30, cujo patrono é Humberto de Campos. “Algo que vejo como denominador comum entre nós três é o amor e a sinceridade no escrever, cada um à sua maneira. Me identifico com Humberto pelo modo como pensava e escrevia em uma época atribulada, da segunda República e no primeiro governo de Getúlio Vargas. E com a Conceição porque ela defendia a abertura da participação da mulher na sociedade, num período que era pouco valorizada, porém enfatizando o diferencial da maternidade”, avalia.

Perfil 

André Gonçalves Fernandes é juiz da Comarca de Sumaré, juiz-assistente da 4ª Vara Cível de Campinas e coordenador do IFE Campinas. Natural do Rio de Janeiro, mudou-se para Campinas aos 7 anos e em 2011 recebeu título de Cidadão Campineiro.

Estudou no Colégio Visconde de Porto Seguro, em Valinhos, graduou-se na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), conquistou o cargo de juiz aos 23 anos, e é mestre e doutorando em Filosofia e História da Educação pela Universidade de Estadual de Campinas (Unicamp).

Atua hoje como articulista da Escola Paulista de Magistratura e do Correio Popular, no qual publica textos às quartas-feiras. Tem cinco livros lançados: ‘Direito de Família do Começo ao Fim da Vida’ (Ed. Almedina, 2011, lançado no Brasil e em Portugal), ‘Direito Civil Para Concurso de Juiz Federal’ (Ed. Edipro, 2013), Aborto: Aspectos Sociológicos e Filosóficos (Editora Noeses, 2013), ‘Direito de Família’ (Vários autores, Ed. Noeses, 2014) e a dissertação de mestrado ‘Ensinando e Aprendendo Direito como o Método do Caso’ (Ed. Edipro, 2014).

Fonte: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2014/12/entretenimento/229143-andre-fernandes-entra-na-academia-campinense-de-letras.html

Discurso de Posse na Academia

 

DISCURSO01

 Meus amigos, a única coisa incontroversa que se pode dizer por ocasião desta solenidade, é que, por imperativo biológico e existencial, ela não poderá ser repetida. O restante é opinável e respeitável. Minha regra é falar pouco para falar muito. Aprendi com um lisboeta chamado João Pereira Coutinho, cujo dom da pontualidade fundamentada é invejável. Contudo, hoje, como dizia a música, vou quebrar a regra, mas não o decoro, porque, na liturgia desta casa, esse tipo de estripulia pode se transformar em sinônimo de preocupação dos mais velhos. E prometo ser claro: afinal, a claridade é a cortesia não só do filósofo, mas do orador.

Conversando com um amigo de café, ele, um sujeito bem cético, descreveu a motivação deste encontro com a sigla PVC. Indaguei-o a respeito. Explicou-me: “Isso não significa promessa de venda de câmbio ou polivinil cloridro e sim, quando alguém recebe este tipo de título, quero dizer apenas que a porcaria da velhice chegou”.

Evidentemente, opus-me ao comentário, já que, se minha vida fosse uma partida de futebol, estaria nos 45 minutos do primeiro tempo. E, como minha fé não é tão cega a ponto de achar que, depois de encerrado o jogo, ainda chegarei na prorrogação de 30 minutos com direito a cinco sequências de penalidade máxima, me contentarei em terminar os 90 minutos regulamentares. Talvez, com um bondoso acréscimo do árbitro divino. Mas, seguramente e, em todo caso, com a partida já vencida.

Não compareci para esta cerimônia festiva de smoking. Nesse ponto, recordo-me da advertência de Nelson Rodrigues a Roberto Campos, duas pessoas que sempre admirei intelectualmente e que possuem, talvez, o mais vasto acervo de piadas didáticas com que alguém já deu luminosidade e encanto às suas áreas de atuação profissional. Dizia o dramaturgo nordestino que “Roberto, nada se parece mais com um garçom do que um intelectual de smoking”.

