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Pensar o Direito (Parte III de VI): “A crise do direito”

Direito | 16/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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III – A CRISE DO DIREITO

Muito se fala sobre a necessidade de reforma do Poder Judiciário. Por vários motivos: algumas propostas, sabiamente e com acerto, apontam a morosidade como sua principal deficiência. Outras, demonstrando um nível bem celerado, indicam “os privilégios” dos magistrados como a causa de seu retrocesso, sugerindo seu fim.

Por fim, outras propostas, em nome da democratização, defendem uma maior aproximação do direito aplicado com o chamado “direito achado na rua”, o que reduz o direito ao puro fato, visto como algo axiologicamente neutro. Porque “o direito existe para a vida e não a vida para o direito”, como pode ser lido na decisão sobre a união estável homossexual.

Se a reforma é inevitável, as soluções invariavelmente são estruturais e acabam não atingindo o verdadeiro cerne da crise do direito: a de seus fundamentos, que traz prejuízo à paz social e ao respeito à pessoa humana.

Essa situação atinge os mais variados domínios da lei, mas, sobretudo, algumas áreas particularmente sensíveis, como hoje pode ser visto na biotecnologia, na família e na prática democrática. Nos últimos anos, sucessivas medidas legais, com um ar de corrida vertiginosa para o abismo, debilitam o homem no reduto mais íntimo e sagrado de sua dignidade.

Vida, identidade genética, integridade física, procriação, doença, morte, paternidade, filiação, educação, sexualidade, afetividade, valores, privacidade, entre outros temas, estiveram na pauta do legislador, o qual assumiu a condição de líder daquilo que muitos julgam ser uma rebelião oficial contra a ordem natural das coisas. Uma espécie de revolta dos códigos contra a natureza das coisas.

A crise dos fundamentos do direito é a crise do positivismo, essa linha de pensamento que reduz o direito válido ao direito escrito. Assistimos, naqueles campos da vida, à uma série de imposições de decisões humanas subjetivas e de escolhas culturais completamente desconectadas de padrões objetivos e naturais, de ordem moral, política e jurídica. Os mandatários do povo e os juristas tornaram-se a medida de todas as coisas, versão moderna da medida de Protágoras.

O estudo do direito tornou-se mais um estudo da lei do que o estudo do justo. Basta analisar o currículo da matéria de filosofia do direito em qualquer faculdade, com raras exceções: não se aprende metafísica ou mesmo antropologia e a ética natural é substituída pela ética normativa. Nas outras matérias, invariavelmente, o aluno é adestrado (acho que este verbo resume bem o que penso) a fazer a singela justaposição do fato ao texto da lei.

O direito, no campo das relações políticas, virou muito mais uma espécie de gestão convencional de interesses da maioria do que a realização responsável do bem comum. Recordo-me da máxima de Hobbes, aquele que nos rebaixou a uma matilha tresloucada de lobos, para quem a lei não procede da verdade, mas da autoridade.

Então, imaginem um louco e não um médico comandando o hospício: foi justamente a relação entre Hitler e os alemães, como bem descreveu Eric Voegelin na obra homônima. De fato, uma nação que, com respaldo legal, começa por queimar livros, só pode terminar matando pessoas…

A ideia de Estado de Direito resume-se à uma débil concepção de salvaguarda da legalidade vigente a todo custo. A democracia, cuja restauração custou a vida de milhares de soldados no teatro de combate da segunda guerra mundial, hoje, prevalece sob uma roupagem formal, processual e técnica, ao preço do sacrifício de valores fundamentais em prol do império da ditadura cega do princípio da maioria. Deixou-se seduzir pelo relativismo ético e, a cada dia que passa, converte-se na antessala de um novo totalitarismo.

Não creio que essa reviravolta tornará os homens mais felizes, isto é, mais plenamente pessoas. Ou mesmo se a sociedade continuará a ser um fórum ou se transformará num coliseu. Desta maneira, a política falha na missão de promover a “vida boa”, na clássica expressão do direito romano, de seus membros.

