Arquivos da categoria: Política e Sociologia

Ventos do leste: a participação de católicos e ortodoxos na política ucraniana (por Tarcísio Amorim)

Política e Sociologia | 09/04/2015 | | IFE RIO

image_pdfimage_print

Em novembro de 2013, uma crise teve início na Ucrânia quando protestos contra a decisão do presidente Viktor Yanukovych de suspender os planos de um acordo comercial com a União Europeia suscitou uma escalda de acontecimentos que resultou na derrubada do governo. De acordo com o Yanukovych, uma associação com a UE não seria vantajosa visto que a dependência de recursos energéticos dos países do eixo oriental (Rússia, Belarus e Cazaquistão) não seria compensada pelos níveis de exportações para os países ocidentais. Apesar da insistência em reafirmar as bases econômicas da medida, tal evento deflagrou uma série de manifestações nas quais clamores evocando uma identidade europeia evidenciaram que um conflito cultural também estava em jogo.

Com a escalada da violência nos protestos o parlamento votou pela descontinuidade do governo, levando Yanukovych a deixar o país. Tal fato, porém, contribuiu para que uma nova crise se instaurasse em algumas províncias orientais onde a população de fala russa ainda predomina. Após a tomada da Crimeia pelas forças do Kremlin, Donetsk e Luhansk têm estado sobre intervenção do exército ucraniano desde Abril de 2014, quando grupo locais declararam independência à Kiev.

Em meio às disputas étnicas que persistem nos discursos e nas decisões acerca de políticas nacionais, ora enfatizando uma identidade ucraniana com um governo em moldes ocidentais ora uma visão histórica de uma cultura pan-eslávica em linha com o modelo Russo, outro fator tem se mostrado relevante na definição indenitária dos cidadãos ucranianos: a religião. Imagens de sacerdotes intercedendo junto aos protestos, bem como o uso de igrejas como hospitais e ponto de apoio, além de discursos e intervenções de lideranças religiosas desde o início da crise evidenciam a força social que Igrejas e comunidades religiosas tem ajudado a fomentar naquele país. Nesse artigo, procuro demonstrar como ortodoxos e católicos, as duas maiores confissões em número de adeptos no país, tendem a estabelecer padrões de identidade cultural que afetam as relações étnicas nessa república pós-soviética.

 

Raízes históricas do conflito

Em 1991 a Ucrânia tornou-se independente, criando suas próprias instituições políticas, moeda e sistema bancário. Mesmo assim, os longos anos do regime comunista parecem ter influenciado na estruturação de sua economia política já que, com as privatizações altamente restringidas e licenças para a condução de negócios ainda concentradas no corpo executivo, o país construía seu sistema político pautado no verticalismo soviético, criando um aparelho burocrático no qual antigas oligarquias acumulavam poder político e econômico.

Nos primórdios da republica ucraniana, Vyacheslav Chornovil candidatou-se a presidência visando introduzir reformas no sistema político em linha com o projeto de Lech Wałęsa na Polônia. O vendedor, porém, foi Leonid Kravchuk, um ex-membro do Conselho Legislativo da Ucrânia Soviética, que era controlado pelo Partido Comunista. Kravchuk procurou manter o centralismo político com uma constituição que provia fortes poderes ao braço executivo, enquanto estendia sua influência sobre o setor legislativo e judiciário aproveitando-se das brechas e inconsistências que a Carta Magna trazia.

Os poderes presidenciais tornaram-se ainda mais fortes quando, seguindo a vitória de Leonid Kuchma em 1994, uma nova constituição garantiu-lhe o poder de nomear todos os membros do Gabinete executivo, com exceção do primeiro-ministro, e os líderes regionais. Kuchma fora diretor de uma fábrica de misseis no regime soviético e favoreceu os laços com o Kremlin.

Com a consolidação das estruturas verticais do sistema político ucraniano, o país permaneceu por muito tempo sob o controle dos oligarcas que muitas vezes detinham assentos no parlamento e controlavam os partidos políticos. Em meio a escândalos de corrupção, assassinatos de motivação política, e manobras do executivo sobre os outros poderes um novo movimento surgia com força na década de 2000 demandando transparência e democratização das estruturas de poder. Nas eleições presidenciais de 2004 a vitória de Viktor Yanukovych, um candidato pro-Rússia do Partido das Regiões, sob suspeitas de fraude deu início a uma série de protestos liderados por Viktor Yushchenko e Yuliya Tymoshenko, dois líderes favoráveis à reforma política e à aproximação da Ucrânia com a União Europeia. Apelidada de Revolução Laranja, as manifestações contribuíram para que a Suprema Corte anulasse o primeiro resultado e promovesse uma nova disputa eleitoral. Dessa vez, o saldo dava a vitória a Viktor Yushchenko com 52% dos votos, contra 44% de Yanukovych. Pela primeira vez o nome Maidan era usado como símbolo revolucionário a partir de Kiev.

Ainda assim, com as eleições legislativas de 2006, divergências no Parlamento entre o Partido das Regiões e o Bloco de Yuliya Tymoshenko (ByuT) levaram a um impasse sobre a possibilidade de obtenção da maioria prevista para que as reformas constitucionais fossem implementadas. Viktor Yanukovych subira ao cargo de primeiro-ministro e os círculos de empresários, liderados por Petro Poroshenko, correligionário de Yushchenko no partido Nossa Ucrânia (e atual presidente do país), demandavam uma aliança com o Partido das Regiões – o que era visto como uma traição dos ideais da revolução pela extrema-direita[i]. Somado a isso, desentendimentos entre Yuliya Tymoshenko e Viktor Yushchenko ajudaram a dividir ainda mais o Parlamento, acentuando o clima de instabilidade política. Como a constituição ucraniana prevê a possibilidade de novas eleições no caso de um fracasso na formação das coalizões parlamentares, as partes envolvidas concordaram em convocar um novo sufrágio a se realizar em setembro de 2007.

Dessa vez, Yuliya conseguiu fazer Yushchenko concordar com uma “Coalizão Laranja”, dando aos líderes da revolução uma ligeira maioria no Parlamento, com a união do ByuT com o Nossa Ucrânia, reforçada ainda pelo Bloco Lytvyn, de orientação centrista. Tymoshenko, por sua vez, acendia ao cargo de primeiro-ministro, confirmando o governo revolucionário. A aliança ainda era frágil pois ao deixar o Partido das Regiões na oposição os “Laranjas” não conseguiriam obter os 301 votos necessários para emendar a constituição. Em todo caso, ela representou uma vitória temporária da Revolução ao consolidar o domínio do Parlamento combinado com as duas principais posições do executivo.

Tal cenário não se estabeleceu por muito tempo, pois o governo de Yushchenko foi extremamente marcado por intrigas e escândalos de corrupção que acabaram minaram sua base aliada. Em 2010, Viktor Yanukovych derrotou Yuliya Tymoshenko nas eleições presidenciais, restabelecendo os círculos de poder em torno das estruturas oligárquicas estabelecidas e, mais tarde, suspendendo os planos em prol de um tratado comercial com a UE.

Como se percebe, a história política ucraniana tem sido caracterizada por instabilidades na base de poder, propiciada por um sistema constitucional que facilita as ligações entre elites empresárias e o poder público, além das clivagens entre os cidadãos do país, que até recentemente tinham atitudes ambivalentes em relação ao modelo político a ser adotado.

 

Religião e política na Ucrânia

Os ucranianos, assim como os Bielorrussos e por vezes os poloneses, eram chamados de Rutênios até o princípio do século XX. Herdado do mesmo termo que costumava designar as origens comuns dos povos eslavos (“Rus”), este nome fora usado em contraposição a Rossiya, especificamente aplicado aos Russos. Rutênia Vermelha era o antigo nome atribuído à Ucrânia Ocidental, enquanto Rutênia Branca, ou Bielo-Russia, deu origem a Belarus. Após a capitulação dos Mongóis, a Ucrânia ficou sob o domínio da Polônia e da Lituânia e isto contribuiu para que eles desenvolvessem uma cultura própria, marcada por diferenças linguísticas e sensibilidades diversas. De todo modo, compartilhando os mesmos mitos de origem e percebendo-se como herdeiros da mesma linhagem eslava, as fronteiras culturais entre a Ucrânia e a Rússia por muito tempo permaneceram fluidas, enquanto Kiev continuava politicamente atrelado às nações vizinhas até o final da era soviética.

Anne Applebaum sublinha que a religião poderia particularmente ter impactado no fortalecimento das fronteiras entre os dois povos. Como ela reconhece, os Ucranianos do ocidente praticavam uma religião distinta, caracterizada por uma espiritualidade bem especifica que se baseava em ritos orientais mas ainda mantinha laços com Roma[ii]. A Igreja Católica Grega surgiu pela União de Brest em 1596, quando a Ucrânia ainda estava sob o governo polonês, e tais laços dos católicos orientais com o Ocidente devem ser levados em conta na análise das relações étnicas entre ucranianos e russos.

No presente, os ortodoxos do Patriarcado de Kiev constituem cerca de 50,4% da população da Ucrânia, seguido daqueles fiéis ao Patriarcado de Moscou, com 26,1%. Os católicos gregos vêm em seguida com 8%, enquanto outros ortodoxos, católicos latinos, protestantes e judeus compõem 7.2%, 2.2%, 2.2% e 0.6%, respectivamente[iii].

Embora fiéis de outras religiões têm tido uma posição ativa nos recentes eventos que vêm definindo o cenário político na Ucrânia, ortodoxos e católicos somam mais de 90% da população do país e suas tradições históricas marcam a herança nacional de modo particular.

O Patriarcado de Kiev foi formado após um cisma com o Patriarcado de Moscou, seguindo a queda da União Soviética e a independência da Ucrânia. Reivindicando mais autonomia para a Igreja de Kiev, o Patriarca Filaret Denysenko, até então responsável pelo Patriarcado Russo na Ucrânia, afastou-se de seus pares e buscou implantar uma Igreja em linhas nacionais com o apoio do presidente Leonid Kravchuk, acima mencionado. O Patriarcado de Moscou não reconheceu tal separação e a Igreja Ortodoxa Ucraniana é até hoje considerada um órgão autocéfalo e ilegítimo de acordo com o direito canônico da Comunhão Ortodoxa.

Por sua vez, a presença dos católicos gregos, especialmente na Ucrânia ocidental, tem sido de maior importância para o entendimento de padrões sociais de comportamento político no país. Durante o período comunista, a Igreja Greco-Católica foi proibida nos territórios da URSS, enquanto seus membros eram perseguidos pelos líderes soviéticos. Após a Guerra Fria, a Igreja católica na Ucrânia experenciou um reavivamento religioso, que vai bem além do aspecto meramente espiritual. Agindo como um centro de disseminação intelectual em associação com instituições europeias nos arredores de Lviv, seu clero teve uma especial participação nos protestos que marcaram a Revolução Laranja, bem como da recente comoção chamada de “Revolução Euromaidan”. Como pontuou o Arcebispo Sviatoslav Shevchuk, líder da Igreja Greco-Católica ucraniana, seus proponentes não eram “nacionalistas radicais” mas sim defensores de uma Ucrânia “livre, democrática e Europeia”[iv].

É importante sublinhar que os conflitos entre a Igreja Ortodoxa Ucraniana e o Patriarcado de Moscou tem sido um fator decisivo na aliança da primeira com a Igreja Greco-Católica no que diz respeito à promoção dos valores nacionais contra a influência do Kremlin. Com efeito, o clero de Kiev tem rejeitado o conceito de “Russkiy Mir” (Mundo Russo), avançado pela Igreja de Moscou como uma visão teológica de um universalismo eclesiástico centrado no mito de uma civilização eslava sob a liderança da Rússia, da qual Ucrânia e Belarus seriam parte. Contra essa ideia, a Igreja de Kiev vem favorecendo uma concepção de cultura encarnada, na qual a imersão nas línguas e costumes locais são elementos essenciais do desenvolvimento da santidade. Como expressa o teólogo ortodoxo Dr. J. Buciora: embora a realidade contextual dos santos são sempre apresentadas em um prisma de transfiguração, esta “pressupõe sofrimentos, dores, lutas, e imagens de uma situação particular”[v]. É neste sentido que a vida dos santos Ucranianos torna-se inspiração para os féis e veículo de transformação.

De modo semelhante, a identificação dos greco-católicos com o legado da Igreja de Kiev propicia uma teologia enraizada nas tradições ucranianas e na experiência do passado. De acordo com o Bispo Borys Gudziak, antigo reitor da Universidade Católica de Lviv (a qual os ucranianos costumam referir-se como a única Universidade Católica do antigo mundo soviético), o objetivo da instituição é construir uma “nova síntese social, intelectual e teológica” do legado dos mártires ucranianos – o que John L. Allen classificou como uma teologia “nascida das catacumbas”[vi].

Embora, como veremos, os ortodoxos ficaram divididos com relação a um projeto político social nos primeiros anos da República, as tendências autônomas do Patriarcado de Kiev, especialmente na atual conjuntura política nacional, tem contribuído para unir Católicos e Ortodoxos na luta pela democracia. Como afirmou o Reverendo Cyril Hovorum, antigo responsável pelo Departamento de Relações Externas na Igreja Ortodoxa Ucraniana:

“Maidan, além de um importante evento civil, parece ter sido um importante evento religioso… Havia orações senso executadas todos dias de manhã e de noite. Foi um fenômeno religioso além de ter sido um fenômeno político e social, e também foi um evento ecumênico porque a revolução Maidan realmente uniu muitas Igrejas, muitos líderes que antes nunca tinham se comunicado uns com os outros”[vii].

