A crise financeira e a avareza – por Michael Pakaluk

Política e Sociologia | 10/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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Avarice-Jesus SolanaTeria sido a avareza a causa da atual crise financeira? Não “causa” no sentido de que a avareza a produziu sozinha, mas no sentido de que, se não fôssemos avaros, a crise não ocorreria? Se a avareza fosse uma causa nesse sentido, então pelo menos parte da solução para a crise seria “moral”, ou seja, não adviria de políticas, planos e estruturas, mas de indivíduos que pensassem e emendassem as suas vidas. Para que isso se realizasse, precisaríamos antes chegar a um consenso sobre o que é a avareza. No entanto, “avareza” parece uma palavra antiquada, raramente usada por alguém. Quem teria qualquer idéia de como defini-la?

Dificilmente alguém teria se valido da “avareza” para explicar a crise, a não ser que tal palavra realmente desempenhasse um papel nos acontecimentos. Há já culpados suficientes: basta que citemos as hipotecas subprime, asdívidas securitizadas, os credit default swaps e o sobre-endividamento dos fundos livres bancários. Mas o fato de somarmos a avareza a isso tudo diz-nos algo muito interessante acerca do modo como pensamos a economia; baseados no senso comum, assumimos que o mercado se situa num universo moral; e esperamos que os prejuízos fiscais se originem na maldade, e a pujança fiscal na bondade ética.

Os políticos evocam a avareza de maneira insatisfatória, como a última campanha presidencial dos EUA deixou claro. Barack Obama declarou “A era da avareza e da irresponsabilidade em Wall Street e Washington conduziu-nos a um momento arriscado” e “Com demasiada freqüência nós desculpamos e mesmo aderimos integralmente a uma ética da avareza,  do caminho mais fácil, das tramóias, de coisas que sempre ameaçaram a estabilidade a longo prazo do nosso sistema econômico”. John McCain abordou o tema de maneira análoga: “Um número excessivo de pessoas em Wall Street esqueceu ou desprezou as regras básicas das negociações saudáveis. Na sua busca interminável por dinheiro, sonharam esquemas de investimentos que eles mesmos eram incapazes de compreender. Tentaram criar as suas próprias regras. A avareza recebeu a sua paga. O excesso recebeu a sua paga”.

Ao falarem desse modo, os políticos combinam a avareza e o poder de uma maneira que é de pouca serventia. Tanto para Obama como para McCain, a “avareza” ou a ganância é algo que convenientemente afeta as pessoas que estão longe, uns poucos privilegiados e poderosos “em Wall Street e Washington”. Segundo essa visão, ter dinheiro é ter poder, e qualquer um que tenha grandes quantidades de dinheiro (Wall Street) ou muita influência (Washington) é suspeito de agir visando ao seu engrandecimento próprio. A avareza é vista simplesmente como mais um exemplo da máxima de Lord Acton, só que nesse caso é o dinheiro que corrompe, e dinheiro ilimitado corrompe sem limites.

Mas esse modo de falar sobre a avareza não contribui para a reflexão e reforma moral do indivíduo. Discursos que jogam a culpa naqueles que estão longe falham ao provocar o arrependimento e a conversão. Além do mais, erram o alvo, uma vez que a maior parte de nós dispõe de pouco poder – embora todos estejamos sujeitos ao domínio e aos tormentos da avareza.

Fundamentalmente, se existe a tal da avareza, é com certeza uma falha moral particularmente ligada ao dinheiro. E toda a falha pode ser vista como uma expansão indevida de poder, assim como todo o pecado é tradicionalmente visto como uma expressão da vanglória. Um assaltante é um tirano em miniatura bem como um tirano é um assaltante em grande escala, disse Agostinho. Mentir é aumentar o próprio poder à custa da credibilidade e da verdade; cometer adultério é exercer um poder que não se possui sobre o cônjuge alheio. Mesmo bancar o covarde é uma maneira de arrogar-se poder, como, por exemplo, no caso da imunidade ou do direito de não se expor ao perigo da mesma maneira que os outros. Portanto, não é apenas a avareza que está ligada ao poder. E qual seria então o seu caráter distintivo?

Não quero dizer aqui que é incompreensível o porquê de dois políticos estarem dispostos a crer, baseados na própria experiência, que dinheiro equivale a poder. Na verdade, seria bastante razoável relutar a aceitar discursos moralistas sobre a avareza de dois políticos que, somados, levantaram e gastaram mais de um bilhão de dólares nas suas campanhas. Está bem claro o papel retórico da combinação que os políticos fazem entre avareza e poder: trata-se de um precedente para a intervenção governamental. Uma vez definido que a causa da crise foi algo tão moralmente repreensível como a avareza, fica implícito que os culpados dificilmente poderão queixar-se caso sofram ou sejam “punidos” por seus erros. E quando se sugere que essas pessoas irresponsáveis e avaras possuem poder sem limites, ficam justificados quaisquer medidas que se possa tomar para a redução de tal poder.