Escolher deliberadamente pelo antinatural é a forma mais rápida e segura para garantir uma boa colheita de sofrimentos humanos. Devido à ganância humana, alguém já observou, acertadamente, que o homem deixou de ser o pastor do ser para se converter em ovelha do rebanho do ter. Pausa para reflexão do fundamento do direito que queremos. Afinal, reportar-se ao fundamento é reportar-se ao ponto em que a verdade oferece-se a si mesma como sua razão.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

*Próximos artigos da série “Pensar o Direito”:

Parte IV: “Resgate da Essência do Direito”

Parte V : “Direito e Filosofia: Cara e Coroa”

Parte VI: “Justiça, Filosofia e Virtude”

*Já publicados:

Parte I: “Pensando o Direito”  – para ler clique AQUI

Parte II: “Direito e Ordem Natural” – para ler clique AQUI

Pensar o Direito (Parte III de VI): "A crise do direito"

Direito | 16/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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III – A CRISE DO DIREITO

Muito se fala sobre a necessidade de reforma do Poder Judiciário. Por vários motivos: algumas propostas, sabiamente e com acerto, apontam a morosidade como sua principal deficiência. Outras, demonstrando um nível bem celerado, indicam “os privilégios” dos magistrados como a causa de seu retrocesso, sugerindo seu fim.

Por fim, outras propostas, em nome da democratização, defendem uma maior aproximação do direito aplicado com o chamado “direito achado na rua”, o que reduz o direito ao puro fato, visto como algo axiologicamente neutro. Porque “o direito existe para a vida e não a vida para o direito”, como pode ser lido na decisão sobre a união estável homossexual.

Se a reforma é inevitável, as soluções invariavelmente são estruturais e acabam não atingindo o verdadeiro cerne da crise do direito: a de seus fundamentos, que traz prejuízo à paz social e ao respeito à pessoa humana.

Essa situação atinge os mais variados domínios da lei, mas, sobretudo, algumas áreas particularmente sensíveis, como hoje pode ser visto na biotecnologia, na família e na prática democrática. Nos últimos anos, sucessivas medidas legais, com um ar de corrida vertiginosa para o abismo, debilitam o homem no reduto mais íntimo e sagrado de sua dignidade.

Vida, identidade genética, integridade física, procriação, doença, morte, paternidade, filiação, educação, sexualidade, afetividade, valores, privacidade, entre outros temas, estiveram na pauta do legislador, o qual assumiu a condição de líder daquilo que muitos julgam ser uma rebelião oficial contra a ordem natural das coisas. Uma espécie de revolta dos códigos contra a natureza das coisas.

A crise dos fundamentos do direito é a crise do positivismo, essa linha de pensamento que reduz o direito válido ao direito escrito. Assistimos, naqueles campos da vida, à uma série de imposições de decisões humanas subjetivas e de escolhas culturais completamente desconectadas de padrões objetivos e naturais, de ordem moral, política e jurídica. Os mandatários do povo e os juristas tornaram-se a medida de todas as coisas, versão moderna da medida de Protágoras.

O estudo do direito tornou-se mais um estudo da lei do que o estudo do justo. Basta analisar o currículo da matéria de filosofia do direito em qualquer faculdade, com raras exceções: não se aprende metafísica ou mesmo antropologia e a ética natural é substituída pela ética normativa. Nas outras matérias, invariavelmente, o aluno é adestrado (acho que este verbo resume bem o que penso) a fazer a singela justaposição do fato ao texto da lei.

O direito, no campo das relações políticas, virou muito mais uma espécie de gestão convencional de interesses da maioria do que a realização responsável do bem comum. Recordo-me da máxima de Hobbes, aquele que nos rebaixou a uma matilha tresloucada de lobos, para quem a lei não procede da verdade, mas da autoridade.

Então, imaginem um louco e não um médico comandando o hospício: foi justamente a relação entre Hitler e os alemães, como bem descreveu Eric Voegelin na obra homônima. De fato, uma nação que, com respaldo legal, começa por queimar livros, só pode terminar matando pessoas…

A ideia de Estado de Direito resume-se à uma débil concepção de salvaguarda da legalidade vigente a todo custo. A democracia, cuja restauração custou a vida de milhares de soldados no teatro de combate da segunda guerra mundial, hoje, prevalece sob uma roupagem formal, processual e técnica, ao preço do sacrifício de valores fundamentais em prol do império da ditadura cega do princípio da maioria. Deixou-se seduzir pelo relativismo ético e, a cada dia que passa, converte-se na antessala de um novo totalitarismo.

Não creio que essa reviravolta tornará os homens mais felizes, isto é, mais plenamente pessoas. Ou mesmo se a sociedade continuará a ser um fórum ou se transformará num coliseu. Desta maneira, a política falha na missão de promover a “vida boa”, na clássica expressão do direito romano, de seus membros.