Prefiro a veste talar do costume e da gravata que, à semelhança do patrono desta cadeira – Humberto de Campos – fazia dela seu “modo de ser”, desde que ingressou na Academia Brasileira de Letras em 1918. Homem que não só aliava elegância indumentária, mas intelectual, porque seus tipos não foram imaginários, mas profundamente reais. Viveram e vivem entre nós e retratam personagens que morrem para dilatar sua vida. Humberto de Campos foi um literato que redigiu mais de três dezenas de livros, centenas de artigos e crônicas na imprensa brasileira. Sempre com um estilo claro, harmonioso e cheio da força da sinceridade.

Sinceridade esta que permeou as linhas de seu diário secreto durante toda sua vida e que fora esquecido nos cofres da ABL, até que, um dia, fora restituído à família, a qual cedeu a divulgação para a revista “O Cruzeiro”, que se encarregou de publicar todos os pormenores, bons e ruins, dos episódios redigidos pelo punho de Humberto de Campos ao longo dos anos e acerca de muitas personalidades ainda vivas. Isso lhe custou um movimento surdo de revolta contra o escritor e a espiral do silêncio fez com que seu nome deixasse de ser citado e suas obras publicadas. Por isso, novas gerações deixaram de conhecer humaníssimas crônicas repletas de erudição e de espírito, saídas de sua privilegiada pena.

Esse ostracismo existencial é comparável com as ondas de cinza e de lava vulcânica que sepultaram Herculano e Pompéia: porção tênue, leve, soprada pelo vento nos primeiros tempos e que, aos poucos, vai tomando a consistência de pedra, que só os alviões podem abrir e remover. E, nesse ponto, passo-me a reportar à minha ilustre antecessora: Maria Conceição Arruda Toledo. Sua pena foi, em sua maturidade intelectual, um alvião contra a insubmissão de um espírito em busca de si mesmo e contra os preconceitos sociais sufocantes de sua condição de mulher. Em suas “Memórias – Resgatando o decênio 2000 a 2010”, ela descortina, logo no prólogo, que “quando escrevo, não faço rodeios. Vou direto ao assunto. Sou sincera, não sei caramelar a pílula, mormente contra os erros. Meus ou os dos outros. Se escrevi, é porque penso e sinto aquilo que está escrito. Sei que irei desagradar a muitos e haverá outros que se alegrarão”.

Esse espírito de rebelião contra o erro lembra um pouco de Catarina de Sena, essa doce e formidável santa que, no hábito de dominicana, na frente e nas costas, trazia duas cruzes: a cruz do santo amor e a cruz da santa ira nas batalhas espirituais e concretas do cotidiano. Conceição, dona de um estilo fluente e ameno, em suas obras, leva-nos a refletir sobre a transcendência dos episódios aparentemente triviais do dia-a-dia que, paulatinamente, à semelhança do mais conhecido santo do cotidiano – Josemaría Escrivá –, vão crescendo em nossa consciência, com a saga de um espírito corajoso que, superando as barreiras dos preconceitos, Conceição soube, sem alarde, superar a si mesma como Catarina o fizera séculos antes.

Conceição, em sua vastidão bibliográfica de livros (como Seara de Ternura, Raízes, Gênese&Memória e Memórias) e artigos de jornais, vai rastreando a dura realidade de incursão pelos caminhos belos e trágicos de nossa existência: mostra que todos somos incompletos, ou seja, não nos bastamos e, por isso, associamo-nos aos demais; mostra que nascemos inacabados e, por isso, precisamos ser finalizados pela educação e pelo viver; mostra que, nosso universo, em seu horizonte prático, clama pelo cumprimento de si e, por isso, nosso ser tende ao nosso dever-ser.

Nessa trilha do esse ao plenum esse, Conceição nos legou uma história de uma mulher de coragem que jamais renunciou aos seus propósitos, vencendo resistências e derrubando obstáculos, inclusive, no mundo acadêmico, ao defender, com rara fineza, a admissão das mulheres nas academias literárias e artísticas. Como prêmio, elegeu-se acadêmica e tornou-se a primeira mulher a assumir a testa da ACL. Afinal, cada qual colhe o que planta. Que sua sincera alma descanse em paz!