A avareza como um pecado capital

Uma boa educação nos torna livres e capazes de escolher por conta própria entre o que há de melhor no pensamento e na cultura, independentemente das circunstâncias de tempo e de espaço: ouvir, por exemplo, a melhor música e não a música de minha sociedade; conhecer as teorias que se mostram verdadeiras e não aquelas que por acaso me foram ensinadas. Tenho em casa café brasileiro, vinhos franceses, música vienense. Na minha biblioteca, posso ler os livros de física de Feynman, a crítica de Pound e a teoria dos números de Dedekind. Mas suponhamos que eu queira aprender algo acerca da avareza: a que fonte me voltaria para ter uma referência sobre ela?

Devemos assumir que há certa reciprocidade entre as culturas. Cada época prima por alguma coisa, e não por todas elas. Nosso tempo prima pela ciência e tecnologia. Suponhamos que um sujeito que recebeu boa educação fosse capaz de conhecer não só as culturas do passado, mas também as do futuro: seria ilógico que alguém do século XIII preferisse a física do seu tempo à física do século XX, simplesmente porque a teologia do século XIII era excelente. Da mesma maneira, seria ilógico para nós, aqui e agora, preferir o que os autores contemporâneos dizem sobre a avareza (se é que eles dizem algo sobre ela), simplesmente porque a nossa física é magnífica. Se quisermos uma reflexão sadia sobre as fraquezas e forças do caráter – as virtudes e os vícios -, é melhor olharmos muitos séculos para trás, particularmente para os clássicos e os chamados “Padres da Igreja”. O que Feynman é para a Física, Aristóteles e Cícero, Agostinho e Tomás de Aquino são para a teoria das virtudes e dos vícios.

A avareza aparece classicamente na lista dos “sete pecados capitais”, ao lado da luxúria, da gula, da vanglória, da inveja, da ira e da acídia. Talvez tendamos a pensar que qualquer coisa clássica e central é necessariamente familiar no sentido de que já nos teríamos apropriado dela de algum modo. Talvez presumamos que aquilo com que tivemos contato no passado ou foi incorporado às coisas que aceitamos hoje ou rejeitado com razão. E, contudo, a lista dos sete pecados capitais demonstra que as coisas não são bem assim, que podemos estar radicalmente alienados da nossa própria tradição.

Prova disso é, por exemplo, o fato de, na nossa linguagem cotidiana, não atribuirmos naturalmente esses “pecados capitais” a ninguém. De fato, quase ninguém tem idéia do que é “acídia”; e nunca nos repreendemos uns aos outros chamando-nos de “luxuriosos”, mesmo não se podendo negar que, não importa o sentido da palavra, a luxúria cerca-nos por todos os lados. Em vez disso, possuímos caricaturas desses pecados na nossa imaginação: representamos a avareza talvez como um homem contando e recontando suas moedas de ouro – o que equivale a dizer que não pensamos numa aplicação prática e simples para essas palavras.

A nossa alienação da tradição clássica também se demonstra no fato de abraçarmos uma escala diferente para a valoração das virtudes e dos vícios, o que não dá espaço para qualquer resquício do entendimento clássico. Cada cultura possui inevitavelmente um modelo de caráter ideal, uma vez que possui leis e costumes diferentes, o que supõe um caráter que os cumpra melhor que os demais e, portanto, uma lista dos vícios que lhe são mais opostos. Mas quais são as principais palavras usadas na crítica da nossa cultura contemporânea? O que um observador neutro identificaria como os nossos “pecados capitais” se tomasse como base as coisas que louvamos e as que condenamos? A maior parte do vocabulário que usamos para dizer que alguém é mau inclui um punhado de termos com conotações similares: uma pessoa é má se “julga” os demais, se é “intolerante”, “insensível”, “inflexível”, “ultraconservadora” ou “enviesada”. Seria interessante o projeto de pesquisa que procurasse explicar essa lista. Minha tese é de que essa lista é consideravelmente mais limitada que a lista dos sete pecados capitas e que, além do mais, não a supera. Perdemos a tradição clássica, não a incorporamos, e a substituímos com uma linguagem que rivaliza com ela – o que cria um problema considerável caso continuemos avaros, vaidosos, luxuriosos e inclinados à inveja, a despeito da mudança de linguagem.

