O menino que queria nascer

Opinião Pública | 04/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Quando o médico anunciou que havia um problema com o bebê, eles sofreram bastante. Após uma longa e interminável espera, veio, finalmente, o diagnóstico e teve início a grande crise. “Anencefalia” era a palavra horrenda com que precisariam conviver a partir do terceiro mês de gestação. O radiologista foi atencioso e prático na sua indicação. Nada poderia ser feito e uma interrupção da gravidez era recomendável. Ele disse “interrupção”, para evitar que mais uma palavra terrível assombrasse ainda mais o sofrido casal. Mas eles a ouviram mesmo assim e repetiram para confirmar: “aborto?”.

Eles tinham lido as discussões acaloradas que algum tempo antes havia tomado conta dos jornais. Sabiam de uma decisão polêmica tomada pelo Supremo Tribunal Federal em Brasília. Tinham visto aqueles homens de toga discutindo o assunto pela televisão, enquanto especialistas de terno e gravata davam seus pareceres no plenário. Porém, tudo soava distante e indiferente, embora percebessem que era algo importante.

A decisão, tomada em maioria de votos, concedendo o “direito ao aborto do feto anencefálico”, agora se desprendia do papel e vinha pousar sobre eles para sentenciar a vida do seu próprio filho. Não um bebê em hipótese, mas aquele que existia e morava no útero da sua mãe. Como se estivessem expostos, os três, no centro daquela sala do tribunal, enquanto os juízes decidiam a “questão” daquele bebê doente, o intruso, o sem cabeça, no colo de seus pais. Aquele de quem todos falavam. Aquele que ninguém queria ver nascer.

Assustados, levaram o exame para o ginecologista que acompanhava a gravidez. Ao confirmar o diagnóstico, o médico observou, em silêncio, o ventre da paciente e se compadeceu daquela família. Talvez não fosse o melhor profissional da especialidade, nem tivesse muitos títulos a expor na parede do consultório, mas cultivava o espírito de uma verdadeira medicina. Procurou tranquilizar o casal, insistindo que a gravidez, com alguns cuidados, correria normalmente. Aos poucos tudo se tornava menos grave. Esclareceu-lhes, então, as dúvidas e infundiu-lhes uma grande coragem: que recebessem de braços abertos o seu filho, acolhendo o pequeno herói em sua fraqueza. Mais do que nunca, ele tinha direito ao amparo dos seus pais, pois estava vivo.

“Vivo!” era o que ressoava em seus ouvidos quando saíram da clínica. A canção que os embalaria nos meses seguintes, enquanto viam a barriga crescer. “Vivo!” era o que o pequeno dizia com seus chutes e movimentos, como se lá de dentro ele quisesse agradecer cada minuto na companhia de seu pai e sua mãe. Pois para ele o tempo corria diferente e a sua história se desenrolava em dias, não em anos. Ele estava ali, presente, o frágil guerreiro, multiplicando-se, crescendo, tornando-se homem. E escrevia, com os seus, as linhas possíveis da sua curta biografia.

Assim, à revelia das canetas dos poderes instituídos pela república, ele sobreviveu. Foi salvo da cureta, o instrumento científico que o levaria a agonizar indefeso até a morte. Nasceu no dia que lhe foi dado, desde sempre, nascer. Veio ao mundo com um choro imprevisto para um recém-nascido, pois era um grito de vitória. Um menino, que recebeu o seu nome e viveu os seus dias, até que a natureza o levou. Morreu com a mesma dignidade com que todos os homens deveriam morrer, quando chega a sua hora.

Os pais enfrentaram o luto indizível de pais que perdem filhos. Sem argumentos, apenas suportaram a dor que era a sua, livres daquela outra chancelada pela Justiça. E enterraram o filho amado, entregando-o ao mistério do seu destino, com a mesma generosidade com que o acolheram durante seus dias de vida. Preparam todo o funeral, receberam amigos, familiares e o nobre médico que os acompanhou. Rezaram juntos por ele, um anjo que ganhava o céu. Sim, o céu! Esta palavra intrusa, não convidada para o vocabulário corrente de artigos de jornal. Tão intrusa quanto aquele bebê no meio do plenário do tribunal. Aquele de quem todos falavam. Aquele que ninguém queria ver nascer. Mas ele nasceu. E era um menino.

João Marcelo Sarkis, advogado, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 08 de Abril de 2014, Página A2 – Opinião.