Hoje, cá estou ocupando a cadeira que a acolheu por muitos anos e com a perspectiva de muitos anos assentado nela, dada minha precocidade etária quando comparada aos meus ilustríssimos pares, precocidade essa que já renderam muitas piadas. Meu estagiário já me apelidou de “mascote da academia”, meus amigos do futebol mensal já disseram que vou virar um atacante mascarado (no jargão do futebol), porque, daqui por diante, só irei fazer gol de letra e, o nobre acadêmico Rubem Costa, ao me parabenizar pela eleição e pelo expressivo número de votos recebidos, disse-me que “finalmente, arranjamos um porteiro para academia, a fim de que, bem desperto lá fora, possamos bem cochilar nas sessões aqui de dentro”.  

Anedotas à parte, a precocidade no cargo é um manto diáfano que, para mim, faz vislumbrar a responsabilidade da carga que me foi atribuída. Contudo, estou esperançoso do desfecho desta nova missão, porque tenho um ponto em comum com o patrono da cadeira 30 e com minha antecessora: também sou o que escrevo e, de certa forma, escrevo o que sou.

Desde 1997, quando passei a vestir a toga, pude me dedicar com mais tempo aos intensos estudos sobre as humanidades, mormente filosofia, história e literatura. Enfim, comecei a investigar como poder responder a uma série de perguntas que afligem todo homem e podem ser resumidas na bimilenar e sempre atual máxima socrática: como viver?

A dúvida do filósofo que muito pensou e nada escreveu acabou por me inclinar a muito escrever, sem deixar de pensar. Não só para o mundo acadêmico, mas, principalmente, para o cidadão, aquele que, semanalmente, desde 2002, na página dois do Correio Popular, tem tido a paciência e o zelo de ora concordar, ora discordar de minhas ideias. Misturadamente, como dizia Guimarães Rosa.

De lá para cá, muito tempo passou. A respeito do tempo, ficam aqui as palavras do poeta da minha geração, a chamada geração coca-cola: “Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou, mas tenho muito tempo. Temos todo o tempo do mundo. Todos os dias, antes de dormir, lembro e esqueço como foi o dia. Sempre em frente. Não temos tempo a perder. Nem foi tempo perdido. Somos tão jovens”.

Diante da natural vitaliciedade do cargo que hoje assumo, prometo, como tudo que faço, a me esforçar por desempenhar minhas funções com a tenacidade dos jovens e a prudência dos mais experientes, a fim de que, nos estertores de minha existência, faça por merecer aqueles profundos dizeres de Dickens, no conto “História de Duas Cidades”, citadas aqui em inglês em razão de sua expressiva sonoridade: “It´s a far, far better thing that I do than I have ever done. It´s a far, far better rest that I go to than I have ever know”.

Chegou o momento de parar. Quis ser, desde o ginásio, um diplomata, uma profissão que congrega uma série de atributos que sempre me atraíram: as humanidades em geral, a política e as línguas, por influência direta de meus pais, de quem aprendi, desde cedo, o hábito do estudo sério, metódico e profundo. Cometi um pequeno desvio de percurso no segundo ano das Arcadas do Largo de São Francisco que, alguns anos mais tarde, presentearam-me com dádivas que não têm preço: uma esposa amada, cinco filhos que são objeto de nosso amor incondicionado e, hoje, uma cadeira nesta longeva academia de letras.

Então, a formação que sempre busquei para ser diplomata e que me ajuda, em muito, na faina diária de magistrado, terá, nessa casa, uma serventia pronta e acabada: servir aos nobres propósitos desta casa, muito mais infensos aos desvios ideológicos que, ultimamente, têm caracterizado a política diplomática de nosso Itamaraty, porém, com os desajeitos próprios de minha mediania e com a grandeza sem limites de meus ideais. Meu patrono e minha antecessora também assim agiram. Com os mesmos ideais e com superior dinamismo e talento.

Jamais pensei que, um dia, estaria num sodalício da magnitude desta generosa terra que conformou as fronteiras do Brasil, oferecendo às gerações vindouras uma nação continental. Desta terra em que os bandeirantes distenderam o arco das Tordesilhas para, um dia, lançarem seus descendentes a flecha do futuro de um país acolhedor por natureza. Ingresso na ACL pelas mãos do amigo Luno Volpato, de cujos esforços para minha eleição, desde a primeira hora, nada obstante sua discrição, tive conhecimento e, por isso, sou-lhe gratíssimo. Agora, ao seu lado e dos demais acadêmicos, poderei participar, não no talento, mas na constância e no trabalho, deste gesto generoso e fecundo de semeadura da cultura e do saber. E sempre sendo o que escrevo, na trilha de meus antecessores. Muito obrigado.

