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Todos os posts de João Marcelo Sarkis

A arte da província

Opinião Pública | 18/05/2015 | | IFE CAMPINAS

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Viver no interior reserva algumas surpresas. Ainda é possível encontrar em alguns rincões hábitos e costumes que preservam a “arte de viver”, tão desprezada pelos nossos tempos modernos. Em gestos simples ressoa o espírito de pessoas integradas à natureza das coisas e que enfrentam a vida com coragem e singela alegria, pois preservam uma sabedoria que não aprenderam em nossas escolas e universidades.

Numa tarde, na avenida da cidade, encontrei a pequena porta de uma casa velha, daquelas em que as portas e janelas dão direto para a rua e que lembram que já houve uma época em que não precisávamos de muros e grades. Eu levava meus sapatos para o conserto e fui recebido com um sorriso pelo sapateiro dono da casa. Com paciência ouviu o que precisava, tomando-os nas mãos, respeitoso como se segurasse uma obra de arte. Três dias depois, quando voltei, levantou-se da cadeira entusiasmado ao me ver entrar, chamando-me pelo nome. Com brilho nos olhos mostrou-me o serviço pronto e descreveu os detalhes, passando os dedos sobre o couro, contente com seu trabalho. Com os braços esticados, afastou o olhar admirando os sapatos quase novos e suspirou: Que beleza! Então, deu o preço, recebeu o dinheiro e despediu-se oferecendo seus préstimos para quando eu precisasse.

Saí dali constrangido. Percebi que não sabia o seu nome. Sentia-me culpado. Eu era um mero consumidor, um cidadão bem consciente de seus direitos e deveres, que simplesmente queria a prestação eficiente de um serviço. O ambiente que encontrei era hostil. Não havia filas, nem caixas, nem mocinhas bem treinadas perguntando-me se vou pagar em dinheiro ou cartão ou se vou querer meu CPF na nota fiscal. Não me ofereceu nenhuma promoção, não me empurrou produtos (não tinha metas a cumprir) e não vi o exemplar do Código de Defesa do Consumidor sobre o balcão. Havia balcão?

Dentro do carro, ainda defronte à estranha sapataria, lembrei-me de um restaurante, muito diferente dos que normalmente encontro por aí, principalmente em praças de alimentação de shopping centers. A cozinheira nos recebeu no carro. Apresentou-nos o lugar, com cerca bem feita, animais no curral, lago, pomar, tudo inspirando beleza, cuidado e trabalho. Tomamos suco de carambola, bolo de cenoura e pão-feito-em-casa. Mesa rústica, com cadeiras duras, sem cardápio. Ela nos serviu, depois veio sentar-se conosco, tendo gosto de nos ver comer sua comida e prosear. Uma comida saborosa feita toda ali, nascida naquela terra, com aquele suor. Que ela nos oferecia, como quem oferece um presente. Quanto pagamos? Não posso lembrar. Nem se registrou o momento da entrega do dinheiro. Foi apenas um detalhe pequeno que se apagou neste dia de visita. A cozinheira, uma anfitriã. Poucos almoços me foram tão felizes.

Alguns podem neste momento sentir-se convocados a levantar uma bandeira e dar um grito de ordem, exigindo passeatas em nome da paz, da gentileza ou não sei mais o quê. Lamento decepcionar, mas não tenho um plano para um mundo melhor, uma pauta de reivindicações, nem pretendo conscientizar ninguém sobre nada. Outros talvez me acusem de romântico e sonhador, esquecendo-se de que lhes narro fatos reais da minha experiência, ocorridos há poucos meses.

Dou apenas o testemunho daquilo que vi pela pequena janela de onde contemplo o mundo, às vezes com a sensação de que somos uma geração de monstros, navegando à deriva, em direção ao caos. Quando, em plena era digital, entre fabulosas máquinas, largas avenidas e arranha-céus, recebi uma centelha de esperança no encontro com um sapateiro e uma cozinheira, que me abriram as “portas da percepção normativa”, na expressão do “man of letters” Russell Kirk, devolvendo-me à normalidade e à ordem.

Para o grande filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, as metrópoles são o “primeiro capítulo” de uma época de decadência, pois enquanto as províncias continuam a ser as “guardiãs das culturas”, aquelas representam a “depressão de todos os valores do homem”, substituídos por “brilhos de moeda falsas”. Pergunto-me se estas províncias e metrópoles são definidas em mapas ou são estados de alma, cultivados em todos os lugares. Não duvido que seja possível encontrar muitos destes sapateiros e cozinheiras vivendo nos bairros das grandes metrópoles do mundo. Na verdade, tenho firme esperança de encontrá-los, pois creio que o nosso futuro está nas mãos destes homens de província.