 

O voto católico e ortodoxo nas eleições parlamentares de 2007

Dito isto, é valido analisar como Católicos e Ortodoxos tem se comportado politicamente com relação às disputas entre as coalisões pró-europeias e pro-russas. Como as informações sobre o atual cenário sócio-político ainda são escassas no país, tomo como ponto de referência os dados sobre votos para a coalizão laranja (liderada por Yuliya Tymoshenko e Viktor Yushchenko) e azul (liderada por Viktor Yanukovych pelo Partido das Regiões). Minha fonte é a pesquisa publicada pela Associação de Dados Arquivísticos de Religião, sob título de “International Social Survey Programme 2008: Religion III”[viii].

Tendo em conta os dados apresentados, eu combinei a variável relacionada à confissão religiosa e produzi dummies, isto é, novas variáveis na qual o valor 0 corresponde a um não-seguidor e 1 representa um seguidor. O mesmo foi feito com relação aos votos para a coalizão laranja e azul, com 0 para “não votou” e 1 para “votou”[ix]. A partir dos resultados obtidos pelos cálculos de software, eu executei uma regressão logística[x] para calcular a probabilidade estatística de um voto católico ou ortodoxo para as duas coalizões, que eu chamei pró-europeia (Pro-EUR) e pro-russa (Pro-RUS).

Como se observa, enquanto os votos de ortodoxos dão resultados próximos a 50% para cada coalizão, sem atingir o requisito mínimo de 95% de significância estatística[xi], os católicos favorecem massivamente os partidos associados à coalizão laranja, embora figurem em menor número na pesquisa (137 para 1270).

 

Regressão: Católico (x = 1) – Voto EUR (y = 1)

=============================================

Católico              2.717***

(0.435)

Constante          -0.449***

(0.071)

———————————————

Observações               898

Log Prob                    -577.532

Akaike Inf. Crit.          1,159.063

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.3896937

P[y=1|x=1] = 0.9062514[xii]

 

Por essa amostra, percebe-se a probabilidade de um voto pro-EUR sobe de aproximadamente 39% para 90% para o caso de o indivíduo ser católico. Este resultado é estatisticamente significante ao nível de 99% (p < 0.01).

Para ortodoxos, temos:

 

Regressão: Ortodoxo (x = 1) – Voto EUR (y = 1)

=============================================

Ortodoxo           0.08487

(0.140)

Constante         -0.35004***

(0.112)

———————————————

Observações               898

Log Prob                    -577.532

Akaike Inf. Crit.          1,159.063

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.41337

P[y=1|x=1] = 0.43409[xiii]

 

Como se percebe, a probabilidade de um voto pro-EUR para ortodoxos é de 43%, e sobe apenas 2 pontos com relação a um voto de um não ortodoxo. Como se tratam de dummies e não há outras variáveis, o resultado para votos Pro-RUS é o inverso: aproximadamente 58% para não ortodoxos e 56% para ortodoxos.  De todo modo, como não há indicador de significância para a variável ortodoxo, isso quer dizer que a análise não atingiu o mínimo de 95% requerido, o que implica que a pesquisa não encontrou um padrão significativo no voto ortodoxo, impossibilitando uma apreciação acurada da margem de erro.

De todo modo, como religião é uma categoria que se sobrepõe a outros elementos a influenciar no resultado, pode-se adicionar variáveis de controle[xiv], visando um cálculo mais preciso do impacto da religião para o voto por meio da exclusão de outras variáveis. Uma delas é a região, pois se sabe que os ucranianos na parte ocidental do país tendem a votar em partidos ligados à UE, enquanto no Oriente os laços com o vizinho oriental são mais fortes, dada a concentração de cidadãos de fala russa naquelas regiões. Outra variável a ser controlada, é a visão política (esquerda ou direita), pois ao isolarmos seu efeito, pode-se verificar se a preferência partidária teve um papel fundamental no resultado ou se a religião é mesmo o principal fator a influenciar o voto. Por último, a renda pode ter um papel decisivo, pois sabe-se que o sistema oligárquico produzido pelas estruturas políticas ucranianas favorece as elites ligadas ao governo Russo. Como para todas as outras categorias, eu converti esse elemento em uma variável dummy, na qual cidadãos ganhando mais de 3200 UAH figuram como 1, e os outros como 0.

Para votos Pro-EUR, eu controlei para regiões de fala ucraniana (ocidente) e visão política de direita, enquanto para votos Pro-Russia eu controlei para regiões de fala Russa (oriente) e posicionamento de esquerda, visto que a maioria dos partidos da coalizão azul endossam uma identidade comunista e soviética. Com esse procedimento, obtemos o seguinte quadro:

 

Regressão: Católico (X=1) – Voto EUR (Y=1) + controles

=============================================

Católico              1.556***

(0.511)

Ocidente             2.376***

(0.182)

Direita                15.065

(538.018)

Renda 1              -0.507

(0.754)

Constante          -1.477***

(0.126)

———————————————

Observações               756

Log Prob                    -377.739

Akaike Inf. Crit.           765.477

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.4107

P[y=1|x=1] = 0.7675[xv]

 

Como vemos, mesmo depois de controlar para região, visão política e renda, a probabilidade de um voto católico para a aliança laranja é de aproximadamente 77%, mais de 35% de diferença para não católicos (41,07%), e o resultado ainda é significativo a 99%.

Para ortodoxos e voto pro-Rússia, temos:

 

Regressão: Ortodoxo (X=1) – Voto pro-RUS (Y=1)  + controles

=============================================

Ortodoxo            0.269

(0.197)

Oriente               2.383***

(0.189)

Esquerda           17.171

(443.815)

Renda 1             0.415

(0.759)

Constante         -18.181

(443.816)

———————————————

Observações               756

Log Prob                    -358.342

Akaike Inf. Crit.          726.684

=============================================

Note:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.1521

P[y=1|x=1] = 0.190149[xvi]

 

A probabilidade de um voto ortodoxo para um partido pro-Rússia sobe de aproximadamente 15% para 19% em relação a não ortodoxos, quando executamos o teste com as variáveis de controle. Há um decréscimo de aproximadamente 25% com relação à probabilidade de um voto Pro-RUS para ortodoxos quando não se controla para as outras variáveis (de 56,59% para 19%). Para católicos, o decréscimo é de aproximadamente 14% (de 90,62% para 76,75%), o que indica que a religião tem maior impacto no voto para católicos que para ortodoxos. Isso se percebe também pelo fato de que a região e outras variáveis têm maior peso na escolha de um partido pro-RUS, o que pode ser verificado pelo nível de significância de Oriente (99%) nessa regressão, sendo os outros elementos estatisticamente insignificantes.

Ainda assim, é possível perceber que a renda 1 (acima de 3200 UAH) influi positivamente para o voto pro-RUS e negativamente para o voto pro-EUR. O posicionamento político, por sua vez, é praticamente insignificante, dado o alto valor do erro padrão nas duas amostras (538.018 e 443.815), o que impossibilita uma generalização precisa a partir das respostas à pesquisa.

Considerações finais

A partir dessa análise, pode-se concluir que os católicos tenderam a votar massivamente para os partidos da aliança laranja nas eleições de 2007. Para os ortodoxos, porém, o teste mostra resultados ambivalentes, o que pode estar relacionado à própria indefinição cultural na qual a Ucrânia se insere, estando na fronteira entre a Europa e o mundo Russo. As variações na escolha do voto para os cidadãos ucranianos converge com a política de neutralidade endossada pelo clero da Igreja de Kiev nos anos que antecederam a revolução Maidan. Apoiada pela classe política ucraniana na época em que ainda era próxima aos aliados do Oriente, ela permaneceu distante da Europa, ainda que separada da Rússia. Os greco-católicos, pelo contrário, tendo construído sua identidade sobre os laços culturais com a Polônia e a Lituânia, o que também lhe valeu a perseguição sofrida durante o período soviético, vem sendo bem mais assertivos em seu posicionamento político. Como reconheceu o Reverendo Cyril Hovorun: “os greco-católicos, ou Católicos de rito Oriental leais a Roma, foram os que primeira e mais ativamente apoiaram os protestos”[xvii].

Em termos gerais, isso significa que os católicos na Ucrânia, ainda que constituindo uma minoria, têm demostrado um claro comprometimento com uma concepção democrata e cristã de governo, assinalando o impacto dos valores articulados pelas visões religiosas na percepção identitária e na escolha individual –  que adquire claramente um caráter comunitário. Por outro lado, os ortodoxos mostraram mais moderação em suas visões políticas, refletindo as condições culturais da sociedade ucraniana como um ponto de equilíbrio entre o Oriente e o Ocidente.

Apesar disso, a recente tomada da Crimeia e a atual crise no leste da Ucrânia são fatores que tendem a mudar esse cenário, já que a escalada da violência tem levado cada vez mais o clero ortodoxo e membros de outras religiões a apoiarem o movimento de democratização em termos patrióticos. Ademais, a interferência do Patriarcado de Moscou, com suas declarações contra o novo governo ucraniano e seus aliados, incluindo os Greco-Católicos e os Ortodoxos de Kiev, mais do que nunca tem sido interpretado no país como uma tentativa de deslegitimar não somente a autonomia e especificidade da Igreja de Kiev, mas também a soberania política do país, com uma visão pan-eslávica fundada no universalismo russo. Como Andrew Sorokowski sublinha:

Para Moscou, a própria ideia de uma Ucrânia é uma traição da unidade eslava oriental, enquanto a união que resultou na Igreja Greco-Católica é uma traição da solidariedade ortodoxa. A premissa de fundo é que Moscou é o árbitro e garantidor de ambas – como a capital tanto de uma única Igreja Russa como de um único “Mundo Russo”.

A Ucrânia, e sua Igreja Greco-Católica, desafia essa concepção. A Ucrânia como nação pressupõe o pluralismo étnico, cultural e nacional, em um mundo onde a unidade é fortalecida, não ameaçada, pela diversidade[xviii].                

Em meio aos protestos do Patriarca de Kiev[xix] contra o apoio do clero russo aos rebeldes no leste, e dada a queda substancial no suporte à liderança do Kremlin após sua intervenção militar no país[xx], é possível prever que o particularismo eclesiástico da Ucrânia deverá se desenvolver de modo a fortalecer seu ideário nacional, unindo católicos e ortodoxos e fazendo jus aos tradicionais laços entre religião e sociedade nesse país. Para as nações ocidentais, a visão dessa aliança pode servir de inspiração para lembrar aos europeus que o vigor da crença pode dar um novo alento à democracia, a fim de que não se perca na frieza de um legalismo burocrático desvinculado de suas raízes.

 

[i] Pawel Wolowski. Ukrainian politics after the Orange Revolution – how far from democratic consolidation? In: Sabine Fischer (ed.) Ukraine: quo vadis?. Chaillot Paper, n. 108. Feb, 2008. Disponível em: <http://www.iss.europa.eu/uploads/media/cp108.pdf>.

[ii] Anne Applebaum. Between East and West. Pan Macmillan Australia Pty,  1995.

[iii] Cf. http://www.scu.edu/ethics-center/world-affairs/politics/By_Countries_Regions/Ukraine.cfm

[iv] John L. Allen Jr. A Church with verve is at risk in Ukraine. Crux, 13 Sep, 2014. Disponível em: <http://www.cruxnow.com/church/2014/09/13/a-church-with-verve-is-at-risk-in-ukraine/>.

[v] Fr. Dr. J. Buciora. The Moscow Patriarchate’s Utopian Vision Of Russian Civilization. Risu, 2011. Disponível em:http://risu.org.ua/en/index/studios/studies_of_religions/41614/.

[vi] John L. Allen Jr. For the future of new evangelization, look to Ukraine. NCR online, 22 Oct. 2012. Disponível em:  <http://ncronline.org/blogs/ncr-today/future-new-evangelization-look-ukraine>.

[vii] Sophia Kishkovsky. Ukrainian crisis may split Russian Orthodox church. Religion News Service, 2014. Disponível em:  <http://www.religionnews.com/2014/03/14/ukrainian-crisis-may-split-russian-orthodox-church/>

[viii] International Social Survey Programme 2008: Religion III. Association of Religion Data Archives. Dados disponíveis em: <http://www.thearda.com/Archive/Files/Descriptions/ISSP08.asp>. Todos os dados quantitativos presentes neste artigo resultam da manipulação das variáveis e da tabulação feita pelo autor, a partir do banco de dados original, por meio do uso do Software “R”.

[ix] Eu classifiquei os votos em Pro-EUR (Europa) e Pro-RUS (Russia), a partir das respostas fornecidas pelos entrevistados acerca de seu voto nas eleições parlamentares de 2007, tendo em conta os partidos mencionados na pesquisa, a saber: Pro-EUR [Bloco de Yuliya Tymoshenko (ByuT)/União Toda Ucrânia Terra Pátria, Nossa Ucrânia/Defesa Popular/Movimento dos Povos da Ucrânia, Bloco Lytvyn/Partido Popular, União Toda Ucrânia pela Liberdade]; Pro-Rússia [Partido das Regiões, Partido Comunista da Ucrânia, Partido Socialista da Ucrânia, Partido Socialista Progressista da Ucrânia].