Campinas, 11 de dezembro de 2014.

“O cristianismo é uma invenção de cérebros doentes”, por Francisco Escorsim

Opinião Pública | 11/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Terrível, mas já não surpreende. Deu nos jornais: foram recolhidas cartilhas que seriam homofóbicas e foram distribuídas aos professores da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro. Segundo a denúncia feita pelo grupo de pesquisa Ilè Obà Òyó, do programa de pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e acatada pelo Ministério Público carioca e pela Secretaria de Estado da Educação, a cartilha intitulada Chaves para a Bioética conteria “conteúdo discriminatório (homofóbico e machista)”. Terrível, não?

Versões da cartilha estão disponíveis na internet, em várias línguas. Fui lê-las, não resisti. Encontrei a versão portuguesa, que dizem ser quase idêntica à brasileira, salvo a parte sobre teorias de gênero, que foi acrescentada e pode ser lida na versão americana. Foi organizada pela Fundação Jerôme Lejeune, sendo que 2 milhões de exemplares foram distribuídos no Brasil durante a Jornada Mundial da Juventude de 2013, no Rio. Tem cerca de 80 páginas, com nove capítulos tratando de temas como aborto, eutanásia e teorias de gênero. Em todos, lê-se, primeiro, informações de caráter científico. Depois, vêm as implicações e dilemas éticos abordados de um ponto de vista mais filosófico que religioso. No fim, na versão brasileira, vem um quadro com “O que diz a Igreja”.

Voltei a ler o noticiário, pois fiquei confuso. Afinal, o que seria o tal conteúdo discriminatório? Não se diz, só se acusa. E, além de censurar as cartilhas, o Ministério Público ainda determinou realização de campanhas de esclarecimento sobre a necessidade de respeito a todos os modelos familiares e orientações sexuais para “neutralizar qualquer conteúdo eminentemente religioso nas cartilhas (em especial a fim de repudiar o conteúdo descrito como ‘Teoria do gênero’)”.

Desrespeito a certos modelos familiares e orientações sexuais? Mas, já na introdução do manual, escrita pelo presidente da fundação responsável pela cartilha, lê-se: “Em contrapartida, nunca devemos julgar as pessoas que não fizeram as mesmas escolhas”. Isso é desrespeito? Se é assim, então é a mera defesa do modelo familiar cristão que é inaceitável, “desrespeitosa”, “discriminatória”. Logo, assegura-se o respeito a todos os modelos familiares, menos o cristão; afinal, é preciso “neutralizar qualquer conteúdo eminentemente religioso nas cartilhas”. Quem está discriminando mesmo?

E quanto às teorias de gênero, tratadas com especial apreço pelo Ministério Público, são incontroversas? É proibido ser contra tais teorias? Tornaram-se lei? Não – tanto que, recentemente, o Congresso Nacional retirou do projeto de lei do Plano Nacional de Educação a referência a essas teorias, justamente por serem muito controversas. Por que, então, tratá-las como se fossem dogmas indiscutíveis, censurando quem delas discorde e impedindo o debate no sistema de ensino?

Eis a intolerância dos tolerantes. A realidade é que, na diversidade tão louvada do “politicamente correto” imperante, o cristianismo não se inclui, não pode nem mesmo ter voz. Isso iria contra os “direitos humanos”, pelo visto. Quão distantes estamos, então, de afirmações como a famosa frase que aqui serve de título? Ah, o leitor não sabe quem a disse? Hitler. Pois é. Terrível, não?

Francisco Escorsim, advogado e professor, é coordenador do Instituto de Formação e Educação – IFE Curitiba.

Fontehttp://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?id=1517165&tit=O-cristianismo-e-uma-invencao-de-cerebros-doentes

A Árvore da Vida: Terrence Malick em busca de Sentido – por Pablo González Blasco

Filosofia | 08/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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The Tree of Life (2011). Diretor: Terrence Malick. Brad Pitt, Sean Penn and Jessica Chastain. 139 minutos. 2011.