João Marcelo Sarkis, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), analista jurídico do Ministério Público de São Paulo, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 06 de Dezembro de 2013, Página A2 – Opinião.

Um hobbit para presidente

Opinião Pública | 27/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Quando as manifestações de rua começaram no ano passado, muitos festejaram: “O Brasil finalmente acordou”. Confesso que, pessoalmente, diante de multidões só consigo temer o caos iminente. Prefiro o Brasil que nem dormiu. Passeatas e seus gritos de ordem me deixam angustiado. Incomoda-me o comportamento estúpido das massas e a facilidade com que nos entregamos a elas. Os homens se empobrecem coletivamente. Direitos são direitos e não quero impedir ninguém de protestar (às vezes é necessário). Mas não me obriguem a aplaudir, muito menos a me emocionar com rompantes de cidadania. Há coisas mais belas na vida que a soberania popular.

Eu tenho saudades de um patriotismo que raramente se vê no Brasil. Um verdadeiro amor à pátria. Pois se um país tem cidadãos, uma pátria tem filhos. E filhos vivem e morrem pela sua pátria-mãe. Civismo sem amor é mera cidadania. Eu tenho receio de cidadãos, principalmente cidadãos conscientizados de seus direitos e prontos a exigi-los. Prefiro a honra dos soldados que lutam numa guerra justa ou a caridade dos que se entregam à política por dever. Meu avô foi um desses patriotas: vereador sem qualquer remuneração, presidente do clube, membro da irmandade da santa casa, ministro da eucaristia, sócio da associação comercial, além, é claro, de dono do seu negócio e pai da sua família.

A pergunta que insiste em importunar é: por que no tempo do meu avô não havia “black blocs”? Pode parecer ingênuo ou nostálgico para quem está acostumado ao discurso do progresso e à pedante opinião de que o hoje é sempre melhor do que o ontem. Mas, por gratidão e sabedoria, tenho por hábito dar voz aos meus mortos, convidando-os a se sentarem comigo à mesa para um café. Recentemente, entre imagens e lembranças, recolhi uma preciosa lição. Uma lição eterna, que o gênio de J. R. R. Tolkien, o autor de “Senhor dos Anéis“, retratou em seus livros.

Para ilustrar, trago um trecho da adaptação para o cinema de seu livro “O Hobbit”, recentemente lançado no Brasil. Trata-se de um diálogo entre o mago Gandalf e a Senhora Galadriel, na primeira parte da trilogia: “_ Mithrandir (o grande mago Galdalf), porque o pequeno (hobbit)? _ Eu não sei. Saruman (o mago branco) crê que só grandes forças conseguem conter o mal. Mas não é o que eu acho. Eu acho que são os pequenos detalhes… As ações diárias das pessoas, que mantêm o mal afastado. Simples ações de bondade e de amor. _Por que Bilbo Bolseiro? _Talvez por que tenho medo e ele me dá coragem”.

Quando, nas discussões públicas brasileiras, surge aquela ladainha de sempre sobre a necessidade de leis para isso e para aquilo, sobre o Estado precisar agir aqui e ali, eu sempre me lembro de Bilbo Bolseiro e da sua missão de conter o mal por meio de uma vida simples, fundada em valores firmes. Por isso, protestos me dão náuseas. Eles são, em geral, expressão dos rituais do civismo sem amor, cultuados no templo da república, com os quais se pretende expurgar todos os males do mundo. Eles compõem o cenário romântico dos “atos de cidadania”, dos que sonham com a “Queda da Bastilha” e choram pela “revolução”. Os mesmos que embebidos de ilusão, legitimam os atos de vandalismo dos “black blocs”.

Assim como Gandalf, o grande e poderoso mago, eu confio nos hobbits, os pequenos seres de vida simples. Este ano, nas eleições, eu gostaria de ter um hobbit na presidência. Nada de militantes, sociólogos ou tecnocratas. Nada de ativistas ou líderes midiáticos e populistas. Apenas um homem que lembrasse o meu avô, em cujas rugas eu vislumbrasse a vida sacrificada de um pai de família. Que fosse um homem de procissão, não de passeata. Em quem eu reconhecesse a minha miséria, a miséria de todos nós, refletida em olhos que brilhassem de esperança e disposição ao trabalho.

