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Imbecilização coletiva

Sem Categoria | 22/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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Há um tempo atrás entrei na sala como todos os dias para dar minha aula de História. Naquela ocasião se tratava de uma sala de 9º Ano, com alunos na média de 13 ou 14 anos de idade. O tema era Revolução Industrial, algo corriqueiro, mas naquele dia saí dali espantado com a geração que estamos formando.

Para dinamizar a exposição preparei alguns slides, passei um resumo básico na lousa e depois fiz uma edição de um filme que retratava a realidade sofrida dos operários ingleses do século XVIII. Assim que a exibição começou, logo de início ouvi risos aqui e ali. Pensei – como é típico do raciocínio de professor – que se tratava de alguma brincadeira ou uso de celular, que é proibido em sala de aula. Chamei a atenção da turma; a exibição seguia e com ela, não mais risos e sim gargalhadas. Foi então que notei que não estavam desatentos como eu pensei, mas rindo da exploração de crianças, chamando os operários de idiotas, torcendo para que os encarregados castigassem os operários, numa palavra, vibravam sadicamente com o sofrimento de seres humanos.

Julgando que isso podia ser fruto da imaturidade da idade, parei o filme e expliquei novamente seu conteúdo enriquecendo com mais detalhes, imaginando que isso mudaria essa visão equivocada, mas o único equivocado era eu mesmo. Os risos e brincadeiras continuaram. O documentário falava sobre o abuso sexual de mulheres e ainda assim, as próprias meninas brincavam com isso como se nada fosse. Parei outra vez e lhes perguntei sobre o que achariam de viver naquela época e ter sua mãe e irmãs abusadas… Uns se calaram, outros disfarçavam um sorriso quase incontrolável e ainda outros ousaram brincar dizendo que as coisas são assim mesmo.

Espantado com tamanha frieza, tentei terminar minha aula já pensando no que poderia fazer para ajudar esses jovens a ver as coisas de outro modo, foi quando o maior espanto me sobreveio. O documentário mostrava um cavalo já exausto pelo excesso de trabalho ser amarrado e descido de cabeça para baixo numa mina de carvão, a fim de ajudar no trabalho debaixo da terra. A verem esta cena começou um burburinho tremendo em defesa do cavalo, dos “direitos dos animais”, da injustiça contra um ser irracional indefeso etc. É óbvio que maltratar qualquer ser vivo é algo absurdo, no entanto, para um animal meus alunos demonstravam toda compaixão, mas para um ser humano, racional, digno, semelhante a eles mesmos, só demonstrações de escárnio e desprezo e nenhum sentimento de solidariedade. Como entender essa lógica?

Sempre há um conflito natural entre gerações diferentes, mas neste caso é algo mais profundo: a praga que lhes corrói sem que o percebam é o “politicamente correto”, as muitas ideologias que os assediam, a inércia espiritual em que vivem, o vazio de valores e normas. Estamos criando uma geração de bárbaros, incapazes de piedade e compaixão, vazios, sem rumo e sem sentido para as coisas. Isso se reflete na preguiça desta geração não só para o estudo, mas também em tudo o que exija esforço. Nem todos são assim, isso é verdade, mas a maioria parece se conformar a esse modelo desordenado de ser humano. O presente caso ocorreu no interior de um renomado colégio particular. Também leciono em escola pública e o comportamento não é diferente. A solução, nesse caso, vem mais de casa do que da escola. Os valores recebidos pela família é que farão a devida diferença e aí surge outro problema: muitas políticas públicas, leis, ong’s e tantas outras realidades trabalham ferozmente em prol da destruição da família. O resultado é a facilidade de imbecilizar alunos com um potencial humano e intelectual tão grandes. Destruir a família destrói não só a instituição familiar em si mesma, mas todas as demais instituições dependentes dela, inclusive a escola e a própria sociedade.

Luiz Raphael Tonon é professor de História e Filosofia, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas e leigo consagrado da comunidade Católica Pantokrator (raphael.tonon@ife.org.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 22/7/2015, Página A-2, Opinião.