Este é um desses filmes que eu nunca teria me animado a assistir, mas não tive escapatória. A convocação me chegou a través de um amigo, depois outro, e mais um. “Você tem que ver esse filme que ganhou Cannes”. Assim de simples. Na verdade, o que se deve ler é “Você tem de ver esse filme, e escrever sobre ele, porque quero saber o que você vai comentar”. É o que da quando a gente se mete a crítico de cinema – que, aliás, nunca afirmei ser, nada mais longe do meu propósito. Apenas compartilho as ideias que me ocorrem quando vejo filmes, na tentativa –isso sim é verdade- de promover a reflexão.

A bandeira do humanismo que, também é fato, levanto sempre que se me oferece a oportunidade, é estandarte confeccionado à base da reflexão. Educar no humanismo não é tanto ensinar coisas novas, mas, sobretudo ajudar a lembrar das raízes que todos levamos dentro. Ou, como me dizia o outro dia um professor universitário envolvido com os temas da bioética, trata-se de despertar o humano que está adormecido, esquecido dentro de nós. Não se trata de inventar nada, ou melhor, é pura invenção, no sentido latino que Ortega lembra nos seus escritos: inventar- invenire, descobrir, encontrar. Não é criar–afirma o filósofo-, mas aprender a demorar-se em contemplar as coisas próximas da nossa intimidade, do nosso âmbito doméstico, que preenchem as horas da nossa vida. Lá encontramos o filão do humanismo, das raízes, das aventuras que somos chamados a viver.

Terrence Malick é um diretor muito peculiar, um cult. Como já comentei em alguma ocasião, não sou entusiasta dos diretores que fazem um filme a cada 5 ou 10 anos, e depois desaparecem. Uma espécie de cometa Halley do Cinema. Mas a insistência dos amigos e o premio de Cannes –logo mais volto sobre isto, pois tem sua importância- foram o motor de arranque para enfrentar as quase duas horas e meia de filme.

Malick deve ter suas razões para trabalhar assim: estudou filosofia em Harvard, foi para Oxford onde desenvolveu uma tese sobre Heidegger. Temos, pois, um filósofo atrás da câmara, e nada surpreende a profundidade das suas produções – que, naturalmente, ele mesmo escreve – e que não são acessíveis para qualquer um. A Árvore da Vida é um claro exemplo de cinema de autor, no caso, de cinema de filósofo. E em se tratando de um filósofo sintonizado com os existencialistas, o resultado sempre será denso. Até agora não estou certo se isto é um filme, ou uma reflexão existencial desenhada em fotogramas. O que não subtrai o mérito, inegável, deste espesso mergulho vital.

Vale dizer, para nos entender melhor, que o menos acessível é a forma, não tanto o fundo do que Malick transmite. É possível ventilar questões existenciais e perspectivas transcendentes, em linguagem aberta. O cinema está repleto de exemplos: das comedias americanas de Frank Capra, até os ensaios de transcendência de Clint Eastwood; do cinema de Chaplin e os dramas de William Wyler até Peter Weir ou Spielberg, por citar alguns. Mas tudo isso é Hollywood, um modus dicendi direto, aberto, onde as questões existenciais estão diluídas em histórias fortes, cativantes. Malick não é Hollywood, e a advertência procede.

Uma história pessoal esclarecerá melhor esta temática. Há já alguns anos, durante a defesa da minha tese doutoral em Medicina -coloquei lá vários filmes como recurso pedagógico para fomentar o humanismo nos estudantes de medicina- um professor da banca me interpelou: “Noto que você utiliza somente filmes americanos. Seria de esperar que alguém com a sua formação humanística e filosófica, além da sua origem europeia, utilizasse autores como Bergman, Kurosawa, Kieslovsky. Por que essa preferência por Hollywood? Não estará adotando um viés muito americano em sua docência?”. Limitei-me a sorrir, enquanto buscava as palavras mais delicadas para responder ao professor. Para minha felicidade as encontrei em tempo. “Sem dúvida, os autores que o senhor cita são de fundamental importância para provocar a reflexão do estudante. Mas, devemos convir, que o que Kurosawa diz em 30 minutos, Hollywood consegue de algum modo coloca-lo em 5 segundos. E eu, professor, não tenho todo o tempo do mundo para ensinar. A economia do tempo orienta os autores que escolho”. Parece que minhas razões convenceram, porque o diálogo se encerrou por ali mesmo.

