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Receita indigesta

Opinião Pública | 28/02/2018 | | IFE CAMPINAS

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Pode o ente estatal obrigar um confeiteiro a preparar um bolo de casamento que simbolize algo oposto às suas convicções pessoais? A Suprema Corte dos Estados Unidos irá responder a essa pergunta em breve no caso Masterpiece Cakeshop vs. Colorado Civil Rights Commission, cujos efeitos terão impactos diretos sobre as liberdades individuais no país e, por extensão, em todo o Ocidente.

Em 2012, dois homens encomendaram a Jack Philips, o confeiteiro, um bolo de comemoração da união de ambos. Ele, por ser católico, rejeitou o pedido respeitosamente e lhes disponibilizou qualquer bolo pronto de sua confeitaria. Antes, ele já havia rejeitado pedidos de bolo para uma festa de Halloween e outra de celebração de divórcio.

Inclusive, também se negara a elaborar bolos de crítica sarcástica ao Corão e às uniões homossexuais. Até então, nunca tivera problemas administrativos. Mas, dessa vez, o dito casal registrou uma queixa na Comissão de Direitos Civis do Colorado e ele foi autuado por violar a legislação local que proíbe discriminação “por orientação sexual e identidade de gênero”.

O Colorado pode justificar, sob esse argumento, a dita obrigatoriedade? Sabemos, de antemão, que a solução judicial passará pelos caminhos da liberdade de crença, objeção de consciência, tolerância, não-discriminação e liberdade de expressão. Ficaremos com o último apenas.

Criar um bolo comemorativo, sob encomenda, corresponde a uma expressão tutelada pelo direito? Alguém poderia dizer que o bolo, ao final das contas, serve apenas para comer. De fato, isso se aplica ao bolo de fubá feito em escala e diariamente na padaria da esquina.

Quando você chega a um confeiteiro e diz que quer comprar um bolo com esse ou aquele design, desse ou daquele sabor, com tais e quais adereços congelados e açucarados, com três ou quatro andares e para um determinado evento comemorativo de união entre duas pessoas, o bolo, muito antes de servir para comer, serve para celebrar o evento e as pessoas que dele participam de uma forma única. É, primordialmente, um tributo estético de beleza e criatividade. E de muitas calorias, sem dúvida, as quais serão degustadas aos pedaços.

Então, não é qualquer coisa que porta uma natureza expressiva. Não é o mesmo que se recusar a alugar cadeiras dobráveis para a festa de união do mesmo casal. O ponto da questão não está no fato de que obrigar, como pretende o Colorado, a vender um produto ou serviço para um evento importaria no apoio às ideias que sustentam esse evento, mas no fato de que obrigar a criar uma mensagem celebrando o evento – o bolo encomendado – faria isso inexoravelmente.

Um bolo comemorativo personalizado é uma manifestação expressiva e seu confeiteiro, quando o fabrica, age protegido pelo direito de nele acinzelar sua consciência e seu coração. Em outras palavras, ele não pode ser compelido ao uso de suas habilidades artísticas para confeccionar bolos que celebrem temas que firam suas convicções morais ou religiosas.

Para além da constituição americana, a liberdade de expressão está consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Cidadãos de uma sociedade livre devem poder viver e agir de acordo com seus ditames e valores próprios e na medida em que concorram para o bem comum. A própria democracia baseia-se neste princípio. Para que
permitir eleições livres, se os governos questionam a capacidade de as pessoas decidirem entre o certo e o errado?

O conceito de liberdade de expressão será uma piada de mau gosto se o Colorado submeter nosso confeiteiro a um programa de “reeducação cívica”, como manda a lei estadual, porque ele discorda de certas ideias. A premissa dessa sanção legal é cômica, se não fosse trágica: quem ousar discordar será forçado a concordar.

A história ensina repetidamente a lição de que sociedades que começam desprezando liberdades básicas acabam por terminar em ditadura ou totalitarismo. Os Estados Unidos não estão nem perto de um ou de outro. Mas tudo pode muito bem começar com um simples bolo de casamento.