O problema é que um hobbit não quer ser incomodado em sua rotina, pois tudo o que deseja é cuidar da própria vida, na tranquilidade do Condado, que é a sua terra. Neste caso, teríamos que convencê-lo à aventura, como Gandalf no início do filme, pois essa é justamente a qualidade que o faz tão vocacionado à missão. Resmungão e mal humorado, desconfiado de fazer uma insanidade, imagino que ele diria sim, com a mesma coragem de Bilbo Bolseiro. E partiria, junto a outros homens de boa vontade, em uma inesperada jornada rumo às terras de Brasília, para libertá-la do poder do terrível exército dos orc´s de terno e gravata.

 

João Marcelo Sarkis, advogado, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 12 de Março de 2014, Página A2 – Opinião.

O despertar de um juiz

Opinião Pública | 19/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Pela primeira vez se esmerava para se convencer: “há pessoas atrás dos processos”. Tinha aprendido a frase nos livros de ética e nas aulas de alguns professores e ela se fixara em sua mente como um aforismo. Uma dessas pílulas de sabedoria que nos abstemos de duvidar e que vão compondo o nosso repertório pessoal de referências. Durante anos convivera muito bem com tal sentença, mas naquele instante, o que até então esteve acomodado entre suas certezas parecia estranho e ameaçador.

Tudo se passou quando, em meio às familiares pilhas de processo, simplesmente pousou o olhar sobre a capa de um deles, demorando um pouco mais que o habitual. Foi o suficiente para que se implantasse a terrível dúvida. Pressentindo que não se tratava apenas de uma inquietação passageira ou mesmo de uma divagação curiosa, desviou o olhar por extinto, na tentativa de retomar o ritmo do trabalho e submergir novamente em seus afazeres. Mas era inútil.

Seus olhos depararam-se com a confusão de processos sobre a mesa e depois com os milhares de pastas dispostas nas prateleiras. Involuntariamente pronunciou os nomes escritos na capa dos autos que tinha nas mãos, talvez para remediar a angústia que se instalara naquele mesmo momento. “As pessoas atrás dos processos”, martelava-lhe a consciência.

Estava paralisado. Talvez houvesse tempo de rever as últimas decisões ainda não publicadas, pensou enquanto revolvia os papéis sobre a mesa. As cenas presenciadas nas audiências daquele mesmo dia voltavam à sua mente e revisitava todos os atos praticados, no temor de encontrar alguma falha. Mal podia se lembrar dos casos presenciados naquela tarde, não conseguia reconhecer os rostos das pessoas envolvidas. Como era possível que tivesse se entregado de forma tão automática e indiferente a ponto de não se recordar nem mesmo das últimas horas? Como prestaria contas de todos os anos em que estivera ali?

Então, assombrou-lhe a lembrança do conselho bem intencionado de um colega mais experiente, logo que ingressara na carreira: “Não se importune com os casos e durma tranquilamente sob os auspícios da lei”. Entorpecido pela montanha de papéis e as inúmeras obrigações administrativas que o cercavam, sempre lhe parecera razoável a aplicação pura e simples da lei. Agora, porém, parecia despertar de um longo delírio e lhe ocorria que a própria palavra “processo” era abjeta. A imagem de uma máquina lhe vinha à mente, um enorme processador. E ele o operário-carimbador-despachante: um fastidioso e pestilento burocrata atrás de uma mesa tomada de papéis.

Pensava nos casos concretos da vida, aqueles que acompanhara pessoalmente, não por dever de ofício, mas como um homem comum. Contemplava os detalhes, as peculiaridades de cada acontecimento, a riqueza do mundo real. Era evidente a frieza e ingenuidade da letra da lei, racional e alheia à turbulência dos fatos. A sórdida e impiedosa letra da lei, tantas vezes fruto dos piores conluios nos porões da República.

Eis que, em meio ao tormento que o tomava, emergiu a figura de um mediador entre a lei e os fatos, as normas e a vida. Súbito a realidade reclamava a existência de um intermediário, pois não era suficiente o mero processamento da lei. Cada vida, por trás de cada processo, demandava este autor dedicado que poderia lhes dar o que de direito. Em seu coração ardeu um frescor de juventude e era como se estivesse ouvindo “justiça” pela primeira vez. A aflição inicial cedia espaço.