Voltando ao nosso filme: Malick não é Hollywood, e a temática do filme é servida em ritmo lento, pausado, com um visual atraente, que solicita continuamente a cooperação do espectador, sua interação vital, como vital é a posta em cena, onde se adivinha a própria alma do diretor. Uma alma repleta de sensações e vivências, de dúvidas e de procura, onde se mesclam numa estética visual espetacular os mais diversos ingredientes.

A dor da mãe que perde um filho – ponto de partida do filme, e de todos os interrogantes-, o relacionamento familiar com luzes e sombras, as omissões no amor, a celebração da vida, a criação do universo com Big-Bang incluído, os dinossauros, a vida além da morte. E, como uma constante, Deus. Não um Deus panteísta, difuso, que se confunde com o universo. Um Deus que se busca com afinco, com quem se pode falar e a quem se pedem explicações; um Deus pessoal em quem se busca o sentido do sofrimento, do amor, da vida como um todo. Ver as coisas como Deus as vê: “Quero ver o que você vê” clama a protagonista no meio da sua aflição. Vulcões e lava, trovões e criaturas pré-históricas, seres humanos frágeis que proferem verdadeiros gemidos de transcendência. É tão explicita a forma com que Malick o apresenta, que até São Paulo veio à minha memória, quando fala dos gemidos inenarráveis da criação, que espera a manifestação dos filhos de Deus.

Os tais amigos não deixaram por menos, e sabendo que já tinha assistido, perguntaram-me: “O que te pareceu?”. Eu, que estava alinhavando –ainda estou- o impacto das reflexões, respondi de bate pronto: “Uma mistura de Viktor Frankl com Santo Agostinho”. Perplexidade: “Como assim? Explique-se”. Nisso estamos, nas explicações.

V. Frankl, psiquiatra e neurologista vienense, sobrevivente de Auschwitz e fundador da Logoterapia, recolhe na sua obra “Um psicólogo num campo de concentração: um homem em busca de sentido”, os fundamentos dessa escola psicológica. Valha um resumo em poucas palavras. Não é falta de prazer o que frustra o homem, como dizia Freud, de quem Frankl foi discípulo; nem a falta de poder, opinião da Adler, seu colega. O que afunda o homem é a falta de sentido na vida. Sem sentido, sucumbe-se: no campo de concentração, e em Wall Street, tanto faz. Frankl afirma que todo homem precisa de uma sadia dose de tensão para conservar na sua vida um sentido claro para viver. Essa sadia tensão vem em forma de dor, de sofrimento, de privações; um tempero necessário para manter-se em forma, para não adormecer.

     E como bússola do sentido, o amor. “Ama e faz o que quiseres” – diz Santo Agostinho, em frase tão conhecida, como frequentemente mal interpretada. Não por falta de limpidez, pois o recado é claro. Diz assim a frase completa: “Ama e faz o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos.” Os mal-entendidos não são por conta do que Agostinho escreveu, mas do mercado negro onde o termo amor se ventila em subasta pública. Até o próprio Ortega – nada suspeito nestes temas teológicos-, comentando este pensamento se atreve a afirmar que Agostinho foi um dos temperamentos mais eróticos que já houve, um campeão do amor, porque colocava em Deus todo o seu peso, a sua densidade, o seu sentido de existência. “Deus meus, amor meus et pondus meus– Deus é o meu amor, o meu peso, a minha medida”.

A Árvore da Vida são inúmeras pinceladas, a modo de quadro impressionista, que desenha os contornos que o espectador deverá adivinhar e completar em si mesmo. Perfis que se projetam no sentido que é preciso buscar na vida, e no amor que sara as feridas que se produzem nessa procura. Lesões que nos mesmos causamos naqueles que amamos, por insuficiência e desatenção, por pura falta de jeito, quando não por orgulho e despeito. Estragos que a vida infecta, mas que o sofrimento e o amor purificam.