Os pecados capitais foram identificados e dispostos numa lista de sete pelo papa Gregório Magno, em finais do século VI. Gregório refletiu sobre eles no seu livro Magna Moralia, que era de fato um comentário gigantesco ao livro de Jó que soma aproximadamente meio milhão de palavras (quase o mesmo tamanho do Antigo Testamento). Coube a escolásticos como Boaventura (Breviloquium) e Tomás de Aquino (Summa) a tarefa de racionalizar a lista. Lá pelo final da Idade Média, a identidade e o significado dos sete pecados capitais eram pressupostos e considerados óbvios para toda pessoa com instrução, como deixam claro o Purgatório de Dante e os Contos de Canterbury de Chaucer.

Gregório falou dos pecados “capitais” e das “filhas” desses pecados. A palavra “capital” vem da palavra latina caput, “cabeça”. Isto é: não no mesmo sentido em que alguns crimes são chamados de “capitais” (porque são considerados merecedores da pena de morte, o que poderia envolver a decapitação do criminoso); o significado está mais para a definição de CEO como a “cabeça” de uma corporação. Acredita-se que os pecados capitais direcionam e governam o comportamento de uma pessoa e que, ao fazê-lo, incitam essa pessoa a outros pecados que (na linguagem de Gregório) seriam as suas filhas. De modo que, de acordo com o conceito que Gregório faz da avareza, por exemplo, as suas filhas são: a trapaça, a fraude, a falsidade, o perjúrio, a inquietude, a violência, e a inclemência. As filhas da inveja, por outro lado, são: o ódio, a murmuração, a detração, a alegria pelas desgraças alheias e a dor diante da prosperidade do próximo. Gregório menciona 43 “filhas” no total. Note-se que, na visão dele, não eram todos os pecados que provinham dos sete pecados básicos, mas a sua quantidade era tal que, do ponto de vista da estratégia, valia a pena isolar estes últimos, classificando-os de “capitais”.

Os pecados capitais, por sua vez, subdividem-se naturalmente num grupo de quatro e noutro de três. Quatro deles supõe algum tipo de avidez desordenada e excessiva: a luxúria (avidez pelos prazeres sexuais), a gula (avidez pelos prazeres da bebida e da comida), a avareza (avidez por dinheiro) e a vanglória (avidez por honra). Ao passo que os outros três não supõem uma avidez, mas uma espécie de aversão: a inveja (dor diante do bem alheio), a ira (irritação diante do bem alheio) e a acídia (dor diante do que é verdadeiramente bom para si mesmo).

Os pecados capitais como origem dos pecados

Por que é valioso do ponto de vista da estratégia fazer a distinção entre esses sete pecados? Tomás de Aquino, na racionalização da lista que fez muito posteriormente, diz que isso se deve à estreita conexão entre os sete pecados capitais e a felicidade. Todos os pensadores antigos e medievais eram unânimes em afirmar que tudo o que fazemos, fazemo-lo com vistas à felicidade. O nosso desejo de felicidade, portanto, é o que motiva todas as nossas ações. Quando é entendida corretamente, diz Tomás de Aquino, a felicidade motiva ações boas e virtuosas – porque a felicidade é, na realidade, a posse e o gozo de Deus. Mas Deus só pode ser possuído por quem estiver purificado do pecado e for inteiramente virtuoso.

Os quatro pecados capitais “por avidez” ocupam um lugar estratégico porque todos procuram algo que é um simulacro da felicidade e que, portanto, pode ter nas nossas vidas um papel semelhante ao da verdadeira felicidade. Por exemplo: supomos que, se estivermos sempre buscando uma quantidade incalculável de dinheiro, estaremos livres dos cuidados e preocupações relacionados com a atenção das nossas necessidades diárias; ou seja: buscamos uma soma incalculável de dinheiro procurando a “auto-suficiência” que julgamos ser uma característica da felicidade. (Tomás de Aquino ecoa a tradição quando diz ser correto buscar a auto-suficiência, mas incorreto querer consegui-la por meio de posses, de vez que, na realidade, os nossos cuidados e necessidades aumentam na mesma medida das nossas posses.) Assim, as pessoas que amam o dinheiro perseguem uma imitação da felicidade, e esse fim ilusório organiza todo o seu comportamento, porque a felicidade é o fim último de toda a ação humana.

Igualmente, a luxúria tem por meta uma espécie de êxtase de prazer que esperamos com razão encontrar-se junto da felicidade, mas que não poderemos obter nas relações sexuais. A gula tem por meta uma espécie de apaziguamento de todos os desejos – inclusive todos os caprichos – que, de novo, esperamos com razão ser uma característica da felicidade, mas que a bebida e a comida não podem proporcionar de fato. E a vanglória é ávida por glória e fama, mas pode apenas ganhar um reconhecimento passageiro dos homens, não um tipo duradouro de fama e glória. Mais uma vez, estamos certos em supor que a felicidade traz consigo a fama e a glória; mas erramos ao tomar o louvor alheio como se fosse a honra que nos satisfará para sempre.