Escolher deliberadamente pelo antinatural é a forma mais rápida e segura para garantir uma boa colheita de sofrimentos humanos. Devido à ganância humana, alguém já observou, acertadamente, que o homem deixou de ser o pastor do ser para se converter em ovelha do rebanho do ter. Pausa para reflexão do fundamento do direito que queremos. Afinal, reportar-se ao fundamento é reportar-se ao ponto em que a verdade oferece-se a si mesma como sua razão.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

*Próximos artigos da série “Pensar o Direito”:

Parte IV: “Resgate da Essência do Direito”

Parte V : “Direito e Filosofia: Cara e Coroa”

Parte VI: “Justiça, Filosofia e Virtude”

*Já publicados:

Parte I: “Pensando o Direito”  – para ler clique AQUI

Parte II: “Direito e Ordem Natural” – para ler clique AQUI

O despertar de um juiz

Opinião Pública | 19/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Pela primeira vez se esmerava para se convencer: “há pessoas atrás dos processos”. Tinha aprendido a frase nos livros de ética e nas aulas de alguns professores e ela se fixara em sua mente como um aforismo. Uma dessas pílulas de sabedoria que nos abstemos de duvidar e que vão compondo o nosso repertório pessoal de referências. Durante anos convivera muito bem com tal sentença, mas naquele instante, o que até então esteve acomodado entre suas certezas parecia estranho e ameaçador.

Tudo se passou quando, em meio às familiares pilhas de processo, simplesmente pousou o olhar sobre a capa de um deles, demorando um pouco mais que o habitual. Foi o suficiente para que se implantasse a terrível dúvida. Pressentindo que não se tratava apenas de uma inquietação passageira ou mesmo de uma divagação curiosa, desviou o olhar por extinto, na tentativa de retomar o ritmo do trabalho e submergir novamente em seus afazeres. Mas era inútil.

Seus olhos depararam-se com a confusão de processos sobre a mesa e depois com os milhares de pastas dispostas nas prateleiras. Involuntariamente pronunciou os nomes escritos na capa dos autos que tinha nas mãos, talvez para remediar a angústia que se instalara naquele mesmo momento. “As pessoas atrás dos processos”, martelava-lhe a consciência.

Estava paralisado. Talvez houvesse tempo de rever as últimas decisões ainda não publicadas, pensou enquanto revolvia os papéis sobre a mesa. As cenas presenciadas nas audiências daquele mesmo dia voltavam à sua mente e revisitava todos os atos praticados, no temor de encontrar alguma falha. Mal podia se lembrar dos casos presenciados naquela tarde, não conseguia reconhecer os rostos das pessoas envolvidas. Como era possível que tivesse se entregado de forma tão automática e indiferente a ponto de não se recordar nem mesmo das últimas horas? Como prestaria contas de todos os anos em que estivera ali?

Então, assombrou-lhe a lembrança do conselho bem intencionado de um colega mais experiente, logo que ingressara na carreira: “Não se importune com os casos e durma tranquilamente sob os auspícios da lei”. Entorpecido pela montanha de papéis e as inúmeras obrigações administrativas que o cercavam, sempre lhe parecera razoável a aplicação pura e simples da lei. Agora, porém, parecia despertar de um longo delírio e lhe ocorria que a própria palavra “processo” era abjeta. A imagem de uma máquina lhe vinha à mente, um enorme processador. E ele o operário-carimbador-despachante: um fastidioso e pestilento burocrata atrás de uma mesa tomada de papéis.

Pensava nos casos concretos da vida, aqueles que acompanhara pessoalmente, não por dever de ofício, mas como um homem comum. Contemplava os detalhes, as peculiaridades de cada acontecimento, a riqueza do mundo real. Era evidente a frieza e ingenuidade da letra da lei, racional e alheia à turbulência dos fatos. A sórdida e impiedosa letra da lei, tantas vezes fruto dos piores conluios nos porões da República.

Eis que, em meio ao tormento que o tomava, emergiu a figura de um mediador entre a lei e os fatos, as normas e a vida. Súbito a realidade reclamava a existência de um intermediário, pois não era suficiente o mero processamento da lei. Cada vida, por trás de cada processo, demandava este autor dedicado que poderia lhes dar o que de direito. Em seu coração ardeu um frescor de juventude e era como se estivesse ouvindo “justiça” pela primeira vez. A aflição inicial cedia espaço.

