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Por que finados?

Opinião Pública | 12/11/2015 | | IFE CAMPINAS

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Finados

 

No dia de finados acordei cedo e fui honrar os meus mortos. Fiz como fez meu pai antes de mim e meu avô antes dele, num desses ricos costumes que recebemos por tradição e que enchem nossa vida de significado. Uma reverência, um respeito por algo sagrado, que o tempo cuidou de esculpir e lapidar, um tesouro que, intuímos, jamais descobriríamos sozinhos. Obra de uma civilização inteira, o dia de finados.

Talvez, por isso, tenha me incomodado o comentário de um dos administradores do cemitério da cidade. Não tanto pelo conteúdo que, infelizmente, não surpreende. Mas pela irreverência com que constatou uma mudança de costume nos últimos anos, com a diminuição do número de visitantes ao local nesta data, dizendo que muitos aproveitam para viajar. Ele mesmo, pelo tom que falava, parecia lamentar ser obrigado a trabalhar em pleno feriado.

É evidente que há algo de muito errado quando negligenciamos nossos mortos para passar um final de semana na praia. A devoção aos que partiram desta vida no dia de finados é uma tradição cristã, mas encontra raízes ancestrais. Não há nenhuma grande civilização que não tenha rendido homenagens e respeito aos seus entes falecidos. Trata-se de um costume arraigado na própria natureza humana, uma necessidade de responder à perplexidade diante da morte. Quem homenageia seus mortos no solo sagrado de um cemitério, revive o luto e a saudade, torna presente o que aparentemente se ausenta e rogando pela alma dos seus, também prepara sua própria alma para o dia que virá cedo ou tarde.

Certamente existem inúmeras razões prosaicas para alguém deixar de prestar uma justa homenagem aos seus falecidos: medo de cemitérios, dificuldades com o luto, problemas de locomoção, preguiça, e nenhum de nós está totalmente livre delas.  É verdade que se estas razões se tornassem um hábito social, este costume poderia cair em desuso. Mas seria um processo lento e gradual e, sendo de fato uma tradição importante, haveria tempo de interrompê-lo antes que se perdesse definitivamente. Situação muito diferente é quando o desrespeito se dá não por desleixo, mas por convicção.

A razão mais clara para alguém violar o costume de finados com convicção é o ateísmo. Mas há outras variantes mais sutis da descrença na vida após a morte, como, por exemplo, considerar este costume como antiquado e pequeno-burguês e abandoná-lo por razões revolucionárias, em nome do progresso. Ou, ainda, rejeitá-lo por ser prejudicial aos negócios e incompatível com a dinâmica do mercado e com o ritmo da vida moderna.

Mas não é preciso ser esse tipo de ateu para desprezar com convicção o feriado de finados. Existe uma forma de ateísmo mais grosseira e, por isso mesmo, mais comum, que podemos chamar de ateísmo prático. É ele que inspira pensamentos como: “eu posso homenagear meus defuntos em casa”, “não sou obrigado a fazer neste dia”, “a maioria enfeita os túmulos para que os outros vejam”, “cemitérios são lugares sujos que proliferam pragas”, “eu tenho coisas mais interessantes para fazer”, “estou sem tempo para este tipo de coisa”… Ele reside em uma questão de incoerência e coloca uma pessoa na trilha dos convictos, mesmo que ela não esteja totalmente convicta disto, pois “quem não vive como pensa, acaba pensando como vive”.

É preciso uma boa dose de ingenuidade para imaginar que razões prosaicas explicam todo o fenômeno percebido pelo administrador do cemitério. O enfraquecimento de tradições importantes e o rompimento da nossa ligação com o legado de vivências de nossos antepassados é sinal de decadência cultural, à semelhança do que ocorreu também com outros povos. Quando se perdem certos referenciais, nossa própria identidade resta ameaçada e corremos o risco de perecer.

Felizmente, quando cheguei pela manhã diante do portão do cemitério com estas reflexões tive uma grata surpresa. Talvez, de fato, não havia tantas pessoas como há alguns anos, quando não se podia sequer caminhar nas vielas entre os túmulos sem esbarrar em alguém. Mas o lugar estava cheio de gente. E com o sentimento misturado de saudade pelos meus falecidos, recebi uma resposta àquela constatação irreverente. Pois enquanto houver quem cumpra o ritual de finados, ainda que restem poucos, haverá esperança, pois de algum modo estará protegida a sabedoria que nos livra da barbárie. Enquanto houver um homem que a carregue consigo, pronto para entregá-la à próxima geração, muito mais do que uma singela devoção, estará viva toda uma civilização.