Tolerância de mão única

Opinião Pública | 27/05/2015 | | IFE CAMPINAS

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A liberdade de expressão goza de um reconhecimento sem precedentes na história. Hoje, eu posso criticar nossa presidente sem grandes problemas. Apenas se for irônico, terei um pouco mais de trabalho, já que, como dizia o finado Millôr, no Brasil, até a ironia precisa ser explicada. Ontem, se eu fizesse o mesmo com um soberano, por exemplo, da Inglaterra do século XVII, eu não precisaria me explicar muito, até porque, lá pelo meio da explicação, minha cabeça já teria sido decepada.

O panorama atual seria idílico, se não tivesse entrado em cena o politicamente correto e seus efeitos dissonantes. Nesse palco, a noção de justiça resta indefinida em prol de uma abordagem generosa da tolerância, compreendendo-a como uma fonte de direitos. Em outras palavras, segundo essa visão, o reconhecimento de direitos não seria mais uma questão de um justo concreto, de dar a cada um o seu, mas de tolerância.

A tolerância, ao contrário da justiça, é efeito da generosidade, na medida em que anima a dar ao outro mais do que, em justiça estrita, poderia ser exigido. Quando a tolerância toma o lugar da justiça, surge uma nova tendência que nos conduz ao disparate jurídico de se pretender converter a tolerância generosa em conduta juridicamente exigível.

O zelo acrítico pela introdução de novas coações legais sob o manto da não-discriminação, uma vez alimentado pelo politicamente correto, justifica um novo princípio de direito penal: quem vulnerar seus dogmas implícitos será conduzido ao cárcere, sob a acusação da fobia correspondente. É a tônica a que assistimos no movimento ideológico gay de hoje: “casamento”, como fruto da dita tolerância, e cadeia, como sanção para quem fizer uma crítica mais profunda ao estilo de vida desse grupo social.

A cartilha dessa tolerância de mão única é mais ou menos assim: um comportamento considerado criminoso ou discriminado socialmente passa a ser descriminalizado ou aceito institucionalmente no interesse da tolerância e, muito em breve, é convertido em dogma e ativado como resultado de uma nova ortodoxia que, no mais, apenas desmonta o quadro anterior e coloca outro em seu lugar, buscando criminalizar ou discriminar socialmente o comportamento substituído, normalmente, por via de programas institucionalizados de educação ou de saúde.

Qualquer semelhança com o caminho adotado pela ideologia de gênero, por exemplo, não é mera coincidência. É aplicação bem concreta dessa cartilha. A coisa, por si só, não deixa de ter sua ironia, meu prato linguístico predileto. A dita cartilha desenvolve-se num contexto de uma implacável ditadura do relativismo. Passa-se, insensivelmente, do postulado de que não cabe impor suas convicções aos demais ao veto formal a alguém que se atreva a expressar com liberdade seu código moral.

O velho e embalsamado Bentham, alguém insuspeito de ser chamado de tradicionalista, em sua obra principal sobre o utilitarismo, afirmou que a atitude do bom cidadão ante a lei positiva está em obedecer pontualmente e criticar livremente. Bobbio rechaçou com energia o fato de uma lei sempre gerar uma obrigação moral de obediência só pelo fato dela ter sido legitimamente positivada.

Mas a tolerância de mão única não para por aí. Ela influi no debate acadêmico, desvalorizando-o, e, em seu lugar, preferimos desprestigiar nosso adversário com uma retórica de 140 caracteres no twitter. Vasculha-se a vida privada do adversário nas redes sociais na esperança de poder demonizá-lo como indivíduo que vive numa espécie de “obscurantismo medieval” do pensamento ou que compõe um grupo maior de antiquados e sectários. Não se pode oferecer uma alternativa ao credo politicamente correto, porque a tolerância de mão única considera que seus postulados foram gravados em pedra.

Todo esse entorno existencial acaba por nos conduzir ao Velho Oeste. É proibido proibir, porque, na cidadela do pensamento atual, nada pode se considerado verdade ou mentira. Mas, como diria o xerife desse lugarejo, “eu não tentaria fazer isso, forasteiro!”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 27/5/2015, Página A-2, Opinião.

