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Rede social, a nova censura

Opinião Pública | 21/06/2017 | | IFE CAMPINAS

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Nossa liberdade constitucional de expressão tem limites? Sim. São os limites da lei e da jurisprudência dos tribunais, gostemos ou não, mesmo que, venhamos e convenhamos, existam condenações nitidamente ridículas. Independentemente disso, o importante é que os mecanismos habituais do Estado de Direito funcionem.

O ofensor, que tem a liberdade de se expressar e de escolher um patrocínio legal; o ofendido, que tem a liberdade para mover a ação, e o juiz ou tribunal, que têm a liberdade de convicção motivada para julgar assim ou assado.

Lamento dizer que não inventaram nada melhor que isso. Todas as outras alternativas gozam de uma séria anomalia genética: invertem uma série de regras e princípios consolidados há séculos em favor justamente da liberdade de expressão.

Órgão censor, comitê de crítica, departamento de imprensa e propaganda, notificação judicial, seja o nome que for, no fundo, está a se tutelar a censura em nome de uns valores da cabeça de um juiz, de um partido de plantão e mesmo de uma ideologia ou religião. No passado, nada disso deu certo.

Recentemente, a Alemanha resolveu seguir por esse caminho pantanoso. Pretende-se, por via legal, a imposição de multa administrativa, em valor crescente, às redes sociais que veicularem os crimes de notícia falsa ou de incitamento ao ódio que não forem deletadas no prazo assinalado pelo “censor” administrativo.

Fico a imaginar um bando de funcionários contratados, reunido numa sala padrão “telemarketing”, a vigiar e censurar mais de dois bilhões de mensagens diárias que passeiam pela rede mundial de computadores. Deve ser inútil, caro e paranoico. O problema não está em louvar a estupidez disso tudo.

Mas tão somente o fato de que, nessa linha de raciocínio, a definição dos crimes deixa a esfera judicial e migra para a esfera das redes sociais. Em outras palavras, é o Zuckerberg, e não mais um magistrado, que dirá se uma conduta virtual é tipicamente penal ou não.

É perfeitamente razoável imputar criminalmente uma mensagem que incite o assassinato de minorias ou de opositores políticos ou que calunie, gratuitamente, qualquer pessoa. Contudo, onde fica o lugar da sátira, sempre tomada a partir de preconceitos sociais ou de fatos do imaginário popular?

Onde fica o lugar de uma crítica política ou econômica mais dura e seca, que tangencie um excesso retórico, e esteja repleta de verbalismos, de qualificativos pouco elogiosos e ironias sarcásticas? Onde fica o lugar de uma posição que seja contrária, com fundamentos ponderáveis, ao aborto, ao casamento homoerótico, ao estatuto do desarmamento, à manipulação genética e ao multiverso familiar? Onde fica o lugar para dizer que tem um time de futebol sempre aliviado pelo apito amigo?

São hesitações que jamais deveriam ser respondidas pelos funcionários do Zuckerberg e, muito menos, pelas massas ensandecidas que são dadas a apagar ou a denunciar tudo aquilo de que discordam ou, ainda, por burocratas públicos que tenham decorado a cartilha das “verdades oficiais” do governo a que pertencem. Em nome da tolerância, por óbvio.

Do contrário, a mera discordância, exemplificada nas perguntas anteriores, seria um discurso de ódio e a exclusão da mensagem indesejada, da rede social, seria uma forma bem escamoteada de censura. Por isso, seja em crimes manifestos ou em zonas cinzentas em que a liberdade de expressão e seu abuso ou desvio flertam entre si, é perante os juízes e os tribunais que tais excessos devem ser conhecidos e, eventualmente, punidos.

Resulta um tanto triste que a opinião pública e a universidade não estejam lá muito dispostos a defender a liberdade de expressão, quando seu desenho sai do quadrado dos padrões politicamente corretos. Para esse caso, vale também a advertência orwelliana, segundo a qual, “se a liberdade significa algo, significa também o direito a dizer aos demais aquilo que eles não querem ouvir”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Fobia, a nova censura

Opinião Pública | 08/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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Ao caro leitor que gosta de ser muito convicto de suas ideias em público, fique muito atento com o que vão falar de você. Num passado próximo, provavelmente, você seria chamado de radical isso ou aquilo. Agora, não mais se desqualifica o outro apelando-se para os equívocos que suas ideias propagam, sobretudo quando se crê que as ideias possam não ser lá as melhores. Simplesmente, uma ideia oposta, mesmo que fundada racionalmente, deixa de “errônea” e passa a ser “anormal”. E, por ser fruto de uma espécie de ”transtorno mental”, seu remédio é a censura.