[x] Regressões são utilizadas em análises estatísticas quando se quer identificar uma função que possibilite ao pesquisador encontrar o resultado de uma variável dependente (Y), dado o valor/posição da variável independente (X) em um gráfico. Uma linha de regressão pode ser estabelecida no mesmo gráfico a partir da média dos resultados em Y dado os valores de X. Geralmente essa função é descrita como Y = β0 + β1X, em que β0 é o ponto onde Y intercepta X (constante) e β1 é a proporção na qual Y varia em função de X. Quando a variável dependente (Y) tem um valor binário (com os resultados variando somente entre 0 e 1), utilizamos a regressão logística (log), pois como não existem valores intermediários, a linha de regressão só pode representar a probabilidade de um resultado 0 e 1. A fórmula para este tipo de caso é P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*)), em que Y* é o valor de Y em uma regressão comum (Y = β0 + β1X).

[xi] Em análises estatísticas, o valor p determina o grau de significância para a amostra, a partir de um cálculo que indica se os padrões encontrados são realmente representativos da população em geral ou se os resultados são devido ao acaso. Em ciências sociais, 95% (p < 0.05) é o valor comumente aceito para se determinar a significância de uma análise. Em termos gerais, ele indica que caso a pesquisa fosse repetida infinitas vezes, em 95% dos casos o mesmo resultado seria encontrado.

[xii]   y* = -0.4486 + 2.7173X

y* [y=1|x=0] =  -0.4486

y* [y=1|x=1] = 2.2687

 

P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (4486*))

P[y=1|x=0] = 0.3896937

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-2.2687*))

P[y=1|x=1] = 0.9062514

 

[xiii]   y* =  -0.35004 + 0.08487X

y* [y=1|x=0] =  -0.35004

y* [y=1|x=1] = -0.26517

 

P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (0.35004))

P[y=1|x=0] = 0.41337

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (0.26517))

P[y=1|x=1] = 0.43409

 

[xiv] Variáveis de controle são utilizadas em regressões quando outros elementos, que não a principal variável independente, podem impactar no resultado da variável dependente, dificultando uma análise precisa da influência de cada um desses elementos, pois aparecem muitas vezes sobrepostos à principal variável independente. Por exemplo, ao se analisar o impacto da aquisição de um grau universitário para o valor do salário, o pesquisador pode ter que controlar para outras variáveis como “pro-ativismo”, pois esse elemento pode influir tanto na aquisição do grau quanto no desempenho laboral, que por sua vez impacta no salário. A fórmula para regressões com variáveis de controle é: Y =  β0 + β1X + β2A + β3B + … … BnZ. Em regressão logística: Y =  β0 + β1X + β2(meanA) + β3(meanB) + … … Bn(meanZn), em que mean é o termo usado para “média”, ou seja, o valor médio de uma variável em uma dada amostra (no caso de dummies, algo entre 0 e 1).

[xv]   y* = -1.4767 + 1.5557X + 2.3757*0.4621 + 15.0655*0.02079002 – 0.5068*0,5825

y* = -0.360888 + 1.5557X

 

y* [y=1|x=0] =  -0.360888

y* [y=1|x=1] = 1.1948

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (0.360888*))

P[y=1|x=0] = 0.4107

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-1.1948*))

P[y=1|x=1] = 0.7675

 

[xvi]  y* = -18.1808 + 0.2690X + 2.3832*0.5378193 + 17.1705*0.8700624 + 0.4148*0,5825

y* = -1.718042 + 0.2690X

 

y* [y=1|x=0] =  -1.718042

y* [y=1|x=1] = -1.449042

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (1.718042*))

P[y=1|x=0] = 0.1521

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (1.449042*))

P[y=1|x=1] = 0.190149

 

[xvii] Sophia Kishkovsky. Ukrainian crisis may split Russian Orthodox church. Religion News Service, 2014. Disponível em:  <http://www.religionnews.com/2014/03/14/ukrainian-crisis-may-split-russian-orthodox-church/>.

[xviii] Sorokowski,  Andrew. Russia and the Uniates. Risu, 2014. Disponível em: <http://risu.org.ua/en/index/expert_thought/authors_columns/asorokowski_column/57958/>.

[xix] Em junho de 2014, o Patriarca Filaret enviou uma carta ao Patrirca Kirill em Moscou, em nome da Igreja Ortodoxa Ucraniana, na qual urgia o mesmo a conversar com Vladimir Putin pedindo a este para interromper a intervenção militar em terras ucranianas. Filaret criticou veementemente o Patriarca de Moscou por não reconhecer a soberania da Ucrânia e apoiar a política russa em nome da concepção de Mundo Russo (Russky Mir). Ver Filaret. Letter to Patriarch Kirill of Moscow. Risu, 2014. Disponível em: <http://risu.org.ua/en/index/all_news/community/religion_and_policy/56778/>.

[xx] Dados da organização Gallup mostram uma queda de cerca de 90% no apoio à uma concepção russa de governo para antes e depois da crise, com um maior impacto nas regiões do leste da Ucrânia. Ver Julie Ray and Neli Esipova,Ukrainian Approval of Russia’s Leadership Dives Almost 90%. Gallup 2014. Disponível em: <http://www.gallup.com/poll/180110/ukrainian-approval-russia-leadership-dives-almost.aspx>.

 

Tarcísio Amorim é Doutorando em Ciência Política pela University College Dublin e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Texto publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta em 01/04/2015.  Disponível no link: http://www.dicta.com.br/ventos-do-leste-a-participacao-de-catolicos-e-ortodoxos-na-politica-ucraniana/

 A crise financeira e a avareza – por Michael Pakaluk

Política e Sociologia | 10/03/2015 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Avarice-Jesus SolanaTeria sido a avareza a causa da atual crise financeira? Não “causa” no sentido de que a avareza a produziu sozinha, mas no sentido de que, se não fôssemos avaros, a crise não ocorreria? Se a avareza fosse uma causa nesse sentido, então pelo menos parte da solução para a crise seria “moral”, ou seja, não adviria de políticas, planos e estruturas, mas de indivíduos que pensassem e emendassem as suas vidas. Para que isso se realizasse, precisaríamos antes chegar a um consenso sobre o que é a avareza. No entanto, “avareza” parece uma palavra antiquada, raramente usada por alguém. Quem teria qualquer idéia de como defini-la?

Dificilmente alguém teria se valido da “avareza” para explicar a crise, a não ser que tal palavra realmente desempenhasse um papel nos acontecimentos. Há já culpados suficientes: basta que citemos as hipotecas subprime, asdívidas securitizadas, os credit default swaps e o sobre-endividamento dos fundos livres bancários. Mas o fato de somarmos a avareza a isso tudo diz-nos algo muito interessante acerca do modo como pensamos a economia; baseados no senso comum, assumimos que o mercado se situa num universo moral; e esperamos que os prejuízos fiscais se originem na maldade, e a pujança fiscal na bondade ética.

Os políticos evocam a avareza de maneira insatisfatória, como a última campanha presidencial dos EUA deixou claro. Barack Obama declarou “A era da avareza e da irresponsabilidade em Wall Street e Washington conduziu-nos a um momento arriscado” e “Com demasiada freqüência nós desculpamos e mesmo aderimos integralmente a uma ética da avareza,  do caminho mais fácil, das tramóias, de coisas que sempre ameaçaram a estabilidade a longo prazo do nosso sistema econômico”. John McCain abordou o tema de maneira análoga: “Um número excessivo de pessoas em Wall Street esqueceu ou desprezou as regras básicas das negociações saudáveis. Na sua busca interminável por dinheiro, sonharam esquemas de investimentos que eles mesmos eram incapazes de compreender. Tentaram criar as suas próprias regras. A avareza recebeu a sua paga. O excesso recebeu a sua paga”.

Ao falarem desse modo, os políticos combinam a avareza e o poder de uma maneira que é de pouca serventia. Tanto para Obama como para McCain, a “avareza” ou a ganância é algo que convenientemente afeta as pessoas que estão longe, uns poucos privilegiados e poderosos “em Wall Street e Washington”. Segundo essa visão, ter dinheiro é ter poder, e qualquer um que tenha grandes quantidades de dinheiro (Wall Street) ou muita influência (Washington) é suspeito de agir visando ao seu engrandecimento próprio. A avareza é vista simplesmente como mais um exemplo da máxima de Lord Acton, só que nesse caso é o dinheiro que corrompe, e dinheiro ilimitado corrompe sem limites.

Mas esse modo de falar sobre a avareza não contribui para a reflexão e reforma moral do indivíduo. Discursos que jogam a culpa naqueles que estão longe falham ao provocar o arrependimento e a conversão. Além do mais, erram o alvo, uma vez que a maior parte de nós dispõe de pouco poder – embora todos estejamos sujeitos ao domínio e aos tormentos da avareza.

Fundamentalmente, se existe a tal da avareza, é com certeza uma falha moral particularmente ligada ao dinheiro. E toda a falha pode ser vista como uma expansão indevida de poder, assim como todo o pecado é tradicionalmente visto como uma expressão da vanglória. Um assaltante é um tirano em miniatura bem como um tirano é um assaltante em grande escala, disse Agostinho. Mentir é aumentar o próprio poder à custa da credibilidade e da verdade; cometer adultério é exercer um poder que não se possui sobre o cônjuge alheio. Mesmo bancar o covarde é uma maneira de arrogar-se poder, como, por exemplo, no caso da imunidade ou do direito de não se expor ao perigo da mesma maneira que os outros. Portanto, não é apenas a avareza que está ligada ao poder. E qual seria então o seu caráter distintivo?

Não quero dizer aqui que é incompreensível o porquê de dois políticos estarem dispostos a crer, baseados na própria experiência, que dinheiro equivale a poder. Na verdade, seria bastante razoável relutar a aceitar discursos moralistas sobre a avareza de dois políticos que, somados, levantaram e gastaram mais de um bilhão de dólares nas suas campanhas. Está bem claro o papel retórico da combinação que os políticos fazem entre avareza e poder: trata-se de um precedente para a intervenção governamental. Uma vez definido que a causa da crise foi algo tão moralmente repreensível como a avareza, fica implícito que os culpados dificilmente poderão queixar-se caso sofram ou sejam “punidos” por seus erros. E quando se sugere que essas pessoas irresponsáveis e avaras possuem poder sem limites, ficam justificados quaisquer medidas que se possa tomar para a redução de tal poder.

A avareza como um pecado capital

Uma boa educação nos torna livres e capazes de escolher por conta própria entre o que há de melhor no pensamento e na cultura, independentemente das circunstâncias de tempo e de espaço: ouvir, por exemplo, a melhor música e não a música de minha sociedade; conhecer as teorias que se mostram verdadeiras e não aquelas que por acaso me foram ensinadas. Tenho em casa café brasileiro, vinhos franceses, música vienense. Na minha biblioteca, posso ler os livros de física de Feynman, a crítica de Pound e a teoria dos números de Dedekind. Mas suponhamos que eu queira aprender algo acerca da avareza: a que fonte me voltaria para ter uma referência sobre ela?

Devemos assumir que há certa reciprocidade entre as culturas. Cada época prima por alguma coisa, e não por todas elas. Nosso tempo prima pela ciência e tecnologia. Suponhamos que um sujeito que recebeu boa educação fosse capaz de conhecer não só as culturas do passado, mas também as do futuro: seria ilógico que alguém do século XIII preferisse a física do seu tempo à física do século XX, simplesmente porque a teologia do século XIII era excelente. Da mesma maneira, seria ilógico para nós, aqui e agora, preferir o que os autores contemporâneos dizem sobre a avareza (se é que eles dizem algo sobre ela), simplesmente porque a nossa física é magnífica. Se quisermos uma reflexão sadia sobre as fraquezas e forças do caráter – as virtudes e os vícios -, é melhor olharmos muitos séculos para trás, particularmente para os clássicos e os chamados “Padres da Igreja”. O que Feynman é para a Física, Aristóteles e Cícero, Agostinho e Tomás de Aquino são para a teoria das virtudes e dos vícios.

A avareza aparece classicamente na lista dos “sete pecados capitais”, ao lado da luxúria, da gula, da vanglória, da inveja, da ira e da acídia. Talvez tendamos a pensar que qualquer coisa clássica e central é necessariamente familiar no sentido de que já nos teríamos apropriado dela de algum modo. Talvez presumamos que aquilo com que tivemos contato no passado ou foi incorporado às coisas que aceitamos hoje ou rejeitado com razão. E, contudo, a lista dos sete pecados capitais demonstra que as coisas não são bem assim, que podemos estar radicalmente alienados da nossa própria tradição.

Prova disso é, por exemplo, o fato de, na nossa linguagem cotidiana, não atribuirmos naturalmente esses “pecados capitais” a ninguém. De fato, quase ninguém tem idéia do que é “acídia”; e nunca nos repreendemos uns aos outros chamando-nos de “luxuriosos”, mesmo não se podendo negar que, não importa o sentido da palavra, a luxúria cerca-nos por todos os lados. Em vez disso, possuímos caricaturas desses pecados na nossa imaginação: representamos a avareza talvez como um homem contando e recontando suas moedas de ouro – o que equivale a dizer que não pensamos numa aplicação prática e simples para essas palavras.