Atormentava-lhe, ainda, a sombra repugnante do burocrata indolente, mas a imagem daquele artesão da prudência o desafiava. A mesma frase-pronta que já lhe acompanhava desde fora, ressurgida naqueles breves minutos num átimo de acusação e dúvida, agora lhe vinha em socorro, como se ele mesmo a tivesse elaborado, numa sentença genuína e original. E repetia alto para si mesmo, diante da pilha de papéis: “Há pessoas atrás dos processos!”. Negava corajoso o conselho do “experiente” colega e mais do que nunca desejava importunar-se com aqueles casos. Finalmente, tornava-se um juiz.

João Marcelo Sarkis, advogado, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 21 de Janeiro de 2015, Página A2 – Opinião.

Apelo à Justiça

Opinião Pública | 05/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Pai e filha sentaram-se em lados opostos da mesa. Mas nenhuma comida foi servida, nem havia sorrisos cúmplices. A camada de ar que os separava era feita de pedras e logo notei a expressão nos rostos de um itinerário desconhecido, perturbando-me com uma inquietação: Como chegaram até ali, pai e filha? Como podia um laço tão íntimo se desintegrar a ponto de se fazer simbolizar por cifras em um processo de pensão alimentícia?

Por dever de ofício eu procurava a justiça. Percorri as folhas dos autos, li os argumentos, tentando reconstruir a história. Fui aos códigos, à norma, à ordem e voltei de novo ao caso. Depois fui tateando impressões, valores, experiências, buscando em mim mesmo um terreno firme de onde pudesse começar. Embora o ofício exigisse apenas uma solução, talvez nem tão difícil de encontrar, algo exigia outra resposta.

Principiei na justiça mais rasa, querendo encontrar culpados. O pai vilão. A mãe orgulhosa. A adolescente rebelde. Os avós, o Estado, a cultura. Alguma equação lógica, um veredicto razoável. Mas eram vinte anos, a moça feita, o muro de silêncio estendido, o cansaço da dor carregada pelos anos. Parecia justo remir todas as culpas, porém de que modo, se estavam ali tão impregnadas? Mesmo que penas terríveis fossem cumpridas, haveria uma pena suficiente para a violação ocorrida entre um pai e um filho? Existiria em algum lugar outro amor suficiente que pudesse aplacar tamanha injustiça?

As leis calavam-se mudas e as instituições frágeis. Estava diante de fatos puros, livre do dever e consciente de que a justiça neste caso era mais que a solução de um processo. Era a própria vida que me cobrava um sentido. Pouco importava se resolvessem ali os valores das próximas pensões. A questão era se poderíamos realmente voltar para casa ou se seríamos todos detidos ali mesmo. Aquele muro denso e invisível também se estendia sobre mim e eu estava igualmente envolto em névoas. E naquele instante, sentado naquela mesa perpendicular a pai e filha, eu soube, como nunca antes, que aquela culpa também era minha.

Estava unido a eles, pelas alegrias e sofrimentos do nosso destino humano. Fui também, naquela hora, pai e filho e experimentei desfilarem sobre mim a emoção do nascimento, a dor da separação, a saudade dos abraços, a esperança do reencontro. Vi cada gesto de carinho e todas as feridas causadas pelos erros. Vi as tentativas frustradas e as intenções perdidas. Estive em todas as guerras e em cada trégua. Ouvi as ofensas e os pedidos de perdão. As lágrimas de tristeza e a felicidade em risos. Eram todos meus.

Apelei com força à justiça. Não a que o diploma me concedia, mas justamente aquela que o dever de ofício me privava. E, de repente, como se me abrissem os olhos, reconheci que pairava sobre nós o que tanto procurava. Era impossível apreendê-lo totalmente, porém fazia nascer em mim uma compaixão tão grande por aquele pai e filha desconhecidos que tive a certeza: havia sim amor em abundância para resgatar todas as injustiças cometidas.

Quando foram cumpridas as formalidades de praxe, pai e filha se levantaram da mesa, despedimo-nos e os observei deixando a sala em silêncio. O valor da pensão alimentícia estava fixado. E o que parecia, talvez, uma divagação do espírito afirmou-se diante de mim, quando os vi aproximarem-se de tal maneira, que aquela névoa espessa se desfez. Não pude saber se um dia reatariam os mesmos laços de antes. Mas havia esperança, pois estávamos redimidos e podíamos decidir tomar o rumo de volta para casa.

João Marcelo Sarkis, advogado, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 06 de Dezembro de 2014, Página A2 – Opinião.