Uma iguaria que não foi feita, porque a receita seria indigesta para o queixoso casal de homens: uma receita baseada na feliz ideia de que a liberdade de expressão de um confeiteiro, mais do que protegê-lo de falar o que quiser, preserva sua liberdade artística de não expressar as ideias dos outros. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 28/02/2018, Página A-2, Opinião.

Rede social, a nova censura

Opinião Pública | 21/06/2017 | | IFE CAMPINAS

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Nossa liberdade constitucional de expressão tem limites? Sim. São os limites da lei e da jurisprudência dos tribunais, gostemos ou não, mesmo que, venhamos e convenhamos, existam condenações nitidamente ridículas. Independentemente disso, o importante é que os mecanismos habituais do Estado de Direito funcionem.

O ofensor, que tem a liberdade de se expressar e de escolher um patrocínio legal; o ofendido, que tem a liberdade para mover a ação, e o juiz ou tribunal, que têm a liberdade de convicção motivada para julgar assim ou assado.

Lamento dizer que não inventaram nada melhor que isso. Todas as outras alternativas gozam de uma séria anomalia genética: invertem uma série de regras e princípios consolidados há séculos em favor justamente da liberdade de expressão.

Órgão censor, comitê de crítica, departamento de imprensa e propaganda, notificação judicial, seja o nome que for, no fundo, está a se tutelar a censura em nome de uns valores da cabeça de um juiz, de um partido de plantão e mesmo de uma ideologia ou religião. No passado, nada disso deu certo.

Recentemente, a Alemanha resolveu seguir por esse caminho pantanoso. Pretende-se, por via legal, a imposição de multa administrativa, em valor crescente, às redes sociais que veicularem os crimes de notícia falsa ou de incitamento ao ódio que não forem deletadas no prazo assinalado pelo “censor” administrativo.

Fico a imaginar um bando de funcionários contratados, reunido numa sala padrão “telemarketing”, a vigiar e censurar mais de dois bilhões de mensagens diárias que passeiam pela rede mundial de computadores. Deve ser inútil, caro e paranoico. O problema não está em louvar a estupidez disso tudo.

Mas tão somente o fato de que, nessa linha de raciocínio, a definição dos crimes deixa a esfera judicial e migra para a esfera das redes sociais. Em outras palavras, é o Zuckerberg, e não mais um magistrado, que dirá se uma conduta virtual é tipicamente penal ou não.

É perfeitamente razoável imputar criminalmente uma mensagem que incite o assassinato de minorias ou de opositores políticos ou que calunie, gratuitamente, qualquer pessoa. Contudo, onde fica o lugar da sátira, sempre tomada a partir de preconceitos sociais ou de fatos do imaginário popular?

Onde fica o lugar de uma crítica política ou econômica mais dura e seca, que tangencie um excesso retórico, e esteja repleta de verbalismos, de qualificativos pouco elogiosos e ironias sarcásticas? Onde fica o lugar de uma posição que seja contrária, com fundamentos ponderáveis, ao aborto, ao casamento homoerótico, ao estatuto do desarmamento, à manipulação genética e ao multiverso familiar? Onde fica o lugar para dizer que tem um time de futebol sempre aliviado pelo apito amigo?

São hesitações que jamais deveriam ser respondidas pelos funcionários do Zuckerberg e, muito menos, pelas massas ensandecidas que são dadas a apagar ou a denunciar tudo aquilo de que discordam ou, ainda, por burocratas públicos que tenham decorado a cartilha das “verdades oficiais” do governo a que pertencem. Em nome da tolerância, por óbvio.

Do contrário, a mera discordância, exemplificada nas perguntas anteriores, seria um discurso de ódio e a exclusão da mensagem indesejada, da rede social, seria uma forma bem escamoteada de censura. Por isso, seja em crimes manifestos ou em zonas cinzentas em que a liberdade de expressão e seu abuso ou desvio flertam entre si, é perante os juízes e os tribunais que tais excessos devem ser conhecidos e, eventualmente, punidos.