 

João Marcelo Sarkis, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), analista jurídico do Ministério Público de São Paulo, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 10/11/2015, Página A-2, Opinião

Vocação em crise

Opinião Pública | 22/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Quando perguntamos para uma criança o que ela quer ser quando crescer, não raro encontramos respostas sonhadoras e criativas, acompanhadas de um brilho nos olhos. Às vezes inspirados nos próprios pais, rodeados de certo mistério e heroísmo, outras vezes em histórias ouvidas ou vistas no cinema. Depois o tempo vai passando e a realidade vai conformando os sonhos às possibilidades de realização e surgem, já na juventude, os projetos de vida. É uma fase difícil, que encontra hostilidades e demanda coragem e ousadia. O início da aventura em direção à própria vocação.

Vocação é uma daquelas palavras desgastadas pelo tempo e que acabam por perder a sua densidade original. Comumente, fala-se em vocação referindo-se aos estudantes do ensino médio fazendo escolhas para o vestibular. As escolas costumam oferecer testes vocacionais que prometem apontar áreas em que os estudantes poderão desenvolver uma profissão. Em geral, trata-se de equacionar gostos e habilidades pessoais à carreiras promissoras, que possam render bons ganhos financeiros.

Originalmente, todavia, a idéia de vocação nos remete a um significado mais profundo. Quem faz algo por vocação (do latim “vocare”, chamar) sente que é chamado por algo que o transcende (que está fora de si mesmo): uma obra, uma pessoa amada, Deus. A. D. Sertillanges diz que “a vocação pede atendimento, que, num esforço único para sair de si, escuta e atende“. Neste sentido, nota-se que, ao contrário do que se poderia pensar, nem sempre a resposta a este chamado procura a realização de gostos pessoais ou sucesso material, mas contém uma forte carga de sacrifício, de assunção de uma missão a ser cumprida.

O esvaziamento do significado da palavra em nossa cultura vai além da semântica, pois expressa, na verdade, o abandono da dimensão vocacional da vida. A prevalência de uma ética utilitária e individualista convida os jovens a uma busca pela satisfação imediata de prazeres e à realização de modelos de sucesso baseados em cargos, títulos e bons salários, que possam garantir comodidades e segurança, mesmo ao custo dos próprios talentos, valores e ideais.

Pouco a pouco, aquele “instinto natural” da juventude, o desejo de realizar algo maior, de se arriscar e lutar por algo que valha a pena, de enfrentar as grandes questões humanas e construir uma biografia brilhante e significativa, vai sendo soterrado, a pretexto de “ter os pés no chão”. Como consequência, a vida vai, aos poucos, perdendo a graça, dissolvendo-se em um cotidiano sem sentido, que não convida a nada além do conformismo e da mediocridade.

O psiquiatra austríaco Viktor Frankl chamou este sintoma de “vazio existencial”, um fenômeno muito comum em nossos dias. Segundo ele, o homem é um ser em busca de sentido, pois cada pessoa é uma tarefa dada a si mesma, exclusiva e específica, que somente ela mesma é chamada a realizar. É este chamado que dá sentido a sua existência, pois comunica um espírito de missão ao trabalho, enobrece e dá valor à sua vida.

Por isso, a privação deste sentido leva o homem a adoecer, conduzindo-o a uma procura neurótica por compensações, sempre frustrantes, principalmente, no poder, no dinheiro e no prazer. O acúmulo destas frustrações é gerador de depressão, agressividade e vícios, sintomas deste “vazio existencial”. Infelizmente as pesquisas mais recentes confirmam este diagnóstico em nossa sociedade, mostrando um impressionante aumento, principalmente entre os jovens, dos casos de depressão, uso de drogas, violência, sexualidade desregrada, desmotivação generalizada pela vida.

Neste contexto, torna-se ainda mais desafiador o caminho em busca da vocação, único capaz de preencher a vida de significado, de esperança e entusiasmo. Aos jovens de nosso tempo serve muito bem a provocação de Saint-Exupéry: “Julgo de pouca importância a coragem física, e a vida ensinou-me qual é a coragem verdadeira: é aquela que nos faz resistir à condenação do ambiente em que se vive”. Que saibamos inspirar os jovens nesta coragem, sem a qual ficarão à mercê de falsos e sedutores convites, para que possam responder à altura do verdadeiro chamado.

