Tolerância de mão única

Opinião Pública | 27/05/2015 | | IFE CAMPINAS

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A liberdade de expressão goza de um reconhecimento sem precedentes na história. Hoje, eu posso criticar nossa presidente sem grandes problemas. Apenas se for irônico, terei um pouco mais de trabalho, já que, como dizia o finado Millôr, no Brasil, até a ironia precisa ser explicada. Ontem, se eu fizesse o mesmo com um soberano, por exemplo, da Inglaterra do século XVII, eu não precisaria me explicar muito, até porque, lá pelo meio da explicação, minha cabeça já teria sido decepada.

O panorama atual seria idílico, se não tivesse entrado em cena o politicamente correto e seus efeitos dissonantes. Nesse palco, a noção de justiça resta indefinida em prol de uma abordagem generosa da tolerância, compreendendo-a como uma fonte de direitos. Em outras palavras, segundo essa visão, o reconhecimento de direitos não seria mais uma questão de um justo concreto, de dar a cada um o seu, mas de tolerância.

A tolerância, ao contrário da justiça, é efeito da generosidade, na medida em que anima a dar ao outro mais do que, em justiça estrita, poderia ser exigido. Quando a tolerância toma o lugar da justiça, surge uma nova tendência que nos conduz ao disparate jurídico de se pretender converter a tolerância generosa em conduta juridicamente exigível.

O zelo acrítico pela introdução de novas coações legais sob o manto da não-discriminação, uma vez alimentado pelo politicamente correto, justifica um novo princípio de direito penal: quem vulnerar seus dogmas implícitos será conduzido ao cárcere, sob a acusação da fobia correspondente. É a tônica a que assistimos no movimento ideológico gay de hoje: “casamento”, como fruto da dita tolerância, e cadeia, como sanção para quem fizer uma crítica mais profunda ao estilo de vida desse grupo social.

A cartilha dessa tolerância de mão única é mais ou menos assim: um comportamento considerado criminoso ou discriminado socialmente passa a ser descriminalizado ou aceito institucionalmente no interesse da tolerância e, muito em breve, é convertido em dogma e ativado como resultado de uma nova ortodoxia que, no mais, apenas desmonta o quadro anterior e coloca outro em seu lugar, buscando criminalizar ou discriminar socialmente o comportamento substituído, normalmente, por via de programas institucionalizados de educação ou de saúde.

Qualquer semelhança com o caminho adotado pela ideologia de gênero, por exemplo, não é mera coincidência. É aplicação bem concreta dessa cartilha. A coisa, por si só, não deixa de ter sua ironia, meu prato linguístico predileto. A dita cartilha desenvolve-se num contexto de uma implacável ditadura do relativismo. Passa-se, insensivelmente, do postulado de que não cabe impor suas convicções aos demais ao veto formal a alguém que se atreva a expressar com liberdade seu código moral.

O velho e embalsamado Bentham, alguém insuspeito de ser chamado de tradicionalista, em sua obra principal sobre o utilitarismo, afirmou que a atitude do bom cidadão ante a lei positiva está em obedecer pontualmente e criticar livremente. Bobbio rechaçou com energia o fato de uma lei sempre gerar uma obrigação moral de obediência só pelo fato dela ter sido legitimamente positivada.

Mas a tolerância de mão única não para por aí. Ela influi no debate acadêmico, desvalorizando-o, e, em seu lugar, preferimos desprestigiar nosso adversário com uma retórica de 140 caracteres no twitter. Vasculha-se a vida privada do adversário nas redes sociais na esperança de poder demonizá-lo como indivíduo que vive numa espécie de “obscurantismo medieval” do pensamento ou que compõe um grupo maior de antiquados e sectários. Não se pode oferecer uma alternativa ao credo politicamente correto, porque a tolerância de mão única considera que seus postulados foram gravados em pedra.

Todo esse entorno existencial acaba por nos conduzir ao Velho Oeste. É proibido proibir, porque, na cidadela do pensamento atual, nada pode se considerado verdade ou mentira. Mas, como diria o xerife desse lugarejo, “eu não tentaria fazer isso, forasteiro!”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 27/5/2015, Página A-2, Opinião.