A nossa alienação da tradição clássica também se demonstra no fato de abraçarmos uma escala diferente para a valoração das virtudes e dos vícios, o que não dá espaço para qualquer resquício do entendimento clássico. Cada cultura possui inevitavelmente um modelo de caráter ideal, uma vez que possui leis e costumes diferentes, o que supõe um caráter que os cumpra melhor que os demais e, portanto, uma lista dos vícios que lhe são mais opostos. Mas quais são as principais palavras usadas na crítica da nossa cultura contemporânea? O que um observador neutro identificaria como os nossos “pecados capitais” se tomasse como base as coisas que louvamos e as que condenamos? A maior parte do vocabulário que usamos para dizer que alguém é mau inclui um punhado de termos com conotações similares: uma pessoa é má se “julga” os demais, se é “intolerante”, “insensível”, “inflexível”, “ultraconservadora” ou “enviesada”. Seria interessante o projeto de pesquisa que procurasse explicar essa lista. Minha tese é de que essa lista é consideravelmente mais limitada que a lista dos sete pecados capitas e que, além do mais, não a supera. Perdemos a tradição clássica, não a incorporamos, e a substituímos com uma linguagem que rivaliza com ela – o que cria um problema considerável caso continuemos avaros, vaidosos, luxuriosos e inclinados à inveja, a despeito da mudança de linguagem.

Os pecados capitais foram identificados e dispostos numa lista de sete pelo papa Gregório Magno, em finais do século VI. Gregório refletiu sobre eles no seu livro Magna Moralia, que era de fato um comentário gigantesco ao livro de Jó que soma aproximadamente meio milhão de palavras (quase o mesmo tamanho do Antigo Testamento). Coube a escolásticos como Boaventura (Breviloquium) e Tomás de Aquino (Summa) a tarefa de racionalizar a lista. Lá pelo final da Idade Média, a identidade e o significado dos sete pecados capitais eram pressupostos e considerados óbvios para toda pessoa com instrução, como deixam claro o Purgatório de Dante e os Contos de Canterbury de Chaucer.

Gregório falou dos pecados “capitais” e das “filhas” desses pecados. A palavra “capital” vem da palavra latina caput, “cabeça”. Isto é: não no mesmo sentido em que alguns crimes são chamados de “capitais” (porque são considerados merecedores da pena de morte, o que poderia envolver a decapitação do criminoso); o significado está mais para a definição de CEO como a “cabeça” de uma corporação. Acredita-se que os pecados capitais direcionam e governam o comportamento de uma pessoa e que, ao fazê-lo, incitam essa pessoa a outros pecados que (na linguagem de Gregório) seriam as suas filhas. De modo que, de acordo com o conceito que Gregório faz da avareza, por exemplo, as suas filhas são: a trapaça, a fraude, a falsidade, o perjúrio, a inquietude, a violência, e a inclemência. As filhas da inveja, por outro lado, são: o ódio, a murmuração, a detração, a alegria pelas desgraças alheias e a dor diante da prosperidade do próximo. Gregório menciona 43 “filhas” no total. Note-se que, na visão dele, não eram todos os pecados que provinham dos sete pecados básicos, mas a sua quantidade era tal que, do ponto de vista da estratégia, valia a pena isolar estes últimos, classificando-os de “capitais”.

Os pecados capitais, por sua vez, subdividem-se naturalmente num grupo de quatro e noutro de três. Quatro deles supõe algum tipo de avidez desordenada e excessiva: a luxúria (avidez pelos prazeres sexuais), a gula (avidez pelos prazeres da bebida e da comida), a avareza (avidez por dinheiro) e a vanglória (avidez por honra). Ao passo que os outros três não supõem uma avidez, mas uma espécie de aversão: a inveja (dor diante do bem alheio), a ira (irritação diante do bem alheio) e a acídia (dor diante do que é verdadeiramente bom para si mesmo).

Os pecados capitais como origem dos pecados

Por que é valioso do ponto de vista da estratégia fazer a distinção entre esses sete pecados? Tomás de Aquino, na racionalização da lista que fez muito posteriormente, diz que isso se deve à estreita conexão entre os sete pecados capitais e a felicidade. Todos os pensadores antigos e medievais eram unânimes em afirmar que tudo o que fazemos, fazemo-lo com vistas à felicidade. O nosso desejo de felicidade, portanto, é o que motiva todas as nossas ações. Quando é entendida corretamente, diz Tomás de Aquino, a felicidade motiva ações boas e virtuosas – porque a felicidade é, na realidade, a posse e o gozo de Deus. Mas Deus só pode ser possuído por quem estiver purificado do pecado e for inteiramente virtuoso.

Os quatro pecados capitais “por avidez” ocupam um lugar estratégico porque todos procuram algo que é um simulacro da felicidade e que, portanto, pode ter nas nossas vidas um papel semelhante ao da verdadeira felicidade. Por exemplo: supomos que, se estivermos sempre buscando uma quantidade incalculável de dinheiro, estaremos livres dos cuidados e preocupações relacionados com a atenção das nossas necessidades diárias; ou seja: buscamos uma soma incalculável de dinheiro procurando a “auto-suficiência” que julgamos ser uma característica da felicidade. (Tomás de Aquino ecoa a tradição quando diz ser correto buscar a auto-suficiência, mas incorreto querer consegui-la por meio de posses, de vez que, na realidade, os nossos cuidados e necessidades aumentam na mesma medida das nossas posses.) Assim, as pessoas que amam o dinheiro perseguem uma imitação da felicidade, e esse fim ilusório organiza todo o seu comportamento, porque a felicidade é o fim último de toda a ação humana.

Igualmente, a luxúria tem por meta uma espécie de êxtase de prazer que esperamos com razão encontrar-se junto da felicidade, mas que não poderemos obter nas relações sexuais. A gula tem por meta uma espécie de apaziguamento de todos os desejos – inclusive todos os caprichos – que, de novo, esperamos com razão ser uma característica da felicidade, mas que a bebida e a comida não podem proporcionar de fato. E a vanglória é ávida por glória e fama, mas pode apenas ganhar um reconhecimento passageiro dos homens, não um tipo duradouro de fama e glória. Mais uma vez, estamos certos em supor que a felicidade traz consigo a fama e a glória; mas erramos ao tomar o louvor alheio como se fosse a honra que nos satisfará para sempre.

Se os quatro pecados capitais “da avidez” tiram-nos do caminho por nos conduzirem a imitações ilusórias da felicidade, os três pecados capitais “da aversão”, dentro do quadro clássico, tiram-nos do caminho por impedirem que procuremos a verdadeira felicidade. Segundo a teoria clássica, a verdadeira felicidade é obtida pela posse de “bens espirituais” (tais como um bom relacionamento com Deus e as virtudes) de que gozamos em companhia de outras pessoas. (A felicidade, nessa visão, é social, porque os seres humanos são sociais por natureza; fomos feitos para sermos felizes junto dos outros e não sozinhos e por conta própria.) Somos impedidos de procurar a verdadeira felicidade quando relutamos em buscar os bens espirituais para nós mesmos (o que é a acídia), e quando relutamos em endossar o bem do nosso próximo (pela inveja ou pela ira).

É impossível não afirmar algo, uma vez que o tenhamos como um bem. Portanto, esses pecados capitais “de aversão” levam-nos a rejeitar uma coisa boa por causa de algo incômodo ou desagradável que a acompanha. Deixamos de rezar, por exemplo, porque o silêncio e a quietude que lhe são necessários nos aborrecem. Entristecemo-nos com a prosperidade de um amigo porque fazemos uma comparação entre nós e ele, e associamos o seu bem com a nossa própria desdita. Ou ainda: o sucesso de alguém nos incomoda e irrita (“Mas que injustiça!”) porque consideramos que nós é que o merecíamos. (Note-se que dentro da tradição clássica, “acídia” não significa preguiça: de fato, não é incomum ver pessoas que demonstram aversão ao seu verdadeiro bem espiritual por meio de uma atividade que chega a ser frenética dirigida a outras realidades, como bem apontou Pascal no seu famoso diagnóstico acerca da nossa inclinação para os divertissements.) Todas essas aversões são irracionais – algumas delas o são porque é irracional rejeitar um bem incomensuravelmente maior por causa da presença de um mal menor (como rejeitar a oração por causa do aborrecimento); outras, porque é irracional assentir e agir baseando-se numa associação que é meramente ilusória (o sucesso do meu próximo comparado ao meu).

Avareza e vanglória

A avareza e a vanglória ocupam um lugar privilegiado dentro da teoria tradicional dos pecados capitais, uma vez que ambas são consideradas como o ponto de partida de todos os outros pecados, não apenas daqueles pecados a que incitam e que são suas “filhas”. Tal pensamento plasmou-se nas máximas “O amor ao dinheiro está na raiz de todo o mal” e “A vaidade é a origem de todos os pecados”. E não há contradição aqui, já que ambas trabalham juntas e de modo complementar.

Para compreender tal raciocínio, precisamos antes clarificar os conceitos de avareza e vanglória. Como os outros pecados “de avidez”, ambas envolvem um amor excessivo e “desordenado” por algo que é naturalmente amável e que é bom amar de maneira razoável. Isso é evidente no caso da gula: é natural que tenhamos fome e que desejemos uma comida saborosa, mas, quando exageramos nesse desejo, o excesso leva-nos à gula. Da mesma forma, desejamos naturalmente destacar-nos e sobressair-nos, naturalmente queremos reconhecimento pelos nossos feitos – isso é evidente quando notamos como as crianças, desde cedo, gostam de ganhar nos jogos e receber elogios dos seus pais. E, contudo, quando exageramos nisso, caímos na vanglória. Da mesma maneira, as crianças desde cedo querem ter posses, especialmente brinquedos e jogos, e também dinheiro assim que passam a entender o que ele é. E os excessos nesse campo são avareza.

Não é preciso refletir muito para perceber, baseados no senso comum, por que a natureza humana inclui esses desejos que nós, natural e inevitavelmente, desenvolvemos pelas posses e pelo reconhecimento alheio. Precisamos de posses e da orientação alheia para desenvolver-nos bem e florescer na sociedade. Não surpreende, portanto, sermos equipados com desejos de procurar diligentemente essas coisas de que necessitamos.

Mas também é evidente que desde a tenra idade as crianças demonstram com facilidade – e parece ser mesmo inevitável – um amor à distinção e ao dinheiro que é, nalguns aspectos, irracional por ser um tanto excessivo. Por exemplo: todos os irmãos que conheço e que têm aproximadamente a mesma idade brigam entre si por sua posição e ordem nas diversas situações do cotidiano. (Excluo do exemplo os irmãos que possuem uma grande diferença de idade entre si, porque em tais casos a posição é evidente e incontestável.) Se um pai está dirigindo para algum lugar e o banco do passageiro está vago, as crianças brigam para saber quem vai ocupá-lo, uma vez que o lugar é considerado mais importante por estar perto do motorista e ser na frente. É natural e razoável que uma criança queira sentar-se no banco do passageiro. Mas brigar por causa disso não é razoável para ninguém, uma vez que o banco do passageiro não é tão importante que mereça ser conquistado ao preço de uma contenda.  Mas as crianças o desejam de uma maneira tão excessiva que não pensam duas vezes antes de entrar numa briga sem fim por ele. Os pais devem então implementar algum sistema de revezamento ou valerem-se de uma ameaça de castigo que seja suficiente para suprimir, não o desejo, mas as expressões das crianças desse seu desejo de sentar na frente.

Importar-se em demasia com sentar-se no banco do passageiro é, literalmente, vanglória: um apego excessivo a um reconhecimento ou ponto de honra. Todos nós começamos a vida com a tendência de demonstrar a nossa vanglória dessa maneira (embora essa falta, em crianças, seja reconhecidamente menor); a questão é se conseguimos superá-la ou simplesmente mudamos o tipo de distinção pelo qual estamos dispostos a brigar – talvez uma cátedra universitária em vez do banco do passageiro num carro.

O amor ao dinheiro também desperta cedo nas crianças; é muito forte e deforma-se facilmente. Joseph, meu filho de oito anos, põe o lixo da cozinha para fora todos os dias e semanalmente põe o lixo na rua para que o lixeiro o possa levar, muitas vezes enfrentando chuva ou frio intensos. Tudo para ganhar uma recompensa de um dólar. Ele não faria tais coisas apenas por amor à sua mãe. Crianças mais novas podem fazer tarefas extremamente árduas para elas, como recolher os brinquedos espalhados num playground, se sabem que receberão como prêmio um pequeno brinquedo, um carrinho de fricção por exemplo.

Mas o dinheiro é a motivação mais forte por causa do seu caráter indefinido. O dinheiro pode ser gasto em qualquer coisa. Uma criança com alguns dólares no bolso sente-se capaz de adquirir, em princípio, quaisquer bens e serviços que possa querer. “Posso fazer o que eu quiser com esse dinheiro”, ela pensa de si para si. Enfatizemos o “o que eu quiser” dessa afirmação e veremos porque Gregório e Tomás de Aquino, fazendo eco a São Paulo, se referiam ao amor ao dinheiro como raiz de todos os males: é a raiz do mal, dizem eles, da mesma forma que a raiz de uma planta nutre e sustenta o seu crescimento. O caráter indefinido do dinheiro sugere que é possível usá-lo para satisfazer qualquer desejo que se tenha. O dinheiro por si só, considerado como algo indefinido e universalmente aceito como elemento de troca, não carrega consigo noção de limite ou subordinação a alguma regra ou bom propósito. Assim, o amor ao dinheiro, considerado por si só, dá-se simplesmente como um meio para levar a cabo outras coisas, não importando se estas estão sujeitas a uma regra correta ou a um fim bom. Com certeza o leitor terá ouvido o imperativo tecnológico: “Poder implicadever“; paralela a ele, mas precedendo-o, está a “sugestão financeira”: “Poder implica fazer, se eu quiser“.