A tolerância intolerante

Opinião Pública | 25/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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Há pouco, nos principais periódicos europeus, declarou-se que “a família tradicional é uma moda que não passa, ao ponto de dizermos ‘não’ à adoção de crianças pelos gays. Chega de filhos sintéticos e de barrigas de aluguel. Os filhos devem ter um pai e uma mãe”. Errou quem atribuiu a afirmação a algum famoso padre, pastor ou rabino: a autoria dessas linhas pertence ao casal homossexual de estilistas italianos mais famoso do mundo. No dia seguinte, o mais famoso cantor gay britânico, que tem um filho adotado, conclamou uma espécie de “inquisição rosa” no mundo ocidental contra os dois estilistas.

Hoje, estar razoavelmente convencido de umas ideias sobre alguns assuntos pode ser perigoso. Para o sujeito “convicto” e para suas relações sociais. E me refiro a uma convicção formada racionalmente que, mesmo no debate social, deixa de ser considerada uma variável na complexa equação dos argumentos de razões públicas, não porque seja fruto de um fundamentalismo religioso ou de um fanatismo ideológico, mas porque não é politicamente correta. Entretanto, não se prega a tolerância como um valor democrático?

Originariamente, a tolerância surgiu como uma prática social a serviço de uma sadia convivência nas sociedades europeias, cansadas do problema das guerras religiosas. Até um abade francês, Saint-Pierre, resolveu escrever um verdadeiro projeto, na forma de livro, para tornar perpétua a paz na Europa, baseado na ideia de que a tolerância política e as leis seriam capazes de fazer reinar a harmonia no Velho Continente. Locke e Rousseau também enfrentaram a questão. Mais tarde, foi a vez de Kant dar sua contribuição intelectual ao mesmo problema. Bem ao estilo germânico, o que, invariavelmente, quer dizer muita profundidade reflexiva e muita página para explicá-la.

No Ocidente, com o tempo, a tolerância foi deixando de ser uma forma de convivência e respeito pela liberdade alheia para se transformar num valor e, hoje, sob o influxo da onda do politicamente correto, por mais paradoxal que pareça, tornou-se uma espécie de desvalor, porque passou a uniformizar as consciências em prol da ditadura do pensamento único.

Em outras palavras, antes, a tolerância estava em aceitar pontos de vista divergentes sobre o mesmo tema, mas combatendo-os criticamente. Depois, a tolerância consistiu em aceitar todos os pontos de vista como se fossem igualmente válidos. Agora, é obrigatório concordar com a resposta politicamente correta para a pauta social em questão.

Nesse caldo civilizacional, resta curioso notar que, ao cabo, ao se impor um único argumento de razões públicas – o do politicamente correto – a tolerância faz-se intolerante. Os grupos mais aparelhados passam a pressionar o Estado para que vigie a sociedade cada vez mais de perto, a fim de colocar uma mordaça existencial em que ouse discordar, com um argumento equivalente ou melhor, num determinado assunto.

A lógica do patrulhamento sobre os “politicamente incorretos” é a de que as ideias que “discriminam” são intolerantes, porque, quando levadas à prática, violam os “direitos” dos demais. Assim, para salvaguardar a tolerância social, é preciso restringir a vez e a voz desses “desajustados políticos”, porque são portadores de posicionamentos “discriminatórios”.

A tolerância dos intolerantes converte as discrepâncias em diferenças irreconciliáveis e não abre espaço para um entendimento social dialógico, porque a única forma de resolução dos conflitos sociais, principalmente se envolvem valores, dá-se pela via do decisionismo político, a imposição arbitrária de uma vontade política em detrimento de outras equivalentes ou melhores.

A tolerância é, sem dúvida, um grande valor social. Mas a tolerância termina perante a intolerância do politicamente correto. Ponderar a convicção alheia? Nada contra. Desde que a convicção alheia pondere e não silencie todo o resto. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no Jornal “Correio Popular” de Campinas, 25.03.2015, Página A-2, Opinião.

Diversidade seletiva

Sem Categoria | 15/12/2014 | |

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Não faz muito tempo que, num dia de plantão judiciário, um casal fez um pedido de alvará para abortar um feto que portava síndrome de Down, diagnosticada umas semanas antes pelo médico. Antes de proferir a decisão, resolvi ouvir os cônjuges que, aliás, eram bem diferentes: ele era filho de catalães e ela era neta de argelinos, uma diversidade que me chamou a atenção e que costuma presentear a família com filhos repletos daquela beleza moura que costumamos assistir nos filmes de época. Ponderei as reais razões do casal e tomei a decisão logo em seguida.