Resulta um tanto triste que a opinião pública e a universidade não estejam lá muito dispostos a defender a liberdade de expressão, quando seu desenho sai do quadrado dos padrões politicamente corretos. Para esse caso, vale também a advertência orwelliana, segundo a qual, “se a liberdade significa algo, significa também o direito a dizer aos demais aquilo que eles não querem ouvir”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Fobia, a nova censura

Opinião Pública | 08/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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Ao caro leitor que gosta de ser muito convicto de suas ideias em público, fique muito atento com o que vão falar de você. Num passado próximo, provavelmente, você seria chamado de radical isso ou aquilo. Agora, não mais se desqualifica o outro apelando-se para os equívocos que suas ideias propagam, sobretudo quando se crê que as ideias possam não ser lá as melhores. Simplesmente, uma ideia oposta, mesmo que fundada racionalmente, deixa de “errônea” e passa a ser “anormal”. E, por ser fruto de uma espécie de ”transtorno mental”, seu remédio é a censura.

A “psiquiatrização” de pensamentos incômodos, por meio da fobia, já é um fenômeno bem alastrado no mundo ecológico. Experimente um estudioso se propor a questionar, com argumentos científicos, o aquecimento climático da Terra ou mesmo o consenso político em torno do tema: o sujeito será tachado de “negacionista”, uma espécie de pária intelectual do assunto.

Igual fenômeno é observado, em menor medida, com a negação de ”povo perseguido” aos judeus, porque a crítica é considerada uma espécie de fruto necessariamente consequente de uma ideologia fascista ou antissemita e não do exercício da liberdade de expressão, ainda que a crítica venha alicerçada com dados e comparações historiográficos.

Outros pontos de vista também são reprovados e censurados, por serem considerados manifestações de alguma nova “fobia”, por qualquer que seja a força do argumento empenhado em desfavor de uma ideia: da mais forte à mais fraca. O sujeito critica a ideologia que está por trás da emancipação gay a que assistimos com argumentos de razões públicas e, logo, passa a compor o panteão dos baluartes da homofobia. Alguém questiona o apedrejamento de mulheres adúlteras e a execução sumária de homossexuais nos países islâmicos e, como reconhecimento, torna-se um islamofóbico.

Em todos esses casos, como efeito, o rótulo virá acompanhado por um rol de demandas estridentes e destemperadas para se negar aos dissidentes do mainstream do pensamento o acesso às tribunas do debate público. Redefinir uma ideia como “fobia”, no fundo, é colocar uma pá-de-cal no diálogo. Afinal, para que entrar numa discussão com um bando de indivíduos irracionais ou perturbados? Suas opiniões, mesmo sólidas e coerentes, devem ser marginalizadas.

Surge a censura com uma forma de internamento psiquiátrico virtual, inclusive, porque, afinal, “alargar o estudo de um assunto com mais informações, sobretudo quando são inconvenientes, sempre resulta contraproducente”. É cada vez mais comum que a “terminologia psiquiátrica da fobia” não se restrinja à linguagem estritamente depreciativa ou provocadora e abarque todas as abordagens sérias que se faça sobre um tema. Mesmo que isso signifique uma espécie de efeito estufa para o livre arejar das ideias.

Antes, vivíamos na era dos “ismos” que, a juízo de muitos, eram fruto de ideologias ou pensamentos débeis que se deviam combater mediante um rigoroso debate na opinião pública. Hoje, temos as “fobias”. Naquela era, os indivíduos tomavam decisões sobre dados assuntos em virtude de umas premissas ou postulados equivocados. Na atual era, o ideário de quem reflete racional e divergentemente da maioria do pensamento hegemônico é tratado como uma patologia psíquica. Onde, numa era, haveria um livre debate e protesto públicos, além de uns tomates de vez em quando, na outra, haveria tão somente sugestões de reeducação para a cura de alguns de seu transtornado modo de pensar.

Como já não gozamos de um mínimo comum de valores morais, faltam argumentos para discutir e persuadir e, por isso, acaba-se por descer ao nível psiquiátrico do debate, a ante-sala para novas e mais insidiosas modalidades de censura do pensamento não convergente. Na arena do diálogo público, não convém aprioristicamente cerrar as ideias que podem entrar em cena daquelas que não podem. Pretender rotular de “fobia” a reflexão diversa e achar que isso não é um atentado à liberdade de expressão é entender coisa nenhuma sobre fobia e liberdade de expressão. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 8/7/ 2015, Página A-2, Opinião.