O amor ao dinheiro

A avareza é algumas vezes definida como “amor desordenado ao dinheiro”, mas num sentido filosófico mais rigoroso o amor ao dinheiro já é desordenado de per se; não pode haver qualquer justo ordenamento dele. O motivo tem a ver com a maneira mais precisa em que os nossos afetos deveriam ser descritos. Se amamos uma coisa unicamente por causa de outra, então é precisamente esta que amamos. O dinheiro é um instrumento, o mais simples entre os mais simples meios. É por isso que o amor por algo bom que podemos levar a cabo graças ao dinheiro “flui diretamente por ele” e é um amor por aquele bem. Se, por exemplo, o meu filho Joseph deseja ardentemente ganhar a sua recompensa para poder comprar presentes de Natal para os seus irmãos e irmãs, então, nesse caso específico, ele não tem nenhum amor pelo dinheiro, mas pelo seus irmãos e irmãs.

Assim, ao perguntar-nos se somos avaros, devemos perguntar se consideramos o dinheiro algo que não seja meramente um meio para atingirmos um fim bom. E nesse sentido parece haver apenas quatro caminhos pelos quais nos podemos desviar. Os exemplos ficam mais claros quando nos detemos sobre o uso (ou gasto) do dinheiro em vez de deter-nos sobre a sua obtenção, de modo que podemos focalizá-los. Primeiro, podemos gastar o dinheiro em coisas que não são meio para nenhum fim bom: neste caso o usamos de maneira indolente, o que é um “capricho”. Segundo, o fim é bom, mas gastamos demasiado com ele, o que pode ser considerado uma “extravagância”. Por outro lado, o fim pode ser bom em si, mas as circunstâncias o tornam injustificado, irracional ou desordenado de alguma maneira. Se o bem que estimamos de maneira desordenada diz respeito ao corpo e ao seu bem-estar, então o gasto acaba por ser um mero “conforto” (e eis aqui o terceiro caso); se, por outra, o gasto está direcionado a um bem psicológico amado desordenadamente, então se trata de “vaidade” (o nosso quarto caso).

Podemos agora ver como a vanglória e a avareza trabalham juntas como se tivessem nascido uma para a outra. Querer dinheiro para um fim que seja indefinido ou hipotético, apenas para poder dizer “posso fazer o que eu quiser com isso”, implica inicialmente uma susceptibilidade à afirmação de que “tenho um motivo para ter isso” que quase sempre traz consigo uma idéia de bajulação – já que eu me gabo de os meus desejos serem o único padrão aceitável para qualquer gasto. A minha ânsia ilimitada por dinheiro é já um tipo de presunção, como se eu pudesse justificar-me por não usar o dinheiro de acordo com qualquer princípio ou limite. Ou ainda, por meio da vanglória, desejamos reforçar e sinalizar a nossa distinção com relação aos outros: e gastar dinheiro em algo que nós podemos, e os outros não, é o melhor meio de fazê-lo (daí o uso do termo “exclusivo” para tornar que um produto é desejável). A primeira manifestação de vaidade nas mulheres aparece em gastos com a aparência e moda e, nos homens, aparece em gastos com instrumentos e acessórios.

Quatro entre as sete tradicionais “filhas” da avareza envolvem uma injustiça direta levada a cabo por variados meios: trapaça, fraude, falsidade, violência, falsidade e perjúrio. Não surpreende que a avareza faça surgir a injustiça. A justiça consiste na aplicação de uma medida adequada para a justa distribuição do dinheiro; implica certo tipo de padrão e limite. Mas amar o dinheiro por si mesmo, como vimos, é amá-lo sem entender que a sua obtenção e o seu uso estão sujeitos a regras e limites. Isso não quer dizer que qualquer pessoa avarenta cometerá inevitavelmente uma injustiça; muito menos que a avareza sempre supõe uma injustiça. O que, sim, isso quer dizer é que, do ponto de vista da pessoa movida pela avareza, considerações sobre a justiça parecerão sempre externas, arbitrárias e impostas. Não há nada na avareza para evitar que se cometa uma injustiça, ao passo que há muito nela que dispõe à obtenção e gasto de dinheiro sem qualquer preocupação acerca da justiça ou da injustiça. Por outro lado, uma pessoa que concebe obter dinheiro para um fim e sob alguma regra achará natural a adoção de alguma regra que trate da justiça. Alguém pode perguntar se um princípio de justiça não deve estar implícito em qualquer fim bom a que se destinará o dinheiro: a criança que quer ganhar dinheiro para comprar presentes para a sua família já supõe que, por exemplo, deve gastar mais dinheiro em presentes para os seus irmãos do que em presentes para colegas.

A avareza e a ética social

Já foi dito que a doutrina dos sete pecados capitais – e outras doutrinas clássicas semelhantes a ela – são de pouca valia nos dias de hoje porque são totalmente individualistas, enquanto todos os mais importantes “pecados” atuais têm um caráter social. Temos uma tendência para acreditar nisso, o que decerto explica a pequena tempestade midiática desencadeada no ano passado quando um cardeal vaticano, Gianfranco Girotti, sugeriu que “novos pecados surgiram no horizonte da humanidade como um corolário do processo inexorável de globalização”. E ele citou como exemplos a “destruição do meio ambiente”, as “experiências com embriões”, o “tráfico de drogas”, e “riqueza obscena”. O Times Onlinenoticiou logo em seguida, e bastante enganado, que o Vaticano tinha identificado os “novos sete pecados capitais”, e outras agências de notícia logo estavam dizendo coisas parecidas. E todas erraram: o bispo unicamente quis chamar a atenção para os novos e importantes tipos de pecado sem negar os antigos. “Se ontem o pecado tinha uma dimensão bastante individual, hoje possui um impacto e uma ressonância que é, sobretudo, social, por causa do grande fenômeno da globalização”, disse o bispo.

No entanto, as duas maneiras mais comuns de entender o contraste entre o “individualismo” da tradição antiga e as dimensões sociais das faltas modernas parecem estar equivocadas. Com certeza, as sociedades mais antigas e tradicionais não careciam da noção de que os pecados privados conduziriam cumulativamente a conseqüências sociais desastrosas. A Bíblia é repleta de exemplos de sociedades que entram em colapso ou são atingidas por catástrofes por causa dos pecados da sua população. São Tiago chega mesmo a pôr a guerra como conseqüência da avareza e da inveja (4, 1-2).

Em tempos mais recentes, Bernard Mandeville escandalizou os seus contemporâneos com a sua Fábula das abelhasprecisamente por sustentar, paradoxalmente e contra a crença padrão, que “vícios privados são virtudes públicas”. E parece que, quanto mais uma cultura crê firmemente na realidade da Providência, mais prontamente procurará por uma ligação entre a fibra moral de um povo e a sua prosperidade com o passar do tempo. Nesse sentido, lembremos do segundo discurso inaugural de Lincoln, que põe a calamidade da Guerra Civil como conseqüência da injustiça de cada um dos proprietários de escravos:

 “Se supomos que a escravidão americana é uma dessas ofensas que, segundo a Providência de Deus, deve necessariamente sobrevir, mas que, continuando além do tempo por Ele determinado, Ele quer agora extirpar, e que ela dá tanto ao Norte como ao Sul esta guerra terrível como pena devida àqueles pelos quais veio a ofensa, veremos nisso algum distanciamento dos seus divinos atributos e que os crentes num Deus vivo sempre reconheceram nEle? Esperamos amorosamente, oramos fervorosamente para que esse poderoso flagelo possa passar rapidamente. Contudo, se Deus deseja que continue até que toda a riqueza empilhada pelos escravos em duzentos e cinqüenta anos de trabalho não remunerado desmorone, e até a última gota de sangue derramada pelo látego seja paga por um outra derramada pela espada, devemos dizer hoje o que já foi dito há três mil anos: Os juízos do Senhor são todos justos e verdadeiros“.

 Também não é o caso de os pecados parecerem mais sérios aos nossos olhos se for levado em conta o seu aspecto social. Pode-se supor que o “consumismo” é o equivalente moderno e social da avareza, bem como o “hedonismo” o é da gula e da luxúria. Ainda assim, podemos nos perguntar se há alguém motivado a evitar o “consumismo” ou mesmo que o perceba e o veja como algo errado sem vê-lo sob o mesmo aspecto que aquilo que muito naturalmente designaríamos pela palavra “avareza”.

De fato, não é claro que o “consumismo” é uma falta – é por isso que as pessoas falam de “consumismo desenfreado” quando querem fazer uma crítica. Entre as filhas tradicionais da avareza está a insensibilidade à misericórdia, que é a falha em perceber que os outros passam necessidade e, quando se percebe, a falta de vontade de sacrificar um pequeno luxo para aliviar a condição do outro. Se dissermos que isso é o resultado da avareza, que por sua vez tem a ver com a vanglória e o orgulho, remontamos a coisas muito abomináveis e a qualificamos, por conseguinte, de abominável. Mas o consumismo, pelo que sabemos, é uma coisa boa, e uma palavra, enquanto indicadora de uma condição social, que nos remonta apenas à nossa própria sociedade, que terá aspectos bons e maus e não será de todo má.

Avareza e negócios

Uma questão pertinente é se a avareza, enquanto um pecado capital, tem qualquer relação com a ética. Isso porque é possível ler dezenas de livros sobre ética nos negócios sem encontrar qualquer referência à avareza.

Em certo sentido há um bom motivo para isso, porque apesar de todo o falatório sobre a influência da avareza na economia moderna, há estruturalmente pouco espaço para a avareza nos negócios hoje em dia. Procurar dinheiro em troca de um produto ou serviço, por um valor aferido e aceito pelo consumidor depois de uma justa exposição, não tem nada que ver com a avareza, uma vez que implica querer receber dinheiro apenas sob uma condição e dentro de alguns limites (a saber, que o bem ou o produto seja aquele com que o consumidor concordou).

As modernas economias de mercado foram ainda além na direção de resolver o problema da avareza por meio de uma nova profissão votada especialmente, por assim dizer, à neutralização da avareza: os contadores e auditores, cujo papel específico na economia de mercado é oferecer serviços de “auditoria”, como se costuma dizer. Isso quer dizer que o contador ou auditor é posto em circunstâncias que o tornam financeiramente “independente” das decisões que ele toma sobre a apresentação que uma companhia lhe faz da sua situação econômica, de tal maneira que o seu julgamento, para a validade das informações divulgadas por tal companhia, não possa ser afetado por distorções oriundas da avareza. Os contadores resolvem o problema da avareza na condução de uma empresa por meio de uma separação entre aqueles que fazem dinheiro e aqueles que divulgam oficialmente quanto dinheiro foi feito e como ele foi feito.

Contudo, parece que a avareza pode entrar no sistema e subvertê-lo. Mas curiosamente parece que o único a fazê-lo é aquele único membro do público investidor que parece não ter o juízo viciado pela avareza. Não foi a “avareza de Wall Street” a primeira responsável pelas maiores fraudes e quebras das últimas duas décadas, mas a avareza do investidor individual. Em todo o caso, os investidores admitiram estar conseguindo prazos e retornos que eram “bons demais para ser verdade”, e, contudo, nunca fizeram qualquer pergunta sobre isso – um sinal clássico de ganância -, portanto a sua condescendência com tal esquema foi essencial para que o aparecimento da fraude e do abuso.

Por exemplo, as pessoas que investiram na Enron não tinham idéia de como ela produzia os seus lucros; compravam as ações unicamente porque o preço delas não parava de subir. É por isso que sete meses antes do colapso da companhia, a analista Bethany Mclean escrevia na 5 Magazine uma matéria em que se fazia essa pergunta e não conseguia responder: “Como exatamente a Enron ganha dinheiro? É difícil chegar a detalhes porque a Enron mantém sob sigilo os dados específicos… e os analistas não têm a menor idéia…”

Ou ainda, no caso da fraude de Bernie Madoff, alegou-se que os investidores foram roubados em mais de cinqüenta bilhões de dólares num caso que não passava de um esquema Ponzi: os investidores continuaram a investir com Madoff fundados na afirmação de que ele tinha uma estratégia de investimento que geraria sempre um lucro de 12% independentemente das tendências do mercado. Isso era impossível, como qualquer um poderia perceber se se desse ao trabalho de averiguar devidamente. Mas os clientes de Madoff, que se gabavam por serem parte de um grupo exclusivo de pessoas ricas que tinham acesso a Madoff, nunca fizeram as perguntas mais óbvias ou céticas.

Finalmente, a recente crise financeira poderia não ter ocorrido se os corretores de hipoteca não tivessem concedido milhões de financiamentos imobiliários insustentáveis; porém, para cada analista de crédito inescrupuloso que concedia tais empréstimos havia centenas de proprietários de casa que sabiam claramente dos riscos do empréstimo e, não obstante, o contraíram, ou que emprestaram dinheiro sem grave necessidade para evitar uma suposta perda no equilíbrio da sua casa.

Esses últimos exemplos mostram porque mesmo hoje ainda é melhor continuarmos a chamar de “avareza” a nossa principal falta com relação ao dinheiro. Ou seja: é melhor reconhecer que essa falha pessoal tem uma dimensão social do que tentar substituí-la pelas muito faladas forças sociais de grande escala como o “consumismo” e o “materialismo”. O que os exemplos citados indicam é que a contribuição de um indivíduo para o comportamento de um grupo muito grande será tão pequena que estará sujeita a problemas criados por aproveitadores. Não faz diferença para a crise financeira se um indivíduo que precisa pagar a sua hipoteca toma dinheiro emprestado responsavelmente ou não. A crise não será consideravelmente mitigada se ele for responsável, nem consideravelmente agravada se for irresponsável.

