Apelo à Justiça

Opinião Pública | 05/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Pai e filha sentaram-se em lados opostos da mesa. Mas nenhuma comida foi servida, nem havia sorrisos cúmplices. A camada de ar que os separava era feita de pedras e logo notei a expressão nos rostos de um itinerário desconhecido, perturbando-me com uma inquietação: Como chegaram até ali, pai e filha? Como podia um laço tão íntimo se desintegrar a ponto de se fazer simbolizar por cifras em um processo de pensão alimentícia?

Por dever de ofício eu procurava a justiça. Percorri as folhas dos autos, li os argumentos, tentando reconstruir a história. Fui aos códigos, à norma, à ordem e voltei de novo ao caso. Depois fui tateando impressões, valores, experiências, buscando em mim mesmo um terreno firme de onde pudesse começar. Embora o ofício exigisse apenas uma solução, talvez nem tão difícil de encontrar, algo exigia outra resposta.

Principiei na justiça mais rasa, querendo encontrar culpados. O pai vilão. A mãe orgulhosa. A adolescente rebelde. Os avós, o Estado, a cultura. Alguma equação lógica, um veredicto razoável. Mas eram vinte anos, a moça feita, o muro de silêncio estendido, o cansaço da dor carregada pelos anos. Parecia justo remir todas as culpas, porém de que modo, se estavam ali tão impregnadas? Mesmo que penas terríveis fossem cumpridas, haveria uma pena suficiente para a violação ocorrida entre um pai e um filho? Existiria em algum lugar outro amor suficiente que pudesse aplacar tamanha injustiça?

As leis calavam-se mudas e as instituições frágeis. Estava diante de fatos puros, livre do dever e consciente de que a justiça neste caso era mais que a solução de um processo. Era a própria vida que me cobrava um sentido. Pouco importava se resolvessem ali os valores das próximas pensões. A questão era se poderíamos realmente voltar para casa ou se seríamos todos detidos ali mesmo. Aquele muro denso e invisível também se estendia sobre mim e eu estava igualmente envolto em névoas. E naquele instante, sentado naquela mesa perpendicular a pai e filha, eu soube, como nunca antes, que aquela culpa também era minha.

Estava unido a eles, pelas alegrias e sofrimentos do nosso destino humano. Fui também, naquela hora, pai e filho e experimentei desfilarem sobre mim a emoção do nascimento, a dor da separação, a saudade dos abraços, a esperança do reencontro. Vi cada gesto de carinho e todas as feridas causadas pelos erros. Vi as tentativas frustradas e as intenções perdidas. Estive em todas as guerras e em cada trégua. Ouvi as ofensas e os pedidos de perdão. As lágrimas de tristeza e a felicidade em risos. Eram todos meus.

Apelei com força à justiça. Não a que o diploma me concedia, mas justamente aquela que o dever de ofício me privava. E, de repente, como se me abrissem os olhos, reconheci que pairava sobre nós o que tanto procurava. Era impossível apreendê-lo totalmente, porém fazia nascer em mim uma compaixão tão grande por aquele pai e filha desconhecidos que tive a certeza: havia sim amor em abundância para resgatar todas as injustiças cometidas.

Quando foram cumpridas as formalidades de praxe, pai e filha se levantaram da mesa, despedimo-nos e os observei deixando a sala em silêncio. O valor da pensão alimentícia estava fixado. E o que parecia, talvez, uma divagação do espírito afirmou-se diante de mim, quando os vi aproximarem-se de tal maneira, que aquela névoa espessa se desfez. Não pude saber se um dia reatariam os mesmos laços de antes. Mas havia esperança, pois estávamos redimidos e podíamos decidir tomar o rumo de volta para casa.

João Marcelo Sarkis, advogado, gestor do Núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 06 de Dezembro de 2014, Página A2 – Opinião.