Atormentava-lhe, ainda, a sombra repugnante do burocrata indolente, mas a imagem daquele artesão da prudência o desafiava. A mesma frase-pronta que já lhe acompanhava desde fora, ressurgida naqueles breves minutos num átimo de acusação e dúvida, agora lhe vinha em socorro, como se ele mesmo a tivesse elaborado, numa sentença genuína e original. E repetia alto para si mesmo, diante da pilha de papéis: “Há pessoas atrás dos processos!”. Negava corajoso o conselho do “experiente” colega e mais do que nunca desejava importunar-se com aqueles casos. Finalmente, tornava-se um juiz.

João Marcelo Sarkis, advogado, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 21 de Janeiro de 2015, Página A2 – Opinião.

Apelo à Justiça

Opinião Pública | 05/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Pai e filha sentaram-se em lados opostos da mesa. Mas nenhuma comida foi servida, nem havia sorrisos cúmplices. A camada de ar que os separava era feita de pedras e logo notei a expressão nos rostos de um itinerário desconhecido, perturbando-me com uma inquietação: Como chegaram até ali, pai e filha? Como podia um laço tão íntimo se desintegrar a ponto de se fazer simbolizar por cifras em um processo de pensão alimentícia?

Por dever de ofício eu procurava a justiça. Percorri as folhas dos autos, li os argumentos, tentando reconstruir a história. Fui aos códigos, à norma, à ordem e voltei de novo ao caso. Depois fui tateando impressões, valores, experiências, buscando em mim mesmo um terreno firme de onde pudesse começar. Embora o ofício exigisse apenas uma solução, talvez nem tão difícil de encontrar, algo exigia outra resposta.

Principiei na justiça mais rasa, querendo encontrar culpados. O pai vilão. A mãe orgulhosa. A adolescente rebelde. Os avós, o Estado, a cultura. Alguma equação lógica, um veredicto razoável. Mas eram vinte anos, a moça feita, o muro de silêncio estendido, o cansaço da dor carregada pelos anos. Parecia justo remir todas as culpas, porém de que modo, se estavam ali tão impregnadas? Mesmo que penas terríveis fossem cumpridas, haveria uma pena suficiente para a violação ocorrida entre um pai e um filho? Existiria em algum lugar outro amor suficiente que pudesse aplacar tamanha injustiça?

As leis calavam-se mudas e as instituições frágeis. Estava diante de fatos puros, livre do dever e consciente de que a justiça neste caso era mais que a solução de um processo. Era a própria vida que me cobrava um sentido. Pouco importava se resolvessem ali os valores das próximas pensões. A questão era se poderíamos realmente voltar para casa ou se seríamos todos detidos ali mesmo. Aquele muro denso e invisível também se estendia sobre mim e eu estava igualmente envolto em névoas. E naquele instante, sentado naquela mesa perpendicular a pai e filha, eu soube, como nunca antes, que aquela culpa também era minha.

Estava unido a eles, pelas alegrias e sofrimentos do nosso destino humano. Fui também, naquela hora, pai e filho e experimentei desfilarem sobre mim a emoção do nascimento, a dor da separação, a saudade dos abraços, a esperança do reencontro. Vi cada gesto de carinho e todas as feridas causadas pelos erros. Vi as tentativas frustradas e as intenções perdidas. Estive em todas as guerras e em cada trégua. Ouvi as ofensas e os pedidos de perdão. As lágrimas de tristeza e a felicidade em risos. Eram todos meus.

Apelei com força à justiça. Não a que o diploma me concedia, mas justamente aquela que o dever de ofício me privava. E, de repente, como se me abrissem os olhos, reconheci que pairava sobre nós o que tanto procurava. Era impossível apreendê-lo totalmente, porém fazia nascer em mim uma compaixão tão grande por aquele pai e filha desconhecidos que tive a certeza: havia sim amor em abundância para resgatar todas as injustiças cometidas.

Quando foram cumpridas as formalidades de praxe, pai e filha se levantaram da mesa, despedimo-nos e os observei deixando a sala em silêncio. O valor da pensão alimentícia estava fixado. E o que parecia, talvez, uma divagação do espírito afirmou-se diante de mim, quando os vi aproximarem-se de tal maneira, que aquela névoa espessa se desfez. Não pude saber se um dia reatariam os mesmos laços de antes. Mas havia esperança, pois estávamos redimidos e podíamos decidir tomar o rumo de volta para casa.

João Marcelo Sarkis, advogado, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 06 de Dezembro de 2014, Página A2 – Opinião.