E, no entanto, a sociedade não pode caminhar bem a não ser que cada membro veja a si mesmo como responsável por evitar problemas relevantes. E é precisamente a isso que uma reflexão sobre a avareza e a sua irracionalidade vai conduzir os membros de determinada sociedade. Curiosamente, evitar um pecado tão “individualmente” que a pessoa o evita sem se preocupar com os seus efeitos na sociedade mostra-se melhor para a sociedade do que evitar algo concebido como um “pecado social”.

 Michael Pakaluk é professor de filosofia no Institute for the Psychological Sciences (Arlington, VA). É graduado e Ph.D. pela Universidade de Harvard, onde teve a sua dissertação orientada por John Rawls. Foi bolsista Marshall para estudar David Hume na Universidade de Edimburgo. Já lecionou na Universidade Clark, e foi professor visitante em Brown, Cambridge, Universidade Católica da América, Harvard e Universidade de St. Andrews. Entre os seus inúmeros artigos e livros acadêmicos estão The Clarendon Aristotle Volume on Nicomachean Ethics VIII and IX (1998); Aristotle’s Nicomachean Ethics: An Introduction (Cambridge University Press, 2005); e Understanding Accounting Ethics, 2ª. ed., com Mark Cheffers, CPA (Allen David Press, 2007).

Tradução de Cristian Clemente, licenciado em Letras pela FFLCH-USP.

Publicado em português na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Edição nº 3, Julho/2009, disponível no link <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/avareza-aqui-e-agora/>

Imagem do post: “Avarice” by Jesus Solana from Madrid, Spain – [http://www.flickr.com/photos/pasotraspaso/6953271968/ 29-52.Uploaded by PDTillman. Licensed under CC BY 2.0 via Wikimedia Commons – http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Avarice.jpg#mediaviewer/File:Avarice.jpg

Tucídides, o estudioso do comportamento político (por Donald Kagan)

Política e Sociologia | 03/03/2015 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print


O estudo de Tucídides e da sua famosa História da Guerra do Peloponeso nunca foi tão intenso, difundido e influente como no nosso tempo. Tucídides afirmava que a sua obra era um “patrimônio perene” com o fim de servir “aos homens que desejem ver claramente o que ocorreu e ocorrerá novamente, com toda a possibilidade humana, de maneira idêntica ou semelhante”. Mais de vinte e quatro séculos depois, líderes políticos e estudiosos da política vêem-na exatamente dessa maneira.No mundo antigo, o foco de Tucídides na política foi além do âmbito mais amplo, embora menos profundo, dos seus predecessores. Heródoto, com o seu estilo cheio de digressões e parênteses acerca dos costumes e hábitos de vários povos, e também com as suas graves considerações sobre o papel desencadeador dos deuses nos assuntos humanos, não se tornou um modelo daquilo que viria a ser considerado o melhor da historiografia na Antigüidade. Políbio e os romanos Salústio, Tito Lívio, Tácito e Amiano Marcelino foram os grandes historiadores clássicos. E escreveram sobre o seu próprio tempo, a sua própria nação e, especialmente, sobre guerra e política.Os historiadores favoritos durante a Renascença e os começos da Idade Moderna na Europa foram Políbio, cuja história da conquista do mundo mediterrânico por Roma seguiu o modelo de Tucídides, e Tácito, que tinha foco na política de Roma. No século XVII, Thomas Hobbes publicou a primeira tradução inglesa completa da História de Tucídides feita a partir do original grego. “Tucídides”, disse, “é alguém que, embora nunca se desvie do seu texto para tecer considerações, de cunho moral ou político, nem penetre no coração dos homens para além dos limites a que as próprias ações o levam indubitavelmente, é, no entanto, tido como o maior historiógrafo que já existiu”. Isto significa que ele proporciona tanto um relato como uma orientação para o entendimento dos assuntos contidos na categoria “política”: a competição política interna dentro de uma cidade-estado ou uma nação e as relações internacionais em tempos de guerra e paz.

Os escritores do século XVIII, com o seu interesse nos modos e nas civilizações mais antigas de todo o mundo, redescobriram Heródoto, embora também tenham, como filósofos da História, admirado o esforço de Tucídides por escrever uma história útil, que buscasse as causas dos eventos nos constituintes permanentes da condição e da natureza humanas. O século XIX, porém, especialmente na Alemanha, viu o triunfo da história política e o consequente eclipse de Heródoto por Tucídides.

Uma nova grande onda de interesse sobreveio com o advento da guerra fria. As pessoas viram uma semelhança impressionante entre o longo conflito de Atenas e Esparta e a concorrência dos Estados Unidos e os seus aliados da OTAN com a União Soviética e os seus satélites do Pacto de Varsóvia. Em 1947, o secretário de Estado dos EUA, George C. Marshall, disse: “Duvido seriamente de que um homem que não tenha pelo menos repassado na sua mente a época da Guerra do Peloponeso e da queda de Atenas possa refletir com plena sabedoria e profundas convicções a respeito de certos temas das relações internacionais de hoje”. Os membros das escolas “realista” e “neo-realista” de relações internacionais vêem em Tucídides o seu fundador.

De fato, a perspectiva tucidideana dominou de tal maneira os estudos históricos que foi preciso recordar a nós mesmos que a historiografia deve combinar a história da política, da diplomacia e da guerra com a história da sociedade, da cultura e da civilização, de modo que se chegou a fortalecer um movimento que visava a afastar-se da história política tucidideana. Agora, porém, o mundo da escrita da História mudou o suficiente para que tais advertências pareçam datadas. Em grande parte do mundo acadêmico americano, a “história extrapolítica” conseguiu tudo menos varrer a história política para fora. O mais famoso e influente historiador social, Fernand Braudel, desprezou a política, a diplomacia e a guerra como meros évènements, transitórios e triviais se comparados aos problemas maiores e mais duradouros postos pela geografia, a demografia e os desenvolvimentos econômicos e sociais ocorridos ao largo de extensos períodos. Na sua obra mais famosa, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Felipe II, as decisões, eventos e desenvolvimentos políticos são de pequena monta se comparados com as forças inanimadas e impessoais que moldam as sociedades a longo prazo.

É bastante claro que tais forças existem e que possuem um impacto considerável na política, na guerra e na diplomacia, principalmente para estabelecer os limites daquilo é possível. Dentro desses limites, porém, um ou mais seres humanos tomam decisões de importância vital. E essas decisões, que são militares, diplomáticas e políticas, influenciam grupos crescentes de pessoas de maneira a afetar a própria existência de povos, nações e da raça humana. É importante compreender as forças e condições de fundo que envolvem e influenciam as escolhas feitas nesses campos decisivos, mas o historiador deve ligar esse conhecimento a fatos, decisões e eventos específicos que tomam lugar na praça pública, isto é, no mundo da política. Os historiadores “extrapolíticos” não fizeram essas ligações, preferindo assim deixar por fazer as grandes questões políticas que sempre foram a centelha a iniciar o interesse pela História desde o começo e que ainda hoje é o que inspira os amadores.

Aquilo que Tucídides chamou de “Guerra entre os atenienses e os peloponenses” e que nós chamamos de Guerra do Peloponeso estourou em 431 a.C. Um dos antagonistas principais, os espartanos, foram a cabeça da Liga do Peloponeso, uma coalizão grega que resistiu à invasão persa de 480-479, e a potência-líder da Grécia. Um pouco antes da invasão, os atenienses haviam construído uma nova esquadra grandiosa, que se mostrou o núcleo e a espinha da marinha grega que esmagou os persas nas batalhas de Salamina e de Micale. Essas vitórias elevaram Atenas a um grau de prestígio que chegou a desafiar a posição de Esparta, ainda que os espartanos tenham concomitantemente liderado os gregos na vitória decisiva na Batalha de Plateias.

O poder e a prosperidade da democracia ateniense tornaram-se dependentes do domínio sobre o seu grande império marítimo. Começou como “os atenienses e os seus aliados” (os estudiosos modernos chamam-nos de a Liga de Delos), uma aliança voluntária de estados gregos que convidaram Atenas para liderar uma continuação da guerra de libertação e vingança contra a Pérsia. Pouco a pouco, tornou-se um império que funcionava principalmente em benefício de Atenas.

Na medida em que a Liga de Delos tornou-se mais e mais forte, alguns espartanos ficaram invejosos, desconfiados e temerosos de um desafio à sua supremacia por parte de Atenas. Querelas na década de 460 levaram à Primeira Guerra do Peloponeso, que durou, entre idas e vindas, até 445. Acabou com a paz de trinta anos em que cada um dos lados reconhecia a hegemonia do outro na sua própria esfera, e ambos concordaram em submeter quaisquer desacordos futuros a um árbitro reconhecido pelas duas partes. A paz durou por mais de uma década, mas uma série de conflitos entre Atenas, por um lado, e Esparta e vários de seus aliados, por outro, conduziram à Grande Guerra. No inverno de 432-1, Tebas, aliada de Esparta, atacou Plateias, aliada de Atenas, e desencadeou a chamada Guerra Arquidamiana, devido ao nome do rei espartano que liderou as primeiras invasões.

O líder de Atenas quando da irrupção da Guerra era Péricles. A sua estratégia era evitar as batalhas por terra, fazer breves ataques ao redor do Peloponeso e esperar até que os Espartanos descobrissem que não havia uma estratégia para vencê-los — dentro de um, dois ou três anos. Em 430, contudo, uma terrível praga abateu-se sobre a cidade, causando terríveis desastres físicos, sociais e psicológicos. Os adversários políticos de Péricles convenceram os atenienses a pedir paz aos espartanos, retiraram Péricles do seu cargo e o puniram com uma pesada multa. O inimigo, porém, recusou quaisquer termos aceitáveis para a paz, de modo que a guerra continuou. Não mais sendo a paz uma opção, os atenienses reelegeram Péricles, que retomou a sua política. Ele, porém, contraiu a praga e morreu no outono de 429.

Após a morte de Péricles, nenhum líder forte emergiu para sustentar os atenienses numa política consistente. Duas facções estavam na disputa pela influência: uma, liderada por Nícias, queria manter a política defensiva; a outra, liderada por Cleonte, preferia uma estratégia mais agressiva. Em 425, a facção agressiva alcançou uma vitória significativa: quatrocentos espartanos renderam-se e Esparta propôs a paz a fim de tê-los de volta. Os atenienses, contudo, quiseram continuar a guerra, porque a paz espartana não significava nenhuma garantia real de que Atenas estaria segura.

Em 424, os atenienses levaram a cabo uma política mais agressiva, que falhou e conduziu a uma trégua em 423. No ínterim, o mais capaz dos generais espartanos, Brásidas, capturou Anfípolis, a colônia mais importante de Atenas na Trácia. Tucídides era o responsável pela esquadra ateniense nas águas daquela região e foi apontado como o responsável pela perda da cidade. Em 422, as mortes dos agressivos Cleonte e Brásidas abriram caminho para a paz de Nicias, que foi selada na primavera de 421.

A paz, que oficialmente deveria durar cinqüenta anos e que, com algumas exceções, garantia o status quo, era, de fato, frágil. Nenhum dos lados cumpriu com todos os seus compromissos e vários aliados de Esparta recusaram ratificá-la. Em 415, Alcebíades persuadiu os atenienses a atacar a Sicília e pô-la sob o domínio de Atenas. Essa empresa ambiciosa e desnecessária acabou em desastre em 413, quando toda a expedição foi destruída. Como resultado, o prestígio de Atenas foi abalado; o seu poder, reduzido; iniciaram-se revoltas e a riqueza e o poder da Pérsia entraram na Guerra ao lado de Esparta. É notável que os atenienses tenham podido continuar lutando após o desastre. Obtiveram diversas vitórias importantes no mar à medida que a guerra deslocou-se para o Egeu. Os seus aliados, porém, rebelaram-se e a Pérsia pagou as esquadras para que mantivessem a insurreição. Os recursos financeiros da Atenas encurtaram e finalmente desapareceram. Atenas não pôde construir uma nova frota depois que a sua foi apanhada cochilando, sendo destruída em Egospotamia em 405. Os espartanos, sob Lisandro, cortaram o fornecimento de comida através do Helesponto, o que fez com que os atenienses padecessem de fome até a rendição. Em 404, renderam-se incondicionalmente; derrubaram os muros da cidade, abriram mão da sua esquadra e perderam o seu império. Tucídides nunca terminou a sua História.

Quem foi esse Tucídides e qual a natureza da sua obra que continua a interessar-nos e influenciar-nos hoje? Era um aristocrata ateniense, membro de uma das mais nobres famílias, com riquezas consideráveis, e que atingiu a maioridade no ápice da grandeza da Atenas de Péricles. Nascido entre 460 e 455, estava ainda na casa dos vinte quando a Guerra do Peloponeso estourou. Morreu poucos anos após o fim dela, deixando inacabada a sua grande obra. Tucídides toma o cuidado de nos deixar saber que era maduro o suficiente para entender os acontecimentos desde o começo: “Vivi toda a guerra, tendo idade para compreender os eventos e aplicar a eles a minha mente de modo a vê-los com exatidão”. O seu pai, Olorus, carregava um nome trácio e não ateniense. Foi o mesmo nome do avô de Címon, o grande general e estadista que dominou a vida pública ateniense pelas duas décadas seguintes à invasão persa. É praticamente certo que Tucídides fosse parente de Címon e também de um outro Tucídides, filho de Melésias, que foi o mais perigoso adversário político de Péricles na década de 440. Como formulou um estudioso: “Nascido no seio da oposição a Péricles, seguiu-o com um zelo de convertido”.