http://correio.rac.com.br/index.php?id=/colunistas/andre_fernandes

Tolerância de mão única

Opinião Pública | 27/05/2015 | | IFE CAMPINAS

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A liberdade de expressão goza de um reconhecimento sem precedentes na história. Hoje, eu posso criticar nossa presidente sem grandes problemas. Apenas se for irônico, terei um pouco mais de trabalho, já que, como dizia o finado Millôr, no Brasil, até a ironia precisa ser explicada. Ontem, se eu fizesse o mesmo com um soberano, por exemplo, da Inglaterra do século XVII, eu não precisaria me explicar muito, até porque, lá pelo meio da explicação, minha cabeça já teria sido decepada.

O panorama atual seria idílico, se não tivesse entrado em cena o politicamente correto e seus efeitos dissonantes. Nesse palco, a noção de justiça resta indefinida em prol de uma abordagem generosa da tolerância, compreendendo-a como uma fonte de direitos. Em outras palavras, segundo essa visão, o reconhecimento de direitos não seria mais uma questão de um justo concreto, de dar a cada um o seu, mas de tolerância.

A tolerância, ao contrário da justiça, é efeito da generosidade, na medida em que anima a dar ao outro mais do que, em justiça estrita, poderia ser exigido. Quando a tolerância toma o lugar da justiça, surge uma nova tendência que nos conduz ao disparate jurídico de se pretender converter a tolerância generosa em conduta juridicamente exigível.

O zelo acrítico pela introdução de novas coações legais sob o manto da não-discriminação, uma vez alimentado pelo politicamente correto, justifica um novo princípio de direito penal: quem vulnerar seus dogmas implícitos será conduzido ao cárcere, sob a acusação da fobia correspondente. É a tônica a que assistimos no movimento ideológico gay de hoje: “casamento”, como fruto da dita tolerância, e cadeia, como sanção para quem fizer uma crítica mais profunda ao estilo de vida desse grupo social.

A cartilha dessa tolerância de mão única é mais ou menos assim: um comportamento considerado criminoso ou discriminado socialmente passa a ser descriminalizado ou aceito institucionalmente no interesse da tolerância e, muito em breve, é convertido em dogma e ativado como resultado de uma nova ortodoxia que, no mais, apenas desmonta o quadro anterior e coloca outro em seu lugar, buscando criminalizar ou discriminar socialmente o comportamento substituído, normalmente, por via de programas institucionalizados de educação ou de saúde.

Qualquer semelhança com o caminho adotado pela ideologia de gênero, por exemplo, não é mera coincidência. É aplicação bem concreta dessa cartilha. A coisa, por si só, não deixa de ter sua ironia, meu prato linguístico predileto. A dita cartilha desenvolve-se num contexto de uma implacável ditadura do relativismo. Passa-se, insensivelmente, do postulado de que não cabe impor suas convicções aos demais ao veto formal a alguém que se atreva a expressar com liberdade seu código moral.

O velho e embalsamado Bentham, alguém insuspeito de ser chamado de tradicionalista, em sua obra principal sobre o utilitarismo, afirmou que a atitude do bom cidadão ante a lei positiva está em obedecer pontualmente e criticar livremente. Bobbio rechaçou com energia o fato de uma lei sempre gerar uma obrigação moral de obediência só pelo fato dela ter sido legitimamente positivada.

Mas a tolerância de mão única não para por aí. Ela influi no debate acadêmico, desvalorizando-o, e, em seu lugar, preferimos desprestigiar nosso adversário com uma retórica de 140 caracteres no twitter. Vasculha-se a vida privada do adversário nas redes sociais na esperança de poder demonizá-lo como indivíduo que vive numa espécie de “obscurantismo medieval” do pensamento ou que compõe um grupo maior de antiquados e sectários. Não se pode oferecer uma alternativa ao credo politicamente correto, porque a tolerância de mão única considera que seus postulados foram gravados em pedra.

Todo esse entorno existencial acaba por nos conduzir ao Velho Oeste. É proibido proibir, porque, na cidadela do pensamento atual, nada pode se considerado verdade ou mentira. Mas, como diria o xerife desse lugarejo, “eu não tentaria fazer isso, forasteiro!”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 27/5/2015, Página A-2, Opinião.