Se os quatro pecados capitais “da avidez” tiram-nos do caminho por nos conduzirem a imitações ilusórias da felicidade, os três pecados capitais “da aversão”, dentro do quadro clássico, tiram-nos do caminho por impedirem que procuremos a verdadeira felicidade. Segundo a teoria clássica, a verdadeira felicidade é obtida pela posse de “bens espirituais” (tais como um bom relacionamento com Deus e as virtudes) de que gozamos em companhia de outras pessoas. (A felicidade, nessa visão, é social, porque os seres humanos são sociais por natureza; fomos feitos para sermos felizes junto dos outros e não sozinhos e por conta própria.) Somos impedidos de procurar a verdadeira felicidade quando relutamos em buscar os bens espirituais para nós mesmos (o que é a acídia), e quando relutamos em endossar o bem do nosso próximo (pela inveja ou pela ira).

É impossível não afirmar algo, uma vez que o tenhamos como um bem. Portanto, esses pecados capitais “de aversão” levam-nos a rejeitar uma coisa boa por causa de algo incômodo ou desagradável que a acompanha. Deixamos de rezar, por exemplo, porque o silêncio e a quietude que lhe são necessários nos aborrecem. Entristecemo-nos com a prosperidade de um amigo porque fazemos uma comparação entre nós e ele, e associamos o seu bem com a nossa própria desdita. Ou ainda: o sucesso de alguém nos incomoda e irrita (“Mas que injustiça!”) porque consideramos que nós é que o merecíamos. (Note-se que dentro da tradição clássica, “acídia” não significa preguiça: de fato, não é incomum ver pessoas que demonstram aversão ao seu verdadeiro bem espiritual por meio de uma atividade que chega a ser frenética dirigida a outras realidades, como bem apontou Pascal no seu famoso diagnóstico acerca da nossa inclinação para os divertissements.) Todas essas aversões são irracionais – algumas delas o são porque é irracional rejeitar um bem incomensuravelmente maior por causa da presença de um mal menor (como rejeitar a oração por causa do aborrecimento); outras, porque é irracional assentir e agir baseando-se numa associação que é meramente ilusória (o sucesso do meu próximo comparado ao meu).

Avareza e vanglória

A avareza e a vanglória ocupam um lugar privilegiado dentro da teoria tradicional dos pecados capitais, uma vez que ambas são consideradas como o ponto de partida de todos os outros pecados, não apenas daqueles pecados a que incitam e que são suas “filhas”. Tal pensamento plasmou-se nas máximas “O amor ao dinheiro está na raiz de todo o mal” e “A vaidade é a origem de todos os pecados”. E não há contradição aqui, já que ambas trabalham juntas e de modo complementar.

Para compreender tal raciocínio, precisamos antes clarificar os conceitos de avareza e vanglória. Como os outros pecados “de avidez”, ambas envolvem um amor excessivo e “desordenado” por algo que é naturalmente amável e que é bom amar de maneira razoável. Isso é evidente no caso da gula: é natural que tenhamos fome e que desejemos uma comida saborosa, mas, quando exageramos nesse desejo, o excesso leva-nos à gula. Da mesma forma, desejamos naturalmente destacar-nos e sobressair-nos, naturalmente queremos reconhecimento pelos nossos feitos – isso é evidente quando notamos como as crianças, desde cedo, gostam de ganhar nos jogos e receber elogios dos seus pais. E, contudo, quando exageramos nisso, caímos na vanglória. Da mesma maneira, as crianças desde cedo querem ter posses, especialmente brinquedos e jogos, e também dinheiro assim que passam a entender o que ele é. E os excessos nesse campo são avareza.

Não é preciso refletir muito para perceber, baseados no senso comum, por que a natureza humana inclui esses desejos que nós, natural e inevitavelmente, desenvolvemos pelas posses e pelo reconhecimento alheio. Precisamos de posses e da orientação alheia para desenvolver-nos bem e florescer na sociedade. Não surpreende, portanto, sermos equipados com desejos de procurar diligentemente essas coisas de que necessitamos.