Tucídides esteve em Atenas desde o começo da Guerra até 424, e nesse período contraiu a grande praga que assolou Atenas entre 430 e 427. Teve sorte em sobreviver, pois a epidemia matou um terço da população. Em 424, foi eleito general, um dos dez homens que eram os mais proeminentes líderes militares e políticos em Atenas. Comandou a força naval na região da Trácia, cuja principal cidade era a colônia ateniense de Anfípolis, local de grande importância econômica e estratégica.  Possivelmente, fora escolhido para o posto devido à sua influência na região. Ele mesmo diz-nos que controlava minas de ouro lá e “tinha uma grande influência entre os líderes” da região. Quando o brilhante general espartano Brásidas tomou a cidade num ataque surpresa, os atenienses culparam Tucídides e condenaram-no por traição. Foi forçado a exilar-se pelos vinte anos que a Guerra ainda duraria. Tamanho infortúnio teve as suas vantagens, especialmente para nós, os seus leitores, porque o permitiu “saber o que estava a ser feito em ambos os lados, especialmente do lado peloponense… E esse tempo livre permitiu-me obter um melhor entendimento do curso dos eventos”.

Tucídides não foi o primeiro a escrever história. Os gregos acreditavam que os poemas épicos de Homero – a Ilíada e a Odisséia –, apesar de compostos com métrica e repletos de personagens mitológicos e divindades – relatavam eventos e pessoas reais de um passado distante. Mesmo um cabeça-dura como Tucídides usou-os como evidência para a história primitiva dos gregos. No século sexto, porém, uma nova maneira de pensar emergiu entre as cidades gregas da Jônia, na costa oeste da Ásia e, especialmente, em Mileto. Não será exagero dizer que essa nova perspectiva trocou o mito pelo pensamento racional, científico até, como meio para explicar o universo.

Essa revolução intelectual ocorreu em algum momento entre o poeta Hesíodo, que descreveu boa parte da mitologia grega por volta do ano de 700, e Hecateu de Mileto, que viveu cerca de dois séculos mais tarde. Hecateu, diferentemente dos primeiros pensadores milésios que especularam sobre questões filosófico-científicas como a natureza e a composição do universo, tratou de temas mais tangíveis. Produziu o primeiro mapa do qual se tem notícia, uma “Descrição da Terra”. Também pesquisou a experiência passada dos seres humanos na forma de Genealogias, nas quais examinava racionalmente os mitos heroicos do passado. Hecateu abordou com juízo crítico as histórias das famílias nobres, que reclamavam para si uma ascendência divina. As suas Genealogias começam com um desafio à tradição: “Eu, Hecateu, direi o que penso ser verdade: as histórias dos gregos são muitas e ridículas”. Isto não o levou a inventar qualquer história que lhe apetecesse ou a se desesperar para encontrar a verdade. Levou-o a interrogar e a pesquisar e à busca racional por conhecimento e entendimento precisos – ou seja, a sua busca levou-o à História.

Não é a Hecateu, contudo, que chamamos o pai da História, mas a Heródoto, nascido em Halicarnasso, na mesma costa egéia da Ásia Menor, em 484. Heródoto faleceu em cerca de 425, vários anos após o começo da Guerra do Peloponeso. Não escreveu sobre o seu próprio tempo, como Tucídides, mas apoiou-se principalmente naquilo que lhe foi dito sobre os tempos passados. Hecateu parece haver se limitado à comparação e à crítica racional daquilo que se supunha ser conhecido. Heródoto levou a cabo novas pesquisas, chegou mesmo a viajar a outros países para coletar novas evidências. Objetivava não apenas conservar as tradições, mas descobrir fatos novos. Ambos os autores precisaram de um novo método que exigia não apenas a ponderação racional das probabilidades, mas também a avaliação da confiabilidade da evidência.

Heródoto, contudo, não foi visto pelos escritores da Antiguidade como alguém que se preocupava com a exatidão, a veracidade e a objetividade dos seus relatos. Apontavam-lhe as imprecisões factuais; muitos o chamaram abertamente de mentiroso e Plutarco escreveu um ensaio sobre a sua “malignidade”, em que o acusava de falta de patriotismo e preconceito em favor de Atenas. De fato, dizem do “Pai da História” que ele lia a sua obra em apresentações públicas, como a poesia épica, para o deleite das suas platéias. Foi Tucídides, um jovem contemporâneo de Heródoto, que reinventou a História, abordando-a de uma maneira completamente distinta. Criticou Heródoto sem nomeá-lo diretamente e corrigiu alguns dos seus erros factuais, menosprezando a obra do historiador das Guerras Médicas como “um texto de encomenda apenas válido para o momento” se comparado ao seu próprio esforço.

Não é fácil entender as idéias de Tucídides. Ele não escreveu um tratado político ou filosófico apresentando os seus pontos de vista e os seus argumentos em favor deles. Escreveu uma história, almejando a maior objetividade possível, prendendo-se seriamente ao tema da guerra do Pelopoloneso e evitando digressões ao máximo. São importantes os momentos em que afirma a sua opinião diretamente; são a base mais apropriada para a compreensão do seu pensamento. Algumas dessas afirmações tratam do seu método de pesquisa e outras, da sua visão dos processos usuais da vida política.

Considerando as idéias incorporadas na História, parece útil e interessante comparar Tucídides com o seu grande predecessor Heródoto. Tucídides parece ter dado um salto espetacular rumo à modernidade. Não aceitava nem racionalizava os mitos, mas os ignorava ou os analisava com sangue frio. Não buscava na vontade dos deuses as explicações para o comportamento humano e, algumas vezes, não as buscava sequer na vontade dos indivíduos, mas numa análise geral do comportamento dos homens em sociedade. Tucídides, porém, não era um tipo que aparecia milagrosa e inexplicavelmente na cena. Refletia o crescimento das faculdades intelectuais, que vieram a exercer uma influência importante na vida grega no século V, e que no seu todo são algumas vezes chamadas de “o Iluminismo grego”.

Dois elementos de tal movimento parecem ter afetado com força o pensamento de Tucídides: o movimento sofista e a escola de escritores médicos ao redor de Hipócrates de Quios. De modos diferentes, cada uma era um ramo da árvore da pesquisa racional sobre o universo radicada nas cidades gregas da Ásia Menor no século sexto. Tales, Anaximandro, Anaxímenes e os seus sucessores diferiam dos primeiros pesquisadores da natureza do mundo e da sua origem por terem intuições inteiramente naturalistas. Tales, por exemplo, propôs uma teoria da origem da Terra em que tudo se desenvolvia naturalmente, sem intervenção divina, a partir de uma água primeva num processo parecido com as cheias do Nilo.

Essa tradição de teorizar em termos naturalistas deu origem tanto à Ciência como à Filosofia, que não se diferenciavam uma da outra nas primeiras especulações acerca do mundo físico. O pensamento sobre a Física parecia ter ido o mais longe possível por volta do século V. O que permanecia vivo e potente era o espírito de investigação de cunho naturalista. O sentimento da nova época é que o próprio homem é o que deveria ser estudado pelo homem. Os sofistas interessaram-se profundamente pelo papel do homem na sociedade; a escola hipocrática de medicina preocupava-se com o bem-estar físico do homem. Ambas continuavam a evitar explicações não naturais ou sobrenaturais e a buscar um entendimento do ser humano que levasse em conta apenas a sua própria natureza.

O campo de pesquisa de Tucídides não era a natureza física do universo nem a natureza física do homem, mas a sociedade do homem que vive na polis. Política, no mais amplo sentido, a busca da compreensão do comportamento do homem em sociedade, era o seu interesse transcendente. Nisso ele se distinguia dos físicos, dos sofistas e dos hipocráticos, mas as idéias deles ajudaram a moldar a sua mente. Como todos eles, começou pela observação dos fenômenos e passou a identificar e descrever o padrão racional que emergia deles. Os seus dados eram as ações históricas dos homens no passado, remoto ou muito recente. Quando suficientemente multiplicados e propriamente compreendidos, os dados davam origem a regras gerais do comportamento humano que poderiam ser úteis aos homens no futuro. O estudioso do comportamento social — isto é, o historiador — tem uma dupla responsabilidade: primeiro, buscar com diligência e exatidão a verdade sobre o passado e, depois, interpretar os eventos com sabedoria e entendimento, fazendo assim uma contribuição perene. A parte de estabelecer os fatos (ta erga) tinha importância vital, mas estava subordinada à formulação das interpretações (logoi) que dela emergiam.

Tucídides era mais e menos que qualquer tipo de cientista, mas ninguém que leia o relato do historiador da grande praga em Atenas poderá deixar de ver sua grande dívida para com os hipocráticos com relação a tal doença, que ele mesmo contraiu. Ele oferece uma descrição precisa dos sintomas e da evolução de modo a que ela “quiçá possa ser reconhecida pelo estudioso, no caso de um novo surto”. A implicação clara disso é que um relato preciso do que ocorreu pode ser usado no futuro para ajudar a deter o progresso da doença ou, pelo menos, preparar as pessoas para lidarem com os sintomas dela.

Mas Tucídides é um estudioso da sociedade e a sua descrição da praga inclui mais coisas do que as suas conseqüências físicas. O efeito de um choque tão grande no espírito de uma sociedade tinha mais interesse. Na medida em que a morte e o desespero enfraqueciam a fibra moral da comunidade, os escrúpulos legais e religiosos normais dos homens pararam de atuar e os atenienses entregaram-se a um hedonismo irrestrito que talvez tenha sido mais danoso à sua causa do que o mero sofrimento físico. A descrição da praga não é apenas uma digressão humanitária e útil, mas um componente necessário dos erga que ajudará a justificar o resultado da guerra.

Mas a descrição e análise cuidadosas da praga não iluminam apenas o curso futuro da Guerra do Peloponeso. Um entendimento apropriado dos eventos pode contribuir para uma melhor compreensão de toda a história humana. As revoluções que perturbaram a Grécia durante a Guerra, como por exemplo em Córcira, trouxeram consigo calamidades terríveis, “tais como as que já houve e sempre haverá, enquanto a natureza da humanidade permanecer a mesma, embora de maneiras mais severas ou mais brandas e com variados sintomas de acordo com a variedade de casos particulares”.

Para o exame da descrição e análise da política que inventou, Tucídides trouxe ferramentas fornecidas pelos sofistas e pelos hipocráticos. Uma das idéias características do sofismo era a distinção de dois elementos que determinam o comportamento do homem em sociedade: physis (natureza) e nomos (costume ou lei). Na visão dos sofistas, physisrepresenta a tendência inata do homem a satisfazer os seus quereres, enquanto nomos é o mecanismo pelo qual a sociedade se protege dos impulsos anti-sociais da physis humana. A sociedade grega baseava-se na aceitação geral donomos como algo sagrado; o radicalismo dos sofistas está em ampla medida na sua atitude cética com relação a isso. Tucídides não aceitava a iconoclastia extremista dos sofistas, mas julgava a distinção entre physis e nomos uma ferramenta útil para a análise política. Como compreender as atrocidades aterrorizantes que os homens cometem em tempos de guerra civil? Como explicar a transformação de cidadãos que normalmente respeitam a lei em animais de rapina movidos por paixões incontroláveis? “No meio da confusão em que a vida foi lançada nas cidades, a natureza humana (hê anthropeia physis), sempre a rebelar-se contra a lei e agora contra o seu mestre, mostrou-se com alegria desgovernada pelas paixões, acima do respeito pela justiça e inimiga de toda a superioridade”.

Essa passagem é um exemplo esplêndido do método de Tucídides: assumir a natureza essencialmente uniforme do ser humano, neste caso, a inveja e a desconfiança com relação a qualquer distinção e superioridade. Sob circunstâncias normais, a lei e o costume a controlam, mas quando as circunstâncias — no caso, prolongadas pela guerra — permitem, os elos artificiais desfazem-se e os homens retornam ao seu estado natural. Um diagnóstico analítico apropriado é capaz de prever a sua aparição e o seu desenvolvimento da mesma maneira que um médico que conheça os sintomas do seu paciente pode predizer com grande chance de acerto a evolução da doença, visto que ele conhece as suas características gerais e o seu curso natural.

Tamanha austeridade, tamanha aproximação aos métodos das ciências naturais, podem dar a impressão de deixar Tucídides vulnerável a acusação de ser demasiado científico e, por isso, anti-histórico. É, contudo, errado dizer que Tucídides pouco se importava com os eventos; a sua própria proximidade com a idéia hipocrática supõe uma preocupação cuidadosa com os eventos específicos que constituem o todo do seu objeto de estudo. Além do mais, ninguém que leia o relato brilhante e comovente que Tucídides faz da campanha na Sicília, desde o seu leviano planejamento até o seu final trágico, pode duvidar do seu gênio narrativo ou do seu amor de historiador pelos eventos em si. É errado, ainda por cima, reprovar Tucídides por buscar padrões na História: é um equívoco ver a sua tentativa de produzir um estudo empírico rigoroso sobre a política como a procura por “uma verdade eterna e imutável”. Tucídides buscou apenas o grau de certeza e consistência possível no estudo dos eventos da sociedade humana, não nos elementos da natureza.