Este amplo repertório de questões existenciais não chega por surpresa, pois a abertura do filme é clara e contundente. Quem avisa, amigo é. Diz assim, em tradução livre: “Ensinaram-me que há dois modos de viver a vida: o modo da natureza, e o modo da graça. É preciso escolher qual dos dois vai seguir. A graça não busca o seu conforto; aceita ser esquecido e desprezado. Aceita insultos e injurias. A natureza somente busca satisfazer-se e que os outros a agradem; e encontra sempre motivos para não estar alegre, mesmo com o mundo brilhando à sua volta, e o amor transpirando em todos os cantos. Ensinaram-me que quem escolhe o modo da graça, nunca se da mal. Venha o que vier, sempre chega a bom termo”.

E agora, a pergunta fatal. Como um filme assim conquista a Palma de Ouro de Cannes? Vai ver que é o intelectualismo de Malick, o cinema de autor, enfim, motivos que sempre se ventilam nestes palcos. Mas depois do que aconteceu no ano passado, onde os nove monges da Argélia levaram a Palma, (Homens e Deuses), tudo isso não me convence. Perguntei a um amigo, filósofo, o que está acontecendo na França onde os prêmios os levam filmes que falam abertamente de transcendência, da alma, de Deus. “Deve ser a crise” – me disse, sem dar muita importância ao tema. Sim, a crise, pensei; mas não a do euro, nem a da bolha imobiliária, mas a emparentada com sua própria etimologia. Em latim, crisis, mudança; em grego, krisis, momento de decisão. As mudanças que, antes ou depois, teremos de enfrentar para decidir o sentido que vamos dar à nossa vida. Um filme ou uma reflexão? Tanto faz. Se catalisar nossas crises, já cumpriu o seu papel.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005). 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2011/10/24/a-arvore-da-vida-terrence-malick-em-busca-de-sentido/

Sobre o mesmo filme também indicamos o texto “As lágrimas da Criação”, de Martim Vasques da Cunha, publicado no site da revista Dicta&Contradicta.

Espetáculo Musical “Morte e Vida Severina” (Teatro)

Artes | 02/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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MorteVidaSeverina-MariliaMagalhaes

SINOPSE

Morte e Vida Severina é um poema no qual João Cabral estetiza a árida caminhada dos retirantes sertanejos em fuga da morte iminente propiciada pela seca… fuga que é também uma esperançosa saga em busca de melhores condições de vida… do sertão, mar de miséria, ao litoral com seu mar de concreto e asfalto… mas no caminho rumo a vida o homem topa com a morte a cada curva… e ao chegar desengana-se… será que seguia o próprio enterro?

Retirar-se de um ambiente que ‘seca’ toda forma de vida, animal ou vegetal… que resseca olhos, boca, pele, corpo e a vida dos severinos… os faz sonhar com água, cidade grande e emprego… por que o nascimento de uma criança em condições tão ruins é tão festejado? Será que é o suficiente para continuar a vivermos?

O espetáculo é uma montagem dos alunos do terceiro ano do curso de Artes Cênicas da UNICAMP, como finalização do segundo semestre de 2014.

FICHA TÉCNICA

Direção: Mário Santana

Direção Musical e Composição: Marcelo Onofri

Preparação Corporal: Eduardo Okamoto

Cenografia: Mario Santana e elenco

Concepção de Figurino: Dante Paccola e Vanessa Petrongari

Concepção de luz: Presto Kowask

Elenco: Andressa Moretti, Brenda Avelino, Cadu Ramos, Dante Paccola, Gabriel Corrêa, Marília Magalhães, Natalia Ruggiero, Tato Brasil, Tay Paschoini, Tess Amorim e Vanessa Petrongari

Data: dias 10, 11, 12, 13 e 14 de Dezembro

Horário: 20h

Local: PAVIARTES (Barracão) UNICAMP – Rua Pitágoras, 500.

Entrada franca com retirada dos ingressos uma hora antes do espetáculo.

FONTE: Divulgação (via Marília Magalhães).