Mas também é evidente que desde a tenra idade as crianças demonstram com facilidade – e parece ser mesmo inevitável – um amor à distinção e ao dinheiro que é, nalguns aspectos, irracional por ser um tanto excessivo. Por exemplo: todos os irmãos que conheço e que têm aproximadamente a mesma idade brigam entre si por sua posição e ordem nas diversas situações do cotidiano. (Excluo do exemplo os irmãos que possuem uma grande diferença de idade entre si, porque em tais casos a posição é evidente e incontestável.) Se um pai está dirigindo para algum lugar e o banco do passageiro está vago, as crianças brigam para saber quem vai ocupá-lo, uma vez que o lugar é considerado mais importante por estar perto do motorista e ser na frente. É natural e razoável que uma criança queira sentar-se no banco do passageiro. Mas brigar por causa disso não é razoável para ninguém, uma vez que o banco do passageiro não é tão importante que mereça ser conquistado ao preço de uma contenda.  Mas as crianças o desejam de uma maneira tão excessiva que não pensam duas vezes antes de entrar numa briga sem fim por ele. Os pais devem então implementar algum sistema de revezamento ou valerem-se de uma ameaça de castigo que seja suficiente para suprimir, não o desejo, mas as expressões das crianças desse seu desejo de sentar na frente.

Importar-se em demasia com sentar-se no banco do passageiro é, literalmente, vanglória: um apego excessivo a um reconhecimento ou ponto de honra. Todos nós começamos a vida com a tendência de demonstrar a nossa vanglória dessa maneira (embora essa falta, em crianças, seja reconhecidamente menor); a questão é se conseguimos superá-la ou simplesmente mudamos o tipo de distinção pelo qual estamos dispostos a brigar – talvez uma cátedra universitária em vez do banco do passageiro num carro.

O amor ao dinheiro também desperta cedo nas crianças; é muito forte e deforma-se facilmente. Joseph, meu filho de oito anos, põe o lixo da cozinha para fora todos os dias e semanalmente põe o lixo na rua para que o lixeiro o possa levar, muitas vezes enfrentando chuva ou frio intensos. Tudo para ganhar uma recompensa de um dólar. Ele não faria tais coisas apenas por amor à sua mãe. Crianças mais novas podem fazer tarefas extremamente árduas para elas, como recolher os brinquedos espalhados num playground, se sabem que receberão como prêmio um pequeno brinquedo, um carrinho de fricção por exemplo.

Mas o dinheiro é a motivação mais forte por causa do seu caráter indefinido. O dinheiro pode ser gasto em qualquer coisa. Uma criança com alguns dólares no bolso sente-se capaz de adquirir, em princípio, quaisquer bens e serviços que possa querer. “Posso fazer o que eu quiser com esse dinheiro”, ela pensa de si para si. Enfatizemos o “o que eu quiser” dessa afirmação e veremos porque Gregório e Tomás de Aquino, fazendo eco a São Paulo, se referiam ao amor ao dinheiro como raiz de todos os males: é a raiz do mal, dizem eles, da mesma forma que a raiz de uma planta nutre e sustenta o seu crescimento. O caráter indefinido do dinheiro sugere que é possível usá-lo para satisfazer qualquer desejo que se tenha. O dinheiro por si só, considerado como algo indefinido e universalmente aceito como elemento de troca, não carrega consigo noção de limite ou subordinação a alguma regra ou bom propósito. Assim, o amor ao dinheiro, considerado por si só, dá-se simplesmente como um meio para levar a cabo outras coisas, não importando se estas estão sujeitas a uma regra correta ou a um fim bom. Com certeza o leitor terá ouvido o imperativo tecnológico: “Poder implicadever“; paralela a ele, mas precedendo-o, está a “sugestão financeira”: “Poder implica fazer, se eu quiser“.

O amor ao dinheiro

A avareza é algumas vezes definida como “amor desordenado ao dinheiro”, mas num sentido filosófico mais rigoroso o amor ao dinheiro já é desordenado de per se; não pode haver qualquer justo ordenamento dele. O motivo tem a ver com a maneira mais precisa em que os nossos afetos deveriam ser descritos. Se amamos uma coisa unicamente por causa de outra, então é precisamente esta que amamos. O dinheiro é um instrumento, o mais simples entre os mais simples meios. É por isso que o amor por algo bom que podemos levar a cabo graças ao dinheiro “flui diretamente por ele” e é um amor por aquele bem. Se, por exemplo, o meu filho Joseph deseja ardentemente ganhar a sua recompensa para poder comprar presentes de Natal para os seus irmãos e irmãs, então, nesse caso específico, ele não tem nenhum amor pelo dinheiro, mas pelo seus irmãos e irmãs.

Assim, ao perguntar-nos se somos avaros, devemos perguntar se consideramos o dinheiro algo que não seja meramente um meio para atingirmos um fim bom. E nesse sentido parece haver apenas quatro caminhos pelos quais nos podemos desviar. Os exemplos ficam mais claros quando nos detemos sobre o uso (ou gasto) do dinheiro em vez de deter-nos sobre a sua obtenção, de modo que podemos focalizá-los. Primeiro, podemos gastar o dinheiro em coisas que não são meio para nenhum fim bom: neste caso o usamos de maneira indolente, o que é um “capricho”. Segundo, o fim é bom, mas gastamos demasiado com ele, o que pode ser considerado uma “extravagância”. Por outro lado, o fim pode ser bom em si, mas as circunstâncias o tornam injustificado, irracional ou desordenado de alguma maneira. Se o bem que estimamos de maneira desordenada diz respeito ao corpo e ao seu bem-estar, então o gasto acaba por ser um mero “conforto” (e eis aqui o terceiro caso); se, por outra, o gasto está direcionado a um bem psicológico amado desordenadamente, então se trata de “vaidade” (o nosso quarto caso).