O menino que queria nascer

Opinião Pública | 04/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Quando o médico anunciou que havia um problema com o bebê, eles sofreram bastante. Após uma longa e interminável espera, veio, finalmente, o diagnóstico e teve início a grande crise. “Anencefalia” era a palavra horrenda com que precisariam conviver a partir do terceiro mês de gestação. O radiologista foi atencioso e prático na sua indicação. Nada poderia ser feito e uma interrupção da gravidez era recomendável. Ele disse “interrupção”, para evitar que mais uma palavra terrível assombrasse ainda mais o sofrido casal. Mas eles a ouviram mesmo assim e repetiram para confirmar: “aborto?”.

Eles tinham lido as discussões acaloradas que algum tempo antes havia tomado conta dos jornais. Sabiam de uma decisão polêmica tomada pelo Supremo Tribunal Federal em Brasília. Tinham visto aqueles homens de toga discutindo o assunto pela televisão, enquanto especialistas de terno e gravata davam seus pareceres no plenário. Porém, tudo soava distante e indiferente, embora percebessem que era algo importante.

A decisão, tomada em maioria de votos, concedendo o “direito ao aborto do feto anencefálico”, agora se desprendia do papel e vinha pousar sobre eles para sentenciar a vida do seu próprio filho. Não um bebê em hipótese, mas aquele que existia e morava no útero da sua mãe. Como se estivessem expostos, os três, no centro daquela sala do tribunal, enquanto os juízes decidiam a “questão” daquele bebê doente, o intruso, o sem cabeça, no colo de seus pais. Aquele de quem todos falavam. Aquele que ninguém queria ver nascer.

Assustados, levaram o exame para o ginecologista que acompanhava a gravidez. Ao confirmar o diagnóstico, o médico observou, em silêncio, o ventre da paciente e se compadeceu daquela família. Talvez não fosse o melhor profissional da especialidade, nem tivesse muitos títulos a expor na parede do consultório, mas cultivava o espírito de uma verdadeira medicina. Procurou tranquilizar o casal, insistindo que a gravidez, com alguns cuidados, correria normalmente. Aos poucos tudo se tornava menos grave. Esclareceu-lhes, então, as dúvidas e infundiu-lhes uma grande coragem: que recebessem de braços abertos o seu filho, acolhendo o pequeno herói em sua fraqueza. Mais do que nunca, ele tinha direito ao amparo dos seus pais, pois estava vivo.

“Vivo!” era o que ressoava em seus ouvidos quando saíram da clínica. A canção que os embalaria nos meses seguintes, enquanto viam a barriga crescer. “Vivo!” era o que o pequeno dizia com seus chutes e movimentos, como se lá de dentro ele quisesse agradecer cada minuto na companhia de seu pai e sua mãe. Pois para ele o tempo corria diferente e a sua história se desenrolava em dias, não em anos. Ele estava ali, presente, o frágil guerreiro, multiplicando-se, crescendo, tornando-se homem. E escrevia, com os seus, as linhas possíveis da sua curta biografia.

Assim, à revelia das canetas dos poderes instituídos pela república, ele sobreviveu. Foi salvo da cureta, o instrumento científico que o levaria a agonizar indefeso até a morte. Nasceu no dia que lhe foi dado, desde sempre, nascer. Veio ao mundo com um choro imprevisto para um recém-nascido, pois era um grito de vitória. Um menino, que recebeu o seu nome e viveu os seus dias, até que a natureza o levou. Morreu com a mesma dignidade com que todos os homens deveriam morrer, quando chega a sua hora.

Os pais enfrentaram o luto indizível de pais que perdem filhos. Sem argumentos, apenas suportaram a dor que era a sua, livres daquela outra chancelada pela Justiça. E enterraram o filho amado, entregando-o ao mistério do seu destino, com a mesma generosidade com que o acolheram durante seus dias de vida. Preparam todo o funeral, receberam amigos, familiares e o nobre médico que os acompanhou. Rezaram juntos por ele, um anjo que ganhava o céu. Sim, o céu! Esta palavra intrusa, não convidada para o vocabulário corrente de artigos de jornal. Tão intrusa quanto aquele bebê no meio do plenário do tribunal. Aquele de quem todos falavam. Aquele que ninguém queria ver nascer. Mas ele nasceu. E era um menino.

João Marcelo Sarkis, advogado, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 08 de Abril de 2014, Página A2 – Opinião.