Lógica, retórica e bebês para livre abate

Política e Sociologia | 25/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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O dia de  28 de setembro foi definido como o dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização do Aborto, no V Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho, realizado na Argentina há mais de dez anos. O movimento feminista, desde então, costuma sair às ruas para lutar por esse direito. A descriminalização do aborto tem, por parte dos movimentos a seu favor, discursos e argumentos. Mas será que os argumentos e discursos pró-aborto são logicamente consistentes? Paremos um pouco para pensar a partir do artigo que segue:

LÓGICA, RETÓRICA E BEBÊS PARA LIVRE ABATE

Não venho aqui para replicar mais um argumento abortista pela singela razão de que não se pode replicar algo que não existe: as propostas abortistas são insustentáveis quando se aplica a lógica formal sem muito esforço teórico. A ideia de redigir estas linhas veio enquanto assistia a uma aula de lógica formal na pós-graduação. A lógica formal é a lógica criada por Aristóteles: Pedro é homem. Todo homem pensa. Logo, Pedro pensa.

É uma lógica cuja conclusão já está na argumentação. Leia novamente as duas proposições anteriores, excluindo o predicado na primeira e o sujeito da segunda. As teses abortistas são assim: como partem de premissas falsas ou inexistentes, as contradições saltam aos olhos quando são submetidas ao mesmo exercício lógico.

Além da questão lógica, do ponto de vista retórico, submeter as ideias abortistas ao filtro da razão constitui-se um exercício muito interessante, porque cada nova conclusão a que se chega só vem a reforçar a coerência dos argumentos antiabortistas. Por isso, tenho um certo fascínio intelectual pelo tema.

Então, com a licença do leitor, vamos exercitar a lógica e a retórica. Macabramente. Se um feto pode ser perfeitamente abortado, por que não um recém-nascido? Sim, um recém-nascido, aquele ser que já deu um sinal sonoro de vida, já mexeu as pernas e os braços e, no caso de meu primeiro filho, já deu sua primeira esguichadinha?

É uma pergunta muito boa. E tão perigosa quanto as curvas da Rio-Santos. Recentemente, os filósofos italianos Alberto Giubilini e Francesca Minerva tentaram respondê-la afirmativamente no reputado “The Journal of Medical Ethics”. O que seria um mero desdobramento lógico da cartilha abortista fez corar intelectuais europeus. Talvez, pelo ineditismo da proposta. Ou, quem sabe, pelo excesso de lógica aplicada…

E, apesar da Europa não ser uma grande nação islã (embora alguns países caminhem a passos firmes nessa direção), o casal de pensadores sofreu várias ameaças de morte. Lógica macabra pode ser mortal. Ou pensar demais pode fazer mal à vida.

Depois que pude ler o ensaio científico (“After-birth abortion: why should the baby live?”), reconheço a lógica implacável e o rigor teórico do estudo, embora discorde das premissas. Eis uma das ideias: em muitas sociedades ocidentais, o aborto pode ser feito por mera vontade dos pais, variando apenas o limite temporal de semanas. Ou seja, não é preciso invocar nenhuma justificativa médica para encerrar a gravidez. É suficiente querer. E, depois, fazer.

Constatada essa autonomia extrema, uma das principais linhas da argumentação abortista, por que ela não poderia ser estendida ao recém-nascido, sobretudo se são diagnosticadas doenças ou deformações que não foram captadas durante a gestação, como a asfixia perinatal, a síndrome “Treacher-Collins”, que afeta a formação craniofacial, ou mesmo a síndrome de Down, cujos casos não são totalmente diagnosticados desde a gravidez?

Mas a lógica e a retórica macabras ainda podem permitir novas e mais horripilantes conclusões. Na Holanda, por exemplo, o Protocolo Groningen, cuja referência é feita pelo casal de pesquisadores, já permite que crianças com doenças ou sofrimentos insuportáveis sejam submetidas à eutanásia por mera liberalidade dos pais e aconselhamento do médico.

A diferença entre o protocolo holandês e a proposta do casal de pensadores é que o aborto “pós-nascimento” não é propriamente uma eutanásia, porque não é a vontade da criança que deve ser respeitada, mas a dos pais. O mesmo casal de pesquisadores afirma que o aborto “pós-nascimento” considera que a vontade das pessoas atuais (os pais) é superior “aos hipotéticos interesses de hipotéticas pessoas potenciais” (o recém-nascido).

Também, em razão disso, o aborto “pós-nascimento” não pode ser confundido com o infanticídio, porque, para que o aborto “pós-nascimento” seja reputado ilícito (na ótica do casal de pesquisadores), é necessário existir uma pessoa no “sentido moral” do termo, ou seja, alguém que atribui a sua própria existência algum valor, considerando o fim dessa existência uma perda real. Fico a imaginar uma criança com um ano de idade, sentada em seu pinico, na posição da famosa estátua de Rodin, refletindo profundamente sobre o sentido de sua existência…

Quando um Estado encampa não só essa versão sofisticada de defesa abortista, mas qualquer outra exposta na gôndola do libertarianismo reinante, comete um erro político (em bom português: estamos falando de estritos critérios de justiça política no seio da esfera social, ou seja, de argumentos de razões públicas): um erro que implicaria a quebra de lealdade e de confiança que eu, como cidadão, deposito no ente estatal para que ele proteja valores essenciais para a sobrevivência de qualquer sociedade minimamente sensível. E, se o Estado não protege uma vida nascente (ou mesmo uma vida poente), para que serve o Estado, afinal?

Da maneira posta, o ensaio é intrigante. Porque leva até o limite da lógica uma das principais premissas abortistas. Se o debate do aborto envolve a inviolabilidade do feto e a autonomia absoluta dos pais, nosso coerente casal de pensadores limita-se a esticar os argumentos em favor do aborto do feto até a morte de um recém-nascido indesejado. Eis a lógica e a retórica do aborto: lógica e retórica a serviço da morte com a chancela estatal.

André Gonçalves Fernandes (IFE Campinas)