Nossa sociedade levantou a bandeira da aceitação das diferenças, da integração das minorias e da inclusão social dos menos capacitados. Aliás, nesse ponto, referir-se a alguém como um inválido é motivo de repreensão pela patrulha politicamente correta. Independentemente disso, de fato, esta expressão nunca me agradou, pois sempre leva um conta um certo viés utilitarista do indivíduo no seio social: o sujeito tem uma invalidez permanente e, logo, não serve socialmente.

Todos temos algo para aportar para os outros, mas, ao que parece, nossa sociedade está cada vez mais insensível para a exclusão pré-natal de quem não porta uma “normalidade” genética, principalmente de natureza irreversível. Não adianta reclamar. Começamos com a tal “autorização para interrupção pré-natal de feto anencefálico” e caminhamos, a passos firmes, para outros tipos de “autorizações”, todas, em bom português, espécies do gênero aborto eugênico.

No fundo, há uma clara intolerância social para fetos que não gozem de boa saúde genética. Os dados estatísticos de tais “autorizações” que bem poderiam ser chamados de “alvarás judiciais para matar”, crescem no mundo todo e estima-se, segundo estudos acadêmicos, que, na Europa, a taxa de rejeição de fetos com síndrome de Down esteja na casa de 80-90% dos casos. Considerando que esse fetos viram detritos hospitalares, as lixeiras de muitos hospitais mais se assemelham a terríveis cemitérios. E, os europeus, que já repugnavam os imigrantes, agora, repugnam a si mesmos.

É um pena, porque, se por um lado, os portadores de tal síndrome costumam ter problemas de saúde acima da média e incapacidade intelectual em algum grau, por outro, é certo que programas de estimulação precoce têm melhorado consideravelmente suas habilidades e os avanços científicos têm permitido uma sobrevida maior e mais saudável. Nada como a medicina em favor da vida e não a favor de “cortes genéticos” cada vez mais altos.

Curioso notar que os portadores de síndrome de Down costumam ser protagonistas emblemáticos de várias campanhas institucionais em favor da integração das pessoas menos capacitadas no mercado de trabalho. Nesse ritmo, se a ideia eugênica vingar por aqui, logo, nós os veremos cada vez mais nos meios de comunicação e cada vez menos nas escolas, ruas e praças.

Os pais teriam direito à uma “descendência sã” e à tal “autorização para interrupção da gravidez” e, na mesma sociedade, paradoxalmente, seria esperado que as empresas contratassem os portadores dessa anomalia, porque, afinal, seus pais não tiveram o “insight” de tê-los abortado no momento certo. A eugenia estatal parece-nos um medida totalitária, mas a eugenia privada vai se assentando como um direito que, enquanto não for assegurado pela lei, pode ser exercido com a chancela de um alvará judicial. É admirável o mundo novo que surge a partir dessa esquizofrenia social.

Então, vamos ser consequentes com essa lógica macabra: libere-se o aborto para as más formações fetais (atual estágio lógico) e, caso não detectadas na fase de gestação, libere-se o aborto pós-nascimento (próximo passo lógico), afinal, a causa é a mesma. Só mudaria o lugar do homicídio: no primeiro caso, seria no útero. No segundo, fora dele. Ademais, como “condenar” os pais a este infindável sofrimento de ter um filho com síndrome de Down, não é?

Sem dúvida, essa deificação da diversidade social não passa de um discurso politicamente correto, a fim de acomodar as minorias e os diferentes mais interessantes ou que falem mais alto no cenário social. O elogio à diversidade e a incorporação da prática privada da exclusão pré-natal, no caso aqui apresentado, é uma demonstração cabal das aspirações contraditórias de uma sociedade que quer deixar todas as saídas abertas.

A cultura do descarte, denunciada por Francisco, mostra, nessa estória, sua verdadeira face, tão verdadeira quanto a face da filha do casal do plantão, que apareceu outro dia no fórum, junto com seus pais, que me agradeceram pela decisão tomada naquele dia. Na verdade, fui eu quem agradeci, porque pude ver, em seus pequenos traços, aquela beleza moura que tanto suspeitava. Com respeito à divergência, é o que penso.

■■ André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em filosofia e história da educação e coordenador do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 15 de Outubro de 2014, Página A2 – Opinião.