A “psiquiatrização” de pensamentos incômodos, por meio da fobia, já é um fenômeno bem alastrado no mundo ecológico. Experimente um estudioso se propor a questionar, com argumentos científicos, o aquecimento climático da Terra ou mesmo o consenso político em torno do tema: o sujeito será tachado de “negacionista”, uma espécie de pária intelectual do assunto.

Igual fenômeno é observado, em menor medida, com a negação de ”povo perseguido” aos judeus, porque a crítica é considerada uma espécie de fruto necessariamente consequente de uma ideologia fascista ou antissemita e não do exercício da liberdade de expressão, ainda que a crítica venha alicerçada com dados e comparações historiográficos.

Outros pontos de vista também são reprovados e censurados, por serem considerados manifestações de alguma nova “fobia”, por qualquer que seja a força do argumento empenhado em desfavor de uma ideia: da mais forte à mais fraca. O sujeito critica a ideologia que está por trás da emancipação gay a que assistimos com argumentos de razões públicas e, logo, passa a compor o panteão dos baluartes da homofobia. Alguém questiona o apedrejamento de mulheres adúlteras e a execução sumária de homossexuais nos países islâmicos e, como reconhecimento, torna-se um islamofóbico.

Em todos esses casos, como efeito, o rótulo virá acompanhado por um rol de demandas estridentes e destemperadas para se negar aos dissidentes do mainstream do pensamento o acesso às tribunas do debate público. Redefinir uma ideia como “fobia”, no fundo, é colocar uma pá-de-cal no diálogo. Afinal, para que entrar numa discussão com um bando de indivíduos irracionais ou perturbados? Suas opiniões, mesmo sólidas e coerentes, devem ser marginalizadas.

Surge a censura com uma forma de internamento psiquiátrico virtual, inclusive, porque, afinal, “alargar o estudo de um assunto com mais informações, sobretudo quando são inconvenientes, sempre resulta contraproducente”. É cada vez mais comum que a “terminologia psiquiátrica da fobia” não se restrinja à linguagem estritamente depreciativa ou provocadora e abarque todas as abordagens sérias que se faça sobre um tema. Mesmo que isso signifique uma espécie de efeito estufa para o livre arejar das ideias.

Antes, vivíamos na era dos “ismos” que, a juízo de muitos, eram fruto de ideologias ou pensamentos débeis que se deviam combater mediante um rigoroso debate na opinião pública. Hoje, temos as “fobias”. Naquela era, os indivíduos tomavam decisões sobre dados assuntos em virtude de umas premissas ou postulados equivocados. Na atual era, o ideário de quem reflete racional e divergentemente da maioria do pensamento hegemônico é tratado como uma patologia psíquica. Onde, numa era, haveria um livre debate e protesto públicos, além de uns tomates de vez em quando, na outra, haveria tão somente sugestões de reeducação para a cura de alguns de seu transtornado modo de pensar.

Como já não gozamos de um mínimo comum de valores morais, faltam argumentos para discutir e persuadir e, por isso, acaba-se por descer ao nível psiquiátrico do debate, a ante-sala para novas e mais insidiosas modalidades de censura do pensamento não convergente. Na arena do diálogo público, não convém aprioristicamente cerrar as ideias que podem entrar em cena daquelas que não podem. Pretender rotular de “fobia” a reflexão diversa e achar que isso não é um atentado à liberdade de expressão é entender coisa nenhuma sobre fobia e liberdade de expressão. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 8/7/ 2015, Página A-2, Opinião.

http://correio.rac.com.br/index.php?id=/colunistas/andre_fernandes

Censura disfarçada

Opinião Pública | 06/05/2015 | | IFE CAMPINAS

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Um amigo pesquisador, que desenvolve seu trabalho em algumas universidades americanas, desabafou para mim dizendo que tem evitado frequentar as áreas demarcadas naquelas instituições com o selo safe space (espaço seguro). Explico. O “espaço seguro” não se resume, como se intui, numa área onde  as crianças podem brincar com tranquilidade ou atiradores podem exercitar sua pontaria sem preocupação de danos a terceiros. O conceito, digamos, recebeu um upgrade no uso e passou a abranger as ideias e as palavras no debate universitário.