João Marcelo Sarkis, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), analista jurídico do Ministério Público de São Paulo, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 22/9/2015, Página A-2.

Compaixão criminal

Opinião Pública | 15/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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O menino entrou na sala para a oitiva informal. As algemas denunciavam sua condição de menor infrator: “ato infracional equiparado ao tráfico de drogas”. Diante do computador, com as palavras de praxe, foi registrando a versão do investigado: “quatorze anos, não estuda, nem trabalha. Usuário de droga”. “Que aconteceu lá, menino?”. “Disse que estava na rua, quando a viatura chegou etc…”. Pronto o depoimento, confeccionada a representação, liberdade assistida ou internação. Requisição de vaga na Fundação Casa, prazo de cinco dias.

Quando o menino assinava com dificuldades a folha, por causa das algemas, lembrou a primeira vez que tinha visto um homem algemado. Levantou-se bruscamente afastando a cadeira, como se afastasse também a inconveniente lembrança. “Rápido com isso, meu rapaz, que não tenho o dia todo!”. Agradeceu os policiais e se despediu aliviado. Finalmente estava a sós com as suas pilhas de processos.

Olhou ao redor da mesa a procura de algum assunto urgente com que pudesse se ocupar. Diante de si tinha a folha de papel em que estava registrado o depoimento do menor. Fitou a assinatura mal feita, com os traços tremidos e se lembrou novamente de quando vira um homem algemado pela primeira vez: o medo do criminoso, a satisfação do castigo, a pena de situação tão deprimente… Impressões que o tempo e a experiência cuidaram, pouco ao pouco, de neutralizar.

Todavia, agora a lembrança retornava com uma força inusitada, como se estivesse novamente diante daquele homem. De repente viu-se acometido já não mais daquelas primeiras impressões, mas de um novo sentimento, uma espécie de empatia que lhe causou verdadeiro horror. Pôs-se, então, a caminhar de um lado para o outro, procurando uma forma de escapar. Tentou clamar por vingança, alimentando todo o ódio de que era capaz, no esforço de imaginar a cena de crueldade protagonizada por aquele bicho, aquele bandido, aquela escória! Era inútil. Via-se, desgraçadamente, nele!

Então, tentou suplicar clemência, com toda a piedade possível. Imaginou todos os sofrimentos, as privações, os desenganos, a má sorte que pudessem ter ocorrido ao pobre infeliz! Mas era completamente inútil, não havia justificativa possível ao mal cometido. O veredicto era inevitável:aquelas terríveis algemas também eram suas! Carregava a mesma culpa, “pois se eu mesmo fosse um justo, talvez nem houvesse um criminoso diante de mim”.

“Quem escapará à condenação?!”, irrompeu em um grito solitário, voltando à sala. Sob o impacto da forte lembrança, com a folha do depoimento nas mãos, amou aquele menino infrator que tão precocemente descobria o peso das mesmas algemas. “Quatorze anos, não estuda, nem trabalha”. Que aconteceu lá, menino? Que aconteceu lá onde você se perdeu na confusão dos caminhos? Lá naquela encruzilhada da sua vida onde lhe deixaram sem bússola? Que aconteceu? Onde estavam seu pai e sua mãe, seus irmãos, avós e tios? Quem estava lá para testemunhar a sua decisão equívoca? Os vizinhos, os conhecidos da rua, as obras filantrópicas, as piedosas instituições, quem? A escola, o estado, a igreja, onde estavam? Onde estávamos, menino?

Prostrava-se diante de incompreensível mistério. Com reverência, era preciso cumprir o dever de garantir a lei e a ordem, de realizar a justiça, de reparar o mal e distribuir as responsabilidades. Não com a prepotência de um poder acima do bem e do mal, mas com a compaixão de quem partilha a mesma iniquidade. Por isso, devia agir com moderação e cuidado, até com certo pudor da autoridade que a própria lei lhe conferia. Com firmeza, mas com paternidade.