Podemos agora ver como a vanglória e a avareza trabalham juntas como se tivessem nascido uma para a outra. Querer dinheiro para um fim que seja indefinido ou hipotético, apenas para poder dizer “posso fazer o que eu quiser com isso”, implica inicialmente uma susceptibilidade à afirmação de que “tenho um motivo para ter isso” que quase sempre traz consigo uma idéia de bajulação – já que eu me gabo de os meus desejos serem o único padrão aceitável para qualquer gasto. A minha ânsia ilimitada por dinheiro é já um tipo de presunção, como se eu pudesse justificar-me por não usar o dinheiro de acordo com qualquer princípio ou limite. Ou ainda, por meio da vanglória, desejamos reforçar e sinalizar a nossa distinção com relação aos outros: e gastar dinheiro em algo que nós podemos, e os outros não, é o melhor meio de fazê-lo (daí o uso do termo “exclusivo” para tornar que um produto é desejável). A primeira manifestação de vaidade nas mulheres aparece em gastos com a aparência e moda e, nos homens, aparece em gastos com instrumentos e acessórios.

Quatro entre as sete tradicionais “filhas” da avareza envolvem uma injustiça direta levada a cabo por variados meios: trapaça, fraude, falsidade, violência, falsidade e perjúrio. Não surpreende que a avareza faça surgir a injustiça. A justiça consiste na aplicação de uma medida adequada para a justa distribuição do dinheiro; implica certo tipo de padrão e limite. Mas amar o dinheiro por si mesmo, como vimos, é amá-lo sem entender que a sua obtenção e o seu uso estão sujeitos a regras e limites. Isso não quer dizer que qualquer pessoa avarenta cometerá inevitavelmente uma injustiça; muito menos que a avareza sempre supõe uma injustiça. O que, sim, isso quer dizer é que, do ponto de vista da pessoa movida pela avareza, considerações sobre a justiça parecerão sempre externas, arbitrárias e impostas. Não há nada na avareza para evitar que se cometa uma injustiça, ao passo que há muito nela que dispõe à obtenção e gasto de dinheiro sem qualquer preocupação acerca da justiça ou da injustiça. Por outro lado, uma pessoa que concebe obter dinheiro para um fim e sob alguma regra achará natural a adoção de alguma regra que trate da justiça. Alguém pode perguntar se um princípio de justiça não deve estar implícito em qualquer fim bom a que se destinará o dinheiro: a criança que quer ganhar dinheiro para comprar presentes para a sua família já supõe que, por exemplo, deve gastar mais dinheiro em presentes para os seus irmãos do que em presentes para colegas.

A avareza e a ética social

Já foi dito que a doutrina dos sete pecados capitais – e outras doutrinas clássicas semelhantes a ela – são de pouca valia nos dias de hoje porque são totalmente individualistas, enquanto todos os mais importantes “pecados” atuais têm um caráter social. Temos uma tendência para acreditar nisso, o que decerto explica a pequena tempestade midiática desencadeada no ano passado quando um cardeal vaticano, Gianfranco Girotti, sugeriu que “novos pecados surgiram no horizonte da humanidade como um corolário do processo inexorável de globalização”. E ele citou como exemplos a “destruição do meio ambiente”, as “experiências com embriões”, o “tráfico de drogas”, e “riqueza obscena”. O Times Onlinenoticiou logo em seguida, e bastante enganado, que o Vaticano tinha identificado os “novos sete pecados capitais”, e outras agências de notícia logo estavam dizendo coisas parecidas. E todas erraram: o bispo unicamente quis chamar a atenção para os novos e importantes tipos de pecado sem negar os antigos. “Se ontem o pecado tinha uma dimensão bastante individual, hoje possui um impacto e uma ressonância que é, sobretudo, social, por causa do grande fenômeno da globalização”, disse o bispo.

No entanto, as duas maneiras mais comuns de entender o contraste entre o “individualismo” da tradição antiga e as dimensões sociais das faltas modernas parecem estar equivocadas. Com certeza, as sociedades mais antigas e tradicionais não careciam da noção de que os pecados privados conduziriam cumulativamente a conseqüências sociais desastrosas. A Bíblia é repleta de exemplos de sociedades que entram em colapso ou são atingidas por catástrofes por causa dos pecados da sua população. São Tiago chega mesmo a pôr a guerra como conseqüência da avareza e da inveja (4, 1-2).