O “espaço seguro”, destinado, em princípio, a garantir uma atitude inclusiva às minorias e, assim, evitar sentimentos odiosos, hoje, tem sido desvirtuado em prol da agenda politicamente correta: incorporado na pauta da política estudantil, tornou-se um expediente para evitar que assuntos polêmicos sejam dialogados, mesmo com argumentos de razões públicas. Mas isso não seria, no fundo, uma ameça à liberdade de expressão, justamente num ambiente propício à abertura de ideias para o estudante e ao saudável confronto de seus posicionamentos com os dos outros?

Imagino a cena. Entra-se numa sala de convivência discente de uma faculdade e, ao alto, bem visível para todos, pode-se ler a seguinte inscrição: ”Nesse espaço, são vedados a homofobia, a transfobia, a misoginia, o racismo, o classismo, o machismo e qualquer outra forma de discriminação lesiva ao estado psicológico alheio”.

Na prática, qualquer um que se diga ofendido, por esta ou aquela expressão, acaba por encerrar o debate antes mesmo de começá-lo, mesmo que a proposição alheia seja dotada de um mínimo de racionalidade argumentativa. Não há livre trânsito de ideias. Apenas uma mão de direção. A mão do conformismo intelectual, pois “não se pode ameaçar” a segurança emocional alheia. Quando se fomenta a proliferação de “espaços seguros”, alimenta-se a famosa menoridade intelectual kantiana e o debate, para a comunidade acadêmica, faz menos do que pode e, para a socidade, não faz o que deve.

Ao que parece, quando um estudante queixa-se de uma ameaça real e imediata à sua “segurança” no ambiente acadêmico, no fundo, ele, implicitamente, está a reclamar da “ameaça” de um discurso contrário não desejado e a solicitar, por via dos “espaços seguros”, uma espécie de contramedida contra as moléstias emocionais suscitadas por ideias inquietantes.

Um sujeito afirma: “a família, como a união mais ou menos durável, socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos, é um fenômeno universal, presente em todo e qualquer tipo de sociedade”. E segue a resposta: “sua noção de família é homofóbica, discriminatória às minorias familiares e ofensiva aos meus pensamentos a respeito do assunto”. E ponto final na discussão.

O passo consequente será o de advertir, por exemplo, num material como um livro, que “o conteúdo desta obra é potencialmente traumático, por propiciar o risco de uma experiência negativa ao leitor”. Depois, teremos o index de leituras proibidas: “Mercador de Veneza”, de Shakespeare, por disseminar o antissemitismo; “Caçadas de Pedrinho”, de Lobato, por ser racista; “Orgulho e Preconceito”, de Austen, por fomentar a sociedade patriarcalista fundada na família “heterossexual” e “Ilíada”, por retratar a misoginia homérica.

Como se pode notar, o tal “espaço seguro” não tem nada de seguro. Não é seguro para uma reflexão profunda das ideias e nem para um diálogo construtivo e cordato entre posições opostas. É uma zona onde a censura disfarça-se de respeito e, assim, presta-se para a proliferação do vitimismo sociológico, da intolerância do politicamente correto e para o patrulhamento de quem se “atreve” a suscitar algum tipo de pensamento que afete o estilo de vida e as suscetibilidades puritanas dos defensores de tais espaços. Noutra época, quem desafiava a censura, era tido como rebelde. Hoje, é visto como um intolerante…

Ao final de nossa conversa, respondi ao meu amigo que, com o intuito provocativo, arrancaria uma das placas de “espaço seguro” e colocaria outra no lugar, com os seguintes dizeres: “Espaço inseguro. Aqui, suas ideias serão apreciadas pela solidez e coerência e não por aquilo que você é”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 06.05.2015, Página A-2, Opinião.