Assim, apresentaria ao jovem infrator os limites da lei e o responsabilizaria pela sua conduta. Porém, o faria com a esperança de lhe revelar os belos espaços em que, graças à proteção deste forte muro, podemos livremente viver. Que ele pudesse tomar a lei não como uma intrusa, mas como a condição necessária para sua liberdade. E, talvez, um dia, ainda o veria, arrependido, agarrar o perdão que um dia desdenhara, com aquele olhar petulante de um adolescente desregrado.

 

João Marcelo Sarkis, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), analista jurídico do Ministério Público de São Paulo, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 15/7/ 2015, Página A-2, Opinião.

A cultura contra a ideologia

Opinião Pública | 22/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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FIgura

Se olharmos para a atual elite brasileira, encontraremos muitos daqueles jovens hippies de “maio de 68”, que envelheceram e hoje compõem as fileiras do sucesso, ocupando os principais postos de poder do país. São professores titulares em universidades, chefes de redação de jornais, diretores de televisão, cineastas, escritores, músicos consagrados, altos funcionários públicos, líderes religiosos e grandes empresários. Como diz a máxima de que para conhecer um homem basta lhe dar poder, assim aprendemos o real significado da herança cultural recebida de “woodstock”.

Quer conhecer essa herança? Caminhe pelos corredores das nossas escolas: professores afastados por psiquiatras, indisciplina, drogas, cenário de gueto. Não gostou? Então, visite a faculdade de filosofia ou ciências sociais de alguma universidade. Não é um cortiço, um boteco, um sindicato, a sede do partido comunista ou a maconholândia. É simplesmente o lugar onde as cabeças do país aprendem a “pensar”, com o dinheiro que você paga em impostos. Quer mais? Assista à televisão, ouça as músicas no rádio e acompanhe os últimos lançamentos editoriais. Supérfluo demais? Que tal os índices de violência e criminalidade nas grandes, médias e pequenas cidades do país?  Já chega?

Compreender a origem desta verdadeira devastação cultural, facilmente percebida pelo senso comum, é um assunto complexo, matéria para um livro e não para um artigo. Mas certamente ela passará pela influência das ideologias que circulavam naquela época e que hoje pautam todas as discussões públicas, inspirando desde as decisões do governo até as teses de mestrados nas faculdades.  Sua influência é tão forte que atinge as raias de uma verdadeira hegemonia, duramente conquistada durante os últimos cinquenta anos, por meio de um lento e bem sucedido processo de ocupação de postos estratégicos e a exclusão de todo pensamento discordante.

Neste contexto, é fundamental percebermos que nossas mazelas não se reduzem a um mero problema de política econômica e social (inflação, juros, saúde, planejamento urbano etc), mas refletem uma crise mais profunda, que corrói as instituições e ameaça as bases da sociedade. Grande parte dela é provocada por inspiração destas ideologias que, levadas pela retórica da “revolução”, têm destruído nossos principais referenciais éticos, submetendo-nos como cobaias às suas técnicas de reengenharia social, a pretexto de construir um mundo perfeito, supostamente mais igualitário e tolerante.

Por isso, há uma grande tarefa a ser feita, sem a qual nenhuma ação será suficiente para conter esta crise: a difícil tarefa de restaurar a riqueza cultural e moral do país. Um povo é a sua cultura e ela vai muito além de finanças, indústrias e shoppings centers. Uma cultura se faz com valores, expressos nas manifestações mais altas do intelecto humano. Aquilo que um povo pensa a respeito de si mesmo, da vida, da condição humana, vai refletir, evidentemente, nos consultórios médicos, nas decisões dos juízes, nas salas de aula, nas pesquisas científicas, nas empresas, no comércio, em tudo. E são estas concepções profundas, fundadas em verdadeiros valores, que podem nos proteger do perigo das ideologias.

Há quem tema o futuro, diante do estrago que está sendo feito na educação e na saúde mental dos brasileiros. Mas convido a um olhar mais atento, que não fique paralisado no primeiro assombro. A atual ostentação de poder e prestígio desta nova “velha elite” é apenas aparente, pois embora tenha atingido a tão sonhada hegemonia, nunca esteve tão exposta em sua fraqueza e decadência, que vão muito além da corrupção já tão evidente.