Em tempos mais recentes, Bernard Mandeville escandalizou os seus contemporâneos com a sua Fábula das abelhasprecisamente por sustentar, paradoxalmente e contra a crença padrão, que “vícios privados são virtudes públicas”. E parece que, quanto mais uma cultura crê firmemente na realidade da Providência, mais prontamente procurará por uma ligação entre a fibra moral de um povo e a sua prosperidade com o passar do tempo. Nesse sentido, lembremos do segundo discurso inaugural de Lincoln, que põe a calamidade da Guerra Civil como conseqüência da injustiça de cada um dos proprietários de escravos:

 “Se supomos que a escravidão americana é uma dessas ofensas que, segundo a Providência de Deus, deve necessariamente sobrevir, mas que, continuando além do tempo por Ele determinado, Ele quer agora extirpar, e que ela dá tanto ao Norte como ao Sul esta guerra terrível como pena devida àqueles pelos quais veio a ofensa, veremos nisso algum distanciamento dos seus divinos atributos e que os crentes num Deus vivo sempre reconheceram nEle? Esperamos amorosamente, oramos fervorosamente para que esse poderoso flagelo possa passar rapidamente. Contudo, se Deus deseja que continue até que toda a riqueza empilhada pelos escravos em duzentos e cinqüenta anos de trabalho não remunerado desmorone, e até a última gota de sangue derramada pelo látego seja paga por um outra derramada pela espada, devemos dizer hoje o que já foi dito há três mil anos: Os juízos do Senhor são todos justos e verdadeiros“.

 Também não é o caso de os pecados parecerem mais sérios aos nossos olhos se for levado em conta o seu aspecto social. Pode-se supor que o “consumismo” é o equivalente moderno e social da avareza, bem como o “hedonismo” o é da gula e da luxúria. Ainda assim, podemos nos perguntar se há alguém motivado a evitar o “consumismo” ou mesmo que o perceba e o veja como algo errado sem vê-lo sob o mesmo aspecto que aquilo que muito naturalmente designaríamos pela palavra “avareza”.

De fato, não é claro que o “consumismo” é uma falta – é por isso que as pessoas falam de “consumismo desenfreado” quando querem fazer uma crítica. Entre as filhas tradicionais da avareza está a insensibilidade à misericórdia, que é a falha em perceber que os outros passam necessidade e, quando se percebe, a falta de vontade de sacrificar um pequeno luxo para aliviar a condição do outro. Se dissermos que isso é o resultado da avareza, que por sua vez tem a ver com a vanglória e o orgulho, remontamos a coisas muito abomináveis e a qualificamos, por conseguinte, de abominável. Mas o consumismo, pelo que sabemos, é uma coisa boa, e uma palavra, enquanto indicadora de uma condição social, que nos remonta apenas à nossa própria sociedade, que terá aspectos bons e maus e não será de todo má.

Avareza e negócios

Uma questão pertinente é se a avareza, enquanto um pecado capital, tem qualquer relação com a ética. Isso porque é possível ler dezenas de livros sobre ética nos negócios sem encontrar qualquer referência à avareza.

Em certo sentido há um bom motivo para isso, porque apesar de todo o falatório sobre a influência da avareza na economia moderna, há estruturalmente pouco espaço para a avareza nos negócios hoje em dia. Procurar dinheiro em troca de um produto ou serviço, por um valor aferido e aceito pelo consumidor depois de uma justa exposição, não tem nada que ver com a avareza, uma vez que implica querer receber dinheiro apenas sob uma condição e dentro de alguns limites (a saber, que o bem ou o produto seja aquele com que o consumidor concordou).

As modernas economias de mercado foram ainda além na direção de resolver o problema da avareza por meio de uma nova profissão votada especialmente, por assim dizer, à neutralização da avareza: os contadores e auditores, cujo papel específico na economia de mercado é oferecer serviços de “auditoria”, como se costuma dizer. Isso quer dizer que o contador ou auditor é posto em circunstâncias que o tornam financeiramente “independente” das decisões que ele toma sobre a apresentação que uma companhia lhe faz da sua situação econômica, de tal maneira que o seu julgamento, para a validade das informações divulgadas por tal companhia, não possa ser afetado por distorções oriundas da avareza. Os contadores resolvem o problema da avareza na condução de uma empresa por meio de uma separação entre aqueles que fazem dinheiro e aqueles que divulgam oficialmente quanto dinheiro foi feito e como ele foi feito.