As afirmações do próprio Tucídides deixam claro que o seu entendimento dos eventos humanos nada tem que ver com leis como as da Física ou as verdades “absolutas” de tipo filosófico. A visão tucidideana da análise política não apresenta a corrente diamantina do determinismo e, de fato, reconhece verdadeiramente a existência do inexplicável. Em diversos pontos cruciais da sua História, explica eventos importantes referindo-se à tychê (fortuna), embora tais casos não sejam evidência de que acreditasse na essencial irracionalidade do mundo. Pelo contrário, o historiador acreditava que o mundo era passível de uma análise racional, apenas não com uma certeza absoluta ou científica. Pessoas inteligentes com dotes extraordinários poderiam, mediante um estudo cuidadoso e sistemático do comportamento humano, fazer estimativas úteis da provável reação das pessoas, especialmente en masse.

A concepção tucidideana do estudo do comportamento político distingue-se do determinismo que supostamente é a base das ciências naturais de um modo ainda mais básico. Tucídides dá grande ênfase ao papel do indivíduo na História e na capacidade que ele tem de mudar o seu curso. O aspecto didático da sua obra, a tentativa de identificar padrões subjacentes, quer oferecer aos indivíduos perspicazes o insight (gnômé) com que ver e controlar os eventos políticos. E tais líderes políticos perspicazes existiam.

Temístocles, por exemplo, “era o melhor juiz para aquilo que estava próximo de acontecer e o mais sábio para prever o que aconteceria num futuro distante” e podia “prever brilhantemente aquilo de melhor e de pior que estava oculto num futuro obscuro”. Como conseqüência, “superava a todos os outros na capacidade de responder intuitivamente numa emergência”. É ainda mais clara a convicção de Tucídides de que os dotes especiais de Péricles afetaram o curso da Guerra. Péricles possuía as qualidades da antevisão, do patriotismo e da incorruptibilidade: “Durante todo o tempo em que esteve à frente do Estado no período de paz, buscou uma política moderada e conservadora, e no seu tempo a grandeza atingiu o seu ápice”, mas foi sucedido por homens que careciam dos seus dotes e desviaram-se das suas sábias políticas. “E, no entanto,” diz Tucídides,

“ainda resistiram por dez anos aos seus inimigos originais… e aos seus próprios aliados… e contra Ciro, filho do rei da Pérsia… E não desistiram enquanto não se destruíram a si próprios por causa dos seus conflitos internos. Os recursos com que Péricles contava na época eram tão imensamente grandiosos que ele previu uma vitória fácil para Atenas sobre os peloponenses apenas”.

Não pode haver acordo mais claro com a idéia de que os homens sábios podem fazer planos precisos e bem fundamentados para o futuro.

É precisamente essa expectativa de que tais homens acharão o seu relato útil no futuro que explica a sua extraordinária ênfase na exatidão do trabalho do historiador. Com exceção das raras afirmações diretas, as opiniões do próprio historiador podem ser vistas nos discursos que ele põe na boca dos seus personagens. Tucídides conta-nos a respeito do seu tratamento dos discursos:

“Em todos os casos, sempre foi muito difícil guardá-los palavra por palavra na memória, então o meu hábito foi fazer com que os oradores dissessem aquilo que na minha opinião esperava-se deles nas diferentes ocasiões, claro que se prendendo o máximo possível ao sentido geral do que eles realmente disseram”.

Este é a declaração do propósito de registrar os discursos como foram realmente pronunciados, não os inventados pelo historiador, na tentativa de deixá-los o mais fidedignos possível. Se Tucídides fizesse qualquer outra coisa, se inventasse discursos ou inserisse neles as suas próprias idéias em vez de tentar preservar os assuntos abordados pelo orador como era seu costume, teria mentido aos seus leitores. Deve-se assumir aqui que Tucídides quis dar às suas palavras exatamente o seu sentido mais óbvio: esses discursos que ele provavelmente ouviu pessoalmente devem ser tomados como um registro preciso e razoável das idéias do orador. Os discursos que ele provavelmente não ouviu e de que provavelmente não recebeu um relato confiável, se os há, podem ser tomados como expressão das idéias de Tucídides.

Após explicar o seu método de registrar os discursos, Tucídides conta ao leitor os grandes trabalhos que teve para certificar-se do curso dos eventos:

“No que diz respeito aos fatos dos eventos da Guerra, julguei que seria certo relatá-los não como me deparei com eles nem de acordo com as minhas pré-disposições, mas apenas depois de investigá-los com a maior exatidão possível, tanto os eventos em que estive presente como aqueles de que fui informado por outros. E o empenho em descobrir a verdade desse fatos significou um trabalho muito duro, porque aqueles que foram testemunhas oculares dos mesmos eventos não relataram as mesmas coisas. Os relatos diferiam por causa da parcialidade em favor de um ou de outro lado ou também por causa das falhas na memória deles.

“E, talvez, por carecer de contos fabulosos, o meu relato será considerado pouco agradável àqueles que o ouvirem, mas se for julgado útil para aqueles que buscam um conhecimento exato do passado como um auxílio à interpretação do futuro – que no curso das coisas humanas parecerá com ele, quando não o refletir – dar-me-ei por satisfeito.”

Poucos notaram que o último parágrafo está intimamente ligado ao que vem antes e é o seu complemento necessário. Explica o porquê de Tucídides ter se submetido a tantos trabalhos para apresentar os fatos da sua História da maneira mais exata possível. Apenas assim ela poderia cumprir o seu propósito de servir de material para que os sábios do futuro possam estudar o padrão do comportamento humano, especialmente em circunstâncias tão tensas, tirar lições disso, e conseqüentemente tomar melhores decisões. Se os fatos do seu relato estiverem errados, suas interpretações também estarão e tampouco servirão para fomentar a sabedoria política.

A magnífica História de Tucídides toca pontos que permanecem vitais em áreas de importância crônica para o seu tema: Política, Relações Internacionais e Guerra. Elas continuam a ser inescapáveis e cruciais para o entendimento e condução dos assuntos humanos, independentemente das modas intelectuais do nosso tempo. Tucídides foi o primeiro a tratar dessas questões de significância permanente usando a razão e o mais árduo e cuidadoso exame da história do seu tempo para jogar uma luz sobre elas.

Donald Kagan é professor de Clássicos e História na Universidade de Yale. “The student of political behavior” é um excerto de Thucydides: The Reinvention of History (Viking Adult, 2009).

Tradução de Cristian Clemente.

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 4, Dez/2009. Disponível [online] no link: <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-4/tucidides-o-estudioso-do-comportamento-politico/>

Imagem: Estátua de Tucídides  em frente ao Parlamento em Viena. Foto de Marco Woschitz, neste link.

“O Grito Silencioso (The Silent Scream)” (Documentário)

Política e Sociologia | 30/09/2014 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Grito-Silencioso(doc)O documentário The Silent Scream (“O Grito Silencioso”, em português, de 1984) mostra com detalhes o que um bebê sofre no útero materno enquanto realizam seu aborto, de modo que se percebe que o bebê sofre dor e desconforto enquanto se realiza a operação. O documentário é dirigido pelo Dr. Bernard Nathanson, também conhecido como “Rei do Aborto” (admitiu ser responsável por mais 75.000 abortos), mas que, depois de algum tempo, realizando abortos com técnicas de ultrassonografia, reviu sua posição, deixando de apoiar tal prática. Segue o documentário:

 

 

Lógica, retórica e bebês para livre abate

Política e Sociologia | 25/09/2014 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

O dia de  28 de setembro foi definido como o dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização do Aborto, no V Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho, realizado na Argentina há mais de dez anos. O movimento feminista, desde então, costuma sair às ruas para lutar por esse direito. A descriminalização do aborto tem, por parte dos movimentos a seu favor, discursos e argumentos. Mas será que os argumentos e discursos pró-aborto são logicamente consistentes? Paremos um pouco para pensar a partir do artigo que segue:

LÓGICA, RETÓRICA E BEBÊS PARA LIVRE ABATE

Não venho aqui para replicar mais um argumento abortista pela singela razão de que não se pode replicar algo que não existe: as propostas abortistas são insustentáveis quando se aplica a lógica formal sem muito esforço teórico. A ideia de redigir estas linhas veio enquanto assistia a uma aula de lógica formal na pós-graduação. A lógica formal é a lógica criada por Aristóteles: Pedro é homem. Todo homem pensa. Logo, Pedro pensa.

É uma lógica cuja conclusão já está na argumentação. Leia novamente as duas proposições anteriores, excluindo o predicado na primeira e o sujeito da segunda. As teses abortistas são assim: como partem de premissas falsas ou inexistentes, as contradições saltam aos olhos quando são submetidas ao mesmo exercício lógico.

Além da questão lógica, do ponto de vista retórico, submeter as ideias abortistas ao filtro da razão constitui-se um exercício muito interessante, porque cada nova conclusão a que se chega só vem a reforçar a coerência dos argumentos antiabortistas. Por isso, tenho um certo fascínio intelectual pelo tema.

Então, com a licença do leitor, vamos exercitar a lógica e a retórica. Macabramente. Se um feto pode ser perfeitamente abortado, por que não um recém-nascido? Sim, um recém-nascido, aquele ser que já deu um sinal sonoro de vida, já mexeu as pernas e os braços e, no caso de meu primeiro filho, já deu sua primeira esguichadinha?

É uma pergunta muito boa. E tão perigosa quanto as curvas da Rio-Santos. Recentemente, os filósofos italianos Alberto Giubilini e Francesca Minerva tentaram respondê-la afirmativamente no reputado “The Journal of Medical Ethics”. O que seria um mero desdobramento lógico da cartilha abortista fez corar intelectuais europeus. Talvez, pelo ineditismo da proposta. Ou, quem sabe, pelo excesso de lógica aplicada…

E, apesar da Europa não ser uma grande nação islã (embora alguns países caminhem a passos firmes nessa direção), o casal de pensadores sofreu várias ameaças de morte. Lógica macabra pode ser mortal. Ou pensar demais pode fazer mal à vida.

Depois que pude ler o ensaio científico (“After-birth abortion: why should the baby live?”), reconheço a lógica implacável e o rigor teórico do estudo, embora discorde das premissas. Eis uma das ideias: em muitas sociedades ocidentais, o aborto pode ser feito por mera vontade dos pais, variando apenas o limite temporal de semanas. Ou seja, não é preciso invocar nenhuma justificativa médica para encerrar a gravidez. É suficiente querer. E, depois, fazer.

Constatada essa autonomia extrema, uma das principais linhas da argumentação abortista, por que ela não poderia ser estendida ao recém-nascido, sobretudo se são diagnosticadas doenças ou deformações que não foram captadas durante a gestação, como a asfixia perinatal, a síndrome “Treacher-Collins”, que afeta a formação craniofacial, ou mesmo a síndrome de Down, cujos casos não são totalmente diagnosticados desde a gravidez?

Mas a lógica e a retórica macabras ainda podem permitir novas e mais horripilantes conclusões. Na Holanda, por exemplo, o Protocolo Groningen, cuja referência é feita pelo casal de pesquisadores, já permite que crianças com doenças ou sofrimentos insuportáveis sejam submetidas à eutanásia por mera liberalidade dos pais e aconselhamento do médico.

A diferença entre o protocolo holandês e a proposta do casal de pensadores é que o aborto “pós-nascimento” não é propriamente uma eutanásia, porque não é a vontade da criança que deve ser respeitada, mas a dos pais. O mesmo casal de pesquisadores afirma que o aborto “pós-nascimento” considera que a vontade das pessoas atuais (os pais) é superior “aos hipotéticos interesses de hipotéticas pessoas potenciais” (o recém-nascido).

Também, em razão disso, o aborto “pós-nascimento” não pode ser confundido com o infanticídio, porque, para que o aborto “pós-nascimento” seja reputado ilícito (na ótica do casal de pesquisadores), é necessário existir uma pessoa no “sentido moral” do termo, ou seja, alguém que atribui a sua própria existência algum valor, considerando o fim dessa existência uma perda real. Fico a imaginar uma criança com um ano de idade, sentada em seu pinico, na posição da famosa estátua de Rodin, refletindo profundamente sobre o sentido de sua existência…

Quando um Estado encampa não só essa versão sofisticada de defesa abortista, mas qualquer outra exposta na gôndola do libertarianismo reinante, comete um erro político (em bom português: estamos falando de estritos critérios de justiça política no seio da esfera social, ou seja, de argumentos de razões públicas): um erro que implicaria a quebra de lealdade e de confiança que eu, como cidadão, deposito no ente estatal para que ele proteja valores essenciais para a sobrevivência de qualquer sociedade minimamente sensível. E, se o Estado não protege uma vida nascente (ou mesmo uma vida poente), para que serve o Estado, afinal?

Da maneira posta, o ensaio é intrigante. Porque leva até o limite da lógica uma das principais premissas abortistas. Se o debate do aborto envolve a inviolabilidade do feto e a autonomia absoluta dos pais, nosso coerente casal de pensadores limita-se a esticar os argumentos em favor do aborto do feto até a morte de um recém-nascido indesejado. Eis a lógica e a retórica do aborto: lógica e retórica a serviço da morte com a chancela estatal.

André Gonçalves Fernandes (IFE Campinas)