Por outro lado, em meio aos frutos amargos desta crise, existem muitos, mais do que se pensa, comprometidos com um esforço sério para sanar a loucura que parece ter tomado conta do nosso tempo. “Uma árvore que cai faz muito mais barulho do que a floresta que cresce”. Em algum momento será inevitável o confronto, que romperá, finalmente, o silêncio que paira sob os escombros da desordem. Pode até soar mal em tempos de tanto pacifismo, mas nossa esperança depende da vinda de uma necessária “guerra cultural”, que ponha fim à dominação ideológica e revitalize a nossa democracia.

 

João Marcelo Sarkis, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), analista jurídico do Ministério Público de São Paulo, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 20 de fevereiro de 2014, Página A2 – Opinião.

Família partida, guarda compartilhada

Opinião Pública | 25/05/2015 | | IFE CAMPINAS

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Desde o final do ano passado, após a aprovação da Lei 13.058/14 que alterou o Código Civil para trazer novos parâmetros para fixação da guarda de filhos entre pais que não convivem sob o mesmo teto, iniciou-se um debate sobre a chamada “guarda compartilhada”. Embora já prevista no ordenamento brasileiro antes da edição da nova lei, a forma como foi proposta e os argumentos suscitados para fundamentar a sua aprovação trouxeram à tona uma discussão mais profunda, a respeito das relações familiares e do papel do direito de família em nosso tempo.

Ao regulamentar a guarda compartilhada tornando-a a regra do sistema, almeja a nova lei promover um maior envolvimento de ambos os pais na educação e desenvolvimento dos filhos, evitando que aquele que não detém a guarda fique com um papel coadjuvante. A lei propõe objetivos louváveis: convivência harmônica e equilibrada, tomada de decisões conjuntas, participação dos pais na vida dos filhos, entre outros, mas tem a pretensão de promovê-los entre casais separados, com vidas distintas, tendo os filhos como único elo.

De fato, a experiência demonstra ser possível construir um ambiente de relativa paz e maturidade nas relações entre casais separados, muitas vezes demandando regras claras e a intervenção de um juiz. No entanto, a nova lei pretende ir adiante e trazer para as relações desfeitas aquilo que é a virtude das famílias íntegras, sob a promessa de eliminar os prejuízos da separação nas relações entre pais e filhos. Como se pudesse alcançar o bem da vida familiar, sem a necessidade de constituí-la ou mantê-la.

Assim, a guarda compartilhada surge com a expectativa de ser um novo remédio capaz de curar as feridas de uma estrutura familiar desfigurada, que já não cumpre bem o seu papel. Mais que isso, tem a pretensão de lhe conferir os atributos que são a essência do modelo de família que garantiu, por gerações, uma razoável estabilidade nas relações humanas: o modelo natural, baseado na união duradoura entre homem e mulher, fundada no amor fiel, capaz de gerar filhos, de protegê-los e formá-los nos valores.

Sem dúvida a aprovação da lei reflete a preocupação da sociedade com as consequências que o desfazimento do vínculo entre pai e mãe provoca na estrutura familiar, especialmente, os seus efeitos sobre crianças e adolescentes. Todavia, paradoxalmente, surge em um contexto recente de transformações do direito de família que têm conduzido a uma fragilização cada vez maior das famílias, com a facilitação do rompimento dos vínculos, o desprestígio do casamento face às uniões informais e a legitimação de meras relações afetivas como constituintes de famílias. Estas mudanças, somadas a uma cultura de volatilização das relações pessoais, irresponsabilidade social e banalização dos valores, têm causado uma crise sem precedentes da instituição familiar.

Neste sentido, é preciso retomar o papel primordial do direito de família de promotor daquele modelo natural de família, verdadeiro patrimônio da civilização, criando meios de fomentá-lo e protegê-lo como um precioso valor social. Este é o caminho que melhor assegura a maternidade e paternidade responsáveis, possibilitando a convivência harmoniosa entre pais e filhos e o desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes.

Porém, o que temos visto neste e em outros debates, é uma mal disfarçada desistência deste modelo, como se ele estivesse ultrapassado e ao direito de família moderno restasse, meramente, chancelar os mais diversos e originais agrupamentos humanos como se família fossem. Infelizmente, soluções jurídicas como a “guarda compartilhada” continuarão a nos iludir com suas promessas de “admirável mundo novo”, enquanto não tivermos a coragem de enfrentar as verdadeiras causas da crise atual da família.

 

João Marcelo Sarkis, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), analista jurídico do Ministério Público de São Paulo, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 22 de maio de 2015, Página A2 – Opinião.