Contudo, parece que a avareza pode entrar no sistema e subvertê-lo. Mas curiosamente parece que o único a fazê-lo é aquele único membro do público investidor que parece não ter o juízo viciado pela avareza. Não foi a “avareza de Wall Street” a primeira responsável pelas maiores fraudes e quebras das últimas duas décadas, mas a avareza do investidor individual. Em todo o caso, os investidores admitiram estar conseguindo prazos e retornos que eram “bons demais para ser verdade”, e, contudo, nunca fizeram qualquer pergunta sobre isso – um sinal clássico de ganância -, portanto a sua condescendência com tal esquema foi essencial para que o aparecimento da fraude e do abuso.

Por exemplo, as pessoas que investiram na Enron não tinham idéia de como ela produzia os seus lucros; compravam as ações unicamente porque o preço delas não parava de subir. É por isso que sete meses antes do colapso da companhia, a analista Bethany Mclean escrevia na 5 Magazine uma matéria em que se fazia essa pergunta e não conseguia responder: “Como exatamente a Enron ganha dinheiro? É difícil chegar a detalhes porque a Enron mantém sob sigilo os dados específicos… e os analistas não têm a menor idéia…”

Ou ainda, no caso da fraude de Bernie Madoff, alegou-se que os investidores foram roubados em mais de cinqüenta bilhões de dólares num caso que não passava de um esquema Ponzi: os investidores continuaram a investir com Madoff fundados na afirmação de que ele tinha uma estratégia de investimento que geraria sempre um lucro de 12% independentemente das tendências do mercado. Isso era impossível, como qualquer um poderia perceber se se desse ao trabalho de averiguar devidamente. Mas os clientes de Madoff, que se gabavam por serem parte de um grupo exclusivo de pessoas ricas que tinham acesso a Madoff, nunca fizeram as perguntas mais óbvias ou céticas.

Finalmente, a recente crise financeira poderia não ter ocorrido se os corretores de hipoteca não tivessem concedido milhões de financiamentos imobiliários insustentáveis; porém, para cada analista de crédito inescrupuloso que concedia tais empréstimos havia centenas de proprietários de casa que sabiam claramente dos riscos do empréstimo e, não obstante, o contraíram, ou que emprestaram dinheiro sem grave necessidade para evitar uma suposta perda no equilíbrio da sua casa.

Esses últimos exemplos mostram porque mesmo hoje ainda é melhor continuarmos a chamar de “avareza” a nossa principal falta com relação ao dinheiro. Ou seja: é melhor reconhecer que essa falha pessoal tem uma dimensão social do que tentar substituí-la pelas muito faladas forças sociais de grande escala como o “consumismo” e o “materialismo”. O que os exemplos citados indicam é que a contribuição de um indivíduo para o comportamento de um grupo muito grande será tão pequena que estará sujeita a problemas criados por aproveitadores. Não faz diferença para a crise financeira se um indivíduo que precisa pagar a sua hipoteca toma dinheiro emprestado responsavelmente ou não. A crise não será consideravelmente mitigada se ele for responsável, nem consideravelmente agravada se for irresponsável.

E, no entanto, a sociedade não pode caminhar bem a não ser que cada membro veja a si mesmo como responsável por evitar problemas relevantes. E é precisamente a isso que uma reflexão sobre a avareza e a sua irracionalidade vai conduzir os membros de determinada sociedade. Curiosamente, evitar um pecado tão “individualmente” que a pessoa o evita sem se preocupar com os seus efeitos na sociedade mostra-se melhor para a sociedade do que evitar algo concebido como um “pecado social”.

 Michael Pakaluk é professor de filosofia no Institute for the Psychological Sciences (Arlington, VA). É graduado e Ph.D. pela Universidade de Harvard, onde teve a sua dissertação orientada por John Rawls. Foi bolsista Marshall para estudar David Hume na Universidade de Edimburgo. Já lecionou na Universidade Clark, e foi professor visitante em Brown, Cambridge, Universidade Católica da América, Harvard e Universidade de St. Andrews. Entre os seus inúmeros artigos e livros acadêmicos estão The Clarendon Aristotle Volume on Nicomachean Ethics VIII and IX (1998); Aristotle’s Nicomachean Ethics: An Introduction (Cambridge University Press, 2005); e Understanding Accounting Ethics, 2ª. ed., com Mark Cheffers, CPA (Allen David Press, 2007).

Tradução de Cristian Clemente, licenciado em Letras pela FFLCH-USP.

Publicado em português na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Edição nº 3, Julho/2009, disponível no link <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/avareza-aqui-e-agora/>

Imagem do post: “Avarice” by Jesus Solana from Madrid, Spain – [http://www.flickr.com/photos/pasotraspaso/6953271968/ 29-52.Uploaded by PDTillman. Licensed under CC BY 2.0 via Wikimedia Commons – http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Avarice.jpg#mediaviewer/File:Avarice.jpg